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Reflexões sobre a teoria das cláusulas

pétreas

Adriano Sant’Ana Pedra

Sumário
1. Introdução. 2. Rigidez e evolução
constitucional. 3. As cláusulas pétreas na
Constituição brasileira de 1988. 4. Acerca da
(in)tangibilidade das cláusulas pétreas. 5.
Conclusão.

1. Introdução
As transformações constitucionais são
necessárias para acomodar a Constituição
às mudanças ocorridas na sociedade. Al-
gumas vezes, entretanto, elas encontram
obstáculos em limites materiais estabeleci-
dos pelo poder constituinte, as chamadas
cláusulas pétreas. As cláusulas pétreas são
consideradas classicamente como obstácu-
los intransponíveis em uma reforma consti-
tucional, que só podem ser superados com
o rompimento da ordem constitucional vi-
gente, mediante a elaboração de uma nova
Constituição.
Embora as cláusulas pétreas tenham
sido concebidas para garantir, de forma ain-
da mais agravada, o ordenamento constitu-
cional e a sua necessária estabilidade, o en-
gessamento que elas proporcionam muitas
vezes não atende às novas demandas da
sociedade. Para que a Constituição de 1988
Adriano Sant’Ana Pedra é Doutorando em alcance a longevidade que dela se espera,
Direito Constitucional (PUC/SP), Mestre em
não se pode deixar que o hiato existente en-
Direitos e Garantias Constitucionais Funda-
mentais (FDV), Coordenador e Professor do tre a Constituição e a sociedade exija a ela-
Curso de Pós-Graduação em Direito Público boração de um novo texto constitucional,
da FDV, Professor da Escola da Magistratura evitando-se assim os desgastes e os riscos
do Espírito Santo (EMES), Procurador Federal. inerentes à substituição do ordenamento
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jurídico. Justifica-se assim o aprofundamen- vidade que as tem de marcar. Mais do
to dos estudos sobre a possibilidade de rea- que modificáveis, as constituições são
lizar certas transformações constitucionais, modificadas. Ou, doutro prisma (na
apesar dos lindes impostos pelas cláusulas senda de certa doutrina): nenhuma
pétreas, quando tais mudanças forem ne- Constituição se esgota num momento
cessárias para acompanhar a evolução da único – o da sua criação; enquanto
sociedade brasileira. dura, qualquer Constituição resolve-
se num processo – o da sua aplicação
2. Rigidez e evolução constitucional – no qual intervêm todas as participan-
tes na vida constitucional” (MIRAN-
Um dos instrumentos para se alcançar a DA, 1996, p. 129-130; 2002, p. 389).
necessária estabilidade da Constituição é a As normas constitucionais não podem
rigidez constitucional, que está relaciona- ser consideradas perfeitas e acabadas, es-
da com as limitações do poder reformador, tando constantemente em uma situação de
e que se revela um importante instrumento mútua interação e dependência. Como diz
da limitação jurídica do poder. Uma Cons- Karl Loewenstein (1976), a Constituição é
tituição rígida prevê um procedimento difi- um organismo vivo. Cada Constituição in-
cultado, em relação ao procedimento pre- tegra tão-somente o status quo existente no
visto para as leis infraconstitucionais, para momento de seu nascimento, não podendo
a adição, supressão ou alteração de suas prever o futuro.
normas. “Cada constitución es un organis-
Mas a Constituição deve estar em har- mo vivo, siempre en movimiento como
monia com a realidade, e deve manter-se la vida misma, y está sometido a la
aberta e dinâmica através dos tempos. Isso dinámica de la realidad que jamás
porque uma Constituição não é feita em um puede ser captada a través de fórmu-
momento determinado, mas se realiza e efe- las fijas. Una constitución no es ja-
tiva-se constantemente. As mudanças cons- más idéntica consigo misma, y está
titucionais são necessárias como meio de sometida constantemente al panta
preservação e conservação da própria Cons- rhei heraclitiano de todo o viviente”
tituição, visando ao seu aperfeiçoamento, (LOEWENSTEIN, 1976, p. 164).
buscando, em um processo dialético, alcan- Assim, quando a Constituição é redigi-
çar a harmonia com a sociedade. Se a socie- da inteligentemente, pode tentar levar em
dade evolui, também o Estado deve evoluir1. consideração, desde o princípio, necessida-
“Se as Constituições na sua gran- des futuras por meio de mecanismos cuida-
de maioria se pretendem definitivas dosamente colocados. Entretanto, uma for-
no sentido de voltadas para o futuro, mulação demasiadamente elástica poderia
sem duração prefixada, nenhuma prejudicar a segurança jurídica. A rigidez
Constituição que vigore por um perí- da Constituição importa em ser estabeleci-
odo mais ou menos longo deixa de do um procedimento mais difícil para que
sofrer modificações – para se adaptar ela seja modificada, a fim de que a Consti-
às circunstâncias e a novos tempos ou tuição não fique à mercê de modificações
para acorrer a exigências de solução temerárias que visem a sua aniquilação ou
de problemas que podem nascer até até mesmo a substituição por outra.
da sua própria aplicação. A modifi- No que concerne às cláusulas pétreas, é
cação das Constituições é um fenóme- sabido que estas são concebidas para ga-
no inelutável da vida jurídica, impos- rantir o ordenamento constitucional e a sua
ta pela tensão com a realidade consti- necessária estabilidade, de forma ainda mais
tucional e pela necessidade de efecti- agravada. Entretanto, quando essas limita-

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ções materiais impedirem a Constituição de O constituinte de 1988 buscou excluir
acompanhar a evolução social, acabarão por determinadas matérias da incidência do
cumprir exatamente o papel contrário àque- poder de reforma. Tratou ele de delimitar
le que se prestavam, uma vez que a ruptura quais dispositivos da Constituição podem
do ordenamento far-se-á inevitável, daí de- ser atingidos pelo poder de reforma e quais
correndo o abandono do texto constitucio- são inatingíveis. Karl Loewenstein (1976, p.
nal e a instabilidade social. Explica Gilmar 189), ao tratar das disposições intangíveis
Ferreira Mendes (1994, p. 17) que a aplica- de uma Constituição, que têm a finalidade
ção “ortodoxa dessas cláusulas, ao invés de de livrar determinadas normas constitucio-
assegurar a continuidade do sistema cons- nais de qualquer modificação, distingue
titucional, pode antecipar sua ruptura, per- duas situações. Por um lado, existem medi-
mitindo que o desenvolvimento constituci- das para proteger instituições constitucio-
onal se realize fora de eventual camisa de nais concretas – intangibilidade articulada.
força do regime da imutabilidade”. Dessa Por outro, há aquelas que servem para ga-
forma, paradoxalmente, as cláusulas pétre- rantir determinados valores fundamentais
as, quando concebidas como absolutas, tor- da Constituição que não devem estar neces-
nam-se obstáculo à própria estabilidade que sariamente expressos em dispositivos ou em
pretendiam assegurar, provocando instabi- instituições concretas, sendo implícitos,
lidade e sacrifícios maiores com a elabora- imanentes ou inerentes à Constituição. No
ção de um novo texto constitucional do que primeiro caso, determinadas normas cons-
se promovendo alterações pontuais por meio titucionais se subtraem de qualquer emen-
de emendas constitucionais. da por meio de uma proibição jurídico-cons-
Nesse sentido, se, por um lado, a rigidez titucional, e, no segundo caso, a proibição
constitucional é imprescindível para man- de reforma se produz a partir do “espírito”
ter a estabilidade constitucional, por outro, ou telos da Constituição, sem uma procla-
essa rigidez deve permitir que a evolução mação expressa em uma proposição jurídi-
da sociedade seja acompanhada pela evo- co-constitucional2.
lução da Constituição. Todavia, devemos perquirir quais são as
estruturas basilares de nossa ordem jurídi-
3. As cláusulas pétreas na Constituição ca. “Aceitando-se a posição de alguns, o
brasileira de 1988 Direito Constitucional brasileiro estaria,
quase por inteiro, ‘petrificado’ em razão das
As Constituições republicanas brasilei- referidas cláusulas que enuncia o art. 60,
ras sempre tiveram um cerne imodificável §4 o, da Lei Magna vigente” (FERREIRA
constituindo a estrutura basilar do edifício FILHO, 1999, p. 174). Trata-se de tema con-
jurídico, não podendo ser abalado por obra trovertido, em especial porque nem sempre
do poder reformador. As cláusulas pétreas as limitações materiais estão expressas no
constituem um núcleo intangível que se pres- texto constitucional. Conforme se apresen-
ta a garantir a estabilidade da Constituição tem, tais limitações podem ser explícitas ou
e conservá-la contra alterações que aniqui- implícitas, às quais devem ser atribuídas a
lem o seu núcleo essencial, ou causem rup- mesma força jurídica, assegurando à Cons-
tura ou eliminação do próprio ordenamen- tituição o mesmo nível de proteção.
to constitucional, sendo a garantia da per- A Constituição brasileira de 1988 am-
manência da identidade da Constituição e pliou sobremaneira o campo coberto pelas
dos seus princípios fundamentais. Com cláusulas pétreas em relação ao direito an-
isso, assegura-se que as conquistas jurídi- terior, que apenas excluía do alcance do
co-políticas essenciais não serão sacrifica- poder reformador a abolição da Federação e
das em época vindoura. da República. As limitações materiais ex-

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plícitas à atividade reformadora estão esta- A doutrina majoritariamente ainda re-
belecidas no artigo 60, §4o, do texto consti- conhece a existência de limitações implíci-
tucional brasileiro. Referido dispositivo es- tas, a despeito de importantes posicionamen-
tabelece que “não será objeto de deliberação tos em sentido contrário, como o de Manoel
a proposta de emenda tendente a abolir a Gonçalves Ferreira Filho (1995). Em seu
forma federativa de Estado; o voto direto, magistério, se a Constituição explicitou
secreto, universal e periódico; a separação quais são os seus pontos intocáveis, pode-
dos Poderes; e os direitos e garantias indivi- se questionar se é possível que haja cláusu-
duais”. A nossa atual Constituição contém las pétreas implícitas. “Difícil é admitir que
o rol mais extenso de limites materiais ex- o constituinte ao enunciar o núcleo intangí-
pressos no âmbito de nossa evolução cons- vel da Constituição o haja feito de modo in-
titucional. A Carta de 1824 não continha completo, deixando em silêncio uma parte
nenhuma limitação material expressa. A dele, como que para excitar a capacidade
Constituição de 1891 (artigo 90, §4 o) con- investigatória dos juristas” (FERREIRA
tinha a proibição de abolição da República, FILHO, 1995, p. 14).
da Federação e da igual representação dos Acerca das limitações implícitas, o ma-
Estados no Senado Federal3. A Constituição gistério de Joaquim José Gomes Canotilho
de 1934 (artigo 178, §5o) previa como limita- (2002, p. 1049) faz distinção entre limites
ções materiais expressas a República e a textuais implícitos, deduzidos do próprio
Federação. A Constituição de 1937 repetiu texto constitucional, e limites tácitos, ima-
a de 1824, não apresentando nenhuma li- nentes em uma ordem de valores pré-positi-
mitação material expressa. A Constituição va. Mas ocorre que a doutrina não registra
de 1946 (artigo 217, §6o) novamente prote- unanimidade acerca de quais seriam exata-
geu a República e a Federação, o que veio a mente essas limitações implícitas. Nisso os
ser mantido pela Constituição de 1967-694. limites expressos apresentam vantagem,
O enunciado da norma contida no arti- pois o registro textual impede controvérsias
go 60, §4o, da CR, ao utilizar as expressões a respeito de quais são os limites à reforma
“abolir” e “tendente a abolir”, quis preser- constitucional. Entretanto, não podemos
var em qualquer hipótese o cerne da Consti- nos abster de identificar os limites implíci-
tuição, vedando inequivocadamente que tos no direito constitucional pátrio. Nesse
sejam sequer apreciadas e votadas pelo Con- sentido, torna-se impossível proceder-se a
gresso Nacional, não somente as propostas uma reforma local ou, pelo menos, a uma
de emendas constitucionais que venham a reforma que implique a destruição da ordem
suprimir quaisquer dos princípios distin- constitucional, alterando a identidade da
guidos como cláusula pétrea, mas também Constituição. Carl Schmitt (1996, p. 120)
aquelas que venham a atingi-los de forma destaca que as decisões políticas fundamen-
equivalente, revelando uma tendência à sua tais da Constituição são assuntos próprios
abolição, também ferindo o seu conteúdo do poder constituinte do povo e não perten-
essencial. cem à competência das instâncias autoriza-
Conforme o alcance dado à expressão das para reformar e revisar as leis constitu-
“tendente a abolir”, seriam proibidas tanto cionais. Tal raciocínio faz Ingo Wolgang
as propostas de emendas constitucionais Sarlet (2003b, p. 650) sustentar que todos os
que lesem diretamente as cláusulas pétreas princípios fundamentais do Título I da
quanto as que prejudiquem indiretamente Constituição brasileira de 1988 (artigos 1o a
tais pontos5. Entretanto, a expressão “ten- 4o) integram o elenco dos limites materiais
dente a abolir” permite propostas de emen- implícitos, ressaltando-se, porém, que boa
das que visem a ampliar as previsões cons- parte deles já foi contemplada no rol do arti-
tantes no §4o do artigo 60 da CR. go 60, §4o, I a IV, da CR.

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De acordo com a doutrina de Nelson de própria reforma, além de implicar uma infe-
Sousa Sampaio (1994, p. 95-108), as normas rência na qual a conclusão contraria uma
constitucionais que estão, implicitamente, de suas premissas, importa também em
fora do alcance do poder de reforma podem conferir à norma sobre reforma uma auto-
ser classificadas da seguinte maneira: as que referência inadmissível logicamente.
dizem respeito aos direitos fundamentais, Verifica-se que a maioria dos autores
as concernentes ao titular do poder consti- entre nós reconhece um limite implícito im-
tuinte, as relativas ao titular do poder refor- pedindo alterações, ou pelo menos supres-
mador e as referentes ao processo da pró- são, das normas que contêm os limites ex-
pria emenda ou revisão constitucional. plícitos à reforma da Constituição8. Dessa
Cumpre destacar que o poder reformador forma, pode também ser apontada como
não pode restringir nem muito menos abo- uma limitação implícita aquela atinente à
lir o leque de direitos que se entenda como supressão do próprio artigo 60, §4o, da CR.
fundamentais, mas pode ampliá-los. Con- Outra vedação implícita é a de reforma cons-
temporaneamente, o respeito aos direitos titucional que diminua a competência dos
fundamentais como limitação ao poder re- Estados-membros9, pois isso tenderia a abo-
formador passa a ser defendido sob os pos- lir a Federação. Também é vedada implici-
tulados do direito internacional, que, para tamente alteração constitucional que permi-
Edvaldo Britto (1993, p. 98), “são limites ta a perpetuidade de mandatos. Também
transcendentes à ordem constitucional po- estariam fora do alcance do poder de refor-
sitivada e, assim, são eficazes na limitação ma as normas constitucionais concernen-
do exercício da competência reformadora”6. tes ao titular do poder constituinte – visto
O poder reformador também não pode alte- que uma reforma constitucional não pode
rar as regras concernentes ao titular do po- mudar o titular do poder constituinte, que
der constituinte, que é o povo. Sendo poder cria o próprio poder reformador –, as refe-
constituído, se o fizer, estará realizando uma rentes ao titular do poder reformador – por-
verdadeira fraude à Constituição, haja vis- que seria despropósito que o legislador or-
ta que o poder reformador não foi estabele- dinário estabelecesse novo titular de um
cido para mudar a Constituição em um pon- poder derivado só da vontade do constitu-
to tão sensível. As normas referentes ao titu- inte originário – e as relativas ao processo
lar do poder reformador são irreformáveis da própria emenda – admitindo quando se
porque ele não pode renunciar ou transferir tratar de tornar mais difícil o seu processo,
um poder que lhe foi delegado pelo poder mas não quando vise a atenuá-lo (SILVA,
constituinte e que, dessa forma, não lhe per- 2002, p. 68). Igualmente devem ser conside-
tence. O quarto limite implícito apontado por radas limitações materiais a forma de go-
Nelson de Sousa Sampaio (1994) é a proibi- verno republicana e o sistema presidencia-
ção da alteração das regras que disciplinam lista (HORTA, 1995, p. 95-96; 2002, p. 88,
formalmente o procedimento da alteração 114), uma vez que correspondem à vontade
constitucional7. expressa e diretamente manifestada do titu-
Sobre a impossibilidade de alterar-se o lar do poder constituinte, com base na con-
procedimento formal de mudanças na Cons- sulta popular efetuada em 21 de abril de
tituição, convém trazer a tese de Alf Ross 1993, que cancelou tal cláusula de proviso-
(2000, p. 106-107), para quem a alteração da riedade.
regra reguladora da emenda à Constituição Existe ainda uma parte da doutrina
é um absurdo em lógica, consistindo no pro- (SARLET, 2003a, p. 56-74) que inclui os di-
blema da auto-referência. A idéia desenvol- reitos fundamentais sociais no elenco dos
vida por Alf Ross (2000) aponta que a refor- limites materiais (expressos ou implícitos).
ma da norma constitucional que regula a Com muita propriedade, Ingo Wolfgang

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Sarlet (2003b, p. 667) defende que a aboli- reitos sociais (artigo 6o, CR), a definição da
ção dos direitos fundamentais sociais “aca- nacionalidade brasileira (artigo 12, I, a, b e c,
baria por redundar na própria destruição II, a e b, CR), a autonomia dos Estados Fede-
da identidade da nossa ordem constitucio- rados (artigo 25, CR), a autonomia dos Mu-
nal, o que, por evidente, se encontra em fla- nicípios (artigos 29; 30, I, II e III, CR), a orga-
grante contradição com a finalidade precí- nização bicameral do Poder Legislativo (ar-
pua dos limites materiais”. Pelo enunciado tigo 44, CR), a inviolabilidade dos Deputa-
literal do artigo 60, §4o, IV, da CR, chega-se dos e Senadores (artigo 53, CR), as garanti-
à conclusão de que apenas os “direitos e as dos juízes (artigo 95, I, II e III, CR), a per-
garantias individuais” encontram-se inclu- manência institucional do Ministério Públi-
ídos no rol das cláusulas pétreas da nossa co (artigo 127, CR) e suas garantias (artigo
Constituição. Nessa interpretação restritiva, 128, §5o, I, a, b e c, CR), as limitações do po-
estariam excluídos da proteção outorgada der de tributar (artigo 150, I, II e III, a, b e c, IV,
pela norma contida no artigo 60, §4o, IV, da V e VI, a–d, artigo 151, CR) e os princípios
CR não só os direitos sociais (artigos 6o a da ordem econômica (artigo 170, I a IX, pa-
11), mas também os direitos de nacionali- rágrafo único, CR).
dade (artigos 12 e 13), assim como os direi- No que concerne aos direitos individu-
tos políticos em geral (artigos 14 a 17), com ais, além dos explícitos e dos implícitos, é
a ressalva, para estes últimos, do sufrágio possível ainda elencar uma terceira catego-
secreto e universal assegurado no artigo 60, ria. José Afonso da Silva (2002, p. 193) dis-
§4o, II, da CR. Também não seriam merece- tingue os direitos individuais em três gru-
dores de tal proteção os direitos de expres- pos: direitos individuais expressos, aqueles
são coletiva, sendo que o mandado de segu- explicitamente enunciados na Constituição
rança coletivo não integraria as cláusulas brasileira; direitos individuais implícitos, aque-
pétreas. Com efeito, para Ingo Wolfgang les que estão subentendidos nas regras de
Sarlet (2003b, p. 679), as cláusulas pétreas, garantias, como o direito à identidade pes-
que protegem o conjunto de bens constituci- soal, certos desdobramentos do direito à
onais essenciais à preservação da identida- vida, o direito à atuação geral (artigo 5o, II,
de da Constituição, necessariamente inclu- CR); e direitos individuais decorrentes do regi-
em os direitos fundamentais sociais, seja por me e dos princípios adotados pela Consti-
força do artigo 60, §4o, IV, da CR, seja na tuição, bem como dos tratados internacio-
condição de limite implícito, uma vez que, nais em que a República Federativa do Bra-
para efeitos do reconhecimento de sua pro- sil seja parte. Os direitos individuais decor-
teção contra eventual emenda, especialmen- rentes não estão nem explícita nem implici-
te pelo Poder Judiciário, as situações virtu- tamente enumerados, provindo ou poden-
almente se equivalem. do vir a provir do regime adotado, como o
Raul Machado Horta (1995, p. 95; 2002, direito de resistência, entre outros de difícil
p. 88) também entende que, além das limita- caracterização a priori.
ções materiais do §4o do artigo 60 da CR, Tal elaboração remete-nos à idéia de
ainda existem outras limitações implícitas “bloco de constitucionalidade”. A noção de
difundidas nas regras constitucionais, que “bloco de constitucionalidade” (FAVOREU,
são: os fundamentos do Estado Democráti- 2002, p. 115-120) (bloc de constitutionnalité)
co de Direito (artigo 1o, I a V, CR), o povo ou “bloco constitucional” (bloc constitutionnel)
como fonte do poder (artigo 1o, parágrafo surge na França no início da V República,
único, CR), os objetivos fundamentais da notadamente a partir de 1960. Foi inspira-
República Federativa (artigo 3o, I a IV, CR), da na terminologia “bloco legal” (bloc légal)
os princípios das relações internacionais ou “bloco de legalidade (bloc de légalité) em-
(artigo 4o, I a X, parágrafo único, CR), os di- pregada pela doutrina administrativis-

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ta. Enfatiza o princípio da constitucionali- guardiã da propriedade privada dos bens
dade, pelo qual somente uma norma consti- imóveis.
tucional pode revogar outra norma consti- No entender de Luiz Pinto Ferreira (2003,
tucional. A afirmação do princípio da cons- p. 216), as cláusulas pétreas constituem-se
titucionalidade permitiu dar vida a certos de poucos artigos nas constituições dos pa-
textos constitucionais que até então eram íses desenvolvidos ou primeiro-mundistas,
pouco obedecidos. Na jurisprudência aus- em que sobrevive o respeito à lei, e são mais
tríaca, as considerações sobre o “bloco de amplas nos países subdesenvolvidos ou em
constitucionalidade” incluíam os princípi- desenvolvimento, os chamados países ter-
os considerados como superiores à própria ceiro-mundistas, em que esse núcleo intan-
Constituição (BARACHO, 2000, p. 78), como gível é desrespeitado pelos poderes consti-
os princípios de direito natural e os direitos tuídos na grande maioria das vezes. Esten-
fundamentais. O conceito de “bloco de cons- der a relação das cláusulas pétreas com o
titucionalidade” também é utilizado na Es- intuito de proteger muitos pontos da Cons-
panha, inclusive na jurisprudência do Tri- tituição é extremamente perigoso. Como dis-
bunal Constitucional, embora o bloque de se Karl Loewenstein (1976, p. 192), “en una
constitucionalidad espanhol não tenha exa- palabra: ante las disposiciones de intangi-
tamente o mesmo conteúdo que há na bilidad de la Ley Fundamental de Bonn hay
França. O Conselho Constitucional francês que decir, desgraciadamente: seguro que son
não usa a expressão “bloco de constitucio- productos de la buena fe, pero ‘quien mu-
nalidade”, mas a fórmula “normas de cons- cho abarca, poco aprieta’”.
titucionalidade” (normes de constitutionnali-
té), que guarda o mesmo sentido. Louis 4. Acerca da (in)tangibilidade
Favoreu (2002, p. 116) e outros entendem das cláusulas pétreas
que a expressão “bloco de constitucionali-
dade” deveria ser abandonada hodierna- As limitações materiais sempre propor-
mente, após ter exercido um papel muito útil, cionaram momentos paradoxais, pois, se
em proveito de uma expressão mais simples: por um lado protegem o ordenamento jurí-
“Constituição”. Quatro séries de normas, de dico contra investidas ilegítimas, por outro
épocas e inspirações diferentes, compõem impedem que esse mesmo ordenamento ju-
atualmente a “Constituição” francesa, sen- rídico evolua. Nesse sentido, essa intangi-
do três preponderantes e uma marginal. Os bilidade de certos dispositivos constitucio-
elementos principais do “bloco de constitu- nais merece profunda reflexão.
cionalidade” são o texto constitucional de A existência de dispositivos intangíveis
1958, a Declaração de Direitos do Homem e ao longo do tempo pode servir para preser-
do Cidadão de 1789 e o Preâmbulo da Cons- var direitos duramente conquistados, por
tituição de 1946. Os elementos marginais são um lado, mas, por outro, pode contribuir
os princípios fundamentais reconhecidos para perpetuar injustiças sociais. Joaquim
pelas leis da República, cujo rol consagra- Benedito Barbosa Gomes vê “com certa des-
do pelo Conselho Constitucional é o seguin- confiança a aplicação irrefletida da teoria
te: liberdade de associação, direito de defe- das cláusulas pétreas em uma sociedade
sa, liberdade individual, liberdade de ensi- com as características da nossa, que se sin-
no, liberdade de consciência, independên- gulariza pela desigualdade e pelas iniqüi-
cia da jurisdição administrativa, indepen- dades de toda sorte”10. Também a esse res-
dência dos professores universitários, com- peito, são precisas as palavras de Norberto
petência exclusiva da jurisdição adminis- Bobbio (1992, p. 22):
trativa em matéria de anulação de atos de “Vale a pena recordar que, histori-
autoridade pública e autoridade judiciária camente, a ilusão do fundamento ab-

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soluto de alguns direitos estabeleci- tuírem limites materiais à reforma)
dos foi um obstáculo à introdução de podem ser objeto de restrição até mes-
novos direitos, total ou parcialmente mo pelo legislador infraconstitucio-
incompatíveis com aqueles. Basta pen- nal, desde que preservadas as exigên-
sar nos empecilhos colocados ao pro- cias da reserva legal (quando for o
gresso da legislação social pela teoria caso), bem como salvaguardado o
jusnaturalista do fundamento absolu- núcleo essencial do direito restringi-
to da propriedade: a oposição quase do e observados os ditames da pro-
secular contra a introdução dos direi- porcionalidade, de tal sorte que não
tos sociais foi feita em nome do fun- nos parece aceitável a tese de que o
damento absoluto dos direitos de li- poder reformador (ainda que sempre
berdade. O fundamento absoluto não limitado) possa menos que o legisla-
é apenas uma ilusão; em alguns ca- dor ordinário”.
sos, é também um pretexto para de- O sentido a conferir aos limites materi-
fender posições conservadoras”. ais da revisão constitucional tem sido uma
No que concerne às limitações materiais vaexata questio que divide os constituciona-
impostas pelas circunstâncias históricas, na listas há cerca de cem anos. Três principais
medida em que os motivos que ensejaram correntes se manifestam (MIRANDA, 1996,
as cláusulas pétreas estiverem superados, p. 190; 2002, p. 413). A primeira delas consi-
mormente em razão da evolução da socie- dera tais limites como imprescindíveis e in-
dade, e não estando mais presentes as situ- superáveis. A segunda impugna a sua legi-
ações conjunturais que as reclamaram, se- timidade ou a sua eficácia jurídica. E a ter-
ria possível a superação de tais obstáculos ceira corrente, admitindo tais limites, toma-
por meio do poder constituinte não-revoluci- os apenas como relativos, susceptíveis de
onário. A atuação desse poder tornaria pos- remoção por meio da dupla revisão ou de
sível a supressão de cláusula pétrea sem uma duplo processo de revisão.
ruptura na ordem constitucional vigente. Alguns juristas defendem que as cláu-
Além disso, os contornos delineados sulas pétreas podem ser modificadas ou
pelas cláusulas pétreas não implicam que abolidas, entendendo que é absurda a proi-
elas sejam intocáveis. A esse respeito, preci- bição de mudanças de normas da Consti-
sas são as palavras de Ingo Wolfgang Sarlet tuição de acordo com o direito. O significa-
(2003b, p. 669): do real não é senão um agravamento da ri-
“Mera modificação no enunciado gidez em seu favor, sendo que as matérias
do dispositivo não conduz, portanto, abrangidas pelas cláusulas pétreas estari-
necessariamente a uma inconstituci- am duplamente protegidas. No entender de
onalidade, desde que preservado o Jorge Miranda (2002, p. 416):
sentido do preceito e não afetada a “as cláusulas de limites materiais são
essência do principio objeto da prote- possíveis, é legítimo ao poder consti-
ção. De qualquer modo, é possível co- tuinte (originário) decretá-las e é for-
mungar o entendimento de que a pro- çoso que sejam cumpridas enquanto
teção imprimida pelas ‘cláusulas pé- estiverem em vigor. Todavia, são nor-
treas’ não implica a absoluta intangi- mas constitucionais como quaisquer
bilidade do bem constitucional prote- outras e podem elas próprias ser ob-
gido, pelo menos não no sentido de jecto de revisão, com as conseqüênci-
impedir todo e qualquer tipo de restri- as inerentes”.
ção. Não se pode negligenciar, neste Em razão dessa dupla proteção é neces-
contexto, que os direitos e garantias sário, primeiro, revogar a cláusula que im-
fundamentais (a despeito de consti- põe a limitação material para depois alterar

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as disposições sobre a matéria em questão. revisão decorre de um raciocínio equivoca-
A tese da dupla revisão é defendida por Jorge do11. Para Louis Favoreu (2002, p. 108), as
Miranda (1996, p. 206-207; 2002, p. 422-423) proibições de revisar podem parecer para-
com a maestria que lhe é habitual. doxais a certos autores que a consideram
“As normas de limites expressos tão-somente obstáculos condicionais, pois,
não são lógica e juridicamente neces- para eles, se não é possível revisar a forma
sárias, necessários são os limites; não republicana de governo, é perfeitamente
são normas superiores, superiores possível revisar primeiro o artigo 89 (5) do
apenas podem ser, na medida em que texto constitucional francês, para em segui-
circunscrevem o âmbito da revisão da modificar a forma de governo. Minorita-
como revisão, os princípios aos quais riamente a mesma posição foi sustentada
se reportam. Como tais – e sem isto na Alemanha. Para Louis Favoreu, esse ar-
afectar, minimamente que seja, nem o gumento está equivocado, pois ele desenca-
valor dos princípios constitucionais, deia uma regressão ao infinito. Se fosse líci-
nem o valor ou a eficácia dessas nor- to revisar primeiro o artigo 89 (5), o consti-
mas na sua função instrumental ou tuinte poderia diretamente proibir sua mo-
de garantia – elas são revisíveis do dificação. Se fosse então lícito revisar essa
mesmo modo que quaisquer outras proibição, poderia ser proibido revisar essa
normas, são passíveis de emenda, proibição de proibir etc. O argumento se re-
aditamento ou eliminação e até podem duz então à afirmação de que o texto pode
vir a ser suprimidas através de revi- ser considerado como não escrito.
são. Não são elas próprias limites Vital Moreira12 (1980, p. 106-108) prefere
materiais. Se forem eliminadas cláu- designar a tese em comento de “teoria da
sulas concernentes a limites do poder revisibilidade das cláusulas proibitivas de
constituinte (originário) ou limites de revisão”. Todavia, para ele, “é uma tese que
revisão próprios ou de primeiro grau, se afigura teoricamente inconsistente, logi-
nem por isso estes limites deixarão de camente insustentável e juridicamente in-
se impor ao futuro legislador de revi- defensável”. Em primeiro lugar, porque a
são. Porventura, ficarão eles menos norma proibitiva é dirigida pelo poder cons-
ostensivos e, portanto, menos guarne- tituinte ao poder de revisão constitucional.
cidos, por faltar, doravante, a interpo- Em segundo lugar, se o sentido da referida
sição de preceitos expressos a decla- norma fosse apenas o de tornar necessária
rá-los. Mas somente haverá revisão uma “revisão em duas voltas”, então a Cons-
constitucional, e não excesso do po- tituição teria dito isso. Em terceiro lugar,
der de revisão, se continuarem a ser porque não tem sentido admitir que o poder
observados. Se forem eliminadas constituído possa reapreciar o sistema es-
cláusulas de limites impróprios ou de sencial de valores da Constituição, tal como
segundo grau, como são elas que os foi explicitado pelo poder constituinte. Em
constituem como limites, este acto quarto lugar, admitir a dupla revisão signi-
acarretará, porém, automaticamente, fica admitir que uma Constituição pode ser
o desaparecimento dos respectivos li- subvertida e transformada em outra, ou ain-
mites, que, assim, em próxima revisão, da substituída, por meio de seus próprios
já não terão de ser observados. É só, a mecanismos, sem solução de continuidade
este propósito, que pode falar-se em constitucional. Conclui que “a teoria da
dupla revisão”. dupla revisão não é, em última análise, mais
A despeito das razões apresentadas pelo do que um expediente para tentar legitimar
eminente jurista lusitano, Louis Favoreu e e ‘constitucionalizar’ uma ruptura consti-
outros entendem que a proposta da dupla tucional ‘a frio’”.

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Para Carlos Ayres Britto (2003, p. 76), a limitações materiais dentro de um paradig-
técnica da dupla revisão é “o que há de mais ma de um Estado democrático-participati-
atécnico, à luz de uma depurada Teoria da vo, sem recorrer às idéias lançadas anteri-
Constituição”. Mesmo que objetive mitigar ormente, levando em consideração a parti-
os efeitos das cláusulas pétreas, “o meca- cipação direta do povo no processo de re-
nismo da dupla revisão baralha inteiramen- forma da Constituição (PEDRA, 2005). Um
te os campos de legítima expressão do Po- processo mais agravado, com eloqüente par-
der Constituído e do Poder Constituinte, ticipação popular, poderia proporcionar a
caindo, por isso mesmo, em contradições adequação da Constituição ao processo de
incontornáveis”. Afinal, se for possível re- mutação social, sem fraude à Constituição,
formar as cláusulas constitucionais de re- à realidade e à vontade popular.
forma, então a Constituição poderá perder Cármen Lúcia Antunes Rocha (1993, p.
o seu caráter rígido. E sem rigidez formal, 181-182) posiciona-se favorável à revisibili-
não há como preservar a superioridade hie- dade das cláusulas sobre os limites à refor-
rárquica da Constituição sobre as demais ma constitucional, desde que seja viabiliza-
espécies normativas. da a participação direta do povo, na condi-
Todavia, Manoel Gonçalves Ferreira ção de titular do poder constituinte nesse
Filho (1995, p. 15) argumenta que não é frau- processo, o que outorgaria às reformas um
de à Constituição admitir a supressão de certo grau de legitimação.
cláusula pétrea, pois não são intocáveis as “Penso – mudando opinião que
regras que disciplinam as alterações da nor- anteriormente cheguei a externar – que
ma constitucional. “Isto seria de se levar em as cláusulas constitucionais que con-
conta se a Constituição inscrevesse entre as têm os limites materiais expressos não
‘cláusulas pétreas’ o processo de modifica- podem ser consideradas absoluta-
ção constitucional que consagrou”. mente imutáveis ou dotadas de natu-
Para José Carlos Francisco (2003, p. 98), reza tal que impeçam totalmente o
a possibilidade da dupla emenda “é mais exercício do poder constituinte deri-
do que ‘uma saída honrosa’ para o parado- vado de reforma. Pelo menos não em
xo criado pelas limitações materiais, mas um um ou outro ponto. (...) De outra parte,
critério que se legitima não pelo procedimen- considero imprescindíveis que, num
to, mas pela ampla discussão a que sujeita o sistema democrático, a reforma deste
tema sobre o qual versa”. Com a dupla emen- ponto nodular central intangível, ini-
da, evitam-se os riscos e as instabilidades cialmente, ao reformador dependerá,
institucionais decorrentes de um amplo pro- necessária e imprescindivelmente, da
cesso constituinte, e os prejuízos decorren- utilização de instrumentos concretos,
tes do abandono de uma Constituição aper- sérios e eficazes de aferição da legiti-
feiçoada no tempo. midade da reforma, instrumentos es-
Como se vê, várias são as tentativas de tes de democracia direta, pois já então
se elaborar propostas sustentando que as não se estará a cogitar da reforma re-
cláusulas pétreas não podem ser compre- gularmente feita segundo parâmetros
endidas como limites absolutos à reforma normativos previamente fixados, mas
constitucional, eis que é imprescindível um de modificações de gravidade e con-
certo equilíbrio entre a indispensável esta- seqüências imediatas para um povo,
bilidade constitucional e a necessária que se insurge e decide alterar o que
adaptabilidade da Constituição à realida- se preestabelecera como, em princípio,
de social. imodificável”.
Outra proposta que se faz é compreen- Nesse sentido, embora valorize a exis-
der a possibilidade de transcendermos a tais tência das limitações materiais, Cármen

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Lúcia Antunes Rocha (1993) acredita em sua Joaquim Benedito Barbosa Gomes13 vê a
natureza relativa, visando a acompanhar as teoria das cláusulas pétreas, com a ampli-
modificações ocorridas em razão do proces- tude que se lhe atribui, como uma constru-
so de transformação social. Como a autora ção conservadora, antidemocrática, não ra-
sustenta a possibilidade de superar os limi- zoável, com uma propensão oportunista e
tes materiais por processo de revisão reali- utilitarista a fazer abstração de vários ou-
zado em duas fases, condicionadas à mani- tros valores igualmente protegidos pela
festação popular direta, vislumbra-se aí a Constituição. Segundo ele, a teoria das cláu-
manifestação do poder constituinte não-re- sulas pétreas impõe a perpetuação da desi-
volucionário, exposta neste trabalho, e não gualdade.
o exercício do poder constituído reformador.
José Carlos Francisco (2003, p. 168) tam- 5. Conclusão
bém defende “mecanismos ágeis e econô-
micos de alteração do núcleo das constitui- As cláusulas pétreas representam um
ções sem o recurso à elaboração de toda uma esforço do legislador constituinte para as-
nova Constituição”, enfatizando a necessi- segurar a integridade da Constituição, im-
dade de legitimação “para validar o empre- pedindo que eventuais alterações provo-
go do Poder Constituinte Híbrido ou Misto quem a sua destruição, conservando o seu
e da Dupla Revisão”. núcleo essencial, sendo a garantia da per-
No mesmo sentido está Gilmar Ferreira manência da identidade da Constituição e
Mendes (1994, p. 18-19), que entende ser dos seus princípios fundamentais. Merece
possível a superação das limitações materi- ser destacado que o enunciado da norma
ais impostas ao poder reformador, por meio contida no artigo 60, §4o, da CR, ao utilizar
da realização de revisão efetivada por me- as expressões “abolir” e “tendente a abo-
canismo especial e democrático. Desse lir”, quis preservar o cerne da Constituição,
modo, aduz que a Constituição traz impli- vedando inequivocadamente que sejam se-
citamente a possibilidade de sua superação, quer apreciadas e votadas pelo Congresso
mediante processo especial que conte com a Nacional não somente as propostas de
participação do povo. emendas constitucionais que venham a su-
“Se se entendesse – o que parece- primir quaisquer dos princípios distingui-
ria bastante razoável – que a revisão dos como cláusulas pétreas, mas também
total ou a revisão parcial das cláusu- aquelas que venham a atingi-los de forma
las pétreas está implícita na própria equivalente, revelando uma tendência à sua
Constituição, poder-se-ia cogitar – abolição, também ferindo o seu conteúdo
mediante a utilização de um processo essencial.
especial que contasse com a partici- Mas como a Constituição deve estar em
pação do Povo – até mesmo de altera- harmonia com a realidade, e deve manter-
ção das disposições constitucionais se aberta e dinâmica através dos tempos, as
referentes ao processo de emenda mudanças constitucionais são necessárias
constitucional com o escopo de expli- como meio de preservação e conservação da
citar a idéia de revisão total ou de re- própria Constituição, visando ao seu aper-
visão específica das cláusulas pétre- feiçoamento, buscando, em um processo dia-
as, permitindo, assim, que se discipli- lético, alcançar a harmonia com a sociedade.
nasse, juridicamente, a alteração das Nesse sentido, embora a redação do tex-
cláusulas pétreas ou mesmo a substi- to constitucional seja a mais adequada no
tuição ou a superação da ordem momento de sua elaboração, muitas vezes
constitucional vigente por outra” são exigidas transformações constitucio-
(MENDES, 1994, p. 18-19). nais que visam a adequar a Constituição.

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Entretanto, embora as cláusulas pétreas te- tituinte, podendo conduzir os debates a pon-
nham sido concebidas para garantir, de for- tos diversos dos necessários à nova realida-
ma ainda mais agravada, o ordenamento de social.
constitucional e a sua necessária estabili-
dade, quando essas limitações materiais im-
pedem a Constituição de acompanhar a evo-
lução social, acabam por cumprir exatamen- Notas
te o papel contrário àquele que se prestam. 1
Nas palavras de Michel Rosenfeld (2003, p.
Com isso, paradoxalmente, as cláusulas 41): “A auto-identidade constitucional circula em
pétreas, quando concebidas como absolu- torno das antinomias entre facticidade e validade,
entre fatos e normas, e entre real e ideal”.
tas, tornam-se obstáculo à própria estabili- 2
Segundo Karl Loewenstein (1976, p. 192), “de
dade que pretendiam assegurar, provocan- lo que aquí se trata, en el fondo, es de un renacimien-
do instabilidade e sacrifícios maiores com a to del derecho natural, emprendido como defensa
elaboração de um novo texto constitucional, frente al positivismo jurídico, especialmente de la
o que impõe uma profunda ponderação a escuela vienesa de Kelsen, que predominó durante
los años 20, aunque su influencia se deja sentir
respeito. Mas é claro que há cláusulas pé- mucho antes”.
treas que são insuscetíveis de serem supe- 3
A Constituição brasileira de 1988 não prevê
radas, haja vista que representam um nú- expressamente a vedação de alteração da igual re-
cleo de valores que não podem ser afasta- presentação dos Estados-membros no Senado Fe-
dos nem mesmo com a vontade de uma irre- deral. Embora possa ser sustentado que essa igual
representação seja um princípio básico do federa-
futável maioria. lismo e, portanto, a manutenção da Federação com-
Por fim, merece registro que as idéias preenderia também essa igualdade, convém lem-
aqui lançadas não têm por objetivo procu- brar que na Federação alemã os Estados não têm
rar mecanismos para abolir a identidade da igual representação no equivalente do Senado.
Constituição e, com ela, a continuidade da
4
Artigo 90, §4o, da Constituição de 1891: “Não
poderão ser admitidos como objeto de deliberação,
ordem jurídica da coletividade. Nada pode- no Congresso, projetos tendentes a abolir a forma
ria estar mais distante das presentes refle- republicano-federativa, ou a igualdade da repre-
xões. Pelo contrário, busca-se encontrar sentação dos Estados no Senado”. Artigo 178, §5o,
meios jurídicos para não deixar a Consti- da Constituição de 1934: “Não serão admitidos
tuição afastar-se da realidade social, que está como objeto de deliberação, projetos tendentes a
abolir a forma republicana federativa”. Artigo 217,
em permanente evolução, mesmo que para §6o, da Constituição de 1946: “Não serão admiti-
isso seja preciso superar dispositivos cons- dos como objeto de deliberação projetos tendentes
titucionais considerados intangíveis. Afinal, a abolir a Federação ou a República”. Artigo 50,
se a sociedade não aceita mais determinada §1o, da Constituição de 1967: “Não será objeto de
norma constitucional, deve-se permitir a deliberação a proposta de emenda tendente a abo-
lir a Federação ou a República”.
mudança na Constituição, a sua adaptação 5
José Carlos Francisco (2003, p. 83-84) explica
às novas necessidades da sociedade, aos que, concebida em sentido amplo, a expressão “ten-
novos impulsos, às novas forças, sem que dente a abolir” estará limitando “tanto a elimina-
para isso seja necessário recorrer à revolu- ção quanto a suspensão, ou diminuição (sem ex-
ção, o que provocaria uma ruptura no orde- tinção) dos conceitos protegidos pela imodificabili-
dade. Porém, aqui começam os graves problemas.
namento jurídico e uma nova Constituição. Se a expressão ‘tendente a abolir’ for concebida em
Afinal, a convocação de uma nova Assem- proporções amplíssimas, estarão vedadas modifi-
bléia Constituinte, mesmo que à guisa de cações em diversas matérias que são objeto há anos
estabelecer avanços, poderá produzir pro- de projetos de emendas constitucionais. Exemplifi-
fundos danos à sociedade, uma vez que os cando, as várias reformas tributárias que tramitam
perante o Congresso Nacional prevêem sistemati-
trabalhos de elaboração de um novo texto camente a aglutinação do IPI e do ICMS, formando
constitucional nem sempre ficam restritos um novo tributo (imposto sobre valor agregado –
aos pontos que ensejaram o processo cons- IVA), que em princípio terá sua competência tribu-

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tária (aptidão para legislar) atribuída a uma única Canotilho e Carl Schmitt. “Parece-nos inviável o
entidade federativa (União ou Estado-Membro). legislador reformador, por intermédio de dupla re-
Ainda que o produto da arrecadação desse IVA visão, suprimir os limites procedimentais, nem mes-
seja repartido entre União e Estados de modo que mo através de consulta popular, seja através de
seja mantida a arrecadação desses entes federati- plebiscito, seja através de referendo” (Cf. BULOS,
vos nos mesmos montantes existentes ao tempo da 1999, p. 130).
cobrança do IPI e do ICMS, ainda assim restará 12
Ainda o autor: “seria o mesmo que admitir
clara polêmica quanto à diminuição do poder de que um automobilista, embora deva respeitar um
um dos entes federativos (em proporções ainda mai- sinal de sentido de proibido, pode porém apear-se,
ores se a competência tributária for atribuída à retirar o sinal, e então avançar... legalmente! A na-
União, que poderá estabelecer isenções para esse tureza fraudulenta de tal expediente salta à vista”
novo imposto, o que não pode ocorrer em relação (Cf. MOREIRA, 1980, p. 106-108).
ao ICMS, por força do art. 151, III, da Constituição 13
ADIn n. 3.105-8.
Federal vigente). Mas como a reforma tributária é
exigência de toda a sociedade (e até mesmo do
Executivo Federal, que pretende ampliar sua arre-
cadação pela simplificação do sistema), é muito
Referências
provável que as instituições sociais se acomodem
no sentido da possibilidade de haver a aglutinação
desses dois impostos na formação de um único ANTUNES, Marcus Vinicius Martins. Mudança
imposto sobre valor agregado”. constitucional: o Brasil pós-88. Porto Alegre: Livra-
6
Continua o autor anotando que “a promoção ria do Advogado, 2003.
do bem-estar social e, para a sua consecução, a do BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio
desenvolvimento econômico abrem espaço para a da subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Ja-
permanente organização jurídica em proveito da neiro: Forense, 2000.
comunidade internacional. A permeabilização com-
porta o exemplo do parágrafo 2o do art. 5o da Cons- BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução
tituição brasileira de 1988; ou o do tratado da união de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Cam-
européia (Maastricht); ou o da chamada Lex Merca- pus, 1992.
toria, isto é, o conjunto de normas, regulamentos e BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da constituição. Rio
práticas internacionais de comércio que, padroniza- de Janeiro: Forense, 2003.
das, são aplicadas por todos os países que operam
no comércio internacional” (Cf. BRITO, 1993, p. 98). BRITO, Edvaldo. Limites da revisão constitucio-
7
A esse respeito, cumpre consignar a polêmica nal. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1993.
que se travou no Brasil. “Em 1977, pela Emenda
BULOS, Uadi Lammêgo. Dez anos de constitui-
Constitucional no 8, de 14 de abril, foi alterado o
ção: em torno das cláusulas de inamovibilidade.
art. 48 da Constituição brasileira, para que, em vez
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro,
da maioria de 2/3 em cada Casa do Congresso
n. 217, jul./set. 1999.
Nacional, bastasse a maioria absoluta para a apro-
vação de emenda constitucional. Sustentaram al- CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito cons-
guns a invalidade dessa mudança, invocando o li- titucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra:
mite implícito que Souza Sampaio aponta. A obje- Almedina, 2002.
ção, todavia, não prosperou. A emenda no 22, de 29
de junho de 1982, restabeleceu a exigência da mai- FAVOREU, Louis. et al. Droit constitutionnel. 5.
oria de 2/3. A seu propósito não houve polêmica” ed. Paris: Dalloz, 2002.
(Cf. FERREIRA FILHO, 1999, p. 121). FERREIRA, Luiz Pinto. As emendas à Constitui-
8
Posição contrária é aquela que defende a tese ção, as cláusulas pétreas e o direito adquirido. Re-
da “dupla revisão”, que será analisada adiante. vista Latino-Americana de Estudos Constitucio-
9
Para Marcus Vinicius Martins Antunes (2003, nais, Belo Horizonte, n. 1, jan./jun. 2003.
p. 111), a Emenda Constitucional no 20, “ao trans-
por os servidores estaduais ocupantes exclusiva- FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder
mente de cargo em comissão para o regime geral da constituinte. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
previdência social, violou princípio federativo da ______ . Significação e alcance das cláusulas pétre-
auto-organização dos Estados”. as. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janei-
10
ADIn 3.105-8/DF. ro, n. 202, out./dez. 1995.
11
Defendem a tese da dupla revisão, entre ou-
tros, Jorge Miranda e Paolo Biscaretti Di Ruffia. FRANCISCO, José Carlos. Emendas constitucio-
Rechaçam-na, entre outros, José Joaquim Gomes nais e limites flexíveis. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

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