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Historia do Pensamento Cristao PAUL TILLICH AT ASTER SERNA c= Historia «*° Pensamento Cristao 2? edicdo “Estas aulas sobre a histdria do pensamento aparecem num momento em que a compreensao da histéria tornou-se tarefa central e problema urgente da atual reflexao teologica. Evidenciam a maneira como o proprio Tillich utilizava a historia. Para ele o passado carregava em si o presente, e seu estudo era como uma alameda aberta para 0 futuro. S6 se pode viver no presente plenamente, aberto para o futuro, em dialogo com 0 passado, interpretando seus monumentos € compreendendo seus movimentos. Este livro demonstra o poder da histéria para um tedlogo que jamais mergulhou no passado para escapar do presente. A historia torna-se viva para o estudante que se deixa introduzir por Tillich na sua forca.” Carl E. Braaten Editor ———4 oe SS —. 8 =——=s io © Paul Tillich nasceu em Starzeddel (atual Starosiedle, Polénia) em 20 de agosto de 1886. Estudou teologia em Berlim, Tubingen @ Halle. Doutorou-se em filosofia em 1910 na Universidade de Breslau e ficenciou-se em teologia, em 1912, na Universidade de Halle, com duas teses sobre filosofia da refigiao e sobre o misticismo ne pensamento do filésofo idealista alemao Friedrich Schelling. Ordenado pastor luterano em 1974, foi capelao do exércifo prussiano durante a primeira querra mundial. Foi professor de teolagia e filosofia em Marburgo, Dresden, Leipzig e Frankfurt. Pertenceu ao grupo, formado por T. Adorno eM. Horkheimer. que deu origem a conhecida “Escola de Frankfurt". Fundador do movimento “Socialismo Religiosa” e adversario deciarado do nazismo em ascencao, Tillich foi obrigado a deixar a Alemanha ea asilar-se nos Estados Unidos em 1933. Ele lecionou no Union Theological Seminary e na Universidade Coltimbia, em Nova York, ha Universidade Harvard e em Chicago. onde morreu em 22 de outubro de 1965. Tradutor Jaci Maraschin - tedlogo, musico € poeta - fai aluno do curso de histéria do pensamento cristéo ministrade por Pauf Tillich no Union Theological Seminary de Nova York em 1955. jl (lll Historia do Pensamento Cristao PAUL TILLICH A publicagao deste livro foi possivel gracas as contribuigées da Evangelisches Missionswetk in Deutschland (Hamburgo, Alemanha) ¢ das Igrejas Protestantes Unidas na Holanda - Ministérios Globais (Utrecht), as quais a Associagio de Seminarios Teoldgicos Evangélicos agradece. Associagio de Seminarios Teolégicos Evangélicos Presidente: Prof. Dr. Nelson Kilpp (Sao Leopoldo) Vice-Presidente: Prof. Dr. Zaqueu Moreita de Oliveira (Recife) Secretario: Prof. Manoel Bernardino de Santana Filho (Rio de Janeito) Tesouseiro: Prof. José Carlos de Souza (Sao Bernardo do Campo) Vogais: Prof. Emilson dos Reis (Engenheiro Coelho) Profa. Jolia Moroszezuk (Porto Alegre) Prof, Werner Wiese (Gio Bento do Sul) Secretatio Geral: Prof. Fernando Bortolleto Filho Nota biografica Nar Jnl (thal 1919-1924 1821 923 1924 1924-1925 m5 1925-1929 1926 1927-1929 Paul Tillich nasce no dia 20 de agosto em Starzeddel (atual Starosiedle, hoje na Polénia). Estudos de teologia protestante em Berlim, ‘Tiibingen, Halle e, de novo, em Berlim. Primeiro exame teolégico. Aspitante a pastor em Lichtenrade. Doutor em filosofia pela Universidade de Breslau. Vicatiado em Nauen. Licenciado em teologia pela Universidade de Halle. Ordenacio na Igreja de Sio Mateus, em Berlim. Pregador assistente na Igreja do Redentor em Berlim-Moabit. Systematische Theologie (inédito). Casa-se com Greti Wever, Capelao militar voluntitio no fronte oeste. Habilitagéo em teologia pela Universidade de Halle. ‘Transferéncia da habilitacado para a Universidade de Betlim. Uber die Idee einer Theolagie der Kultur. Livre-docente da Universidade de Beslim. Divorcia-se de Greti Wever. Das System der Wissenschaften nach Gegenstinden und Methoden. Casa-se com Hannah Werner. Rechifertigung und Zweifel. Professor convidado de teologia sistemAtica na Universidade de Marburgo. Religionsphilosophie. Dogmatiz (publicagio péstuma). Professor catedtatico de ciéncia da religiio da Escola Técnica Superior Saxénica, em Dresden. Dit religidse Lage der Gegenwart. Das Damonische. Kairos und Lagos. Professor catedritico honoritio de filosofia da religiio e de filosofia da cultura da Universidade de Leipzig. 1928 1929-1933, 1930 1933 1933-1934 1933-1937 1936 1937-1940 1940 1940-1955, 1942-1944 1948 1951 1952 1954 1955 1955-1962. 1957 1962 1962-1965 1963 1965 Dax religiise Symbol Professor catedratico em filosofia e sociologia, Universidade de Frank- furt-Main. Redgiise Verwirklichang. Proibido de exercer suas fungdes. Emigracio aos Estados Unidos. Die soxialistische Entscheidung, Lecturer na Universidade Cohimbia de Nova York. Lecturer no Union Theological Seminary de Nova York, The interpretation of history. Associate Professor de teologia filos6fica no Union Theological Seminary de Nova York, ‘Tillich torna-se cidadao norte-americano. Professor de teologia filoséfica no Union Theological Seminary de Nova York. Discursos an meine dentschen Freunde (aos meus amigos alemies). Primeiza viagem 4 Alemanha depois da If Guerra Mundial. The shaking of the foundations. The protestant era. Spsternatic Theolagy I. The courage t0 be. Lave, power, and justice. Biblical religion and the search for ultimate reality, The New Being. Professor na Universidade Harvard. Systematic Theology IT. Dynamics of faith. Prémio da paz dos editores ¢ livreicos alemacs. Professor da cétedra John Nuveen da Faculdade Teoldgica Federada de Chicago. Systematic Theology HI. Christianity and the encounter of world religions. The eternal now. Morality aud beyond. Paul Tillich morre no dia 22 de outubro em Chicago. Fonte: W. Schiisster, Pasd Tilich, Munigne, CH. Beck, 1997, p. 125-126, Crédito: Mazinho Rodngues. Obras de Doagaakxelusiva para: 0rtA 3 (Brasil), - REFS AED logicos blogspot.com, ieizoyPaz. c ‘Terra, 197? A era prot (The protestant era)/Sa0 Paulo, Ciéned ida Religiao, 1997 Dinamica da Pé (Dynamics of faith), Sao Leopoldo, Sinodal, Fiisioria do pensamento cristiio i ane tory of christian thought), Sio Paulo ASE» 1988. pecityas da teologia protestante nos séeulos X XX s on 19% and 20% century prot wlo, ASTE, 1999. Sociedade Paul Tillich do Brasil A/C Prof. Dr. Etienne A. Higuet Universidade Metodista de Sao Paulo — Ciéncias da Religiio Rua do Sacramento 230 — Rudge Ramos 09735-460 Sao Bernardo do Campo, SP, Brasil posreligiao@umesp.com.br Historia do Pensamento Cristao PAUL TILLICH segunda edicao tradugao de Jaci Maraschin ASTE Sao Paulo 2000 Titulo original: 4 History of Christian Thoughi. Publicado primeiramente em Nova York por Harper and Row cmt 1968. © Hannah Tillich 1968, Primeiza edigao em lingua postugue- sa da Associagio de Seminarios Teoligicos Evangéticos @ 1988. Segunda edigdo em lingua portuguesa da Assovinglio de Seminérios Teoldgicos Evangélices © 2000. Todos os direitos reservados, Diregdo editorial Fernando Bortolieto Fitho Revisio Fetnando Bortolleto Filho e Odair Pedroso Mateus Diagramagéo Katharina Vollmer Mateus Capa: Martos Gianell Assessorta editorial: Bwblena ideios Vinsis emblemansiasQcot.com Dados Intemacionais de Catalogagaona Publicagdo(CIP) {Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Vii Pal, 1886-1968, Hiseicin do Pervamento Cristio / Paul illic, aradugie de | aci Maraschin, - 2 ed. - Sio Paula: ASTI, 2000, “Tittulo oeiginal 4 history of Chetan thought ISBN 85.87566402.8 1. Teologia dgmtica 2."Teologia dogma - eben L. Tea, ongaat cpp-2309 dices para catilogosistemidicos 1. Tonlognlggen vt: Hi 2000 Associagao de Seminarios Teolégicos Evangélicos Rua Rego Freitas, $30 P13 1220-010 Sto Paulo SP Brasil Tel. (11) 257.5462 — Fax (11) 256.9896 aste@uol.com. ar wwwaaste org. br Prefacio a segunda edicao brasileira PREFACIO INTRODUCAO OCONCEITO DE DOGMA caPiTULOT APREPARACAO PARA O CRISTIANISMO A Kaitos B, Univetsalismo do impétio romano C. Filosofia helénica 1. Ceticismo 2A tadigio platinica 3. Estoicismo 4. Ecletismo D. Periodo intertestamentatio E. Religides de mistério F Metodologia do Novo Testamento CAPITULO H DESENVOLYIMENTO TEOLOGICO Na IGREJA ANTIGA A. Pais apostélicos B. Movimento apologético 1, Filosofia crista 2. Deus e Logos 15 16 18 24 a 25 26 28 29 31 32 35 38 38 47 49 C. Gnosticismo D. Os pais antignésticos 1. Sistema de autoridades 2..A reacio montanista 3. Deus ctiador 4. Historia da salvagio 5. Thindade e cristologia 6.0 sacramento do batismo E. Neoplatonismo E Clemente e Origenes de Alexandria 1. Cristianismo e flosofia 2. Método alegorico 3, Doutrina de Deus 4. Cristologia 5, Escatologia G. Monarquismo dindmico e modalista 1. Paulo de Semosata 2, Sabélio H. Controversia trinitaria 1. Atianismo 2. Concilio de Nicéia 3. Atanasio ¢ Marcelo 4, Tedlogos capadécios I. Cristologia 1. Teologia antioquena 2. Tealogia alexandina 3. Concilio de Calcedénia 4, Leéncio de Bizincio J. Pseudo-Dionisio Areopagita K. Tettuliano ¢ Cipriano L, Vida e pensamento de Agostinho 1. Oitinetirio de Agostinho 2.A epistemologia de Agostinho 3. Idéia de Deus 4, Douttina do homem 5. Pilosofiz ds histéria 6, Controvérsia pelagiana 7. Doutrina da Lgteja 17 Bt 133 134 142 CAPITULO TIL OMUNDO MEDIEVAL A. Escolasticismo, misticismo e biblicismo B. Método escolastico C. Feicdes do escolasticismo 1. Dialética e tradigio 2. Agostinismo ¢ aristotelismo 3. Fomismo e escousmo 4, Nominalismo ¢ realismo 5. Panteismo e douttina da igeeja D. Forgas religiosas E Algreja medieval F Sactamentos G, Anselmo de Cantuaria H, Abelardo de Paris 1. Bernardo de Claraval J. Joaquim de Fiori E OSéculo treze L. Doutrinas de Tomas de Aquino M. Guilherme de Ockham N. Misticismo germinico 0. Os pré-teformadores CAPITULO IV CATOLICISMO ROMANO DE TRENTO AO SECULO VINTE A. OSignificado da Contra-Reforma B. Doutrina das antoridades C. Doutrina do pecado D. Doutrina da justificagao E. Sacramentos E Infalibilidade papal G. Jansenismo H. Probabilismo 1 Catolicismo atual 145 146 148 150 150 151 151 152 154 154 158 166 174 179 182 186 196 202 205 206 212 212 213 214 215 216 ato 222 224 CAPITULO V A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES A. Martinho Lutero 1. Asuptura 2. A ctitica de Lutero a igteia 3, Conflito com Erasmo 4. G conflito de Lutero com os evangélicos radicais 5. Douttinas de Lutero a. Principio biblico b, Pecado e fé ¢. Idéia de Deus d. Douteina de Cristo ¢. Igteja e Estado B. Huldreich Zwinglio C. Joao Calvino 1. A majestade de Deus 2. Providéncia predestinagio 3. Vida crista 4, Igtejae Estado 5. Autondade das Escrituras CAPITULO VI O DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE A. Ortodoxia 1. Razio ¢ revelacio 2. Principio formal e principio material B, Pietismo C. Tuminismo Indice de nomes 227 227 233 236 237 241 244 243 248 247 249 254 259 261 266 268 270 272 272 274 275 279 282 289 Prefacio a segunda edigio brasileira Ac publicar esta segunda edicao brasileira das aulas de Paul Tillich que receberam onome de Flistéria do Pensamento Cristdo, a Associagao de Seminarios Teolégicos Evan- gélicos — ASTE completa o conjunto que este livro forma com outro, Perspeciinas da Teolygia Protestante nos Séculos XIX e XX, publicado também em segunda edicio, no segundo sermestre do ano passado. Sio obras que se completam ¢ permitem o acesso ao pensamento de um dos maiores tedlogos do nosso século. Assim como ocorreu com Perspecsivas, esta obra ceve seu texto revisado e tivemos condicées de torné-la disponivel com uma apresentagao grafica de excelente qualida- de. Além disso, esta segunda edicio brasileira inclui um indice de nomes, importante recurso neste tipo de obra. Reconhecemos, com respeito e consideragio, a valiosa colaboragao do Prof. Dr. Odair Pedroso Mateus ¢ de sua esposa, Sra. Katharina Vollmer Mateus, pata este empreendimento. Para a ASTE é um privilégio publicar mais uma vez esta obra e, assim, ajudar a aumentar o j4 imenso numero de “alunos” dos cursos de Paul Tillich. Agosto de 2000 Fernande Bostolleto Filho editor da ASTE 15 PREFACIO Esta edicdo das aulas de Paul Tillich sobre a histéria do pensamento cristao revisa o texto da segunda edigio de 1956. A primeira edigdo reunia ¢essas mesmas aulas proferidas por ele em 1953, no Seminario Teolégico Unido de Nova York. As pala- vras de Tillich foram estenografadas e transcritas por Peter H. John e por ele distribu- idas numa pequena edigio. No preficio da “segunda edicdo” desse trabalho, Peter John observava que “tentara corrigir ertos de tipografia, de ortografia ¢ outros de io mais profunda do texto “no transcrigio”’, B reconhecia a necessidade de uma revis que concerne ao estilo e 20 contetido”, que talvez viesse a ser feita no futuro. Em termos ideais, tal revisio teria que set realizada com a assisténcia do proprio Tillich. Sem a sna ajuda esta revisio no seria tio completa como seria de esperar. Embora eu tenha sido liberal no tratamento do estilo, modificando-o quando necessario, tratei do conteido de forma conservadora, Esta Historia do Pensamento Cristao de Tillich pode ser tecebida como complemen- to ao seu liveo Perspectivas da Teolgia Protestante dos Séatos XIX ¢ XX, formando com este o conjunto da visio do autor da teadig&o classica crista. Esse livro comega onde o outto termina. Ha cetta coincidéncia no tratamento da ortodoxia ¢ do iluminismo em relagio com o protestantismo, Os estudantes da histéria intelectual do cristianismo ¢ da teologia contemporanea tetio necessidade de ler as duas obras para apteciar plena- mente a manieica como Tiltich apreende essa tradigio, Essas obras revelam a profandi- dade histéxica da petcepgio de Tillich mais ditetamente do que seus outros ensaios incluindo mesmo a Teolagta Sivtemdtica. Estas aulas sobte a histéria do pensamento aparecem num momento em que a compreensao da histéria totnou-se tarefa central e problema urgente da atual reflexdo teoldgica. Evidenciam a maneira como o préprio Tillich utilizava a histéria. Para ele o passado carregava em si o presente, ¢ seu estudo era como uma alameda aberta pata o futuro. $6 se pode viver no presente plenamente, aberto para o futuro, em didlogo com 9 passado, interpretando seus monumentos e compreendendo seus movimentos. 16 Este livto demonstra o poder da histéria para um tedlogo que jamais mergulhou 10 passado para escapar do presente. A histdtia torna-se viva para o estudante que se deixa introduzir por Tillich na sua forga. Os que foram alunos de Tillich conhecem estas aulas muito bem. Espera-se, con- tudo, que esta edigio sirva as necessidades de uma nova geracio de estudantes de teologia que nio tiveram a sorte de ter Tillich como professor ou de conviver com cle. Sinto-me honrado pox editar esta obra bem como as Perypertivas. Desejo expressar minha profunda gratidio 4 senhora Hannah Tillich ¢ a Robert C. Kimball, encarrega- do do testamenta de Tillich, pela permissao que deram a este trabalho. Também agtadeco ao meu colega, Robert H. Fischer, pelas sugest6es que me deu para melhorar © texto. Carl B. Braaten Osford, Inglaterra setembro de 1967 INTRODUCAO O CONCEITO DE DOGMA ‘Toda experiéncia humana envolve pensamento, simplesmente porque a vida inte- lectual e espiritual do seres humanos manifesta-se pela linguagem. A linguagem é pen- samento expresso em palavtas faladas e ouvidas. Nao hi existéncia humana sem pen- samento. © emocionalismo, tantas vezes dominante nas teligi tante do que o pensamento. FE menos, isso sim. B reduz a religiio ao nivel da experi- éncia subumana da realidade. es, fdo é mais impor- Schleiermacher tessaltava a fancao do “sentimento” na religiao e Hegel a do “pen- samento”, fazendo surgi a tensdo entre ambos. Hegel dizia que até mesmo os cies Ppossuem sentimentos, mas apenas o homem, pensamento. Essa tensao surgiu de um inal-entendide nio intencional do que Schleiermacher queria dizer com “sentimento”, coisa que ainda se repete hoje em dia. Mas o mal-entendido expressa a verdade que 0 homem nae pode viver sem pensamento, O ser humano tem que pensar mesmo se for o mais piedoso dos cristios sem qualquer educagio teoldgica. Até na seligiio damos nomes a objetos especiais; fazemos dis tingio entre 0s divetsos atos da divinda- de; relacionamos os simbolos entre si e explicamos os seus significados. Todas as religides se utilizam da linguagem, e onde hé Jinguagem ha também termos universais ou conceitos que precisamos usar mesmo nos mais primitivos niveis de pensamento. Convém observar que esse conflito entre Hegel e Schleiermacher ji fora antecipado, no século terceiro de nossa era, por Clemente de Alexandria quando disse que se os animais tivessem religido, ela seria muda, sem palavras. A cealidade precede o pensamento, mas ¢ também verdade que o pensamento molda a realidade. Sio interdependentes; um nio pode ser abstraido pelo outro. Nao podemos nos esquecer disso quando tratarmos da trindade ¢ da cristologia. Baseados em muito pensamento, os padres da igteja chegarar a conclusées que influenciam a vida de todos os ctistiios, desde os tempos ptimitivos até hoje. Temos também desenvolvimento de pensamento metodoligico segundo as re- 18 gras da légica que se utiliza de certos métodos para tratar com experiéncias, Quando esse pensamento metodoldgico se expressa, por meio da fala ou de escritos ¢ é comu- aicado 2 outras pessoas, produz doutrinas teolégicas. Trata-se de um passo além do uso mais primitivo do pensamento. Ideaimente, tal procedimento conduz a sistemas teoldgicos, Ora, os sistemas nao so feitos para permanecermos neles. Os que se prendem dentro de determinados sistemas comegam a sentir, depois de algum tem- P®, que 9s sistemas se transformam em prisio. Se vocés criarem sistemas teoldgicos, como eu criei a minha teologia sistemitica, sera preciso it além do sistema para nao se aptisionar nele. Nao obstante, o sistema é necessario por causa de sua consisténcia. Na minha experiéncia, es estudantes que mais se rebelam contra o carter sistematico de minha teologia sio os que se mostram mais impacientes quando descobrem que dois enunciados de minha autoria se contradizem entre si. Sentem-se frustrados quando encontram pontos vulneriveis na estrutura do sistema. E entio, quando consigo supe- rat essa concradi¢aio, acharn que estou tentando aprisiond-los maldosamente no meu sistema. Trata-se de curiosa reacdo. Mas ¢ uma reagio compreensivel. Quando se considera o sistema resposta definitiva ¢ final, ele se torna pior do que qualquer ptisao. Mas se entendermos o sistema como esforgo de reunir conceitos teolégicos em for- mas consistentes de expressio, sem contradigées, ele se torna inevitavel. Mesmo se pensarmos fragmentariamente, como certos fildsofos ¢ tedlogos (alguns até mesmo extraordinarios), cada fragmento conterd o sistema implicitamente. Quando lemos os fragmentos de Nietzsche - em minha opinido o melhor fildsofo que escreveu nesse estilo - encontramos todo um sistema de vida implicito em cada um deles. Nao se pode, pois, evitar o sistema, a nao ser que se escolha dizer asneiras ou escrever de modo contraditorio. Naturalmente, 4s vezes isso aconiece. O sistema corte o perigo nao sé de se transformar em prisio, mas também de se movimentat dentro de si mesmo. Pode se separar da realidade e se transformar em algo, por assim dizer, acima da realidade que pretende descrever. Portanto, meu inte- resse ndo se limita aos sistemas enquanto sistemas, mas no poder que tém para expres- sar a realidade da igteja ¢ da sua vida. As doutrinas da igreja tm sido chamadas de dogmas. Em outros tempos este tipo de curso se chamava “hist6ria do dogma”. Agora o conhecemos pelo nome de “historia do pensamento cristio”. Trata-se apenas de mudanga de designagio. Na verdade, ninguém ousaria discorrer sobre a historia completa do pensamento de to- dos os tedlogos que jé existiram ¢ ainda existem na igreja cristi, Estarfamos num 19 INTRODUCAO oceano de idéias contraditarias. O propésito deste curso é outta. Vamos examina os Pensamentos que se tornaram expressGes aceitas da vida da igreja. E o que a palavra “dogma” queria dizer originalmente. O conceito de dogma situa-se na fronteira entre a igreja eo mundo secular. Mui- tas pessoas que vivem nesse mundo secular tm medo dos dogmas da igreja. Mas nio apenas elas. Ha também pessoas, membros de igrejas, que também tém medo dos dogmas. Os “dogmas” sio como essas capas vermelhas que os ioureiros usam para provocar os toutos na arena; provocam raiva ou agtessividade e, as vezes, até mesmo hota. Acho que essa luta se dé mais entre gente fora da igreja com a igzeja. Para entender essas coisas precisamos examina a histéria do conceito de dogma, que & bastante curiosa. O primeito passo ¢ compreender a palavea “dogma”. Vern do voedbulo grego doken que significa “pensar, imaginar ou ter uma opiniio”, Nas escolas filoséficas gre- gas, anteriores ao cristianismo, doymaia exam as doutrinas especificas que diferenciavam uma escola de outta, os académicos (Platao), os peripatéticos (Anistoteles), 08 estdicos, os céticos e os pitagéricos. Cada escola tinha suas préprias idéias fundamentais. Se aiguém desejasse se tornar membro de uma delas, tinha que aceitar, pelo menos, os pressupostos basicos que a distinguiam das outras. Assim, nem mesmo as escolas filosdfieas deixavamn de ter suas dygmza. De modo semelhante, as douttinas cristis foram entendidas como dogzaia, distin- guindo aescola cristd das escolas filosdficas. Aceitava-se tal situagio como natural; ndo se parecia com a capa vermelha do toureiro nem ptoduzia sentimentos antagénicos. © dogma cristéo, no periodo primitive da historia da igreja, expressava as crencas dos cristios quando ingressavam nas congregacées locais, correndo muitos riscos e trans- formando tremendamente as suas vidas. Assim, os dogmas nao eram declaragdes tedricas individuais; expressavam uma realidade especifica, a realidade da igreja. Em segundo lugar, todos os dogmas foram formulados negativamente, para combater interpretacdes errdneas apacecidas dentro da propria igreja. Eo caso, por exemplo, do Credo Apostélico. Tomemos o primeiro artigo desse credo, “Creio em Deus Pai Todo Poderoso, Ctiador do céu ¢ da terta”, Nao se trata apenas de uma declaracio voltada para si mesma. Representa, ao mesmo tempo, a tejeigdio do dualismo, formulada depois de uma luta de vida e morte por mais de cem anos, O mesmo se pode dizer dos demais dogmas. Quanto mais tardios forem mais claramente mostra- 20 OCONCEITO DEDOGMA rao esse cardter negativo. Podemos chaméa-los de doutrinas protetoras, pois pretendi- am proteger a substincia da mensagem biblica. Até certo ponto essa substincia era fluida, muito embora houvesse uma base fixa que era a confissio de Jesus como o Cristo. Além disso tdo mais era mutivel. Quando surgiam novas doutrinas que pate- cam ameagar a confissio fundamental, as doutrinas protetoras eram-lhe acrescenta- das, Foi assim que o dogma foi se desenvolvendo. Lutero também reconhecia esse fato: 05 dogmas nao resultaram de interesses tedricos, mas da necessidade de se pro- teger a substancia da mensagem ctista. Uma vez que essas novas formulagées protetoras estavam sujeitas 4 interpreta- Ges errdneas, sempre havia a necessidade de forrnulagdes tedricas mais precisas. Nao se podia realizar essa tarefa sem a ajuda de termes filoséficos. Poi assim que muitos conccitos filosé fices entraram nos dogmas cristios. Nao ¢ que as pessoas se interessas- sem por eles enquanto conceitos filosdficos. Lutezo era muito franco a respeito, Dizia abetiamente que nao gostava de termos como “trindade”, “horreousins”, e outtos do mesmo tipo, embora admitisse a necessidade de seu uso, certamente imptdptio, por- que nfo tinhamos termos melhores. Novas formulagées tedricas ptecisam ser feitas sempre que a substincia da fé comece a ser ameacada por doutrinas ou teologias inadequadas. Deu-se mais um passo na histéria desse conceito. Os dogmas comegaram a ser aceitos como ‘ei canénica da igreja. A lei, segundo o cAnon, é a regra do pensamento ou do comportamento. A lei canénica é a lei eclesidstica a qual todos os que pertencem A igreja devern se submeter. Assim, o dogma recebe sangao legal. Na Igreja Romana o dogma faz parte da lei canénica. Sua autoridade emana do dominio da lei. Foi assim que se desenvolveu a Igreja Romana. A propria palavra “romana” conota esse desen- volvimento legalista. Entretanto, a enorme reacdo contra o dogma nos ultimos quatro séculos nio teria havido se talvez nao tivesse surgido um novo fato: a aceitagdo da lei eclesidstica pela sociedade medieval como lei civil, Com isso, a pessoa que quebra a lei canénica das doutrinas allo é 6 herege, discordando das doutrinas fundamentais da igreja, mas criminoso contra o Estado, Foi precisamente o que produziu a reagio tadical na época moderna contra o dogma. Posto que o herege nao apenas subverte a igreja, mas também 0 Estado, nfo lhe basta a excomunhio; deve ser entregue as autoridades civis para ser punido como criminaso. Foi contra essa situagao que o iluminismo se rebelou. A Reforma, na verdade, no mudara esse procedimento. Nio ha divida, porém, de 21 INTRODUCAO que desde © iluminismo todo o pensamento liberal se caracterizou pela recusa do dogma. Essa atitude teve o apoio do desenvolvimento da ciéncia. Pata que a ciéncia e a flosofia pudessem crescer criativamente eta preciso que tivessem completa liberda- de. Na sua famosa Histéria do dogma, Adolf von Harnack j4 perguntava se 0 dogma nao estava no fim em vista da desintegragao softida desde 0 inicio do iluminismo. Tinha consciéncia da existéncia de dogmas ainda no protestantismo ortodoxo, mas acteditava que o Ultimo momento da historia do dogma havia chegado nessa desinte- gragio do dogma provocada pelo iluminismo. Desde entio nio teria havido mais dogma no protestantismo. E clata que Harnack tinha em mente um conceito bastante limitado de dogma, no sentido das doutrinas trinitdrias e cristolégicas da igreja antiga, Ao contrario de Harnack, Reinhold Seeberg afirmou que o desenvolvimento do dogma nao terminou com o iluminisme ¢ que ainda se processa. Estamos diante de ama questio sistemdtica muito importante. Existem ainda dogmas oo protestantismo contemporaneo? Os que se destinam ao ministério da igreja tém de passar por determinados tipos de exame nao tanto de conhecimento, mas de fé. As igrejas querem saber se concotdam ou nfo com suas afirmagdes dogmiticas fandamentais, Em geeal, esses exames sfio conduzidos a partir de uma visio muito limitada da teologia, sem verdadeira compreensio do desenvolvimento do pensamento ctistao, desde os tempos da ottodoxia protestante. Muitos desses estudantes se revoltam intetiortmente contra esses exatnes da £6, muito embora nao devessem se esquecer de que estio entrando num grapo particular, diferente de outros grupos. Em primeiro lugar, trata-se de um grupo cristio e nao pagao; de um grupo protestante ou catdlico; dentro do ptotestantismo o grupo seta episcopal ou batista, ou qualquer outro. Com esse exame a igreja demonstra justificado interesse em receber os que aceitam os seus fundamentos, uma vez que serao seus representantes. Qualquer clube de futebol exige que seus jogadores aceitem as regras € padrées do esporte. Por que deveria a igreja deixar a questo completamente aberta aos sentimentos arbitratios dos individuos? Tal situagao nao seria possfvel. Uma das tarefas da teologia sistematica consiste em auxiliar as igtejas a resolver esse problema a fim de que nio dependam tao unilateralmente dos tedlogos dos séculos dezesseis e dezessete. Quem entra para a igreja deve aceitar certas idéias funda- mentais. Nao se tata, porém, de exigir dos ministros a aceitacao de certo conjunto de dogmas, Como poderiam eles afirmar que no tém chividas sobre tais dogmas? Se 22 OCONCEITO DE DOGMA nao tivessem chividas dificilmente seriam bons ctistéos, porque a vida intelectual é tao ambigua como 4 vida moral. F quem ousaria se chamar de motalmente perfeito? Como, entio, chamar-se de intelectualmente perfeito? © elemento de divida é um elemento da prdpria fé. Compete 4 igreja aceitar os que consideram a fé questio de sua preocupacio suprema, a qual querem servir com toda a sua forca. Mas se a igreja fica querendo saber o que cada um acredita a respeito desta ou daquela doutrina, acabard provocando a desonestidade. Se alguém afismar que concorda completamente com determinada doutrina, por exemplo, a do nascimento virginal, sera desonesto ou deixou de pensar. Como ninguém pode deixar de pensat, tem necessariamente que duvidas. Eis af o problema. Acredito que a nica solugdo possivel ao mundo protestante consiste em entender esse conjunto de doutrinas como representagio de nossa pteocupacao suprema, a qual queremos servir num determinado grupo, que também se fandamenta na mesma preocupacao suprema. Mas ninguém jamais podera prometer que nao vai duvidar diante de qualquer uma dessas douttinas, Os dogmas nao deveriam ser abolidos, mas interpretados de tal maneiza que nao venham a set poderes repressivos destinados a produzir desonestidade e fuga. Ao contririo, sio expresses profundas e maravilhosas da verdadeira vida da igreja. Nesse sentido, procurarei demonstrar que na discuss%o desses dogmas, mesmo quando expressos nas formulas mais abstratas por meio de dificeis conceitos gregos, estamos tratando de coisas nas quais a igreja acteditava expressarem adequadamente sua vida e devocio na luta de vida ov morte contra o mundo pagio ¢ judaico, ld fora, ¢ contra todas as tendéncias desintegradoras aparecidas em seu interior. Conclue afiemando a necessidade de termos o dogma em alta estima; hé certa grandiosidade no dogma. Mas niio devetia ser compreendido como conjunto de doutrinas especificas 4s quais ito. do dogma e © espirito do teriamos que subscrever. Tal atitude contratia o esp cristianismo. CAPITULOI A PREPARACAO PARA O CRISTIANISMO A. Kairos Segundo o apéstolo Paulo nem sempre existe a possibilidade de acontecer 0 que, por exemplo, aconteceu no aparecimento de Jesus, 0 Cristo. A vinda de Jesus se deu hum momento especial da histdria em que tudo estava pteparado. Vamos discutir, agora, essa “preparagio”. Paulo fala de Aaéros, para descrever o sentimento de que o tempo estava pronto, maduro, ou preparado. Esta palavra grega exemplifica a riqueza da lingua grega em compatacao com a pobreza das linguas modetnas. S6 temos um vocibulo para “tempo”. Os gregos tém dois, chrones ¢ airas. Chronos € ¢ tempo do relégio, que se pode medis, como aparece em palavras como “cronologia” ¢ “crond- metro”. Kairos niio tem nada a ver com esse tempo quantitativo do relégio, mas se refere a0 tempo qualitativo da ocasiao, o tempo certo. Algumas histérias do Evange- lho falam desse tempo. Determinados fatos acontecem quando o tempo certo, o aires, 0 chega. Quando se fala em Aairos se quer indicar que alguma coisa aconteceu tornando possiveis ou impossiveis certas agdes. Todos nés experimentamos momen- tos em nossas vidas quando sentimos que agora é 6 tempo certo para agirmos, que ja estamos suficienternente maduros, que podemos tomar decisGes, Trata-se do Aairos. Foi nesse sentido que Paulo € a igreja primitiva falaram de Aarros, o tempo certo para avinda do Cristo. A igreja primitiva ¢ Paulo até certo ponto tentatam mostrar por que esse tempo eta o tempo certo, e de que manecira o seu apatecimento tinha sido possi- bilitado por uma constelagio providencial de fatores. ‘Vamos examinat a seguir a preparagao para a teologia ctisti na situaggo do mun- do no qual Jesus veic. Vamos partir de um ponto de vista teoldgico - ha outros - buscando compreender as possibilidades da teologia ctisti, Nao € como se a revela- cio de Cristo caisse do céu como urna pedra, como alguns tedlogos parecer acredi- tar. “Aqui est: aceitem-na ou tejeitem-na”. E o conttitio de Paulo. Ha de fato um a4 poder revelador universal perpassando a historia toda e prepatando-a para o que o cxistianismo considera a revelagio final. B. Universalismo do império romano O evento do Novo Testamento surgiu na época do universalismo do império romano. Hi elementos positivos ¢ negativos nesse fato, a0 mesmo tempo. Negativa- mente, significa o desmoronamento das zeligises ¢ das culturas nacionais. Positivamen- te, fortalecia a idéia de que a humanidade podia ser concebida como um todo. O império romano produzin clara consciéncia de histéria mundial, em contraste com historias nacionais acidentais. A histéria mundial nao era apenas um propésito a ser alcancado na histétia, no sentido dos profetas; tornara-se, em vez. disso, numa tealida- de empitica. E esse o sentido positive de Roma. Essa cidade representava a monat- quia universal na qual se unia todo o mundo conhecido. Essa idéia foi absorvida pela Igreja Romana e aplicada a0 Papa. Ainda permanece nessa igreja. Com isso, Roma ainda reivindica o poder monazquico sobre o mundo inteiro, seguindo o ideal do império romano. Talvez seja importante observar que jamais deveriamos esquecer que a lgreja Romana é rwana, ¢ que o desenvolvimento dessa igeeja nao foi influenciado apenas pelo cristianismo, mas também pelo império romano, por sua grandiosidade e por cua idéia de lei. A Igeeja Romana tornou-se a herdeira do império zomano, Nunca devemos esquecer esse fato. Quando formos tentados a avaliar a Igrej2 Romana aci- ma do que deveriamos, sera hora de perguniarmos a nds mesmos: quantos elementos romanos ainda petsistem nela, e até que ponto sio vilidos hoje em nossa cultura? © mesmo processo se aplica aos conceitos filoséficos gregos que criaram o dogma cristo. Até que ponto sio vilidos hoje em dia? Naturalmente, nio ¢ preciso rejeitar certos elementos simplesmente porque se romanos ou gregos, ou aceita-los, por outro lado, porque se originacam em Roma ou aa Grécia, mesmo quando sanciona- dos por decisées dogmiaticas. C., Filosofia helénica No contexto desse mundo Unico, dessa histdtia mundial e dessa monarquia criada pot Roma, encontramos o pensamento grego. E o que se conhece como periado helénico da filosofia grega. Fazemos distincZo entre 0 periodo classico do pensamento 25 CAPITULO! prego, que termina com a morte de Aristételes, € o helénico, em que se situarn os estdicos, 0s epicuristas, os neopitagoricos, os céticos € os neoplaténicos. Acha-se aia fonte imediata de boa parte do pensamento ctistio"O cristianismo Primitivo nio foi influenciado tanto pela filosofia cldssica, mas pelo pensamento helénico. Vou novamente distinguir entre elementos positivos e negativos no pensamento gtego do periodo do &airos, quando o mundo antigo terminou. O lado negativo encontra-se no que chamamos de ceticismo, O ceticismo, nio sé na escola dos céticos, mas também em outras escolas de filosofia grega, € 0 fim da tremenda ¢ admiravel tentativa da construcio de um mundo de sentido baseado na interpretagio da realida- de em termos objetivos e racionais, A filosofia grega havia minado as antigas tradigSes mitologicas e rituais. Na época de Sécrates e dos sofistas era Sbvio que essas tradigdes nao ecam mais validas. A sofistica era a revolugio da mentalidade subjetiva contra as antigas tradicées. Mas a vida precisava continuar. Era, todavia, preciso investigar o sentido da vida em todas as suas dimensées, na politica, no direito, na arte, nas relagdes sociais, no conhecimento, na religido etc. Os filésofos gregos procuraram realizar essa tarefa, Nao ficaram sentados em suas esctivaninhas escrevendo livros de filosofia. Se tivessem apenas filosofado sobte filosofia j4 terfamos ha tempo esquecido seus no- mes. Em vez disso, tormatam sobre sia tarefa de criar um mundo espiritual observan- do objetivamente a realidade conforme lhes era dada, interpretando-a em termos de razao analitica e sintética, 1, Ceticismo Esse vasto projeto dos fildsofos gregos de ctiar um mundo de significados co- mecou a desmoronar no apagar das luzes do mundo antigo e produziu o que chamo de epilogo cético do desenvolvimento antigo. Originalmente, o termo skepsis queria divet “observar as coisas”. Mas assumiu um sentido negativo de examinar os dogmas, até mesmo as dogmata das escolas gregas de filosofia, para tejeitd-los, Os céticos, assim, duvidaram de todas as formulagées das escolas de filosofia. Nao que essas escolas nao contivessem em seu ensino boa parte desses elementos céticos, como, por exemplo, a academia platénica. O ceticismo nao conseguiu avangar além do probabilismo en- quanto que as outas escolas tornaram-se pragmiticas. Assim, essa atmosfera cética invadiu todas as escolas e permeou a vida toda no mundo antigo de entio. Tratava-se de assunto vital e muito sério. Nio se tratava novamente de se sentar em mesas de estudo para descobrir que se podia duvidar de todas as coisas. Essa tarefa seria com- parativamente facil. Na verdade, esse movimento significava o desabamento de todas 26 A PREPARAGAO PARA O CRISFIANISMO as convicgdes. A conseqiiéncia dessa atitude - bastante caracteristica da mentalidade gtega - foi uma espécie de paralisia da ago. Se ndo somos mais capazes de pronunciar juizos teézicos, nfo podemos agir na pritica. Portanto, introduziram a doutrina da epocbé, “suspensio de juizo, reserva, nao julgar nem agir, no decidir nem teérica nem praticamente”. A doutrina da goché significava 2 resignagio do juizo em todos os aspectos, Por isso os céticos retiraram-se para os desertos vestidos de uma simples tinica ou manto. Os monges cristios, mais tarde, seguiram-nos nessa atitude, porque eles também se desesperaram sobre a possibilidade de se viver neste mundo, Alguns céticos da igreja primitiva cram sétios ¢ agiam de acordo, ao contrario de certos céti- cos esnobes de nossos dias que nao se animam a atcar com as conseqiiéncias de seu ceticismo, que levam vidas alegres ¢ confortéveis enquanto davidam de todas as coisas. Os céticos gregos retiraram-se da vida e assim mostraram-se consistentes. O ceticismo foi, pois, um dos importantes elementos para a preparacdo do cris- tanismo. As escolas gregas, como os epicutistas, os estdicos, os académicos, os peripatéticos ¢ os neopitagésicos, no exam escolas no sentido em que temos hoje escolas filoséficas, como a escola de Dewey ou a de Whitehead. As escolas filosdficas gregas eram também comunidades ctilticas; eram meio rituais e meio filosdficas. Seus membtos quetiam viver de acordo com as douttinas de seus mestres. Quando surgi © movimento cético, procuravam acima de uido a certeza; queriam-na para poder viver. Acreditavam que os grandes mestres, Platio ou Aristételes, o estéico Zenao ou Epicure, ¢ mais tarde Plotino, ndo eram apenas pensadotes ou professores, mas ho- mens inspirados*Muito antes do cristianismo existir, a idéia de inspiragao ja se desen- volvia nessas escolas pregas: seus fundadores eram inspirados. Quando membros des- sas escolas entearam mais tarde em discussdio com ctistios, diziam, por exemplo, que nio eta Moisés o inspicado, mas Hericlito. Essa doutrina da inspiragao também aju- dou o cristianismo a entrar no mundo. A razio pura nao era capaz de construir a realidade na qual se pudesse viver. O que se dizia sobre os fundadores dessas escolas filoséficas era semelhante a0 que os cristios diziam a respeito do fundados de sua igteja. E curioso notar que um homem como Epicuro - de tal maneira atacado pelos cris#ios que sé testam dele poucos fragmentos - era chamado sorer pelos discipulos. Essa palavra era usada no Novo Testamento para significar “salvador”. Assim, o filésofo Epicuro era conheci- do come salvadox. Por qué? Em geral, Epicuro é considerado um homem que sem- pte viveu bem nos seus agradiveis jardins e que ensinaw uma filosofia hedonista rejei- 7 CAPITULO 1 tada pelos cristos. Mas o mundo antigo nio tinha essa idéia sobte Epicuto, Exa cha- mado de sofer porque fizera a coisa mais importante que alguém poderia fazer pelos seus seguidores: libertava-os da angustia. Epicuro, com seu sistema materialista de atomos, libertava as pessoas dos demdnios presentes na totalidade da vida do mundo antigo. Vé-se bem que a filosofia era assunto muito sério nessa época. Outra conseqiéncia desse espirito cético era o que os estdicos chamaram de aparheéa (apatia), que significa auséncia de sentimentos em relacio as forcas ¢ impulsos da vida, como desejas, alegtias, dores, indo-se além de tudo isso ao estado da sabedoria. Sabi- am que somente algumas pessoas conseguiram aleangar esse estado. Os céticos que se retiraram para os desertos demonstravam até certo ponta essa capacidade. Por tras de tudo isso, naturalmente, situava-se a critica anterior aos deuses mitolégicos ¢ aos ritos tradicionais. A critica da mitologia deu-se na Grécia cerca da mesma época em que 0 Segundo Isaias fazia o mesmo na Judéia. Essa atividade ctitica minava a crenga nos deuses do politeismo. 2, A tradic&o platénica Consideramos anteriormente o lado negative do pensamento grego na época do aires. Mas havia também elementos positives. Vamos examinar primeizamente a tra- digo pleténica. A idéia de transcendéncia, de que existe algo capaz de se sobrepor tealidade empirica, foi desenvolvida pela tradicio platénica e serviu de prepatagio ao advento da teologia crista. Platao falava a respeito de realidade essencial, de “idéias” (ousia) como verdadeiras esséncias das coisas. Ao mesmo ternpo encontramnos em Platio, ¢ até mesmo mais incisivamente no platonismo posterior e no neoplatonismo, forte tendéncia para a desvalorizagao da existéncia. O mundo material nao possuia valor real em comparagio com o mundo essencial. Também para Platio o objetivo interior da existéncia humana era descrito - principalmente no Fido, mas praticamente em todos os demais escritos - como se tornar semethante a Deus tanto quanto possi- vel. Deus éa esfera da realidade espiritual. O sis intetior da existéncia humana realiza- se na participacio nessa esfera espititual e divina, na medida do possivel. Essa mesma idéia da tradicio platénica reaparece especialmente nos escritos dos padres capadécios da igreja pata descrever o alvo supremo da existéncia humana. Surge uma tetceira doutrina, além da idéia de transcendéncia edo tlar da existén- cia humana. Trata-se da queda da alma da eterna participagio no mundo essencial ou espititual, sua degradacio terrena num corpo fisice, que procura se livear da escravi- 23 APREPARACAO PARA O CRISIIANISMO. dio desse corpo, para finalmente se elevar acima do mundo material. O processo seria vagatoso e por etapas, Essas idéias aparecem também na igteja, no apenas entre os misticos cristios, mas também no ensino oficial dos pais da igreja. A idéia da providéncia ver também da tradicao platénica. Estamos acostuma- dos a pensar que essa idéia é crista, mas, na verdade, j4 havia sido formulada por Platéo nos seus tltimos escritos. Tinha 0 ambicioso propésito de acabar com a angiis- tia do destino e da morte presente nz época. © sentimento de angiistia em face do acidental e do necessario, ou destino, que é 4 mesma coisa, representados pelas divin- dades gregas Tye e Hasmarmene, exa muito forte no mundo antigo. Em Romanos 8, onde encontramos © maior hino de triunfo do Novo Testamento, lemos que Cristo tem a funcio de subjugar as forgas deménicas do destino. Ao antecipar essa situagio, por meio de sua doutrina da providéncia, Platio fez enorme contribuigio a teologia. A providéneia, emanada do mais alto dos deuses, dé-nos a coragem para escapac das vicissitucles do destino. O quinto elemento oriundo da tradigdo platénica veio de Axistételes. O divine é forma sem matéria, perfeito em si mesmo. E a idéia mais profunda de Aristételes, Deus, a forma mais perfeita, movimenta o mundo, nao casualmente empurtando-o de fora, mas atraindo todas as coisas finitas pata si mesmo, por meio do amor. Apesar de sua atitude aparentemente cientifica sobre a realidade, Aristételes desenvolveu um dos mais importantes sistemas de amor. Entendia que Deus, a forma suprema, ou ato pure (act#s pxrms), como o chamava, move todas as coisas ao ser amado por todas as coisas. A realidade toda deseja se unit & forma suprema, para se livrar das formas inferiores em que vive, na escravidao da matéria. Mais tarde, o Deus aristotélico, for- ma suprema, entrou na teologia crista ¢ exercen tremetda influéncia sobte ela. 3. Estoicismo Os estéicos foram mais importantes do que Platao e Aristételes juntos paraa vida ¢ 0 destino do mndo antigo. As vidas das pessoas educadas nessa época cram molda- das ptincipalmente pela tradi¢do estéica. Em meu livro A Coragem de Ser, teatei da idéia estéica de coragem capaz de levat as pessoas @ aceitar o destino e a morte. Demonstrei que o cristianismo e€ 0 estoicismo silo os grandes competidores no mundo ocidental. Mas quero demonstrar, agora, algo diferente. O cristianismo tomou de seu rival mui- tas idéias fandamentais, A primeira é a doutrina do Logos, doutrina que pode deses- perar muita gente quando comega a estudar a historia do pensamento trinitario € 29 CAPITULO 1 cristolégico. Mas o desenvolvimento dogmitico do cristianismo nao pode ser enten- dido sem ela. Logos significa “palavra”. Mas também se refere ao sentido da palavra, 4 esteutu- 12 racional indicada por ela. Portanto, Logos também pode significar lei universal da realidade, Herdclito pensava assim. E foi ele o primeiro a empregat esse termo filoso- ficamente. Para ele, Logos era a lei determinante dos movimentos da realidade. Para os estéicos Logos era o poder divino presente na cealidade toda. Observe- mos, a seguir, trés aspectos desse pensamento, muito importantes nos desenvolvimen- tos doutrinarios posteriores. O primeio é a lei da natureza. Logos € 0 principio determinante do movimento de todas as coisas. E a semente divina, o poder divino ctiador, que faz com que as coisas sejam 0 que sio. E é 0 poder criative do movimen- to de todas as coisas, Em segundo lugar, Logos significa lei moral. Podemos chami-la, com Kant, de “‘razao pratica”, a lei inata em todos os seres humanos que se aceitam como personalidade, com a dignidade e a grandeza do ser humane. Ao lermos a expressdo “lei natural” em obras clssicas, ndo devemos confundi-la com lei fisicas, mas entendé-la como lei moral. Por exemplo, quando se fala de “direitos humanos” na constituigio americana, esti se falando de lei natural. Em terceiro lugar, Logos também significa a capacidade humana de reconhecer a realidade. E 0 que se pode chamar de “razio teérica”, Trata-se da capacidade humana da tazao. Tendo o Logos em si, o homem pode descobri-lo também na natureza ¢ na histéria. Para o estoicismo, decorre dai a idéia de que os seres humanos quando determinados pela lei natural, pelo Logos, tornam-se dggikas, sibios. Mas os estdicos nao eram otimistas. Nao acredi- tavarn que todas as pessoas fossem sabias. Achavam, até mesmo, que poucas pessoas alcangavam tal exceléncia. A maioria nao passava de néscios que, as vezes, ficavam na posicao intermedidtia entre esses eos sdbios. O estoicismo professava um pessimismo fundamentai a respeito da maioria dos seres humanos. Originalmente, os estdicos eram gregos. Mais tarde foram também romanos. Entre os mais famosos estéicos contam-se importantes impetadores romanos, como, por exemplo, Marco Aurélie. Aplicavam 0 conceito de Logos 4 situagio politica sob sua responsabilidade. A lei natural significava que todos os seres humanos participam. na tazio em virtude desse simples fato de serem humanos. A partir desse principio criaram leis grandemente superiores as muitas que encontramos na dade Média cristi. Concederam cidadania universal a qualquer pessoa que 0 quisesse porque eram parti- cipantes em poténcia na razao. Naturalmente, nao acteditavam que todo o mundo 30 A PREPARAGAO PARA O CRISTIANISMO: usasse adequadamente a raziio, mas entendiam que por meio da educagio todos po- deriam us4-la um dia. A concessio de cidadania romana a todos os cidadiios das nagdes conquistadas representou tremendo avanco niveladot. As mulheres, os escra- vos e as criangas, considerados inferiores sob a antiga lei romana, tomavam-se iguais perante as leis dos imperadores comanos. Nao foram os cristios que inventaram essas coisas, mas os estdicos, por acreditarem na idéia de que todos pacticipam do Logos universal. (Naturalmente, o cristianismo mantém a mesma idéia em base diferente: todos as seres humanos sao filhos de Deus Pai). Dessa maneira, os estdicos concebe- ram a idéia de um estado todo abrangedor, envolvendo o mundo inteiro, baseado na racionalidade comum de todas as pessoas. O cristianismo poderia ter adotado essa idéia desenvolvendo-a. A diferenga é que os estdicos nao tinham © conceito de peca- do, Falavam em insensatez, mas nao em pecado. Assim, a salvagio se aleangava pot meio da sabedoria. No cristianismo, a salvacao nos é concedica pela gtaga divina. Sao duas atitudes conflitantes até hoje. 4, Ecletismo A igreja cristd absorveu também 0 ecletismo. © termo vem do grego e quer dizer escolher algumas possibilidades entre muitas. Os americanos nao deveriam estranhar essa atitude porque se assemelham 20s antigos romanos ndo s6 nessa postuza como em muitas outtas. Os ecléticos néo eram filésofos criativos como os antigos filsofos gregos. Esses pensadores romanos combinavam, em getal, a politica com preocupa- gdes sobre o Estado. Enquanto ecléticos nao criaram novos sistemas. Em vez disso, escolheram (Cicero, por exemple) os conceitos mais importantes dos sistemas clissi- cos gregos que thes pareciain pragmaticamente Uteis para os cidadios romanos. Desse ponto de vista, escolheram o que poderia produzir o melhor modo de vida possivel para os cidaddos romanos, enquanto cidadios do mundo. Estas sao as ptincipais idéias selecionadas por eles, retomadas pelo iluminismo do século dezoito: providén- cia, porque dava seguranca a vida do povo; Deus, por ser inata em todos, induzinde ao temor de Deus ¢ a disciplina; liberdade moral e responsabilidade, possibilitando a educagio do pove e tornando o povo resistente diante das falhas morais; e, finalmen- te, imortalidade, capaz de ameagar com a panicio num outro mundo os que escapa- vam do castigo aqui na terra. Essas idéias todas também preparam de certa forma o mundo antigo para o cristianismo. 31 CAPITULO! D. Periodo intertestamentario Chegamos ao periodo helénico da seligiio judaica. Diversas idéias ¢ atitudes sur- gitam no judaismo do periodo intertestamentario que influenciaram profundamente a era apostohea, isto é, Jesus, os apdstolos e os escritores do Novo Testamento. Nessa época, a idéia de Deus desandou para a transcendéncia radical. Deus se torna cada vez mais transcendental e, por isso tnesmo, mais untversal. Mas qualquer deus que se torne absolutamente transcendental ¢ absolutamente universal tem de per- der intmeros tragos concretos que os deuses das nagGes possuem. Por essa razaio, comecatam a ser usados nomes capazes de preservar cetta medida de concretitude da divindade, como “céu’’. Por exemplo, encontramos freqiientemente no Novo Testa- mento termos como “reino dos céus” em lugar de “reino de Deus” . Ao mesmo tempo, essa tendéncia abstrata sofria duas influéncias: proibigo ao uso do nome de Deus e a luta contra os antropomorfismos, isto é, a visio de Deus na imagem (morphd) do homem (anthropos). Em conseqiiéncia, desapatecem as paixdes do Deus do Antigo Testamento ¢ a unidade abstrata é ressaltada, Os fildsofos gtegos, que haviam desen- volvido a mesma abstragio radical a respeito de Deus, ¢ os universalistas judeus uni- am-se nessa idéia de Deus. Essa tarefa unificadora foi realizada particularmente por Bilon de Alexandria. Quando Deus fica abstrato, contudo, nao basta a hipostatizagao de algumas de suas qualidades, como céu, altura, gléria etc. Comegam a aparecer seres mediadoes entre Deus e os homens. No periodo intertestamentério, esses seres mediadores torna- ram-se cada vez mais importantes para a piedade pessoal. Em primeiro lugar, vieram os anjos, deuses e deusas deteriorados do paganismo de entaéo. Na época em que os profetas lutavam contra o politeismo, os anjos nao eram necessaries. Quando o perigo do politeismo no mais existia, como no judaisme posterior, os anjos podiam reapa- recer sem qualquer ameaga. Mesmo assim, no entanto, o Novo Testamento tem cons- ciéncia do problema e adverte contra o culto acs anjos. A segunda figura importante era o Messias. O Messias totnara-se um ser transcendental, o rei do paraiso. No livro de Daniel, dependente da religiao persa, 0 Messias é também chamado de “Filho do Homem” destinado a julgar 0 mundo. Nesse livro, 0 termo refete-se a Israel, mas mais tarde veio a representar a figura do “homem vindo de cima”, segundo C] 1,15. 32, A PREPARACAO PARA O CRISTIANISMO Os nomes de Deus aumentam e se tornam quase pessoas vivas. A mais importan- te dessas personificagdes é a Sabedoria de Deus, jé presente no Antigo Testamento. A Sabedotia criara o mundo, aparecera nele, e tetornara ao céu por nfo ter encontrado onde habitar entre os homens. © prologo do quarto Evangelho desenvolve idéia semelhante. © shekinah cepresentava outro desses poderes entre Deus e os seres humanos, significando a habitacio de Deus na terra. Lembremo-nos de memra, a Palavra de Deus, que sé tornon decisiva no quarto Evangelho, Havia ainda 0 “Espirito de Deus”, significanda Deus em acio no Antigo Testamento. Esse “Espirito de Deus” veio a set uma figura parcialmente independente entre Deus altissimo e os seres humanos. A importincia do Logos aumentava por reunit a emra judaica com o dagos filoséfico dos gregos. Em Filon, esse Logos € 0 protegenés buios theaw, 0 filho de Deus unigénito, Esses seres mediadores entre o Deus altissimo e 03 setes humanos substituiam até certo ponto o carater imediato das relagdes com Deus. Como no cristianismo, princi- palmente no catolicismo romano, a idéia de um Deus absolutamente transcendente tornava-se aceitavel 4 mentalidade popular gracas a introdugio dos santos na piedade popular pratica. A doutrina oficial sempre se manteve monoteista; aos santos se daria apenas veneracio, jamais adoragio. Entre Deus ¢ os setes humanos surge um outro mundo de seres poderosos, os deménios. Havia anjos bons e maus, Os anjos maus niio eram apenas agentes de tentagio e castigo sob a diregio de Deus, mas também um dominio de poder em oposicio a Deus. A conversa de Jesus com os fariseus sobre o poder divino e o poder deménico em relacio ao exorcismo de deménios deixa entrever claramente essa idéia. A crenga nos deménios permeava a vida cotidiana daquele tempo e era objeto da mais alta especulagao. Embora se possa perceber certo dualismo nessas idéias, jamais chegou 4 condicao de dualismo ontolégico. Nao se caiu nesse dualismo ontolégico, mesmo com a introdugio de idéias procedentes da Pétsia, por meio do judaismo, incluindo-se a demonclogia da religiio persa, na qual os deménios tém o mesmo watus dos deuses. Todos os poderes diabélicos derivam seu poder de Deus, nio se mantém por si mesmos. E 0 que se vé na mitologia dos anjos caidos. Os anjos maus foram criados bons, mas depois da queda tornaram-se maus € por isso so responsi- eis € sujeitos ao castigo. Nao foram ctiados por algum set antidivino. Estamos, pois, diante do primeiro dogma antipagio. Outra influéncia deste periodo na teologia do Novo Testamento é a elevacao do fututo 4 condic&io de aeoz vindouro. No periodo apocaliptico posterior da histéria judaica, a histétia mundial se dividia em duas épocas: esta na qual estamos vivendo (aion houtos) e a esperada era vindoura (ain mefloa), A presente Epoca era considerada muito pessimisticamente, enquanto se esperava 2 era vindoura com éxtase. A era vin- doura no se identificava apenas com certas idéias politicas; ultcapassava as esperancas politicas dos macabeus na época em que defendiam © povo judeu contra a tirania. Nem se limitava a repetir a mensagem profética, A mensagem profética era muito mais historica ¢ intramundana. As idéias apocalipticas eram cosmoldgicas; 0 cosmos todo participava nesses dois aeons. .A época atual eta controlads por forgas deménicas; © mundo e até mesmo a natureza envelheciam e passavam. Em parte, porque os seres humanos haviam se submetido 4s forgas deménicas e desobedeceram a lei. A queda de Adao produzira o destino universal da morte. Essa idéia havia se desenvolvido da pequena histéria da queda em Génesis ese transformara num sistema como em Paulo. A queda era confirmada por todos os individuos por meio de seu pecado pessoal. O nosso tempo estava marcado por destino cragico, nio obstante a responsabilidade dos individuos por ele. Nesse periodo intertestamentitio a piedade da lei torna-se muito mais importante do que a piedade do culto, substituindo-a em parte. Naruralmente, o templo ainda continua a existir, mas a sinagoga se desenvolve ao seu lado numa espécie de escola teligiosa. Ela passa a ser a forma determinante do desenvolvimento da vida religiosa. Nio se considerava a lei negativamente como estamos acostumados a fazer hoje em dia; para os judeus ela exa uma dédiva ¢ uma alegtia, A lei era eterna, presente constan- temente em Deus ¢ pré-existente da mesma forma como, na teologia ctisti, Jesus setia pré-existente. Os conteddos da lei tinham a ver com a organizagao total da vida, telacionando-se até mesmo com minicias. Todos os momentos da vida submetiam- se a Deus. Eta essa a idéia profunda do legalismo dos fariseus que Jesus atacoa com tanto vigor. H que esse legalismo acabava se transformando em insuportavel fardo. Ha sempre duas possibilidades na vida teligiosa quando ela impinge sobre o pensamento ea acio fardos intolerdveis. A primeira é um “ajeitamento”, seguido pela maioria. Procura reduzir o peso do fardo de modo a ficar mais leve. A segunda é 0 caminho co desespero, seguido por gente como Paulo, Agostinho e Lutero. Lemos no quatto livto de Esdras: “Nos que recebemos a lei nos perderemos por causa de nossos pecados, mas a lei jamais se perdera”. Esse versiculo expressa a mes- 34 APREPARACAO PARA O CRISTIANISMO ma atitude presente nos escritos de Paulo e dominante no judaismo do periodo entre os Testamentos. Muitas dessas idéias marcaram o Novo Testamento. E. Religides de mistério As religides de mistézio também influenciaram a teologia cristi primitiva. Tais religides nio devem ser equacionadas com o misticismo. Encontra-se misticismo em Filon, por exemplo, em sua dontrina do éxtase, ou ek-viatis, significando “ficar fora de si”. Trata-ce da mais alta forma de piedade além da fé, © misticismo teane o éxtase profético com o “entusiasmo”, palavra que vem de en-theostania, significando possuiz o divine, Suzgem dai os sistemas misticos mais sofisticados dos neoplaténicos como, port exemplo, Dionisio Areopagita. Nesses sistemas misticos 0 éxtase da individuo leva-o 2 uniao com o Unico e absoluto Dens. Alem do desenvolvimento do misticismo temos o surgimento ainda mais impor- tante dos deuses concretos relacionados com as religides de mistétio, Sio monoteistas, até certo ponto. Cada pessoa iniciada num dado mistério recebe um deus especial que é 20 mesmo tempo, o nice deus. Coisa que nio lhe impedia de ser iniciada em mais de um mistétio. As figuras desses deuses exam, portanto, mutiveis, Nao havia nada semelhante ao Javé do Antigo Testamento. Os deuses das religides de mistétio influenciaram bastante o culto ¢ a teclogia crist2. Ao ser iniciada num determinado mistério, como mais tarde eram os cristios iniciados nas congregagdes por estAgios, a pessoa passava a participar no deus mistécio e em suas experiéncias. Em Romanos 6, Paulo desereve essas experiéncias em relagio a Jesus em termos de participacio na sua morte e ressusreicho. A experiéncia do éxtase mistico se produz nas atividades do mistério. Os pacticipantes sio levados ao estado de profunda tristeza pela morte do deus, e depois de um certo tempo passam pela experiéncia extatica do deus ressurreto, Os mistérios descrevem 0 sofrimento de Deus. Desde Apolo délfico temos a idéia da patticipacao de Deus nos softimentos huma- nos, Apolo, em Delfos, tinha que pagar pela culpa de ter destruide os poderes do submundo, que tinham seus préprios direitos. Empregavam-se métodos de intoxica- gio por meios psicolégicos: mudanga de luz para escura, jejum rigoroso, incenso, sons, miisica etc, Os mistérios eram também esotéricos. Sé eram iniciados os que se submetiam a 35 CAPITULO rigoroso processo de selegio em preparo. Protegia-se, assim, o mistétio das ceriméni- as contra qualquer profanacao. As congregacées cristas fizeram mais tatde o mesmo para se proteger contra a infiltracio de perseguidores pagios. F. Metodologia do Novo Testamento Estamos discutindo elementos que tiveramn importincia no preparo do surgimento do cristianismo. Mas 0 evento preparatério decisivo foi o que permanece documenta- do no Novo Testamento. Nio podemos oferecer aqui um teologia do Novo Testa- mento, mas podemos mostrar, por meio de alguns exemplos, como o Novo Testa- mento recebeu das religides ao redor certas categorias de interpretacio ¢ as transfor- mou i luz da realidade de Jesus, o CristoTemos, entio, dois momentos: recepgio ¢ transformacio. As categorias desenvolvicas nas varias religides, no Antigo Testamen- to, e no periodo intertestamentario, foram utilizadas para interpretar 0 evento da vinda de Jesus, mas os significados dessas categorias foram transformados quando aplica- dos a ele. No que concerne & ctistologia, por exemplo, Messias era antigo simbolo proféti- co. Esse simbolo foi aplicado a Jesus pelos primeiros discipulos, provavelmente desde os primeiros enconttos com ele. Tratava-se de enorme paradoxo. Por um lado, era adequado porque Jesus trazia o novo ser, mas por outro lado, nao era, porque muitas das conotagGes do termo “Messias” iam além do surgimento histérico de Jesus. Se- gundo os relatos que temos, o proprio Jesus sentia a duplicidade dessa interpretagio. Portanto, proibiu os discipulos de usarem 0 termo. Pode ser que essa proibigao tenha aparecido apenas nos documentos posteriores, mas, seja como for, reflete a ambiggi- dade existente. O mesmo acontece com 0 conceito “Filho de Homem”, Por um lado, talvez 0 proprio Jesus 0 tenha usado, porque indica o poder divino presente nele para fazer vir a nova eza. Por outro lado, 0 conceito nio eta adequado, porque o Filho do Homem deveria vir em poder e grande gléria. Usava-se também o termo “Filho de Davi”. Enquanto realizador das antigas profecias, adequava-se a Jesus. Mas Davi era rei ¢ 0 conceito de “Filho de Davi” podia indicar um tei ou lider politico. Jesus resistiu 2 esse mal-entendido quando disse que 0 prdptio Davi considera 0 Messias seu senhor. 36 APREPARACAO PARA © CRISTIANISMO “Filho de Deus”, enquanto expressio do relacionamento de Jesus com Deus, era um tecmo adequado, Mas ndo completamente, pois era também um conceito pagéo muito conhecido. Os deuses pagios procriavam muitos filhos na terra. Por causa dis- so, dizia-se que Jesus eca o “unigénito Filho de Deus”, acrescentando-se a expressdo “eterno”. Os judeus nao gostavam desse termo pot causa das conotagdes pagis que cartegava. Podiam entender Israel como “Filho de Deus”, mas nio podiarn aplicd-lo aum individuo. O titulo “kytios” significa senhor. Enquanto usado segundo o Antigo Testamento, pata significar poder divino, nio havia problema. Mas era duvidoso por ser muito utilizado pelos cultos de mistério. Ai todes os deuses sic éyrio?, senhores. Além disso, Jesus sempre foi descrito como um ser finito e concteto, Pot outro lado, os deuses das religiées de mistério eram objetos de unio mistica, como Jesus. Pata Paulo especial- mente, qualquer pessoa pode estar em Cristo (e Christé), isto é, no poder, na santidade eno temor de seu ser. Finalmente, 0 conceito “Logos” era adequado enquanto expresso da auto-mani- festagio de Deus em todas as formas da realidade. ‘Tanto na filosofia grega como no simbolismo judaico € 0 principio césmico da criagdo. Mas 20 ser entendido como principio universal nio podia ser aplicado a Jesus que eta uma realidade concteta (e particular). Jesus é uma vida pessoal concreta desctita por esse termo. Essa ambigitida- de aparece no maiot paradoxo do cristianismo: o Logos se fez carne. Temos ai um exemplo perfeito de como o sentido de um termo, com todas as conotages trazidas do passado, pode ser transformado para expressar a mensagem cristi. A idéia de que 0 Logos se fez carne jamais poderia cer vindo do pensamento grego. Portanto, os pais da igreja insistiram sempre que, enquanto os fildsofos gregos possuiam a idéia do Logos universal, o que veio a ser peculiarmente cristio foi que o Logos se fez carne numa vida pessoal. A grandeza do Novo Testamento consiste em ter sido capaz de usar palavras, conceitos ¢ simbolos surgidos na historia das religides, preservando ao mesmo tempo a pessoa de Jesus interpretada por essas categorias. O poder espiritual do Novo Tes- tamento era tamanho que péde muito bem incorporar esses conceitos no cristianismo, com todas as conotagdes judaicas e pagiis trazidas em seu bojo, sem perder a realidade basica, isto é, o evento Jesus, o Cristo, que esses conceitos agora interpretavam. a7 CAPITULO II DESENVOLVIMENTO TEOLOGICO NA IGREJA ANTIGA A. Pais apostdlicos Vamos examinar agora os pais apostélicos, primeiros escritores pés-biblicos co- nhecidos, alguns dos quais escreveram até mesmo antes dos Ultimos livros do Novo Testamento. Inacio de Antioquia, Clemente de Rome, “O pastor” de Hermas, ¢ ou- tros, mostraram-se muito mais na linha de cetto conformismo cristie desenvolvido aos poucos do que da posigio de vanguarda manifestada por Paulo em suas cartas. A influéncia de Paulo, nessa época, eta sentida mais indiretamente por meio de Joao ede Infcio. A raz’o disto, pelo menos em parte, é que a conteovérsia com os judeus ja era coisa do passado; 0 conflito do apéstolo com os cristdos judeus nao tinha mais sent do. Em lugar disso, os elementos positives da fé capazes de oferecer contetidos com- preensiveis aos pagios precisavam ser discutidos. Podet-se-ia dizer, em geral, que no periodo dos pais apostdlicos j4 haviam desaparecido as grandes visdes do primeiro movimento extatico, ficando em seu lugar um conjunto de idéias produtoras de certo conformismo eclesiastico, possibilitando o trabalho missionario. Muita gente reclama disso. Deploram que tac cedo, jé nessa segunda geracio de cristaos, o poder do Espi- tito Santo se fora. E 0 que inevitavelmente acontece nos petiodos mais ctiativos. Ve- jam 0 que aconteceu na época da Reforma: logo depois de sua explosio e da segunda gesacéo que a receben, comecou uma fase de fixacdo ou de concentragao em algumas idéias particulares. Sao necessidades educacionais que entram em cena para preservar que foi dado antes. Contudo, essa épaca da histéria do pensamento ctistao é extremamente impor- tante, mesmo tendo perdido consideravelmente o poder espiritual tao vivo nos dias dos apéstolos. E importante porque presetvou o que eta necessitio pata a vida das congtegacées. A primeira pergunta formulada era esta: onde se encontra a expressio do espirito comum da congregacao? Originalmente, os verdadeires mediadores da 38 mensagem cram os portadores do Espitito, os “pneumaticos”, os que possufam o pnenma, Sabemos, porém, segundo a primeira carta de Paulo ao Corintios, capitulo 12 em especial, que ele jd encontrara dificuldades com os portadores do Espitito porque produziam desordem. Assim, acentuon a necessidade da ordem ao lado do Espirito. Nas cartas pastorais, atribuidas a Paulo, a énfase na ordem eclesidstica torna-se cada vez mais importante. Na época dos pais apostolicos, as experiéncias espirituais de éxtase tinhham quase desapatecido. Eram consideradas petigosas. E por que, pergunta- vam, precisamos delas? Todas as coisas que o Espirito desejara dizer ji haviam side classicamente exprimidas por meio das Escriruras e da tradicio. Portanto, em vez dos profetas que viajavam de lugar para lugar, com os apéstolos, nés agora temos normas ¢ autoridades bem definidas, surgidas das congregagGes. Quais eram essas normas ¢ aucoridades? A primeira e basica autoridade era 0 Antigo Testamento. Vinha em seguida a mais antiga colegio de escritos que mais tarde se incorporou no Novo Testamento. Os limites do Novo Testamento ainda nao tinham side estabelecidos. A igreja levou mais de duzentos anos pata decidir sobre os livros que entrariam ne cinon do Novo Tes- tamento. Ao lado desses escritos ja havia um complexo de doutrinas éticas e dogmiticas consideradas tradicionais. Na primeira carta de Clemente elas se chamam “o canon de nossa wadicao”. Essa tradigo tinha diversos nomes, como verdade, evangelho, dou- tina ¢ mandamento, Nao era possivel esperar que os aovos membros da igreja enten- dessem de tudo isso. Era preciso simplificat essa tradicdo pata os que iam sendo batizados, Criou-se, entio, um credo para ser confessado pelos novos membros da igreja. Assemelhava-se bastante com o que hoje conhecemos pelo nome de “Credo Apostélico”, porque girava em torno da cristologia. A cristologia passava a ser central porque distinguia as comunidades ctistés tanto do judaismo como do paganisme. © batismo ea o sacramento da iniciagio na igteja. Os batizados, que na época, naturalmente, tinham sido adultos pagios, confessavam a decisio de accitar as impli- cages clesse batismo. Eram, entio, batizades em nome de Cristo. Mais tarde foram actescentados os nomes de Deus Pai ¢ do Espirito Santo. Como nio havia ainda explicagdes paralelas, estava-se no dominio da fé e da litargia e nio da teclogia. Tudo isso estava acontecendo na igreja. Era a abblasia, a assembléia de Devs ou de Cristo. © sentido original do termo edklesia era “chamado de”. As pessoas cram 39 CAPITULON chamadas de suas casas ¢ nages para format a igreja universal; do meio dos barbaros, dentre os gregos ¢ judeus, para ser 0 povo de Deus. B verdade que os judeus anteci- param a igreja e se constituiram eles mesmos numa espécie de eeklesia. Mas niio cons- tituiam o verdadeico povo de Deus porque o verdadeiro povo de Deus tinha que ser univetsalmente chamado de todas as na¢ées. Sendo esse o caso, era necessario distin- guir os chamados que sé conformavam com o credo eclesidstico, dos de fora e dos hereges de dentro. De que maneita? De que modo se poderiam determinar as verda- deiras doutrinas da igreja em contraste com ensinamentos ortundos dos barbaros, dos gtegos ou dos judeus? A cesposta ¢ que esse julgamento s6 poderia ser feito pelo bispo que era o “supervisor” da congregacao. O bispo representava o Espirito supos- tamente presente no interior da vida da congregagao. O bispo foi se tornando cada vez mais impottante nas lutas dos ctistios contra os pagios, os judeus, os barbaros € os hereges. Inacio escteveu na carta aos esmirnianos: “Onde esta o bispo ai deveria estat a congregacao”. Os profetas que aparecessem poderiam estat cettos ou errados, mas o bispo sempte estaria certo. Ele representava a doutrina verdadeira. Original mente, 08 bispos nao se distinguiam dos presbiteros ou ancios, Gradualmente, contu- do, ele se totnou uma espécie de monarca entre os ancidos, fazendo nascer 0 episcopa- do monarquico. Tratava-se de um desenvolvimento natural. Pois se a autoridade que garante a verdade pode se concretizar em seres bumanos, é quase inevitavel a tendéncia para reduzi-la a um Gnico individuo capaz de fazer decisées em ultima instancia. Ja encontramos em Clemente de Roma tracos da idéia de sucessio apostdlica, isto é, que os bispos representam os apéstolos. Vé-se claramente quio cedo o ptoblema da auto- tidade se tornon decisivo na igreja, dando inicio & tendéncia que acabou plenamente desenvolvida na Igteja Romana. ‘Vamos examinar, a seguir, algumas das principais doutrinas discutidas nessa épo- ca, Em face do mundo pagio, no qual viviam os cristios, importava ressaltar acima de tudo a idéia monotefsta de Deus. Lé-se no Pastor de Hermas: “Em primeito lugar, cré que Deus é uno, e que fez todas as coisas, a partir do nada”. Temos af expressa a doutrina da criacao ex xibi/o, Embora nao se encontre essa doutrina explicitamente no Antigo Testamento, pode-se dizer que esté implicita, ¢ que, por certo, j4 fora expressa antes do cristianismo pelos tedlogos judaicos no periodo intertestamentario. Essa dou- trina teve importancia decisiva na sepatagao da igreja primitiva do paganismo. Estava nessa mesma linha a énfase no Deus todo poderoso, o despaits, como era chamado, 0 Senhor poderoso que tudo governa. Clemente exclama: “O grande 40 DESENVOIVIMENTO TEOLOGICONA IGREJA ANTIGA, demiurgo!”, falando dele como o grande consttutor do universo ¢ Senhor de todas as coisas. Esses conceitos que nos parecem tio naturais hoje em dia eram importantes porque serviam de protegio contra o paganismo. A doutrina da criagio a partir do nada significava que Deus nao encontrara a matétia ja pré-existente quando comegou a ctiar. Nao podia haver matéria que resistisse 4 forma, como no neoplatonismo pagio, que deva, portanco, ser cranscendida. Em lugar disso, o mundo material é ob- jeto da criagao de Deus: ¢ um mundo bom e nio deve ser menosprezedo para enaltecer a salvagio. A palavra “demiurgo” era usada por Platio ¢ pelos gnésticos para designar um ser inferior ao Deus altissimo. O Deus altissimo paira acima de coisas tao humildes como a ctiacio do mundo, deixando essa tarefa para o demiurgo. Quetia-se dizer que a xealidade divina nZo estava presente no ato da criagao. Contrariando essa nocio, Clemente afirmava que o grande demiurgo era o proprio Deus. Nao poderia haver dicotomia entre Deus altissimo e 0 criador do mundo. A criacio tinha que ser um ato absoluto a partir do nada, Proclamava-se, assim, 0 poder insuperavel de Deus. Mas a afirmagio de que Deus era todo-poderoso néio queria dizer que ele se sentava num trono e podia fazer qualquer coisa que lhe viesse na cabega como qualquer titano arbitrario. Mas que Deus era a tinica base das coisas criadas, e que nao existe matéria alguma capaz de Ihe oferecer resisténcia. E 0 que quer dizer o primeiro artigo do Credo Apostdlico: “Creio em Deus Pai Todo Poderoso, ctiador do céu € da terra”, Devesiamos pronunciar essas palavras com grande reveréncia, porque, por meio des- sa confissio, o cristianismo se separou da interpretagao dualista da realidade presente no paganismo. Nao ha dois principios eternos, o principio mau da matéria tio eterno como © bom principio da forma, O primeiro artigo do Credo é a grande mucalha que o cristianismo ergueu contra o paganismo, Sem essa separagao a ctistologia teria inevitavelmente se deteriorado num tipo de gnosticismo no qual o Cristo nao seria mais do que um dos poderes césmicos entre outros, embora, talvez, o maior deles. Somente a luz do primeizo artigo do Credo € que o segundo tem sentido. Ele no reduz Deus 4 segunda pessoa da Trindade. Governando todas as coisas, Deus tem umm plano de salvagSo. Inacio em patticu- lar desenvolve essa idéia, Em sua carta aos efésios fala da “economia para o novo homem”. Trata-se de urn sumério maravilhoso da mensagem crista. Economia significa, neste contexto, “construgao de uma casa”. A palavra é usada para a estrutura das relagdes entre Deus ¢ o mundo. Ha uma economia do pensamento trinitario: Pai, Filho ¢ Espitito Santo. Somente os trés juntos sao Deus. Ha uma economia da salvacao, que 41 CAPETULO IL é a edificacio dos diferentes periodos que finalmente levam ao novo homem. A idéia do homem novo, da nova criatura ov do nove ser, como alvo da histéria da salvacio, é importante contribuigdo desses teélogos. Essa economia da salvacio jd estava presente na época do Antigo Testamento. Assim, diz Indcio: “O judaismo creu na ditesio do ctistianismo”. O Cristo, o nove homem, é a realizacdo perfeita no qual a cozrupgio de homem velho é supetada e a motte se dissolve. Vai-se dai para a cristologia. Pode-se dizer, em geral, que Jesus, Cristo, eta considerado um ser espiritual pré- existente que transformara o Jesus histético num agente de sua atividade salvadora. O Espirito eva uma fypostasés em Deus, um poder independente em completa unific com Deus. © Filho desceu aos dominios da carne. “Carne” sempre quer dizer realidade histétiea. Ele aceitou a catne; pode-se igualmente dizer que a carne cooperou com o Espirito nele. O Espirito Santo habitou na carne que escolheu. E ele se tornou o Filho de Deus por meio de sua agio. ‘Ao lado desta, havia outea idéia. Poder-se-ia dizer também que o primeiro Espirito, © proton posuma, se fizera carne. Inacio dizia, por exemplo: “Cristo é Deus e perfeito homem ao mesmo tempo. Procede do Espitito e da semente de Davi”. Queria dizer que ele nao era apenas um poder espititual que aceitara a carne, mas que enquanto poder espiritual se fizera carne. Jatros, médico, era um outro termo emptegado, A salvacio era aqui ainda entendida come cura. Esse médico curava tanto carnalmente como espiritualmente. Idéias bastante mmisturadas eram usadas para sublinhar o evento de certa forma patadoxal do Cristo. Esse poder espiritual divino aparecera, afinal, nas condigdes da humanidade e da existéncia. Assim, ele é descrito como tendo origem genética e, a0 mesmo tempo, sem origern genética. Vem na carne. Enfrenta a morte. Mas é Deus que ver na carne e vence a morte. B tem vida eterna, Nasce de Maria e de Deus. E capaz de sofrer e de nao softer, por causa de sua elevagio a Deus. Inacio podia dizer: “Pois ha um unico Deus que se manifestou por meio de Jesus Cristo seu Filho, que ¢ seu logos, procedente de seu siléncio”. E na segunda carta de Clemente lemos: “Sendo 9 primeiro Espirito, o cabega dos anjos, tornou-se carne. Sendo o que aparece em forma humana, Cristo é 0 verbo procedente do siléncio”. Ele procede do siléncio, ato sigés. Ele quebra o siléncio eterno do fundamento divino. Come tal, é Deus ¢ completamente homem. A mesma realidade histérica € um ¢ outro, ambos numa s6 pessoa. Poder-se-ia falar de uma mensagem dupla (ama dip/on 42, DESENVOLVIMINTO TROLOGICO NA IGREJA ANTIGA kerygma), que esse mesmo ser eta ao mesmo tempo Deus ¢ homem. Estamos em face do ptincipal interesse religioso deste periodo, de falar, como dizia Clemente, teologicamente de Cristo como de Deus. “Ixmios, assim devemos pensar a respeito de Jesus Cristo como de Deus, pois se pensarmos iasignificantemente dele, s6 poderemos esperar receber igualmente coisas insignificantes”. O carter absoluto da salvacdo exige um salvador divino também absoluto, Estamos diante de dois possiveis modos de pensar: teria o Cristo vindo na came, aceitando-a? Ou viera como 0 Logo: tendo sido depois transformado em carne? Jé se conheciam esses dois tipos de cristologia: tomar a catne ou ser transformado em carne, E bastante profunda a idéia de que © Logos divino quebra o siléncio de Deus. Queria dizer que o abismo da divindade nao tem palavras, nem forma, nem objeto, nem voz. F.o siléncio infinito do eterno. Mas saindo desse siléncio, o Logos itrompe e desaculta o que se escondia nesse siléncio. Revela o fundamento divino. Essa ctistologia nao se confunde com problemas teézicos, pelo contririo, 0 pro- blema cristologico fa2 parte do problema sotetiolégico. Busca-se a certeza da salva- gio. Deseja-se a coragem capaz de superar a ansiedade de perdigio. A questio da salvacio é a base da questio etistolégica. Que é salvagao? A obra de Cristo é dupla: grésis (conhecimento), em primeizo lugar e z0é (vida), em seguida. Foi assim que a igreja primitiva grega concebia a salvacio. Cristo traz conhecimento e vida. As vezes, esses dois elementos se combinavam numa sé frase, aihanatos gadsi:, conhecimento imortal, conbecimento de que ¢ imortal e que faz com que a vida se torne imortal. Cristo nos chamou das trevas para a luz; levou-nos a servir 0 Pai da verdade. A nds que nao tinhamos ser, ele nos chamou para que tivéssemos ser, a partir de seu novo ser. O conhecimento, portanto, trazia o ser, Ser e conhecimento andavam juntos da mesma maneira como a mentira e o ndo-ser. Verdade ¢ ser; nova verdade € novo set. Os que possuem esse conhecimento do ser possuiam igualmente o conhecimento salvador. Devemos proclamar essa vetdade com muita énfase, pois essa idéia foi denegrida por ter sido mal entendida. Hamack seus seguidores achavam que o cristianismo antigo havia sido infetado pelo intelectualismo grego. Mas ha duas coisas erradas nessa critica. Em primeiro lugar, “intelectualismo gtego” é termo inadequado porque os gregos sempre estiveram profundamente interessados na verdade. Com poucas excecdes, a verdade que buscavam era a verdade existencial, concesnente & sua existéncia, capaz de salva-los da existéncia deformada e eleva-los a0 Uno permanente. 43 CAPITULOTI As congregacées ctistas da igreja primitiva entendiam a verdade do mesmo jeito. A vetdade nao era meto conhecimento tedrico sobre os cbjetos, mas participacao cognitiva na nova realidade aparecida no Cristo. Sem essa participagao, a verdade nao eta possivel e o conhecimento seria apenas abstrato e sem sentido. Era o que queriam dizer quando combinavam conhecimento e ser. A patticipagio no novo ser era participagao na verdade, ao verdadeiro conhecimento. A identidade de verdade e set mediava a vida. Cristo dava conhecimento imottal, conhecimento doador de imortalidade. Ele era 0 salvador e o lider da imortalidade. Em seu proprio ser, era a nossa vida imperecivel. Ele dava ao mesino tempo o conhe- cimento da imortalidade ¢ o remédic para ndo se morter, que eta o sacramento. Inacio chamava a Ceia do Senhor de remédio contra a morte, 0 autidoton 18 mé apothanzin. Essa idéia ¢ bastante profunda. Em primeiro hugar, mostra que os pais apostélicos nao acreditavam na imortalidade da alma. Nao existe imortalidade natural. Se existisse cles nao falariam da vida imortal que Cristo oferece. Acreditavam que os seres humanos sio naturalmente mortais, como no Antigo Testamento, onde no paraiso as duas cria- turas puderam comer do alimento dos deuses, da “Arvore da vida”, e continuar vivas ao participar nesse poder divine. Semelhantemente, os pais apostélicos ensinaram que com o advento de Cristo testabelecia-se a situagiio paradisiaca. Podemos novamente participar no alimento da eternidade, que é 0 corpo e o sangue de Cristo. Procedendo dessa maneita, edificamos em nés mesmos o equilibrio em face da necessidade da morte. A morte € saldrio do pecado apenas na medida em que for separacdo de Deus. Por causa desse pecado, anula-se 0 poder de Deus contra a nossa morte, Mas com a vinda de Cristo esse poder é restaurado. E passa a agir de modo sacramental ¢ realista pot meio dos elementos materiais do sacramento da Ceia do Senhor. A luz dessa doutrina podemos concluir que nossa conversa tradicional a respeito da imortalidade da alma nfo é doutrina crista clssica, mas deformagio dessa doutrina, num sentido pseudo-platonico, nada genuino. B. Movimento apologético O movimento apologético pode ser corretamente considerado 0 nascedouro de uma teologia cristé mais elaborada. O cristianismo precisava de apologetica por dife- rentes razdes, Apolgia significa resposta ou pergunta ao juiz de um tribunal, da parte do acusade. A apolagia de Socrates, por exemplo, respondia aos que o acusavam. Da 44 DESENVOLYIMENTO 1EOLOGICO NA IGREJA ANIIGA mesma maneira, 0 cristianismo teve que se expressar em forma de resposta a certas acusa¢Oes particulares. Os apologistas foram os que se entregaram a essa tarefa siste- maticamente. Essas respostas eram necessatias por causa de duas acusagdes contra os cristos: (1) 0 cristianismo ameagava o itapério romano, tratava-se de uma acusacao politica, pensava-se que 0 cristianismo subvertia a estrutura do império; (2) 0 cristianismo era, do ponto de vista filosdfico, puta tolice, ndo mais do que supersti¢io misturada com frapmentos filosdficos. Esses ataques se apoiavam mutuamente. As autoridades politi- cas se utilizavam dos argumentos filos6ficos contrarios ao cristianismo erm suas acusa- ges. Dessa forma, os ataques filosdficos se toraavam perigosos por causa de suas conseqiiéncias politicas. Celsus, médico e filésofo, foi o mais importante representante desses ataques. Convém conhecer o seu pensamento para se avaliar como um fildsofo e cientista grego, muito bem educado, considerava o ctistianismo na época, Celsus entendia © cristianismo como mistura de supersticao fandatica e pedacos de filosofia. Para ele os relatos biblicos eram contraditérios e desprovidos de qualquer evidéncia. Encontramos ai, pela primeira vez, a ctitica histérica do Antigo ¢ do Novo Testamen- to, algo que seria inumeras vezes cepetido ao longo da historia. Mas em Celsus essa exitica era motivada pelo édio. Mais tarde, no século dezoito, testemunhamos uma outra critica movida pelo amos, em face da realidade presente, por detras desses relatos. Examinando os ataques de Celsus contra o cristianismo vemos que ele se revolta Ptincipalmente contra a ressurteicio de Jesus. Observava ele que 0 evento, suposta- mente tio importante, havia sido testemunhado apenas por aderentes da fé e, no inicio, apenas por algumas mulheres envolvidas em experiéncias de éxtase. A deificaclio de Jesus nao difere de outros processos de deificagao conhecidos na histéria. Por exemplo, Euhemerus, 0 cinico, ja dera suficiente ndimero de casos em que seres huma- nos, reis ou herdis, haviam sido deificados. O que parecia especialmente desconcertante pata Celsus é que em face de histérias imensamente inacreditaveis, como em geral se vé no Antigo Testamento, as explicagées acabam sendo alegéricas. Na verdade, fazia~ sc assim. Pode-se perceber certo sentimento anti-semita na critica de Celsus as histésias do Antigo Testamento sobre milagres. Entende-se a atitude dele porque ctiticava tanto 9s judeus como os cristaos. Celsus denunciava a contradi¢io interna visivel nos escritores cristaos quando se 45 CAPITULOH referiam a descida de Deus ¢ ao mesmo tempo acentuavam a sua imutabilidade. Além disso, se o ser divino dvesse descido na terra, por que havesia de ter escolhido um desprezado canto do mundo, ¢ por que o teria feito s6 uma vez? Particulacmente desagradavel aos pagios educados - ¢ temos aqui novamente manifestagdes de senti- mento antijudeu - era a luta entre judeus e cristios a respeito da vinda do Messias. Os argumentos utilizados pelos cristios, apoiados na profecia, pareciam-lhe completa- mente destituidos de sentido. Celsus tinha suficiente educagao historica para entender que os profetas nao haviam antecipado a vinda de Cristo nos termos ern que ocorrera. Essa tem sido uma questio sensivel nos estudos de historia eclesidstica. E que a idéia sadia de uma revelaco prepatatéria universal acabara deformada no conceito meci- nico da “anteviséo” de eventos posteriormente acontecidos, A critica mais profanda de Celsus contra o cristianismo nao era cientifica a respei- to da histéria nem filoséfica a respeito da idéia de encarnagao; vinha de seu sentimento religioso. Afirmava que os poderes demdnicos que, segundo Paulo, haviam sido con- quistados por Cristo, estavam bem vivos governando 0 mundo, © mundo em nada mudara desde o advento de Cristo ¢ do come¢o do cristianismo. Celsus acrescentava que nem se devia tentar derrotar esses poderes, posto que sdo eles os verdadeiros donos do mundo. Portanto, era bem meihor obedecet aos imperadores romanos na terra; eles, pelo menos, haviam reduzido 0 poder desses demdnios até certo ponto - coisa que Paulo também sabia. Os imperadores haviam estabelecido certa ordem no mundo, limitando as forcas demanicas, Nao importando quio questioniveis pudes- sem ser os impetadores romanos enquanto pessoas, deveriam ser obedecidos e vene- tados, pois Roma se tornara grande por meio da obediéncia as ordens deste mundo, as necessidades da lei ¢ da natureza. Os cristios eram, pois, culpados de subverter a grandeza ¢ a gléria de Roma, atrapalhando 0 unico poder capaz de impedir a queda do munde no caes ¢ a vitétia completa dos demédnios. Seu ataque era sério ¢ tem sido repetide muitas vezes a0 longo da histéria do cristianismo. Cristaos educados como Celsus, na mesma tradigdo filosdfica, procura- ram responder-Ihe em nome da igteja, Qs apologistas nao responderam tanto no nivel da ctitica histética, mas no plano filoséfico. Em suas respostas aparecem trés caracte- tisticas de qualquer trabalho apologético. Em primeiro lugar, para se falar significativa- mente com alguém deve haver uma base comum de idéias mutuamente compreensi- veis. Assim, os apologistas precisavam demonstrat a existéncia de verdade comum tanto aos cristios coma aos pagiios. Se nZio houvesse nada em comum o didlogo nto DESENVOLVIMENTO THOLOGICO NA IGREJA ANLIGA teria sido possivel. Todo o trabalho missionatio cristéo posterior procurou seguir esta regra: que © outro deve entender o que estamos querendo dizer. Mas nio ha compre- ensio ser pelo menos algum tipo de participagao parcial. Se 0 missiondrio falar lin- guagens abdsolutamente diferentes nio haverd compreensio possivel. Assim, os apologistas tinham que procurar esse denominador comum. Em segundo logar, os apologistas acharam necessario mostrar a vulnerabilidade do paganismo. Havia defeitos em suas idéias. E podiam ser contrariadas. Era possivel demonstrar que, por séculos, filésofes pagios haviam criticado tais idéias. Esse exa 0 segundo passo da apologética: demousiar a negatividade do outro. Em terceiro lu- gar, tinham que demonstrar que a posigao crista ndo devia ser aceita de fora, mas que © cristianisme era o cumptimento das expectativas e desejos do paganismo. Essa mesma forma apologética aparece em minha propria teologia sisternitica no método da correlacéo entre petgunta e resposta. A apologética corte, naturalmente, 0 risco de acabar com as diferengas, dando demasinda énfase A base comum. Aceita-se o outro como ele é sem lhe oferecer algo diferente. Deve-se buscar, pois, um caminho intermedidtio entre os extremos de se entulhar o adversétio de material indigesto e incompreensivel vindo de fora, ou de lhe dizer © que ja sabe. No primeiro caso, situam-se o fundamentalismo e a ortedoxia, enquanto que no segundo, comumente, a teologia liberal. 1. Filosofia crista Jostino Martir foi talvez 0 mais importante dos apologistas. Ao falar do ctistianis- mo, dizia: “Esta é a dnica filosofia certa e adequada que encontrei”, Que queria dizec? Alguns inimigos da apologética entendiam que Justino dissolvia o cristianismo em filosofia, E mais, que toda a teologia apologética acaba assim. Mas quando Justino dizia que o cristianismo era uma filosofia, precisamos entender o que entendia por filosofia. Nessa época 0 termo “filosofia” se referia a movimentos de carater espiritu- al opostos & magia ¢ a supersticio. Era, pois, natural que Justino se referisse ao cristia~ nismo come a Unica filosofia certa ¢ adequada, porque nao era magico nem supersti- cioso. Jé vimos que a filosofia grega no periodo pés-socratico nio era disciplina me- ramente teérica, mas principalmente prtica. Devotava-se a interpretagao existeacial da vida, constituindo-se em assunto de vida ou morte para a existéncia das pessoas na época. O filésofo pertencia quase sempre a uma escola filoséfica que eta um tipo de comunidade ritual reunida ao redor de seu fundador que, segundo se ctia, recebera 47 CAPITULOW cetta percepgao revelada da verdade. Para se ingressar nessas escolas nao eta preciso ostentar-se o grau de doutor em filosofia, mas se submeter a cettos ritos de iniciagao a atmosfera da escola. Justino ensinava que essa filosofia cristi era universal; continha a verdade total sobre o significado da existéncia. Em conseqiiéncia, onde quer que a verdade apaze- cesse ela pertenceria a0 cristianismo. A verdade da existéncia sera sempre verdade cristé, nio importando o lugar onde venha a surgiz, “Tudo o que jé foi dito sobre a verdade pertence a nés, cristios”. F nfo se tratava de pura atrogiincia. Ble nZio queria dizer que os cristios agora so os donos da verdade toda, ou que sozinhos chegaram aela. Queria dizer, nos termos da doutrina do Logos, que nao poderia haver manifes- tacdes da verdade que nao incluissemos, em principio, a verdade cristi. Era a mesma coisa afirmada pelo quarto evangelho: o Logos apareceu cheio de verdade ¢ graca. E vice-versa. Justine dizia: “Os que vivem segundo o Logos sio cristios”. Incluia ai gente como Sécrates, Heraclito e Elias. Mas actescentava que o logos total aparecera no Cristo feito carne, mente ¢ alma, Portanto, os filésofos nio cristios vivem em parte no erro e em parte sujeitos As inspiragdes deménicas oriundas dos deuses pagdos. Os deuses dos pagiios nio sio entidades varias; sio forgas deménicas reais cheias de poder destrutivo. Que quer dizer tudo isso? Removia a impressito de que os cristiios fossem apenas membros de uma outra religtio entre muitas existentes. Na verdade, negava-se a0 ctistianismo o conceito de religiao mesmo se a melhor ou a mais verdadeira de todas, Os apologistas jamais diriam que sua religiio era verdadeiva e as outras etradas ou falsas, mas que 0 Logos aparecera nos fundamentos do cristianismo, ‘Tratava-se do Logos pleno do proprio Deus, aparecendo com todo o seu set. Eta mais do que religito. Era o aparecimento da verdade no tempo ¢ no espaco. Assim, a palavra “cristianismo” no podia ser entendida como religiio, mas como a negagio de tadas as religiées. Por causa de sua universalidade o cristianismo pode abrangé-las todas, Justino afirmou o que me parece absclutamente necessirio afirmar. Se houvesse no mundo uma verdade existencial que nao pudesse ser recebida pelo cristianismo como parte de seu préprio pensamento, Jesus nao poderia ter sido o Cristo. Teria sido apenas um mestre entre outros mestres, limitados e¢ parcialmente enganados. Mas nado foi isso © que disseram os primeiros cristios. Eles afirmaram - como devetiamos também afitmar - que se chamamos Jesus, 0 Cristo, ou o Logos, como queriam os apologistas, estamos também dizendo por definicio que nio poder haver nenhuma 48 DESENVOLVIMENTO TROLOGICO NA IGREJA ANTIGA verdade que em principio nao possa ser assumida pelo cristianismo. Se nao for assim nio se poderd aplicar a Jesus, o Cristo, o tetmo “Logos”, Nao estamos dizendo que Jesus, em quem o Logos apareceu, sabia toda a verdade; essa afirmagio nao tem sentido e destruiria a sua humanidade. Estamos afirmando, isso sim, que a verdade fundamental nele visivel é essencialmente universal e, portanto, capaz de abranger qual- quet outra manifestagio da verdade. Por essa razao os tedlogos primitivos nae tive- ram escriipulos em utilizar todas as verdades filosdficas gregas a disposigio e tudo o que foi possivel do misticismo oriental. Com 0 aparecimento do Logos em Cristo até as pessoas menos educadas podi- am receber a verdade existencial plena. Em contraste, os fildsofos sujeitavam-se a perdé-la no meio de suas discussdes. Em outras palaveas, os apologistas estavam di- zendo que o cristianismo era imensamente superior a todas as filosofias. Posto que a filosofia pressupGe educacao, somente alguns podiam ter acesso 4 verdade. Os outros eram excluidos dela em sua forma filosofica. Entretanto, ninguém era excluido da verdade que se manifestava por meio do Logos numa pessoa viva. A mensagem de Jesus, o Cristo, é universal ao abranger a humanidade toda, todas as classes, grupos ¢ estratificagSes sociais da humanidade. Argumentava-se, também, em defesa do cristianismo, aludindo-se ao poder mo- tale. ao comportamento dos membros da igreja. Portanto, as congregagées cristas nao poderiam ser perigosas ao império romano, Até mesmo preveniam a queda do mun- do no caos. As instituigdes eclesidsticas mantinham a ordem do mundo até mesmo com mais eficiéncia do que o préprio império. Justine dizia: “O mundo vive das oragdes dos cristios ¢ da obediéncia dos cristiios a lei do Estado. Os cristios preser- vam o mundo e, por outro lado, por causa dos cristéos Deus também preserva o mundo”. 2. Deus e Logos A idéia filoséfica de Deus ¢ inata em todos os seres hurnanos. Todas as caracteris- ticas atribuidas ao Ser séo agora atribuidas a Deus - eterno, sem comego, nada neces- sitando, além das paixdes, indestrutivel, imutivel ¢ invisivel. Mas ha, no entanto, uma diferenga fundamental entre a idéia de Ser na filosofia grega classica ¢ a doutrina de Dens de Justine. Vem do Antigo Testamento e muda as coisas. Trata-se da afirmacae de que Deus € 0 criador todo poderoso, Quando se faz uma afitmagio dessas, as descrigdes absteatas ¢ miticas da identidade de Deus passam a incluir um elemento 49 CAPITULO pessoal. Deus ctiador age e 0 Todo-podetoso é o poder presente em todas as coisas que ele movimenta. Observemos que nesta declaragio a respeito de Deus, 0 monotefsmo ctistio oscila entre @ concepgao de um Ser transpessoal ¢ a do Deus criador que, naturalmen- te, é tatnbém salvador. A oscilagdo é necessaria tao logo a idéia de Deus se torna objeto de pensamento. Nao se podem evitar certos elementos como o eterno, o in- condicional, o imutivel etc. Por outro lado, porém, a piedade pritica e a experiéncia da ctiatura pressupSem o relacionamento de pessoa para pessoa. O cristianismo oscila entre esses dois elementos porque ambos estito presentes no proprio Deus. Entre Deus ¢ os seres humanos ha anjos ¢ poderes, bons ¢ maus. Mas seu poder mediador insuficiente. O Logos é 0 verdadeito mediador, E dificil explicar 0 que significa a palavea “Logos”, especialmente aos nominalistas de berco. E. dificil porque © conceito nao descreve um ser individual, mas principio universal. Esse conceito no pode ser entendido pelos que nao esto acostumados a pensar em termos universais enquanto poderes de ser. O conceito de Logos pode ser explicado mais inteligivel-_ mente em relacio com o platonismo ou comm o realismo medieval. i © Logos é 0 principio da auto-manifestagio de Deus. H Deus manifesto em si mesmo, a si mesmo. Portanto, onde quer que Deus apareca, a si mesmo ou a outros, é| sempre 0 Logos que aparece. Este Logos esti em Jesus, o Cristo, de maneira especial. | E 0 que, segundo os apologistas, faz a grandeza do cristianismo e a base de sua | reivindicagao saivadora. Pois se o Logos divino nio tivesse aparecido em sua plenitude ! em Jesus, o Cristo, nenhuma salvagio seria possivel. Trata-se de argumentacio existen- cial, nao especulativa, Os tedlogos cléssicos partiram, pois, da expeciéncia da salvacio ; para em seguida falar de Jesus, o Ctisto, em termos do Logos. O Logos é a primeira “obra” ou geracio de Deus Pai. O Pai, inteligéncia eterna, possui o Logos em si; cle € “eternamente logico”, como dizia Atendgoras, um dos apologistas. O termo “légico” neste contexto nao significa argiiir bem; ele deixa isso para nés. Ao ser “logikos” demonstra adequat-se aos principios do sentido e da tazio. Deus nao ¢ vontade irracional; quando o chamamos de nous (mente) eterna queremos dizer que ele possui em si mesmo o podet da automanifestagio, A analogia vem de nossa expetiéncia. Os processos mentais desenvolyem-se pot meio de palavras silenci- cosas, Da mesma maneira, a vida espiritual de Deus inclui essas palavras silenciosas, Hé um processo de relacionamento espiritual que vai do Pai para o mundo no DESENVOLVIMENTO TEOLOGICO NA IGREJA ANTIGA qual ele se manifesta a si mesmo ¢ ao mundo, Sem qualquer separacao. Entretanto, o Logos nao é a mesma coisa que o faz set o Logos. Por outro lado, ndo poder ser concebido independentemente de sua otigem. O Logos divino nao € igual a Deus; éa auto-manifestagio de Deus. Mas, se o separarmos de Deus, esvazia-se ¢ nio poderd ter conteido. Esta tentativa de descrever 0 significado do termo “Logos” é aniloga 40 processo mental humano. © processo de geracio do Logos em Deus - eternamen- te, por certo - nio diminui o ser divino. Deus nao se torna menor ao gerar o seu Logos. F. por isso que Justino afirma: “O Logos é diferente de Deus segundo o mimero, mas nao segundo o conceito”. Ele é Deus; mas nao ¢ Deus, muito embora permanega na esséncia de Deus. Justino também se valeu das doutrinas estdicas da imanéncia e da transcendéncia do Logos. O Logos divino é endiathetor, “que habita” em Deus. Esse mesmo Logos eterno, pelo qual Deus se expressa a si mesmo, torna-se na ciiacio 0 /egos prophorikes, “procedente” de Deus, na diregio do mundo. Assim, wansforma-se na palavra profetida para fora, para a criarura, por meio dos profetas ¢ dos sdbios. Logos significa ao mesmo tempo palavra ¢ razio. Em termos de Antigo Testamento, traduz-se “Logos” por “palavra”; em termos gregos, como o fizeram os Es apologistas em geral, prefere-se “razio “razio” nao quer dizer “raciocinio”, mas estrutura inteligivel da realidade. Enquanto auto-expressie do divino, o Logos (palavra, forma ou razao) é menor do que 0 abismo divino, posto que esse abismo ha de ser sempre o comeco, de cuja profundidade emana a sua manifestacio para o mundo. O Logos é 0 principio das geracdes de Deus; possui, por assim dizer, certa transcendéncia ou divindade diminu- idas. Mas, entio, como pode revelar plenamente o ser divino? Esse problema foi discutido posteriormente. Tio logo os apologistas empregaram o termo “Logos” esse problema no pode mais ser evitado. Se a Logos é 4 auto-expressiio de Deus em movimento, sera menor do que Deus ou Deus na plenimde? Cristo continuaria a ser considerado divino, mas, como explicar aos pagdos que certo individuo histérico que vivera € morrera podia ser chamado “Deus”? A dificuldade nao estava primeiramente na encarnacio. A mitologia grega ¢ todas as demais mitologias sempre contaram his- tOrias de “encarnagio”, Os deuses descem A terra; tomam formas humanas, de ani- mais ou de plantas; realizam cettas obras ¢ depois retornam A divindade. Essas descri- g6es, no entanto, nao eram aceitdveis ao cristianismo. A dificuldade eta que este Filho de Deus, homem histérico e nao figura mitica, teria sido a tinica ¢ absoluta encarnagdo de Deus. 51 CAPITULO II A encarnagio é evento itrepetivel; o que se encatna é Deus ¢ nio elementos pat- ticulates ou caracteristicas especificas da divindade. Trata-se da encarnacio do proprio cerne da divindade. Emprega-se 0 termo “Logos” para expressat essa idéia. Procura- va-se combinar 0 monoteismo, iio fortemente pregado contra © politeismo, com a idéia da divindade de Cristo. A humanidade de Cristo nio podia se separar de sua universalidade. Foi o que fizeram os apologistas. E nisso tiveram éxito. Segundo os apologistas, a encarnacio nao é a unido do Espirito divino com o hornem Jesus; é o Logos que realmente se faz homem. Esta cristologia voltada para a transformacio do Logos em homem vai-se tornando progressivamente importante por meio da douttina do Logos. Por meio da vontade de Deus, o Logos pré-existente se faz homem. Faz-se carne. Esta cristologia impds-se contra 0 adopcionismo. Se 0 Logos (ou Espirito) tivesse adotado o homem Jesus, terfamos tido uma cristologia completamente diferente. Os dons salvificos do Logos sio gudsir (conhecimento) divina, da lei e da ressurrei- cho. Enquanto Logos, o Cristo ¢, em primeiro lugar, mestre; nao no sentido de nos ensinar as coisas que ele saberia melhor do que nos, mas no sentido socratico de nos dar podet existencial de set. O Logos nos concede a verdade de Deus ¢ as leis morais que deveremos seguir livremente. Surgem, assim, na doutrina de Cristo, elementos intelectuais e educativos. Essa possivel conseqléncia da doutrina do Logos levantou, por outto lado, certos descontentamentos. C. Gnosticismo Os apologistas defenderam o cristianismo contra filésofos ¢ impexadores. Entre. tanto, as ameacas contra © cristianismo no vinbam apenas de fora. Um perigo bem! maior surgiu no seu proprio interior: o perigo do gnosticismo. O termo “gnosticismo” vem da palavza grega “gudsis” que quet dizer “conhecimento”. Nao no sentido cient fico, Grdris podetia set: conhecimento em termos gerais; comunho mistica € relagio sexual. Todos os trés sentidos podem ser achados no Novo Testamento, Trata-se de conhecimento participatorio, Tao intimo como a relagao entre marido e mulher. Bem distante do conhecimento alcangado por meio de pesquisa analitica ¢ sintética. Esse conhecimento busca a uniao ea salvacio. E essencial em conttaste com o conhecimen- to cientifico. Os gnésticos eram os intelectuais gregos, nao obstante terem compreen- dido a fangio cognitiva em termos de participagio no divino. 52 DESENVOLVIMENTO TEOLOGICO NA IGREJA ANTIGA Nao exam uma seita; talvez se pudesse dizer que cram muitas seitas. Na verdade, potém, o gnosticismo representava vasto movimento religioso espalhado pela época. Em geral, 0 gnosticismo é considerado um sincretismo. Misturava todas as tradicdes seligiosas de entio. Ao se espalhar pelo mundo, penetrou tanto a filosofia grega como a religiac judaica. Filo de Alexandria foi um tipico precursor do movimento. O gnosticisme conseguin até mesmo se imiscuir na lei romana e na teologia cristi. Os elementos bisico dessa mistura religiosa sio os seguintes: 1. Destruicio das religiges nacionais por meio das conquistas de Alexandre e de Roma. Os grandes impérios mundiais acabavam com as religides nacionais. 2. Interpretagio filoséfica da mitologia. Ao se ler os sistemas gnésticos rem-se a impressio de que racionalizam a mitclogia. Essa impressio é correta. 3. Renovacdo das antigas tradigdcs de mistétio. 4. Reavivamento de elementos psiquicos ¢ magicos, presentes na propaganda religiosa do Oriente. Enquanto o movimento politico iz do Ocidente para o Oriente, o religi- 00 tomava diteco contratia. O gnosticismo procurava, entio, combinar todas as wadigdes religiosas desenraizadas, reunindo-as num sistema meio filosdfico e meio seligioso. Havia muitas semelhangas e diferencas entre os grupos pndsticos e o cristianismo original. Contra a tradic&o publica das igrejas ctistas, os gnésticos diziam possuir tradi- gGes secretas apenas conhecidas dos iniciados. Rejeitavam o Antigo Testamento por- que nio se harmonizava com algunas de suas doutrinas fundamentais, especialmente com suas tendéncias chaalistas € ascéticas. Aceitavam uma versio expurgada do Novo Testamento. Marcio tentou modificar o Novo Testamento, aceitando, no entantn, as dez principais cartas de Paulo e o evangelho de Lucas, que, certamente, mais claramen- te denota a influéncia paulina. Presumivelmente, essas porgdes do Novo Testamento Zo contradiziam as idéias basicas do gnosticismo como as demais epistolas ¢ evange- lhos. Marcito nio era um fildsofo especulative, mas reformador teligiosc. Pundou congregacées de seguidozes que duraram muito tempo. Seu livre se chama, Antitheses. Distinguia o Deus do Antigo Testamento do Deus do Novo Testamento, o Deus da lei do Deus do evangelho. Rejeitava o primeiro para aceitar outro. Nao se tratava apenas da idéia fantastica de dois deuses. A questio deve set vista nos termos desen- volvides por Harnack no final de sua vida. Nio seriam os dois Testamentos de tal maneira diferentes a ponto de nio ser possivel qualquer combinagdo dos dois? O CAPITULO IT Marcionismo é uma forma de paulinismo radical sempre presente ao longo da histé- sia da igreja. Encontramo-lo no periode modezno na escola barthiana, quando 0 Deus da revelacio se coloca contra o Deus da lei natural. Natutalmente, esta escola nio menciona um segundo Deus; hoje em dia essa mitologia Eantastica nao seria pos- sivel. Mas, fala da tensio radical entre o mundo natural da tazio e da moralidade, eo dominio religioso da revelacio. Era o mesmo problema de Marcio, resolvido pot ele com a sepatacao tadical do dois mundos no dualismo gnéstico. Para os gnésticos, 0 mundo criado é mau; foi criado por um deus mau reconhe- cido pot eles no Deus do Antigo Testamento. Portanto, salvacao é libertagio deste mundo, a ser alcangada mediante exercicios ascéticos. Nao ha lugar para a escatologia nessa visio dualista do mundo, pois o fim do mundo nao a ultrapassa. Nao pode haver realizacio dualista: ela pressupée a divisio do préprio Deus. O salvador esi entre os poderes celestiais, chamados de “aeons” ou de “eterni- dades”. Essa palavra, “eternidade”, nio tem aqui a conotagio de tempa sem fim, mas de poder césmico, O mais alto “acon”, salvador, desce a terra e toma a forma huma- na. E evidente, contudo, que tal poder divino nfo pode softer. E por isso que adquire um corpo estranho, semelhante a0 corpo humano, mas ado se forna carne, (Os cristiios ptimitivos tejeitaxam os gnésticos neste ponto). O salvador desce aos diferentes do- minios submetidos a diferentes poderes astrologicos. Esta idéia refere-se aos planetas, considerados poderes astrolégicos até mesmo depois da Renascenga, no protestantis- mo. O salvador revela as armas ocultas desses poderes deménicos, ao atravessar os seus dominios, vencendo-os nessa descida 4 terra. Traz consigo os selos de seu poder, seus nomes e caracteristicas. Quem tiver 0 nome de um poder deménico ja lhe é superior; quem o chamar pelo nome ja o derrota. Diz um dos textos gnésticos: “De posse dos selos, eu descerei, atravessando todos os aeons. Reconhecerei todos os mistérios. Revelarei a forma dos deuses. E ptoclamarei as coisas ocultas do caminho santo, chamado gndsis”. Ai esté a reivindicagio do bom Deus, pleno do poder do mistério, em sua vinda A terra. Os podetes deménicos representam o destino. A alma humana caida em suas mios é libertada pelo salvador ¢ pelo conhecimento que ele traz. Diriamos: no gnosticismo o salvador emprega a magia branca contra a magia negra dos poderes planetatios, podeses mencionados por Paulo, em Romanos 8, submetidos, segundo ele, pot Cristo. Portanto, reconhece-se o poder magico dos sacramentos. Neles, o mais 54 DESENVOLVIMENTO TEOLOGICO NA IGREJA ANTIGA alto dos poderes desce a terra. Além dessas feigdes especulativas € sacramentais, o gnosticismo tinha valores éu- cos relacionados com a comunidade e com a ascese. Exigia a elevagio da alma, a exemplo do salvador que subira, O salvador tiberta dos poderes deménicos para promover a unio da alma com a plenitude, com o péroma, o mundo espiritual. Em sua peregrinagao ascendente, a alma humana encontta-se com esses poderes ¢ hes revela o que aprendeu a seu tespeito. Sabe seus nomes, e conhece, portanto, seu poder mistetioso, a estrutura do mal que representam. Ao pronunciar seus nomes, eles tre- mem e caem tornando-se incapazes de impedir a alma em sua jotnada. Essas imagens poéticas demonstram que o gnosticismo era uma religiio de salvagao dos poderes deménicos. Esse era o problema principal do perfodo, tanto no cristianismo como fora dele. De certa maneira, o homem era melhor que seu criador. Tinha que ser salvo dos poderes do demiurgo que criara o mundo. Mas nem todos os homens podiam se salvar. Havia trés classes de homens: os prenmafikoi, isto é, os espirituais; os prychidod, seguidores da alma; ¢ 08 sarkikoi, dominados pela carne. Os sarkikoi estavam perdi- dos; os pueumatike:, salvos. Os do meio, os prycbikoi, poderiam tomar um ou outro rumo. Pasa ser elevado as alturas, o homem precisava patticipar nos mistérios. Eram ptincipalmente mistérios de putificagio relacionados, em geral, com o batismo, No batismo, o Espirito entra na agua sacramental ¢ nela habita. Ele desce por meio de uma formula especial de iniciagio. Essas idéias representavam forte tentagao pata o cristianismo. Cristo permanccia no centro da histéria como o autor da salvagio mas encaixava-se na moldura da viséo dualista do mundo helénico. A atmosfera religiosa deste periodo expressa-se com muita beleza num dos escritos apdcrifos conhecido pelo nome de Afus de André: “Bem- aventurada & nossa geragio. Nao fomos abatides porque fomos teconhecidos pela luz. Nao pertencemos ao tempo que nos dissolve. Nao resultamos do movimento, que também nos teria destruido. Pertencemos 4 grandeza 4 qual nos ditigimos, Petten- cemos Aquele que tem misericérdia de nés, cuja luz expeliu as trevas, de quem nos desgarramos, o miltiplo, o supra-celeste, que nos levou a entender as coisas tertenas. Se o louvamos é porque somos reconhecidos por ele”. Trata-se de verdadeira piedade religiosa, nado de mera especulacio, como diriam os criticos do gnosticismo. Ha muitas pessoas hoje em dia que gostariam de recuperar a teligiio gnéstica para praticé-la coro expresso de sua experiéncia interior, nao por causa da especulagao 55 CAPITULO II fantistica, mas por causa da verdadeita piedade que ela expressa. O gnosticismo re- ptesentava, pois, enorme perigo ac cristianismo. Se a teologia cist’ tivesse sucumbido diante dessa tentacdo, 0 carater particular do cristianismo teria se perdido. Sua funda- mentacio na pessoa de Jesus teria perdido o sentido. O Antigo Testamento teria desa- parecido, e com ele a imagem histdérica do Cristo. Essas ameacas foram superadas gragas ao trabalho de homens que sio ainda hoje conhecidos como “pais antignésticos”. Eles lutaram contra o gnosticismo ¢ conseguiram expeli-lo da igreja. D. Os pais antignésticos Os primeitos grandes tedlogos czistios desenvolveram seus sistemas em oposi- gio as idéias do gnosticismo e, As vezes, em concordancia parcial com elas. Partiram da doutrina do Logos para se defender de ataques de fora. Mas um pouco do espirito desse mundo conquistado pelo cristianismo acabava enurando para o proprio cristia- nismo. Lutava-se, entZo, contra certo tipo de paganismo cristianizado. Tal uta, certa- mente, nunca é apenas negativa, pois sempre aceita elementos combatidos ¢ os assimi- la. O resultado dessa rejeigao parcial e dessa aceitacdo parcial da atmosfera religiosa da €poca é o que chamamos de “catolicismo primitivo”. Os tedlogos que vamos exami- nat agora sdo importantes porque tepresentam esse catolicismo antigo, Expressam. idéias ormundas da rejeigio e da aceitago dos movimentos pagios da época. Comega- ram pela idéia do Logos desenvolwida pelos apologistas. Mas a desenvolveram de modo construtivo - nfo s6 apologético - em relacio com a Biblia e com « tradicio. Com isso, livraram a doutrina de implicagées perigosas, como © politeismo, o triteisrno eo diteismo. A grandeza de tedlogos como I[rineu ¢ Tertuliano consiste em ter perce- bido esse perige, utilizando a doutrina do Logos para construir idéias teolégicas rela~ cionadas com os movimentos religiosos da época. Inneu foi o mais importante dos pais antignésticos, religiosamente falando, En- tendeu 0 espirito de Paulo ¢ se mostrou sensivel ao que essa teologia representava para aigseja cristi. Entretanto, a douttina paulina relevante para Itineu nao foi a da justifica- cio pela graga por meio da £6, utilizada por Paulo contra o jadaismo, mas o ensino mais central do apéstolo, a doutrina do Espirito Santo. De certo modo, a teologia de Trineu acha-se mais proxima do protestantismo do que a maior parte das teologias do catolicismo primitivo; contudo, ele é 0 pai desse catolicismo - e, na verdade, nada protestante - na medida em que a douttina paulina da justificag’o por meio da £6, que 56 DESENVOLVIMENTO TEOLOGICONA IGREJA ANTIGA, ea gosto de chamar de “lado corretivo” da teologia de Paulo, nfio ocupava o centro do pensamento de Itinen. Tertuliano era também antignéstico. Foi mestre de retérica latina. Criou a termi- nologia eclesidstica em Jatim. Nao sende jurista, possuia mentalidade juridica, Possuia tempetamento muito agressivo ¢ carater forte. Entendia o primado da fé ¢ o patado- xo do cristianismo. Mas nao era artificialmente primitive, pois aceitava a filosofia estdica e com ela a idéia de que a alma era naturalmente cristd - andma naturaliter christiana. Aceitava tambem a douttina do Logos dos apologistas, porque nao apenas aceitava o patadoso do ctistianismo, mas, com sua inteligéncia aguda, acteditava que a filosofia grega nao conseguia ultrapassar o cristianismo em precisio racional e em clareza. Oterceiro tedlogo antignéstico era Hipdlito, mais erudito do que Irineu e Tectuliano. Manteve intimeras polémicas contra o movimento gnéstico por meio de suas obtas exegéticas e de seus escritos sobre a histéria da igreja Esses trés tedlogos perceberam claramente a situacao da igreja primitiva. H im- portante que os protestantes se déem conta de quao cedo os principais fundamentos do sistema romano posterior jA se manifestavam no terceiro século. 1, Sistema de autoridades O problema colocado pelos gnésticos perante a igreja situava-se no dominio da autoridade, Que era mais importante: as Esceituras Sagradas ou os ensinamentos se- cretos dos gnésticos? Os mestres gnésticos ensinavam que Jesus Ihes passara informa. Ges secretas nos quarenta dias depois da ressurreigio, quando permaneceu ao lado dos discipulos. Esse corpo de doutrina havia sido preservado pela filosofia ¢ pela teologia dos gnésticos. Conta tal pretensio, os pais antignésticos precisavam estabele- cera doutina das Escrituras. As Santas Escritutas haviam sido dadas pelo Logos por meio do Espitito divino. Portanto, era preciso fixar-se o canon. Os préprios fundamentos da igreja eram ame- agados pela intromissao de tradicdes secretas que afirmavam ccisas bem diferentes das que se liam na Biblia. Poi, entdo, a partir dessa luta de vida ou morte contra o gnosticismo que se tomou a decisio de se fixar o canon. Com isso, a igteja sempre teve que retornar ao periodo classico de sua existéncia que foi o periodo apostilico. O que se escreveu na ocasiao passou a ser valido para todas as ocasides; qualquer novida- de aparecida posteriormente jamais seria canénica. E por isso que tantos livros na ST CAPITULO IT Biblia fotam editados com o nome de autores da era apostélica, mesmo quando esctitos depois. © que for considerado candnico, pensava-se, deve ser candnico em sentido abso- juto, incluindo-se até mesmo as letras do texto. Neste ponte o cristianismo apenas seguin a interpretacio legalista da lei judaica na qual cada letra hebraica, do texto vétero- testamentaric, possui sentido oculto ¢ é absolutamente inspirada. Nada disso, no en- tanto, era suficiente, posto que a Biblia, afinal, sempre precisou de interpretagio. Mes- mo quando transformada em norma absoluta. Os gndsticos a interpretavam diferen- temente da igreja oficial. Em conseqiiéncia, teve que surgir 0 principio da tradigio. A tradicio passou a significar a regula fide, a tegra a fé. Quando isso aconteceu, o fato decisivo nio era mais a Biblia, mas a regra de fé, da mesma maneira como os docu- mentos confessionais escritos depois da Reforma vieram a ser o canon decisivo para a instrucio teoldgica ¢ nado mais a Biblia, A vegsa da £é também foi chamada de cénon da verdade; 86 € verdadeiro o que vem dos apéstolos, E tradicio apostélica (sneditio apostolicd) que vai set mediada pelos ptesbiteros ¢ pelos bispos. Muito embora eseas coisas niio estivessem ainda bem defi- nidas, havia demasiados elementos na tradigio, éticos e dogmaticos. Fazia-se necess’- rio um sumirio concenttado da Biblia e da regra da £€ para ser confessado por oca- siZo do batismo, o principal sacramento da época. Pressupunha-se, eto, que os bis- pos, responsaveis pela regra da fé ¢ pelo credo batismal, possuiam o dom da verdade. E, de fato, possuiam a verdade porque eram os sucessores dos apdstolos. E, assim, jf se exptessa com clareza a doutrina episcopal da sucessdo apostélica. Essa doutrina tornou-se mais visivel na Igreja de Roma, fundada por Pedeo ¢ Paulo, seguado os pais antigndsticos. A respeito dessa igreja dizia Isineu: “A esta igreja todas as nagées deverio vit, por causa de seu ptincipado maior, igreja essa na qual a tradico apostélica sempre foi preservada”. ‘Temos, entio, um inpressionante sistema de autoridades (a Biblia, a tradigiio apos- télica, a regta da £6, o credo batismal ¢ os bispos) criado na luta contra os gnésticos. E impressionante quao cedo tudo isso aconteceu. 2. A reagdo montanista Contra a ordem em desenvolvimento surge a reagio do Espirito, comandada por Montanus, Foi de tal forma séria que um tedlogo como Tertuliano ingressou mais 58 DESENVOLVIMENTO TEOLOGICO NA IGREJA ANTIGA tarde no movimento. A reacao montanista contra a fixacao eclesidstica do cristianismo. vai se estender pela hist6ria da igreja de um ov outro modo, ito ¢ o “fim”, Actedita- vam que o Espitito havia sido suprimido pela igreja organizada. Os movimentos Os montanistas tinham duas idéias fundamentais: o Esp’ espirituais cram temidos porque os gnésticos jé haviam reivindicado a posse do Espi- tito. Negava-se que os profetas possuissem necessariamente cardter extatico. Circulava nessa época um folheto escrito por um leigo argumentando que nfio era necessdtio que os profetas falassem em éxtase. A igreja nado mais conseguia entender o espirito profético. Entende-se bem porque temia o Espirito: em nome dele entravam na igreja os mais variados elementos perturbadares da ordem. A outra idéia era a do “fim”. Logo depois do desapontamento a respeito da vinda iminente do fim anunciado por Jesus e pelos apéstolos, os pais apostélicos comecaramn a se estabelecer no mundo, Esse desapontamento causou enormes difi- culdades e forcou a criagio de uma igreja mundana, capaz de viver no mundo. O montanismo reagiu contra essa igreja mundana. Mas eles, também, experimentavam a frustragio do fim que nao viera. Assim, também eles tinham que se estabelecer no mundo; também eles se tornaram igreja. Mas se transformaram numa igteja esirita- mente disciplinada, antecipando, até certo ponto, o tipo sectario de igreja aparecido mais tarde na época da Reforma e depois. Os montanistas acreditavam representar o petiodo do Pataclito, em seguimento aos periodos do Pai ¢ do Filho. Os movimentos sectarios revolucionstios na histéria da igreja, em geral, dizem a mesma coisa: pensam representat a época do Espirito. Acontece, porém, que ao se procutar fixat o contetido do ensinamento do Espi- fito, o resultado é exatamente pobte. Foi o que aconteceu, por exemplo, com os quacres logo apés o seu surgimento. Quando se fixa o contetido, nao se vé nada de Novo Ou, pior ainda, o Novo nao passa de forma mais ou menos racional de moralismo. Foi 0 que aconteceu com George Fox e seus seguidores, e com todas as seitas do mesmo tipo. Na segunda geragao, tornam-se racionalistas, moralistas e legalistas; o elemento de éxtase desaparece; nao sobra quase nada criative em comparagio com o petiodo classico do cristianismo apostélico. Os montanistas fixaram seus ensinamentos em novos livros; adotaram a idéia de certa sucessio profética. Naturalmente, de ma- neita auto-contraditéria, posto que sucess4o é principio organizacional e profecia nao. A tentativa de combiné-los ndo deu certo e nunca dari. 59 CAPITULO IL A igreja crista exchiiu 0 montanismo de seu seio, Contudo, a vitéria sobre o montanismo resultou em perda. Podemos vé-la da seguinte maneira: 1. O canon ven- ceu sobre a possibilidade de novas revelagdes. A solugio do quarto evangelho de que sempre haveria novas percepedes da rerdade, sob « critica do Cristo, foi, pelo menos, reduzida em poder e sentido. 2. A hierarquia tradicional triunfou conira o espizito profético. Corn isto excluia-se, mais ov menos, o espitito profético da igrcia organiza- da levando-0 a se abrigar em movimentos sectarios. 3. A escatologia perdeu grande parte da importancia visivel na era apostdlica. A organizagéo eclesidstica passou a ocu- par o primeizo lugar. A expectativa do fim reduziu-se ao apelo aos individuos pata que se preparassem para © seu fim pessoal que podetia vir a qualquer momento. Depois desse periodo a idéia do fim da historia deixou de ter importineia. 4. A rigida disciplina dos montanistas foi abandonada, substituida pelo afrouxamento cresceate dos costumes. O que se passou nesta época tem-se repetido freqtientemente na histo- tia da igteja. Surgem pequenos grupos com rigorosa disciplina; tornam-se suspeitos dentro de igreja; separam-se ¢ formam grandes igrejas; em seguida perdem o poder diseiplinar original. 3, Deus criador ‘Vamos considerar agora o ensinamento dos pais antignésticos dentro dos limites das protegdes que erigiram contra o gnosticismo. Os gnosticos haviam contrastado Deus Pai com Deus salvador. A teoria gnéstica era tida come déasphemia creatorts, blas- fémia do criador. Os tedlogos neo-ortodoxos de hoje precisa se dar conta disso. Eles, na verdade, conservam em sua teologia elementos gndsticos, como Marcio. Mantém essa mesma blasfémia dualista em elagio 20 Deus ctiador. Estabelecem a oposigao entre o salvador e o ctiador de tal maneira que, embora sem cair em heresia, blasfemam implicitamente contra a ctiagdo divina ao identificd-la com o estado peca- mminoso da realidade. Contra essa tendéncia, Irineu afirmava a unicidade de Deus; nao ha qualquer dualismo nele, Tanto a lei como o evangelho, a criagio como a salvagio, derivam do mesmo Deus. O Deus uno nos é conhecido nao especulativamente, mas existencialmente. A sua frase: “Sem Deus no se pade conhecer a Deus”. Deus jamais é objeto. Em todo conhecimento € cle que conhece em nos e por nosso meio. Somente ele se conhece a si mesmo. Nés apenas poderos participar nesse conhecimento de Deus. Mas ele nao. é um objeto que possamos conhecer a partir do exterior . Nao se pode conhecer Deus em sua grandeza, em seu carater absolute ¢ incondicional. Ele sé é conhecido ne amor 60 DESENVOLVIMENTO {OLOGICO NA IGREJA ANTIGA, com que vem a nés. Portanto, para se conhecer Deus é preciso estar dentro de Deus; participar nele. Nao se pode vé-lo como se fora mero objeto 1h fora (ou fora da gente). Esse Deus ction o mundo a partir do nada. Essa expressao, “a partir do nada”, nio é descritiva, mas conceito protetivo com significado apenas negativo, Quer dizer que nfo havia antes da criagdo divina qualquer matéria a partir da qual Deus teria criado o mundo, como se pensava no paganismo. Ao criar 0 mundo, Deus nao de- pendia dessa matéria destinada a resistit 4 forma que o deminrgo, o construtor do mundo, desejava lhe impor. A idéia crista ¢ que tudo foi criado diretamente por Deus sem qualquer matéria anteriormente existente. Deus é a causa de todas as coisas. Seu propésito, 0 #/bs imanente de tudo, é a salvacio da humanidade. Proclama-se, como resultado, a bondade da eriacio: o Deus criador é 0 mesmo Deus salvador. A blasfé- mia do Criador, nova ou antiga, baseia-se sempre na confusio da bondade do mundo criado com a sua distorcio. Este Deus é trias, trindade. A palavra sinitas aparece pela primeira vez nos escritos de Tertuliano. Embora Deus seja um 86, ele nunca esté sd. Diz Itineu: “Estio sempre com ele a palavra ¢ a sabedoria, o Filho ¢ o Espirito, por meio dos quais tudo fez livre € espontancamente”, Deus é sempre Deus vivo. Nao esté sé. Nao é uma identidade morta. Mantém em si para sempre a palavra ¢ a sabedoria, Palavra ¢ sabedoria sio simbolos de sua vida espiritual, da sua auto-manifestagéo ¢ da sua auto-realizacio. O motivo da doutrina da trindade é esse falar de Deus em termos de Deus vivo, para tornar compreensivel a presenca do divino como fundamento vive e criativo do mundo. Segundo Ixinea, esses trés sio umm sé Deus porque possuem uma sé dynamis, um 66 poder de ser, uma sé esséncia, a mesma potencialidade. “Potencialidade” e “dinami- ca” sio tetmos latinos e gregos pata significar o que expressamos em nossa lingua pelo termo “poder de ser”. Tertuliano falava da substancia divina una deseavolvida na economia triddica. “Economia” significa “construgao”. A divindade se constrdi eternamente em unidade. Rejeita-se definitivamente qualquer interpretacao politeista da trindade. Por outro lado, Deus se estabelece como ser vivo, em contraposicao & idenddade morta. Assim, Tertuliano empregou a formula sna substantia, tres personae, para falar de Deus. Ao contritio do que ensina o gnosticismo, o homem foi criado bom. Caiu em virtude de sua prdpria liberdade. O homem, mortal por natureza, teria se tornado imortal mediante a obediéncia a Deus, permanecende no paraiso ¢ participando no alimento dos deuses, proveniente da arvore da vida. Mas perdeu esse poder ao deso- 61 CAPITULO bedecer a Deus. Por isso deve ser reconquistado. A imortalidade, como ja dissemos, nao & qualidade natural, mas algo a ser recebido como dadiva dos paramos eternos. Nao ha outro modo de ganhé-la. O pecado é tanto espiritual como carnal. Adao perdeu a possivel sizétitudo (semelhanga) de Deus, que era a imortalidade, embora néo tenha perdido a imagem natural, uma vez que é essa irmagem natural que o fez huma- no. Temos aqui a conhecida distingio feita por Irineu entre similitnda e imago. Essas duas palavras foram empregadas na Vulgata, em Génesis 1,26, para dizer que Deus criou o homem a sua imagers, segundo sua semedhanja. Irineu interpreta essas duas palavras teo- logicamente. Todos os homens possuem a imagem natural de Deus; o homem, como tal, finito e racional, é capaz de se relacionat com Deus. A sinviditudo signitica que 0 homem pode se tornar semelhante a Deus. A marca dessa semelhanga é a vida eterna. Ao aleancar 4 vida eterna, o homem supera a mortalidade natural é participa na vida eterna de Deus. Trata-se de dom divino. 4. Historia da salvagao A histéria da salvacio foi desctita em trés ou quatro aliangas. A primeira vern da ctiagio. E a lei natural que é, em Ultima anilise, a Jei inata do amot. A segunda se da quando 0 homem perde sua participacio inocente e imediata nessa lei e tem nova chance de ser reabilitado. A terceita é a lei restabelecida por Cristo depois que 0 juda- ismo deformou a lei do Sinai. Mas é sempre a mesma lei do amor inata no homem por nanureza. Deus nao promulga mandamentos arbitririos, mas reafirma manda- mentos idénticos 4 natureza essencial do homem e que sio, portanto, validos em qual- quer circunstancia, Em Tertuliano, porém, encontramos a quarta alianga, porque ele era montanista. E a alianga com o Paracleto, o espitite divine, que da nova lei no fim dos tempos. Queria dizer que a histéria da salvagao era entendida como a educagio da humanidade em termos de lei. Assim ficava mais facil se entender porque o Antigo Testamento fazia patte das Escrituras cristas ¢ porque a filosofia também pertencia ao cristianismo. Sao diferentes estgios auma mesma histéria da salvagio. A revelacio de Cristo no os nega, Na verdade, os confirma. Os problemas relacionados com o dualismo resolviam-se em termos de histdtia da salvacio vista por meio dessas dife- rentes aliangas. Nao h4 s6 uma revelagao. A idéia biblica de Aairas significa que a ceve- lagao se adapta a cada nova alianga: pataiso, nacio eleita, Cristo é, 4s vezes, Espirito divino. Em cada caso temos um éairas apropriado, uma plenitude especifica. Este tipo de pensamento libera o cristianismo da estreiteza de pensar que a sua revelagio é a Gaica, incapacitando-o de perceber que ela se sitaa no contexto mais amplo da histdria 62 DESENVOLVIMENTO TEOLOGICO NA IGREJA ANTIGA. da revelagio. Essa estreiteza acaba, como em Marciao c, pelo menos em parte, na escola barthiana, em isolamento da revelag&o como se nada tivesse a ver coma histéria inteira da humanidade. Sobre a cristologia, Irineu dizia: “O invisivel do Filho 6 0 Pai; 0 visivel do Pai é o Filho”. Eternamente. Sempre ha alguma coisa potencialmente visivel em Deus, ao mesmo tempo em que também sempre hi algo mistetioso que podetiamos chamar de abismo em Deus. Esses dois lados podem ser simbolicamente distinguides com os nomes de Pai ¢ Filho. O Filho que eternamente é 0 visivel do Pai manifesta-se no apacecimento pessoal de Jesus, o Cristo. Os pais antigndsticos sublinharam o aspecto monoteista do cristianisme muito mais do que os apologistas, porque estavam enifen- tando tendéncias politeistas no proprio cristianismo. Os apologistas, com sua doutrina do Logos, aproximavam-se petigosamente desse pensamento politcista ou triteista, quando interpretavam o Espirito nos mesmos termos do Logos. Na linha de pensa- mento que vai de Joio a Inacio € a Irineu, o Logos nio & mera Aypastasis menor, forma ou poder inferior do ser em Deus, mas o proprio Deus enquanto revelador, enquanto auto-manifestagio divina. Irineu chamava a salvagio de anakephalaiosis (recapitulagio). Em latim se lia rrcapituiatio. Referia-se a Efésios 1,10 que dizia que todas as coisas no céu e na terra se reuniam em Cristo. Lrineu construiu a sua idéia de histéria da salvacao a partir dai. Quetia dizer que o desenvolvimento partido em Adio resumia-se em Cristo e nele se realizava plenamente. A nova humanidade comecava em Cristo. Em Cristo, finalmen- te, se alcangava o que a humanidade tinha que ser e que no chegara a ser por causa de Adio. Entretanto, essa plenitude na se refetia apenas 4 humanidade, mas também ao cosmos. Para realizar tudo isso Cristo teve que participar na natureza de Adio. Dessa forma, Cristo é 0 comeco dos vives enquanto Adio € 0 inicio dos mortos. Mas Adao se cumpre em Cristo; querendo dizer que Cristo € 0 homem essencial ¢ Adio o homem que deveria ter sido esse ser pleno ¢ nio foi. Adio nunca chegou a essa plenitude, pois viveu em estado de inocéncia infantil. Trata-se de doutrina profunda que eu chamo de "humanismo transcendente”, que afiema ser Cristo a tealizago do homem essencial, de natureza adamica, necessitia por causa da intercupgio ocorrida no desenvolvimento humano, por meio de Adio. A inocéncia infantil de Adio per- lenamente deu-se, mas 0 segundo Adio tomou-se 0 que o homem deveria ter sid humano. E nds também podemos alcancat essa plena humanidade participando nessa humanidade que apateceu em Cristo, Ai se inclui a vida eterna, semelhanga com Deus 63 CAPITULOTI no que cancerne 4 participacao no infinito, Quando comegoa estudat essas coisas, surpreendo-me sempre a0 observar como essa teologia da igreja antiga era melhor do que a teologia popular surgida no século dezenove. Foi uma teologia muito mais profunda e muito mais adequada ao parado- xo do cristianismo sem se tornar ircacional, idiota ou absurda. Havia, naturalmente, elementos absurdos, ai pelas margens, pelas fronteiras, sobre milagres ¢ outras doutrinas. Mas a posicao central era a mais profunda possivel, enten- dendo 0 Cristo nio como evento acidental ou transmutacao do mais alto dos setes, mas como humanidade essencial realizada, sempre relacionada com Adio, ao ser es- sencial do homem ¢ ao seu estado de queda. 5. Trindade ¢ cristologia Tertuliano criou uma formula fundamental para expressar a uindade ea cristologia. A linguagem juridica que empregou com grande habilidade tornou-se decisiva para o futuro. A formula de Tertuliano acabou entrando para os credos latinos da Igreja Catélica Romana: “Preservemos 0 mistério da economia divina que dispds a unidade em trindade, Pai, Filho e Espitito Santo, trés nao em esséncia, mas em grau, nao em substincia, mas em forma”. Temos aqui pela primeira vez a palavra frinitas, introduzida por Tertuliano na linguagem eclesiastica. Falou também da unidade na trindade, ne- gando qualquer forma de tendéncia triteista. Em vez disso, introduziu a palavra “eco- nomia” na linguagem teoldgica. Essa palavra totnou-se muito importante na igreja antipa. Falar de economia divina é falar de Dens “construindo” suas manifestagdes nos periodos da historia. A trindade é edificada de modo vivo e dinamico por meio de manifestacdes histéricas. Mas nessa trindade sé hé uma esséncia divina. Se traduzirmos “esséncia” por “poder de ser” chegamos ao que o termo queria dizer. S6 hé um poder divino de ser, e cada uma das trés manifestagdes econdmicas do poder de ser participa no pleno poder se ser. Deus possui eternamente a ratio (cazio) ou /gos em si mesmo. E sua palavea interior, que caracter:za, naturalmente, a existéncia espiritual. Quando afirmamos que Deus é Espirito, precisatnos também acrescentar que ele é trinitirio; ele possui a pala- vea dentro de sie a unidade com sua auto-objetivacio. A palavra procede de Deus como os ratios de luz procedem do sol. No momento da ctiagio, o Filho se torna a segunda pessoa, e o Espirito, a terceita. A substancia ou esséncia divina, significando 64 DESENVOLVIMENTO TEOLOGICO NA IGREJA ANTIGA poder de ser, pertence As trés pessoas, O tetmo “persona” de Tertuliano niio quer dizer a mesma coisa que a nossa palavra “pessoa”, Vocés ¢ eu somos pessoas porque somos capazes de raciocinar, de decidir, de agir com responsabilidade etc. Esse con- ceito de pessoa nao foi aplicado 2 Deus nem mesmo 4s trés bypasiasis de Deus. Mas, entio, que queria dizer “persona”? Perrona, como o vocdbulo grego, prosopon, era a méscara usada pelos atores para representar certos personagens. Assim, temos na trin- dade wés faces, és semblantes, trés expresses caracteristicas da divindade, no pro- cesso da auto-explicagio divina, Fazem parte da formula clissica do monotefsmo tinitatio. Tertuliano também elaborou formulas basicas para expressar a cristologia. Dizia: “Percebemos uma esséncia dupla, sem confusio, unida numa s6 pessoa, em Deus e no homem Jesus”. Acha-se ai a formula da doutrina das duas maturezas ou poderes de ser, na pessoa de Cristo. Persona significa, neste contexto, uma Gnica face individual ou um unico set de cardter pessoal, Jesus. Na pessoa de Jesus uncm-se dois diferentes poderes de ser, o divino ¢ o humano. Cada um desses poderes ¢ independente; um nao se confunde com o outro; e, no entanto, retinem-se numa sé pessoa. Se perguntar- mos como isso é possivel, jé estaremos antecipando as discussdes postetiores. Mas que teria sido a encarnagéo: metamorfose na qual Deus se funsforma em homem, ou a aceitagio da esséncia humana pelo set de Deus? Tertuliano opta pot esta Ultima idéia. Como a maioria dos tedlogos, Tertuliano acredita que Deus é imutivel, e que os dois poderes de ser precisam ser peservados em suas respectivas identidades. Jesus, enquanto homem, nao é um Deus transformado; é homem teal, verdadeito. B quando se diz que ele é também Deus verdadeito, niio se afirma que houve mistara de ambos. Se o Logos se transfigurasse ou se transformasse em uma outta coisa, tetia mudado sua natureza; mas o Logos continua sendo o mesmo Logos no homem Jesus. Assim, Tertuliano pensa mais em termos do Logos que adota uma natureza hurnana € nio segundo a idéia mitolégica da transmutacao. Segundo Ixineu, 0 poder salvador é 0 Espirito divine que habita na igreja e renova seus membros trazendo-os das coisas velhas para a novidade em Cristo. Cristo lhes da vida (go) e luz (phds); di-thes nova tealidade. Aceitamos pela f€ que é assim que Deus age no homem. Portanto, nfo precisamos de lei alguma amando a Deus e ao préximo. Esse elemento paulino nio é, porém, suficientemente forte para superar elementos andpaulinos. Em ultima anélise, o novo ser é mistico e ético. Neste sentido, o conceito de Ininew € a mais alta forma de catolicismo primitivo, mas nao é protestante. No 65 CAPITULON protestantismo a renovagao se da por meio da justificacao pela Fé. Irineu concebe 0 processo da salvacio em termos de regeneracio mistica para a imortalidade. Em contraste com essa idéia, Tertuliano entende que o contetido da vida crista se resume numa disciplina de tipo totalizante. Admite o processo educacional orientado pela lei, reduzindo a vida eterna 4 realidade da obediéncia. Ai estd Tertuliano, com sua mente de jurista romano, amante da lei, e a0 mesmo tempo, o asceta pietista, que Viria a se tornar montanista, Em Irineu, temos a idéia da participacio mistica; em Tertuliano, a sujeigio 4 lei. Sao os dois lados do catolicismo primitive. O segundo aspecto, que ¢ a sujeicao 4 lei, tornou-se decisivo pouco antes da ruptura protestante. Mas 0 movimento protestante também tenegou a férmula de Irineu, ¢ se voltou para © outro lado de Paulo, representado pela justificagio pela £6. Encontramos, em Tertuliano, a forma Catdlica Romana do legalismo judaico. As relagdes entre os seres humanos ¢ Deus so regidas pela lei. O cristianismo nao passa de nova lei. Muito embora o cristianismo retorne 4 religido da lei, nao se torna num outro sistema judaico de leis ¢ regras gragas 4 salvagio sacramental. Portanto, podia dizer: “o ceangehum, o Evangelho, é a nossa lei especial”. Ao ce transgredir a lei produz- sea culpa e se requer punicao. “Mas se fizermos a sua vontade, ele se tornard nosso devedor. E assim poderemos ganhar méritos”. HA duas classes de exigéncias: precei- tos e conselhas. Desse mado, cada cristio pode adquirir 0 seu tesouro de santidade por meio do qual devolve a Cristo 0 que Cristo lhe deu. As virtudes dos cristios sao coroadas. O sacrificio da ascese ¢ do martirio leva Deus a fazer o bem para nds. “Na medida em que vocés nao se poupam, nessa mesma medida, creiam-me, Deus pou- pari a vocés”. Encontramos, neste final do segundo século, muitas idéias que se vao tortiar importantes no catolicismo romano posterior. }4 se encontra ai a idéia de que " embora os preceitos sejam pata todos, ha conselhos especigis para os monges, bem como a idéia de que Cristo é a nova lei. O catolicismo romano surgiu rapidamente no cristianismo. A razdo € que 0 catolicismo romano foi a forma na qual o cristianismo pdde ser facilmente recebido, incluindo em si todas as formas de pensar e de viver dos romanos e dos gregos. 6. O sacramento do batismo Nesta época o batismo ainda eta o sacramento mais importante. Removia os pecados passados. Tinha dois sentidos: 2 lavagemn dos pecados ea recepgao do Espi- tito divino. Pressupunha-se, para tanto, a confissio batismal do credo, a consciéncia 66 : DESENVOLVIMFENTO TEOLOGICO NA IGREJAANTLIGA dos proprios pecados ¢ a certeza do Salvador, A pritica do batismo obedecia a trés caracteristicas: 1. Os candidatos ao batismo recebem a imposi¢io das mios € 0 dleo sagrado, tornando possivel a recepcio do Espirito. 2. A pessoa que vai se batizar rejeita o diabo com toda a sua pompa € seus anjos. Abandona o dominio do demdnico; rejeita para sempre qualquer participagao no paganismo., Nao se tratava de mera formula moralista; eta algo bern mais profun- do. Esse ato representava o abandono dos deménios que governavam o mundo ea rejeicio do paganismo politeista. 3. O terceiro elemento no batismo era a unidade de perdio ¢ regeneragio. A existéncia paga terminava, e comegava, em seu lugar, a exis- téncia crist’i. Terminava no batismo o estigio prepatatério para a iniciag&o na vida da igreja. Os novos batizados passayam a ser chamados de /elsoi, perfeitos. Pois haviam alcangado © #2i0s, 0 alvo interior da prdpria existéncia humana A teoria do batismo entre os pais antignosticos afirmava que o Espirito se unia a agua, como nos mistérios gndsticos. Tertuliano, com sua formacao estoica, nao tinha dificuldade de entender o Espirito como forca material imetsa na agua. Os pecados eram apagados, de certa forma, fisicamente, e o Espirito era também concedido fisicamente. E 0 que se chama de “materialismo” de Tettuliano. Essa doutrina é im- portante porque tornou possivel o batismo das criangas. Se a agua é 0 poder salvador, a erianca pode ser salva da mesma forma que o adulto. Mas nao foi sem certa divida que Tertuliano aceitou essa doutrina. Mas o cristianismo teve que aceité-la assim que deixou de batizar individuos, um a um, convertidos do paganismo, para batizar “to- das as nagées”. Assim, as ctiangas nfo podiam ser excluidas. Tendo ento que incluir as ctiangas no batismo, foi preciso desenvolver uma teotia completamente objetiva desse sacramento, posto que as criancas nao tomam decisdes pessoais. A Ceia do Senhor era para Irineu a mediagao fisica da imortalidade. Nela © cris- tdo se unia com elementos celestiais ¢ divinos. Essas idéias estavam nas bases da criago da Igreja Romana; e acabararn exercen- do enorme influéncia nos séculos seguintes, A Igreja Cavolica jd estava pronta por volta do ano 300 de nossa era. Nao se pode dizer, pois, que 0 protesiantismo tevha sido uma volta aos ptimeiros tempos. As feigdes catélicas j4 exam poderosas nessa época. Essa é uma das razdes porque a “via media” do anglicanismo, que setia em si a solugéo ideal para o cisma das igtejas, nao funciona. A assim chamada concordancia dos pri- meitos cinco séculos nao representa de modo algum qualquer concordancia com os 67

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