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Agenda para um novo Brasil

Caetano Pereira de Araujo * e Roberto


Freire**
A eleição de outubro próximo acontece num momento crucial para a definição
do rumo do Brasil. Estão em jogo o desempenho político, econômico e social nos
próximos anos e, conseqüentemente, o papel que o país desempenhará numa ordem
mundial caracterizada pela interdependência crescente entre as nações. É possível
aproximar esta eleição, em termos de significado, à ocorrida em 1994. Fica claro hoje,
com o benefício da distância, que se defrontaram naquele momento dois projetos
díspares de país. De um lado, em torno de Fernando Henrique Cardoso, o projeto
reformista, de ampliação da democracia e consolidação da estabilidade econômica. De
outro, Lula e o PT com seus aliados, na sua identidade anterior a 2002, num projeto
obsoleto de frente popular, cuja efetivação teria levado o Brasil a dilemas econômicos e
políticos similares aos que afligem hoje outros países da América Latina.
A disjuntiva atual é semelhante. As propostas do campo que se encontra no
governo mudaram, é verdade, de 1994 para cá, mas o Brasil e o mundo mudaram ainda
mais. O governismo e sua candidata defendem o modelo administrado por Lula nos
últimos oito anos: desenvolvimento conduzido pelo Estado, em aliança com grandes
grupos empresariais; e política social restrita na prática aos mecanismos de transferência
de renda. Bolsa-empresa mais bolsa-família, uma receita que pode ser considerada
válida em situações pontuais, mas que a social-democracia européia provou esgotada
como modelo geral há muitos anos, insustentável num mundo cada vez mais
globalizado.
Consideramos esse modelo ineficiente e indesejável, nas condições atuais. Na
verdade, a tentativa de praticar essa receita no ambiente contemporâneo promove
inevitavelmente tensões e atritos com o ordenamento democrático, uma vez que sua
premissa é a concentração de recursos e de poder, nos executivos nacionais, nas grandes
corporações e nas cúpulas sindicais. O modelo pareceu viável nos anos recentes graças à
herança robusta de reformas legada pelo governo anterior, numa conjuntura
internacional que se mostrou favorável na maior parte do período.
Do outro lado da disputa, temos a retomada do projeto de reforma do Estado e
do aprofundamento da democracia. As candidaturas de oposição, em particular a de José
Serra, propugnam a mudança. Para enfrentar as demandas cada vez mais exigentes da
cidadania no plano interno e os desafios da concorrência no mundo globalizado, para
avançar no rumo da sociedade que queremos todos, com padrões elevados de
democracia, eqüidade e afluência, a oposição sabe que não basta gerir com eficiência o
Estado de que dispomos, é preciso reformá-lo radicalmente, para torná-lo capaz de
responder satisfatoriamente a essas demandas.
Nessa perspectiva, apresentamos para discussão ampla a seguinte proposta de
agenda para o Brasil. Nosso objetivo é, em linhas gerais, uma sociedade democrática,
afluente e eqüitativa; o caminho, a reforma do Estado. Democracia e eqüidade são, com
certeza, valores que perseguimos, objetivos normativos, mas ao mesmo tempo
premissas do desenvolvimento possível nas condições de hoje. Nesse sentido,
convergimos para o consenso vigente nos foros internacionais: desenvolvimento não é
redutível a crescimento econômico, mas abriga como dimensões necessárias a
ampliação da democracia, a redução das desigualdades e a diretriz da sustentabilidade.

**
Sociólogo, professor da UnB, consultor legislativo do Senado e atual presidente da Fundação
Astrojildo Pereira
****
Advogado, ex-senador e ex-deputado federal, atual presidente do Partido Popular Socialista
A história recente mostrou ao mesmo tempo a necessidade e a insuficiência dos
mecanismos de mercado e do Estado para a regulação das relações econômicas e
sociais. A lacuna que resta só pode ser ocupada pela cidadania organizada, pela
transparência, pelo controle e participação do cidadão. Mercado e Estado precisam para
bem funcionar da partilha das decisões e responsabilidades com o cidadão. Por essa
razão, a qualidade da democracia hoje é condição do desenvolvimento e é preciso um
ganho expressivo de qualidade para que a democracia brasileira tenha condições de
responder à altura aos desafios do presente.
Na mesma perspectiva, está claro que desenvolvimento, no sentido amplo aqui
utilizado, é tarefa complexa que exige o concurso das potencialidades de todos. Manter
grande parte da população à margem da produção e do consumo, como faz ainda o
Brasil, apesar dos ganhos recentes, é um desperdício criminoso de trabalho e talento,
que causa perdas a todos nós. Daí a urgência do avanço no rumo da eqüidade.
Sustentabilidade, por sua vez, não mais pode ser vista como um acréscimo
politicamente correto ao sistema anterior de produção. O fim da economia baseada no
carbono é fato e o desenvolvimento seguirá a trilha aberta pela mudança da matriz
energética. O Brasil, apesar das enormes vantagens comparativas de que goza nesse
campo, está atrasado na formulação e implementação dessa mudança.
Democracia, eqüidade e sustentabilidade são os eixos da sociedade que emerge,
a sociedade do conhecimento. O atendimento às demandas simultâneas desses eixos
impõe como tarefas centrais na agenda da política educação, ciência, tecnologia e
inovação. Nosso desempenho no que se refere à ciência e tecnologia ainda está aquém
do necessário, particularmente em relação à tecnologia e inovação. Mas o desempenho
do Brasil em educação, na formação do cidadão e do trabalhador da sociedade do
conhecimento, é calamitoso, conforme as comparações internacionais disponíveis.
Num mundo de interdependência crescente, as relações internacionais, políticas,
comerciais e culturais, assumem importância inédita. Ganham destaque, em especial, os
processos de integração regional e a construção e aperfeiçoamento dos organismos
responsáveis pela governança mundial. Ambas as dimensões merecem atuação mais
incisiva por parte do futuro governo. Afinal, é cada vez maior o número de decisões
vitais para os interesses brasileiros, positivas e negativas, tomadas ou postergadas no
âmbito desses organismos.
Uma estratégia reformista de mudança abrange inúmeras dimensões. Está
evidente que precisamos com urgência de reformas em diversos setores e atividades do
Estado. Assinalamos, nos limites deste artigo, algumas diretrizes que devem nortear a
ação estatal nas suas linhas fundamentais, com as correspondentes reformas exigidas.
A primeira questão a considerar, pela centralidade que assume no processo de
mudança é a ampliação e o aprofundamento da democracia. Como antes apontado, não
vemos esse processo apenas como um objetivo normativo, mas como necessidade
imposta pelas condições do desenvolvimento presente. Muito há a caminhar, em termos
de aumentar a transparência dos atos governamentais e a participação do cidadão,
melhorar a qualidade da representação política, sanar os desequilíbrios enormes entre os
poderes da República e os diferentes níveis da Federação. Os avanços institucionais
nessa direção constituem a matéria de uma reforma política.
Reforma política é, para nós, um processo demorado, de acumulação progressiva
de ganhos. O ponto inicial, contudo, que deve ser enfrentado na primeira hora pelo novo
governo é a mudança da legislação eleitoral e partidária. Para romper com a situação
atual de partidos fracos e legislativos aquém de suas obrigações constitucionais, para
conseguirmos partidos efetivos e legislativos atuantes, a regra eleitoral deve mudar.
O primeiro passo da reforma política deve ser, portanto, a adoção do voto
distrital misto, com listas fechadas, alternância de sexos e financiamento público de
campanha.
Efetuada essa mudança, iniciado o processo de fortalecimento dos partidos e dos
legislativos, a questão da mudança do sistema de governo deve ingressar na agenda
política brasileira. A superação da hipertrofia do Executivo, bem como o processo de
responsabilização do Legislativo, culmina na adoção do parlamentarismo. Uma opção
consciente do eleitor nessa direção deve ser precedida de experiências parlamentaristas,
nos âmbitos municipal e estadual, que lhe permitam a manifestação com conhecimento
de causa, no decorrer de uma eventual consulta popular.
Iniciada a reforma eleitoral e partidária, eliminada, portanto, a demanda política
sobre a gestão de importantes espaços estatais, torna-se possível avançar na reforma
democrática do Estado. A proposta Bresser-Pereira de reforma administrativa do
Estado, correta no essencial, pecou, de um lado, por não considerar a necessária
mudança prévia na regra eleitoral, de outro por não perceber que o acréscimo de um
componente gerencial em determinados segmentos do Estado deveria ser acompanhado
pelo incremento da participação da sociedade civil organizada.
A diretriz geral da reforma democrática do Estado deve contemplar a redução
drástica do número de cargos de livre provimento e o fortalecimento simultâneo dos
instrumentos burocráticos, gerenciais e participativos da gestão pública. A partir do
novo desenho do Estado, uma série de outras reformas importantes, como a tributária,
poderão avançar com maior segurança.
A segunda questão é o combate às desigualdades e a procura de ganhos em
termos de eqüidade social, em todas as suas dimensões, inclusive no que diz respeito à
região, gênero e raça. Para respeitar os limites deste artigo, assinalaremos apenas
algumas linhas de política pública com foco nas desigualdades sócio-econômicas.
É inegável que nos 25 anos de democracia, particularmente nos 16 últimos anos
de estabilidade econômica, conseguimos no Brasil avanços significativos em termos de
inclusão social e redução das desigualdades. É preciso reconhecer, no entanto, que ainda
estamos longe da situação de eqüidade mínima desejável e necessária. Pobreza e
indigência caíram, mas seus percentuais continuam elevados. Além disso, parte
importante dos egressos da indigência alcançaram uma situação de consumo nova,
compatível com a própria sobrevivência, mas não foram incluídos de forma plena em
termos de inserção produtiva nem de autonomia cidadã.
Para prosseguir no rumo da inclusão precisamos, em primeiro lugar, manter e
aperfeiçoar os programas de transferência de renda existentes, com controle maior sobre
a seleção de beneficiários e a partilha de responsabilidades por sua implementação com
os governos estaduais e municipais.
No entanto, como observamos, se esse tipo de programa tem o mérito
indubitável de manter os pobres vivos, apresenta o defeito também evidente de manter
os pobres na situação de pobreza em que se encontram, sem abrir caminhos de inserção
produtiva e de ganho de responsabilidade cidadã. Para avançar nesse rumo, para o início
de um círculo virtuoso de acumulação de capital social, são necessários outros
instrumentos.
Em primeiro lugar, uma política educacional muito mais incisiva e eficiente que
a atual. A implantação da educação em tempo integral é imperativa, assim como a
melhoria da qualidade do ensino fundamental e médio. A avaliação periódica de
desempenho deve tornar-se o norte da política educacional, ao identificar as fragilidades
a serem superadas. O desempenho do Brasil em todos os testes internacionais de
desempenho escolar tem-se mantido pífio, com efeitos já observáveis em termos de
mercado de trabalho. A escassez de profissionais qualificados em algumas áreas começa
a configurar-se um gargalo inibidor do crescimento comparável aos gargalos na oferta
de transporte e energia.
O segundo instrumento a ser mobilizado é uma política nacional de trabalho.
Trabalho no sentido amplo, uma vez que, em condições de sociedade do conhecimento,
o trabalho assume cada vez menos a forma de emprego. Uma política desse tipo deverá
incentivar o emprego formal, mas também apoiar a pequena e micro-empresa, o
associativismo, o trabalho autônomo e o empreendedorismo de maneira geral.
A terceira questão a ser enfrentada é a da sustentabilidade do desenvolvimento
brasileiro.
A controvérsia em torno da sustentabilidade como premissa necessária do
desenvolvimento está vencida. A mudança da matriz energética, o caminho na direção
de uma economia não dependente do consumo de carbono é irreversível e o grau de
ousadia do engajamento dos diferentes países nessa mudança será fator relevante na
competição internacional. O Brasil detém vantagens excepcionais nessa conjuntura,
com destaque para a matriz energética limpa e o estoque de biodiversidade que o
território nacional abriga. Faltam-nos, ainda, clareza na definição política do rumo a
tomar. Todas as decisões da política econômica, inclusive aquelas relativas à velha
matriz, como o projeto do pré-sal, devem tomar como norte o futuro do pós-carbono.
Nesse cenário, fica clara a centralidade da política de ciência, tecnologia e
inovação. Precisamos de uma política de C&T, compatível com as exigências do novo
tempo, que aumente os investimentos no setor, priorize a articulação com o setor
produtivo e supere o gargalo hoje existente em termos de inovação.
Impõe-se, também, acelerar o processo de mudança da matriz energética. É
urgente conferir prioridade enfática para a expansão do uso de energias alternativas
como o etanol, a eólica, a solar, a biomassa, as hidroelétricas de pequeno e médio porte,
a energia nuclear, bem como para programas de aumento da eficiência no transporte e
uso da energia.
Essa é uma opção política que implica mudança radical. Para tanto, faz-se
indispensável a transição acelerada para uma nova matriz de transportes, com prioridade
para a ferrovia e a hidrovia, em detrimento da rodovia; para o transporte coletivo em
detrimento da locomoção individual.
A agropecuária brasileira, em boa parte graças ao investimento público em
ciência e tecnologia, encontra-se na vanguarda da produção mundial. Cumpre agora
superar a oposição entre agropecuária e sustentabilidade e caminhar na direção de uma
agropecuária sustentável. Para tanto é necessário prosseguir no desenvolvimento
científico e tecnológico com o objetivo simultâneo de aumentar a produtividade e
preservar adequadamente a terra e os recursos naturais. Esse objetivo não será
alcançado sem elevar o investimento em pesquisa, com ênfase na sustentabilidade e
foco especial na agricultura familiar.

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