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PERSPECTIVAS ANTROPOLOGICAS DA MULHER ZAHAR EDITORES RiO DE JANEIRO INDICE 7? Apresentacao da colecéo Bruna Franchetto Maria Laura V. C. Cavalcanti Maria Luiza Heilborn 11. ANTROPOLOGIA E FEMINISMO Tania Salem MULHERES FAVELADAS: 49 “Coma venda nos olhos” I. Introdugao Orientacdo tebrico-metodolégica Descrig¢do do universo entrevistado IL. A Dupla Determinagio A determinagao de classe A determinagao de género IU. A Dupla Indeterminagao IV. As Figuras de Amparo eas Experiéncias de Abandono V. Conclusio APRESENTACAO Com o presente volume inaugura-se a colegio Pers- pectivas Antropolégicas da Mulher, que pretende se inserir no debate cada dia mais amplo sobre a condi- cio feminina. Essa questéo ganhou na ultima década um status de questo contemporanea por exceléncia na medida em que condensa problemas de cunho po- Utico e cultural expressivos para as sociedades mo- dernas. Sob o impacto da reivindica¢o de um ponto de vista feminino, tanto sobre seu prdéprio sexo coma sobre os demais temas de interesse social, criou-se toda uma literatura e, mais do que isso, um estilo, um an- gulo de leitura do mundo sendo exclusivo, pelo menos particular, 4s mulheres. E disso que esta colegdo pro- pde-se a falar. Pretende criar um espaco de dedicado a essas questdes na sociedade brasileira. No Brasil j existe, e em via de rapido crescimen- to, um discurso que elegeu a mulher como tema central. Criaram-se, ou melhor, reproduziram-se, aqui também as principais correntes tedricas e politicas que falam da mulher, produzidas ou nao pelas proprias mulheres organizadas em grupos feministas. Poderia- mos dizer que hé um divisor de aguas que distingue, grosso modo, duas visées cujo trago comum é a leitura do lugar social da mulher como de opressao, subordi- nacio, exploracdo em relac¢do ao mundo masculine e/ou em relacdo a sociedade de classe. A primeira considera essa posicdo de subordinacdo como atributo social especifico do ser mulher, irredutivel a outros. Vislumbra-se a sua quase universalidade. O sexo femi- nino é percebido sobretudo como vinculado 4 re- producdo da espécie, e a uma sexualidade construida socialmente de maneira congruente com essa subordi- nacido. Sob essa ética 0 outro com o qual a mulher se defronta é o homem, o género social masculino. A segunda visdo considera a diferenca/hierarquia entre homem e mulher como mais uma expressdo da relagdo fundamental e determinante da sociedade atual, a de classe. Nesse caso, os verdadeiros opresso- res da mulher seriam o capitalismo e a burguesia. A superacdo da injustiga da desigualdade entre os sexos acompanharia os ritmos das mudangas estruturais dadas pela luta de classe, seja pelas etapas das refor- mas e da legalidade, seja como corolario especifico de uma revolugdo econdmica e, conseqlentemente, cultural. Entre as duas posigées hd um continue variado de mediacdes e sinteses em um determinado ponto do qual acreditamos estar. Nossa intencdo ¢ a de ampliar © espaco desse campo de discussdo através da publica- co de trabalhos de cientistas sociais que procurem entender o que significa e comporta o fato de ser mulher em suas diversas determinac&es na sociedade brasileira contemporanea. De certo modo, essa iniciativa vem atualizar o mercado brasileiro a uma perspectiva de discussao jd consagrada nos Estados Unidos e na Europa, e que, com outros temas, esté presente nos meios intelec- tuais do pats. Referimo-nos a constituigdo de uma tradic¢o interna as disciplinas académicas que se ca- racteriza pela elei¢do (valorizacado} do recorte Mulher. A novidade dessa produgo intelectual é que ela se faz mantendo um dialogo com o movimento social de/das mulheres, com o feminismo. Em nossa opinido tal contingéncia é extremamente interessante pois obriga os sujeitos do fazer ciéncia a uma reflexo a um so tempo politica e epistemoldgica. Adotando esse ponto de vista o artigo de nossa autoria neste volume — “Antropologia e Feminismo’’ — pretende sugerir alguns caminhos de avaliacdo critica de parte da lite- ratura sobre a muther. PropGe-se a mapear um possi- vel campo de discuss3o feminista, e contribuir desse modo a chamada antropologia da mulher. De outro lado, sob a inspiragdo de colocagdes préprias a deba- tes no interior da antropologia, examina o feminismo enquanto fendmeno social, Nao nos propomes a dis- cutir nenhum caso em particular, mas a tragar as linhas gerais de caracterizacdo, ou que poderiam unificar in- ternacionalmente esse movimento. Esta colecdo (e esperamos encontrar ainda mais contribuigdes e sugestdes} privilegiard artigos que procurem aprofundar a andlise de sistemas de cate- gorias e imagens coletivas constitutivas da experiéncia feminina em grupos e culturas diferentes. Acredita- mos que os estimulos trazidos por uma perspectiva antropolégica residem no fato de essa disciplina lidar tanto com comparacSes entre culturas e sistemas ideoldgicos & procura de elementos recorrentes, quan- to com etnografias espectficas, detalhadas. Uma des- crigdo etnogréfica cuidadosa de comportamentos, ins- tituicdes e discursos que os atores sociais produzem sobre si mesmos e seu mundo podem permitir o dis- tanciamento do senso comum, assim como a compre- ensio de pontos de vista particulares. Ambas as possi- bilidades nos levam a uma melhor visdo critica e a uma percepgdo politica mais rica das transformagdes pelas quais est’o passando as mulheres, e os homens, de hoje. O artigo de Tania Salem que aparece neste volu- me representa uma tentativa estimulante nessa dire- So. Tania da voz as categorias pelas quais é social- mente construsda a identidade feminina ~ vivéncias € representacdes -- de um grupo de mulheres morado- ras da favela da Rocinha. E esse dar a voz 4 fala co- tidiana das mulheres 0 que aproxima a autora de um método de investigacdo caracter\stico da abordagem antropolégica: historias de vida e andlise do discurso Outro elemento de seu artigo que convém explicitar é 0 propésito de trabalhar com a dupa determinacdo dessa identidade, a de sexo e a de classe. Com essa articulacdo de niveis de andlise percebe-se as miltiplas maneiras pelas quais uma determinacdo retorca, re- produz, atribui ethos e projetos 4 outra. 10 Cabe ainda acentuar o fato de que, embora esta colecdo possua uma finha definida, nossa intengdo é a de criar um espaco no qual possam incluir-se traba- thos alternativos. Acreditamos também que a eleic¢ao do tema Mulher como central ao possibilitar, como dissemos acima, o entendimento da especificidade das experiéncias femininas na sociedade brasileira de hoje, constitui um ponto de partida para a compreensdo de outros temas sociais igualmente amplos. BRUNA FRANCHETTO MARIA LAURA V. C. CAVALCANTI MARIA LUIZA HEILBORN dezembro de 1980 Bruna Franchetto Maria Laura V. C. Cavalcanti Maria Luiza Heilborn ANTROPOLOGIA E FEMINISMO Algumas vezes, durante discussdes abstratas, irritei-me ao escutar os homens me dizerem: ‘’Vacé pensa isso porque é mulher.” E eu sabia que a minha unica defe- sa era responder: “Eu o penso porque é verdadeiro”’, eliminando assim minha subjetividade. Simone de Beauvoir, em O segundo sexo Uma vez formulada a distingdo entre objeto e sujeito, 0 préprio sujeito pode de novo desdobrar-se do mesmo modo, e assim por diante, de maneira ilimitada, sem ser jamais reduzido a nada. A observacdo socioldgica (...) extrai-se gracas a capacidade do sujeito de objeti- var-se indefinidamente, isto é (sem chegar jamais a omitir-se como sujeito), de projetar para fora fragdes sempre decrescentes de si mesmo. Teoricamente pelo menos, esse desmembramento nao tem limite, a ndo ser o de implicar sempre a existéncia de dois termos como condicao de sua possibilidade. Lévi-Strauss, em (ntroducdo 4 obra de Marcel Mauss O tema Mulher est4 na ordem do dia. Sua presenca nas estantes das livrarias, no programa das mesas-redondas, nos meios de comunica- 13 ¢do de massa, no debate politico, no marketing e na academia atesta seu sucesso. Mas por que essa explosdo? Se é possivel afirmar que ela responde a necessidade de ampliaco do campo profissional e sim- bdlico, ao movimento regular de especializagdo dos saberes nas disci- plinas académicas e 4 demanda de producdo constante de bens cul- turais, por que Mulher? Este artigo pretende considerar uma das direcdes desse movi- mento, isto 6, alguns aspectos da produc4o tedrica sobre a mulher, e desenvolver algumas reflexdes sobre o feminismo. Na verdade, ele mesmo se inscreve no interior desse campo, propondo-se a pensar a singularidade dessa producdo intelectual que aproxima reflexdo aca- démica e pratica pol(tica. Trabalharemos aqui com uma identidade reflexiva, como a de um Janos voltado para si mesmo. Uma das faces acompanha, selecionando alguns aspectos dessa producdo, a incursdo da problematica feminista nas ciéncias sociais, especialmente na an- tropologia. A outra toma o ponto de vista da leitura antropoldgica para pensar o feminismo. Vejamos em primeiro lugar essa producao intelectual. De ime- diato, a questdo que se impGe é: qual a especificidade de se tomar a mulher como objeto de estudo? Podemos identificar duas possibili- dades de recorte que, embora diferencidveis, muitas vezes se rela- cionam e se imbricam. A primeira constitui-se simplesmente em sua elei¢do como objeto, enfocado a partir dos quadros e problematicas que caracterizam as diferentes disciplinas existentes: sociologia, economia, historia... A segunda marca uma determinada area de saber, define uma tradic&o e questées préprias — a produc4o intelec- tual feminista sobre a mulher. Contudo, se, por um lado, o simples fato da eleig¢do do tema mulher 4 sugestivo, indicando a necessidade de sua contextualizacdo num horizonte cultural maior, por outro lado, a producao intelectual feminista recorre — e dialoga com — as diferentes dreas de saber existentes. A quest%o em jogo é a dos processos constituintes de um novo campo de saber. Defrontamo-nos com um universo intelectual extre- mamente complexo para o qual convergem diversas tradicGes filosdéfi- cas, cientificas e politicas. Nao se pode pensar a constitui¢ao de uma teoria feminista sem recorrer 4s quest6es da sexualidade, libido e re- pressdo cuja discussdo coube a psicandlise instaurar. N3o apenas nos termos em que Freud as colocou, mas em seus desdobramentos através 14 de herdeiros e/ou contestadores como Reich e Marcuse.! Igualmente indispensavel 6 a referéncia as categorias de alienacdo/consciéncia, revolucdo que, de modo particular, serve de base aos discursos mar- xista e existencialista. Os problemas ainda nado se encerram. Hd que se mencionar também as numerosas tentativas de mediacdo entre essas dreas que marcam o campo intelectual dos Ultimos anos, em especial o debate sobre prazer e revolucdo que singulariza a tradicdo contestadora da década de 1960. Este artigo, contudo, visa especificamente acompanhar, através do jad mencionado didlogo entre a antropologia e o feminismo, a construcdo da categoria central desta producdo tedérica — a de mu- her. A intencdo é desnaturalizd-la, através de dois procedimentos: circunscrevendo seu significado nas andlise efetuadas e situando-a num contexto histérico preciso. PRIMEIRA PARTE Para os limites deste texto, vamos considerar o feminismo enquanto movimento social? aquele que eclode no final da década de 1960, nos chamados parses de capitalismo avancgado: Estados Unidos, Fran- ca, Alemanha, ttalia e Inglaterra. Embora seja possivel falar em diver- sos feminismos e grupos de mulheres que atuam politicamente sob ! Marcuse, H. 1979 Eros e civilizagao. 74 ed., Rio, Zahar; 1969 Razado e revolucdo. Rio, Saga; 1969 Vers fa libération. Paris, Editions de Minuit. Reich, W. 1972 La lucha sexual de los jévenes. Buenos Aires, Granica; 1980 A re- volucado sexual. 63 ed., Rio, Zahar; 1975 A fun¢do do orgasmo. S&o Paulo, Brasiliense. Freud, S. 1970-80 Obras completas. Rio, Imago. 2 Adotamos para efeito de compreensdo uma distingdo entre feminismo en- quanto movimento social e uma problematica feminista enquanto questao in- telectual. Elegemos para nossa andlise desse movimento a sua manifestagdo contempordnea, a que data de 15 anos, consagrada pela literatura feminista como “Novo Feminismo’’. Suas origens, entretanto, remontam as campanhas 15 esse nome, hd entre eles um denominador comum: 0 questionamento da divisdo tradicional dos papéis sociais entre homem e mulher. Ne- gando o social como naturalmente dado, as mulheres recusam-se a se constituir num ‘‘segundo sexo’’, no ‘‘sexo fragil’’ por exceléncia. Afirmam-se como sexo, mas em sua singularidade irredutivel. A Mu- ther se descobre ou se quer, como sujeito de seu prdéprio corpo, de sua sexualidade, de sua vida — 0 que produz as mais diversas conse- quéncias politicas, econdmicas, culturais. O feminismo arroga para as mulheres um espaco exclusivo de atuacdo pol/tica, de Juta por seus interesses percebidos como especificos. Sob o impacto dessas questées assim colocadas, inaugura-se um campo de reflexdo polémico e rico no interior das ciéncias sociais cujo ponto de partida é a afirmacgdo da identidade de género como um dado fundamental.? O crivo da identidade de género opera em dois n(veis; sua importancia 6 percebida como central tanto como forma de classificacdo social a ser investigada, como enquanto dado constitutivo da identidade do sujeito da pesquisa. Repousa sobre este Ultimo ponto uma das mais vigorosas contribuicdes criticas das cientistas sociais feministas — a dentincia do male bias. Se a identida- de do pesquisador sempre implica o privilegiamento, ainda que in- consciente, de uma dptica especial, a identidade masculina da grande maioria dos pesquisadores, freqdentemente ndo-problematizada, implicou a n&o-percepcdo ou valorizacdo do lugar e participacdo efetivos da mulher na vida social.* Esse mesmo movimento que parte da afirmacdo da importancia da identidade de género defronta-se com a questdo crucial do que é, pela concessdo do voto feminino da segunda metade do século XIX. A esse respeito é disponivel em portugués uma pequena histéria desses movimentos no livro Feminismo e ideologia — A luta pelo voto feminino no Brasil, de Branca Moreira Alves, 1980. Petropolis, Vozes. Por outro lado, poder-se-ia falar numa problematica feminista j4 a partir da classica obra de Friedrich Engels, A ori- gem da familia, da propriedade privada e do Estado, cuja primeira edi¢ao data de 1884. 3 A nogao de identidade de género refere-se a construcdo sociat do sexo, ou seja, aos papéis e valores que o constituem em dado momento histérico, em uma sociedade particular, englobando o sexo bialdgico. 4 A justaposi¢ao lingiifstica, que rene numa so palavra — homem — dois significados distintos: homem enquanto humanidade e homem enquanto ser humano no género masculino, demonstra o enraizamento e cristalizagao cultu- rais desse ocultamento do feminino que a denuncia vem apontar. 16 afinal de contas, a identidade feminina. Em suma, o que é ser mu- lher? — perguntacentral aque toda uma literatura procura responder. A antropologia, pela propria natureza de seu objeto de estudo ~ sociedades outras, por possibilitar 0 exame de formas de organiza- cdo social radicalmente distintas entre si, constitui-se num campo fértil para a busca de respostas a essa questdo. Com a expansdo colonial, a sociedade ocidental moderna depara com o outro, 0 exdtico. O esfor¢o de pensamento realizado para metabolizar diferencas tdéo radicais entre os homens pode ser identificado com uma das forgas constitutivas da antropoiogia. A formulagéo do conceito de cultura, tal como definido por Tylor em 1871, ‘‘este todo complexo que inclui conhecimento, cren- Ca, arte, leis, moral, costumes e quaisquer outras capacidades e habitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade‘’> 6 um dos marcos fundadores dessa disciplina.® Esse conceito focaliza, em sua concretude histérica, o comportamento humano com relac¢ao a diver- sidade de culturas, e nele ja esto presentes as questées do relativismo ou do universalismo das categorias culturais que singularizam a pers- pectiva antropoldgica. Nessa primeira fase do pensamento antropoldgico, contudo, a alteridade, embora percebida, 6 anulada. O evolucionismo, método e teoria que entdo domina, & uma gigantesca tentativa de dar conta da diversidade das culturas em sociedades humanas, reduzindo as dife- rencas entre estas. Ao tomar como unidade de andalise o Homem, as diferentes sociedades sdo vistas como apenas momentos distintos da evolucado desse Homem, no trilhar de uma historia de sentido unico — odo Progresso. No limite inferior da escala estdo os “‘primitivos”, exemplo dos primeiros passos da humanidade, e no limite superior, o homem ocidental moderno, dpice da evolucdo.” Pouco a pouco, sobretudo a partir do momento em que entra em cena a pesquisa etnografica detalhada, que permite a reconstru- $ Tylor, E. 1970 Origins of culture. Gloucester, Peter Smith. Ver para uma discussdo mais detalhada desse conceito na antropologia o artigo de Velho, G. e Viveiros de Castro, E. 1978 ‘’O conceito de cultura e o estudo de sociedades complexas"’, in Artefato, 7(1}, janeiro. 7 Como bem o indicam Velho, G. e Viveiros de Castro, E., in op. cit., p. 5: "a inser¢ao forgada dos povos colonizados na histdéria ocidental era duplicada por uma reftexdo tedrica — o evolucionismo que discorre sobre a naturalidade desta inser¢ao’’. ‘ 17 cdo dos critérios internos a cada cultura, a diferenca cultural vai sendo percebida como um dado irredutivel. A cultura emerge como aquilo que torna 0 homem propriamente humano e percebe-se que essa humanizacao sempre se realiza numa forma de humanidade par- ticular.8 Vista como um sistema, como um conjunto de regras/redes de significagao, é a cultura que da sentido, simultaneamente, ao mundo social e natural.? Comportamentos, instituig6es e valores de um grupo social s6 ganham significado no interior do sistema cultu- ral como um todo. Essa reflexdo sobre a alteridade, a discussdo entre relativismo e universalismo, e finalmente a percepcdo de que toda realidade é so- cialmente construida vieram alimentar perguntas e respostas das questdes feminista e feminina. A contesta¢ao das mulheres de sua condic&o como inscrita numa natureza imutavel encontrou e encon- tra, como veremos, nessa disciplina contribuicdes decisivas. Na busca de sua identidade, percorrendo a historia e exami- nando outras sociedades, uma das inquietantes evidéncias com a qual as mulheres parecem defrontar-se é a da regra constante de sua su- bordinacdo ou opressdo.'® Dito de outro modo, em toda a cultura conhecida a mulher seria de algum modo inferior ao homem, quer em termos de avaliac6es simbdélicas, quer em termos de poder efetivo. Essa constatacdo define uma primeira problematica — a da universa- lidade da opressdo feminina e a de suas origens. Ora, no bojo das investigacGes sobre os sistemas de parentesco que caracterizam a primeira fase da disciplina antropoldgica, ja havia comecado a surgir uma série de elementos para uma reflexdo sobre a mulher. Ao mesmo tempo, a concepcao evolucionista de que o es- tudo dos primitivos finalmente iluminaria as origens da espécie huma- ha contribuira de maneira substancial para colocar a questdo do por- qué da condicdo feminina a um sé tempo antes e dentro da histéria. De um lado, universalidade da opressdo feminina, de outro, a variedade dos dados etnogrdficos sobre a mulher e o método evolu- 8 Lévi-Strauss 1976 Antropologia estrutural I/. Petrépolis, Vozes. ~ 9 Ver Geertz, C. 1973 A interpretacdo das culturas. Rio, Zahar, e Lévi- Strauss 1974 ‘‘Introdugdo’’ 4 obra de M. Mauss, in: Sociologia e antropofogia. Sdo Paulo, Ed. Pedagégica e Universitaria. 10 A maioria das autoras que examinaremos a seguir utiliza os termos subordi- nacdo e opressdo de modo equivalente, e o seu significado é frequentemente pressuposto. No correr do texto proceder-se-a 4 sua explicitagdo. Ver item IV. cionista marcam os comecos do didlogo da problematica feminista com a antropologia. I. Falar de uma questio feminista conduz necessariamente a O segundo sexo, de Simone de Beauvoir.!! Apresentaremos aqui sucintamente sua argumentacao nessa obra que estabelece os parametros norteado- res desse campo de reflex3o. Para essa autora, a singularidade da situagéo da mulher em toda a historia da humanidade, o que permite falar da mulher como categoria universal, é o fato da sua opressdo. Essa opressdo 6 também singular: seria aparentemente absoluta. Diferentemente dos negros e judeus subordinados por um acontecimento histérico, as mulheres n&o teriam uma identidade cultural e étnica préprias a caracteriza-las. A melhor analogia pareceria ser com o proletariado, que nunca cons- tituiu uma coletividade em separado. Contudo, sao raz6es histéricas especificas as responsaveis pela distribuicdo dos individuos nessa classe. Ora, as mulheres sao mulheres por sua estrutura mesma fisio- légica, hd mulheres em todas as camadas e classes sociais, elas sempre existiram, e ‘’tdo longe quanto a histéria remonta elas foram sempre subordinadas ao homem...‘’!2 Contudo, ‘‘ndo se nasce mulher, torna- se muiher’’.!3 E a percepcdo de ser a mulher uma construcdo social, isto é, um dado t&o natural, o que permite questionar e relativizar o cardter 4 primeira vista absoluto dessa opressdo. Nela reside, na ver- dade, a forca politica de toda a discussdo. Assim, a submissdo secular da identidade social da mulher aparece como um dado arbitrario, aci- dental, e portanto passivel de transformacao. Entretanto, a opressao, em nao sendo absoluta, é universal, o que impée de imediato a aflita questao de suas origens. Se a mulher é oprimida em todas as épocas e sociedades, afirmar simultaneamente 0 carater ndo-absoluto desse dado exige logicamente uma explicacdo do porqué desse estado de coisas. Nesse quadro de raciocinio, afir- 11 Beauvoir, S. 1949 Le deuxiéme sexe. Paris, Gallimard. (Ed. brasileira: O segundo sexo. 44 ed., S40 Paulo, Difusdo Européia do Livro, 1970.) 12 Beauvoir, S., op. cit., v. I, p. 18. Beauvoir, S., op. cit., v. I, p. 13. 19 mar a possibilidade de um fim é exigir a explicagdo de um comeco. Ou vice-versa. Pensando em termos da eficdcia simbdlica e politica de um discurso que é ao mesmo tempo reflexdo tedrica e que res- ponde e informa uma prdatica politica que se quer transformadora, a exigéncia de um porqué, de um comeco, é a afirmagdo da possi- bilidade de um desfecho, de um ponto final nessa histéria de dife- renca e subordinacdo. Define-se ai uma ordem de problemas: a subordinac3o é ou nao 6 universal? Onde encontrar sua causa? Se nao o é, onde e quan- do comecou? Existiu uma época ou sociedade em que as relacdes entre os sexos se organizassem de maneira diferente? Se, de um lado, é a opressdo que funda a universalidade da ca- tegoria mulher, de outro a identidade de todas as mulheres reside na sua propria natureza fisioldgica. Na constru¢do mesma da categoria definidora desse discurso observa-se uma identificag¢do com os prin- cipios basicos do evolucionismo. Se o que induz o evolucionismo a pensar as diferentes culturas e sociedades existentes de maneira linear e progressiva é a crenc¢a na unidade basica do género humano, no Homem, o que permite a formulacdo da no¢do de opressdo e subor- dinacdo universais da Mulher é a crenca numa identidade bdsica, em ultima instancia fisioldgica, de todas as mulheres. Assim, na busca de respostas 4 questéo da opressdo é recorrente tanto a utilizacdo do método e teoria evolucionistas, quanto o recurso, como uma das causas em jogo, a instancia bioldgica que define a mulher como tal. O organismo feminino, subjugando a mulher a fun¢ado reprodutora, seria uma das bases sobre a qual se teria construfdo a subordinacao da mulher. Esse dado aparentemente irrecusavel da biologia aparece na maior parte das vezes complexificado, reinterpretado a partir de outros quadros tedricos. HI. Tendo em vista que a producao teGérica feminista organiza-se em torno desse eixo que é a identificacdo da condicao da mulher como de opressao, examinamos aqui algumas respostas que representam desdobramentos, nuangas, dessa perspectiva. Selecionamos trés autoras: Simone de Beauvoir, pelos motivos acima mencionados, Shulamith Firestone e Evelyn Reed, feministas 20 norte-americanas, em razdo da expressiva divulgacdo de suas obras. !4 Com elas acreditamos poder caracterizar um primeiro momento dessa produ¢ao. No exame dessas respostas acompanhamos a opera- cionaliza¢do da categoria mulher e discutimos a construgao do que chamamos de mitos e utopias feministas. Numa segunda etapa, par- tindo das investigacdes contempordneas de trés antropdlogas femi- nistas, Rosaldo, R., Atkinson, J. e Rubin, G.,!5 sequiremos a incor- pora¢do dessa problematica na disciplina antropolégica, observando sua continuidade e sua transformacao.'* IiLa Simone de Beauvoir concede aos dados biolégicos um papel essenciai na historia da mulher, na medida em que o corpo é um instrumento de prise sur le monde. Entretarito, esses dados sé existem revestidos de significagdo, a qual depende de um contexto que é eminentemen- te social. Rejeitando as explicacdes exclusivas da biologia, bem como as da psicandlise e do marxismo,'7 0 quadro de referéncia eleito para pensar a questdo das origens da opressdo é o existencialismo. A perspectiva existencialista que a autora adota postula uma consciéncia humana e um sujeito universais, aos quais sdo inerentes as categorias do Eu e do Outro, bem como uma série de tendéncias: a tendéncia 4 transcendéncia — justificagdo da existéncia através de 14 Shutamith Firestone, autora do famoso livro A dialética dos sexos. Rio, Labor do Brasil, 1976, é filha do movimento cultural e antiautoritario dos anos 1960, definindo-se como sociéloga radical. Evelyn Reed escreveu outro texto cldssico do feminismo — Problems of women’s liberation: a marxist approach. Nova York, Pathfinder Press, 1973, onde atualiza as teses de Engels em A origem da familia, da propriedade privada e do Estado. Rio, Civilizagdo Brasileira, 1974. 1S Rosaldo, R.R. e Atkinson, J. 1975 ‘Man, the hunter and woman: meta- phors for the sexes in liongot magical spells’’, in The interpretation of symbol- ism. Witlis, R. (org.). Ecinburgh, ASA Studies, 3. Rubin Gayle 1975 ‘The traffic in women: notes on the ‘political economy’ of sex’', in Reiter, R. Towards an anthropology of women. Nova York, Monthly Review Press. 16 Entramos em contato com essa bibliografia através do curso “‘Indivfduo e Sociedade: Perspectivas Antropolégicas da Mulher’’, ministrado pela professora Leny M. Silverstein, no Programa de Pés-Graduagdéo em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, no segundo semestre de 1979. 17 Em sua discusséo com a psicanalise, em particular Freud, Simone de Seau- voir incorpora o que considera sua contribuigdo mais significativa: a nogado de que todo fator que intervém na vida psiquica esta revestido de uma significa- 21 projetos; a tendéncia a alienag3o — angustia de sua liberdade — leva o sujeito a se procurar nas coisas; a tendéncia 4 dominacdo do Outro. A subordinagéo da mulher é uma das realizacdes dessa ultima pre- tensdo ontoldgica, uma conseqléncia do “imperialismo da mente humana’. A partir desse raciocfnio compreende-se que, como toda duali- dade, a dualidade entre os sexos manifesta-se em conflito. Mas, ‘‘por que foi o homem que ganhou? Por que este mundo sempre perten- ceu aos homens (...)?’! A resposta prové-se do cldssico procedimento evolucionista, tomando como modelo da humanidade primeva as ‘‘hordas primi- tivas". Das caracteristicas atribufdas aos ‘‘primitivos’’, duas sinte- tizam o argumento em jogo: a) haveria poucos recursos e muitas criancas, ‘‘a fecundidade absurda da mulher a impedia de participar ativamente do crescimento dos recursos ao passo que ela criava inde- finidamente novas necessidades’‘;! 6) ndmades, essas sociedades ndo poderiam forjar nenhuma idéia concreta da permanéncia: ‘’a mulher que engendra nao conhece o orgulho da cria¢do, sente-se 0 joguete passivo de forcas obscuras’’.2° Sua argumentacdo é entdo a seguinte: a espécie humana é€ inerente a criac¢do, ndo apenas a repeticdo da Vida. Ao transcender a Vida pela existéncia, o homem cria valores, forja o futuro. Na criacdo de um projeto, ele encontra a cumplicida- de da muther, ela também habitada pela necessidade de transcendén- cia; entretanto, ‘‘sua infelicidade é a de ter sido biologicamente desti- nada a repetir a Vida’’. A fémea humana foi ao mesmo tempo uma presa da espécie e dos homens. Assim, para Simone de Beauvoir, a opressdo feminina origina-se do fato de a mulher reproduzir, ‘‘repetir a Vida’’. Nos ‘‘dificeis co- ¢40 humana, ou seja, que o corpo é sempre um corpo vivido por um sujeito. Uma de suas criticas centrais repousa no fato de que a analise de Freud da li- bido humana estaria calcada num modelo masculino. Quanto ao marxismo, sua principal contribuigaéo é a percepcdo da humanidade como uma realidade his- térica. Contudo, a obra de Engels (op. cit.) que aborda de maneira mais espe- clfica a questao da mulher, ao derivar sua subordina¢do da instancia econdmi- ca, nado daria conta da sua singularidade. 18 Beauvoir, op. cit., p. 21. if ld., ibid., p. 109. Id., ibid., p. 110. 22 mecos da humanidade”, essa diferenciacdo biolégica entre os sexos fez da mulher a parte existencialmente mais fraca. ‘‘Foi a atividade masculina que, criando valores, constituiu a prépria existéncia como valor, venceu as forcas confusas da vida, subjugou a Natureza e a mulher'’; sobre essa base, elaborou-se ao longo dos tempos a subordi- nacdo feminina.?! Ii.b Para além das diferencas, as obras de Shulamith Firestone e E. Reed podem ser consideradas variantes da mesma reconstrucdo de uma histéria universal das relacdes entre os sexos. Em Firestone, a condigdo feminina redunda da biologia, da maternidade: é a fisiologia do corpo feminino que constitui a conde- nacdo primdria do indivfduo mulher. A dicotomia sexual, inscrita na Natureza, é portanto universal; a dominac4o masculina é possivel por ndo ser o homem condenado as funcdes reprodutoras. A “familia bioldgica”, espaco privilegiado de construcéo do género feminino, e por si “uma distribuicao de poder eminentemente desigual’’, é 0 pri- meiro plano de atualizagdo da opressdo feminina. Em Reed, que reproduz a argumentacaéo de Engels,?* 0 ponto de partida da opressdo esta dentro da historia, com o surgimento da propriedade privada, das classes sociais, do Estado. Em suma, a con- dicdo da mulher é determinada nao tanto pelo seu corpo como pelo modo de produgdo e reproduc¢ao, em Ultima instancia pelo econdmi- co. A familia patriarcal e, posteriormente, a familia nuclear burgue- sa, com a privatizag¢do do dominio doméstico, circunscrevem estrei- tos limites a fun¢do feminina, impedindo a mulher de realizar-se como individuo, o que sé pode ocorrer na Producdo e no Mercado de trabalhadores livres. Ambas reconstroem uma historia que apresenta um cardter evolucionista e linear, coerente com o mais classico pensamento do século XIX. tsso ndo é casual, j4 que o préprio evolucionismo apre- senta como um de seus temas preferenciais para dar conta da seqiién- cia histérica das sociedades o estudo das formas de familia e de casa- 3 Id., ibid., pp. 111, 113. Engels, F. ap. cit. 23 mento. A légica aplicada a evolugdo dos sistemas de parentesco, acompanhando a visdéo de mundo das ciéncias e da filosofia da época, estabelece uma crescente complexificacdo: da forma mais primitiva, natural, animal, indiferenciada, aquela mais civilizada, cultural, humana, diferenciada. Entre os pensadores dessa época, J.J. Bachofen?? surge como aquele a quem as feministas irdo freqiientemente recorrer, por ter postulado a existéncia histérica do matriarcado. Bachofen elabora um esquema evolutivo que vai da promiscuidade, quando reinava o caos sexual, ao patriarcado, apresentando como forma intermediaria uma fase matriarcal. Nela, ocorre a passagem da Natureza 4 Cultura que 6 atribufda as mulheres, pois apenas elas teriam condicdes, natu- ralmente dadas, de estabelecer uma descendéncia, 0 que !hes conferia automaticamente poder. Da “‘ginecocracia”, “‘poder e controle nas mé&os das mulheres’’, passa-se ao patriarcado, quando se aperfeicoa ainda mais 0 controle sobre a animalidade do instinto, pela regula- mentacdo da descendéncia por via masculina: Com o surgimento do patriarcado as mentes se libe- ram das aparéncias naturais (...) com o principio pa- terno o homem quebra as correntes do telurismo e olha para o alto, para as maximas regides do cosmo.”4 No entanto, a teoria do matriarcado comecou a ser contestada j4 por contemporaneos de Bachofen, como Maine e McLennan,?5 que tentavam demonstrar como a descendéncia matrilinear, longe de ser a mais primitiva, nao comportava poder feminino. Mais recentemen- te, grande numero de etnografias sobre sociedades “‘primitivas’’?6 acabaram por levantar novamente a questo da universalidade da hie- 23 Bachofen, J.J. 1861 Das Mutterrecht. Estocarda. @ d., ibid, p. XXVII. Maine, H.S. 1861 Ancient faw. Londres. McLenna, J.F. 1865 Primitive marriage. Edimburgo. . 26 Ver por exemplo: Maybury-Lewis, D. (arg.}) 1979 Dialectical societies; the Gé and Bororo of Central Brazil. Cambridge, Harvard University Press. Na co- letanea: Rosaldo, M.Z. e Lamphere, L. (org.) 1976 Woman, culture and socie- ty. Stanford, Stanford University Press, os artigos de M.Z. Rosaldo (Woman, culture and society: a theoretical overview’‘), de S.B. Ortner (Is female to male as nature is to culture?’'), de J. Bamberger (“The myth of matriarchy: why men rule in primitive society’’), e de B. O’ Laughlin (“Why Mhum women 24 rarquia sexual, Ou seja, mesmo em sistemas matrilineares as atividades publicas e rituais se encontram sob controle masculino. O matriarca- do de Bachofen perdeu assim sua pretensa validade historica, mas sobreviveu como imagem de um poder feminino, enfim, como mito. As feministas que procuraram refletir sobre a evolucdo por uma Optica ‘‘do lado das mulheres’’ encontraram assim um esquema ja pronto para suas explicacdes, precisando apenas inverter a hierar- quia valorativa; quem nado tem agora o poder, isto é, as mulheres, tinha-o no passado, na idade de ouro do matriarcado, e voltard a té-lo na utopia do futuro. E o presente que é excepcional, marcado por signo negativo. S. Firestone e E. Reed sao expressivas fontes da construcao do que chamamos ‘’mitos” e ‘utopias’ do feminismo. Os termos mito e utopia nao tém aqui qualquer conotacdo negativa do senso comum, como acontece quando os identificamos como sonho, mistificacdo ou falsa consciéncia. A posic¢do social de um grupo ou de um movi- mento determina 0 contetido do discurso sobre si mesmo. No caso das mulheres, procede-se a reconstrucdo de um passado que se quer histérico como meio eficaz de garantir legitimidade. Entretanto, re- cusar-lhe validade cientifica ndo significa negar-Ihe uma verdade, O mito, enquanto parte de um sistema de representacdes, possui valor de verdade que reside no fato de que a histéria que narra, nao impor- ta em que tempo ocorra, forma uma estrutura permanente que tema- tiza e soluciona problemas culturais contempordneos.?7 Essa historia é também utopia, como diz Mannheim,?® na medida em que, expres- sando forcas sociais de transformacao, transcende o presente. Para Firestone, apesar da condenacdo original do sexo femini- no, antes do patriarcado havia menos desigualdade e mais poder nas mdos das mulheres do que no presente. Assim, 0 presente eleva ao paroxismo uma desigualdade perene. Jad para E. Reed o patriarcado é uma excepcionalidade radical, pois para ela na fase matriarcal (que do not eat chicken?’’) Na coletanea: Reiter, R.R. (org.) 1975 Toward an an- thropology of women. Monthly Review Press, os artigos de R.R. Reiter (‘‘Men and women in the South of France: public and private domains’’) e de S. Harding (‘Women and words in a Spanish village’’). 27 Lévi-Strauss 1975 “A estrutura dos mitos”, in Antropologia estrutural |. Rio, Tempo Brasileiro. 28 Mannheim, K. 1976 /deologia e utopia. Rio, Zahar. 25 também chama ‘‘democracia primitiva’’) as mulheres tinham tanto poder quanto os homens, se nao mais.2? O futuro acabard com a injustig¢a de um poder desigual. Fire- stone visualiza uma cultura andrégina, em que a muther se libertard da sua ‘‘condenagao bioldégica’’, recusando a maternidade, nao mais responsabilidade do género feminino: os filhos de proveta serdo uma escolha social planejada. Assim Firestone imagina 0 ponto zero final da historia: Desaparecimento da distin¢ao cultural de sexo, idade e raca e da psicologia de poder: liberdade sexual total. Desaparecimento da distincdo de classe e do Estado: autodeterminacdo e auséncia de fronteiras. Desapa- recimento da ‘‘cultura’’: realizacgao do concebivel no reai.° Por esta imagem, a revolucdo feminista antecipa uma destrui- ¢do radical, mais radical do que qualquer outra transformacdo de nivel econdmico e social, da hierarquia, enfim, do poder em absolu- to. Em seu radicalismo Firestone afirma que “as feministas tém que questionar ndo s6 toda a cultura ocidental, como a propria organiza- 29 © mito do matriarcado, que se estende do século XIX até o feminismo de hoje, reenvia logicamente aos mitos ind{genas conhecidos como “A aldeia das mulheres’, ou “As flautas sagradas’’, presentes na maioria das populacdes nati- vas da América do Sul. Neles conta-se que em tempos antigos as mulheres des- cobriram os segredos da sociedade ritual masculina, e se apoderaram das flautas sagradas, guardadas cuidadosamente na “casa dos homens’’. Obrigaram-nos ent&o a cumprir as tarefas domésticas até entdo reservadas as mulheres, en- quanto passavam a celebrar festas e rituais que eram antes um rigoroso tabu para elas. Com a inverséo dos papéis sexuais, instaurou-se o caos, o poder “mau”, ‘‘podre’’, das mulheres. Os homens, com a ajuda ou com a intervencao direta do herdi criador, conseguiram restabelecer seu poder e os papéis sexuais tais como vividos no presente. Nesses mitos, as regras do sistema social que codificam uma hierarquia entre homens e mulheres sdéo confirmadas pela imagem de uma subversdo da Ordem nos tempos miticos. Houve época em que as mulheres ocupavam o lugar que é agora o dos homens. © que essa semelhanga entre os mitos significa? E uma pergunta interessan- te para a qual ndo temos respostas conclusivas. Pode-se pensar numa referéncia basica, profunda, 4 condi¢ao existencial do ser feminino, que os mitos pensam a nivel da coletividade social. Esses mitos indigenas s30 propriedade da comu- nidade como um todo; todavia, algo novo aparece quando o mito se torna utopia exclusiva de grupos de mulheres que reivindicam igualdade e poder na nossa sociedade. 3% Firestone, S., op. cit., p. 215. 26 ¢ao da cultura, e até a propria reorganizagdo da Natureza... se for necessdrio ir tdo longe’’.3! O futuro que Reed vislumbra promete o desaparecimento da clausura familiar e doméstica da burguesia por meio da entrada maci- ga das mulheres na Produgao numa sociedade socialista. A presenca feminista no processo revoluciondrio, que levard a eliminacgdo das classes, ampliard seus objetivos igualitarios, incluindo a dimensao da relagdo entre os sexos. Homens e mulheres serao afinal indiv(duos realizados quando dispuserem do livre dominio sobre sua for¢a de trabalho. A libertagdo das mulheres implica, em suma, ou a eliminacgdo de todas as formas de classificagdo social, inclusive o género, ou a igualdade inerente a esséncia do trabalhador social. Imagens de liber- tacdo, imagens de individuos que se relacionam na igqualdade absotu- ta. Ambas as variantes utilizam em seu discurso as nogGes de igualda- de e de poder que, veremos em seguida, sao categorias modernas, mas que na estrutura do mito se tornam elementos-chaves da interpreta- ¢ao do mundo e de um mundo visto em sua evolucdo linear. Tais categorias so projetadas nas duas direcSes dessa tinearidade tempo- ral, na imagem do futuro, da revolugao, e na imagem do passado, criando dessa maneira a excepcionalidade do presente, que, por isso mesmo, pode e deve ser mudado. IIL. A incurséo da problematica feminista na antropologia, especialmente nos Estados Unidos, que muito deve 4 expanséo do movimento de mulheres na década de 1970, constituiu uma especializagdo hoje re- conhecida no seio da disciplina. Selecionamos como representativos dessa produgdo os trabaihos de Rubin, G., ‘The traffic in women: notes on the ‘political economy’ of sex’’ e Rosaldo, R. e Atkinson, J., ‘Man, the hunter and woman: metaphors for the sexes in Ilongot magical spells’. Sua andlise precisa a particularidade dessa segunda etapa da producao sobre a mulher, agora circunscrita pela abordagem disciplinar. Rosaido e Atkinson retomam e problematizam a determinac¢do biolégica da condi¢ao feminina através de sua discussdo sobre a assi- 31 id., ibid., p.12. 27 metria sexual entre os //ongot das Filipinas. Como veremos, as auto- ras nao utilizam o termo opressdo, e sim o de assimetria. Esse concei- to possibilita pensar uma relacdo entre dois pdlos, no caso homem/ mulher, que séo definidos de maneira diferente, sem que a diferenca seja lida como opress3o ou subordinago, j4 a proposta de Rubin é elaborar a questdo da opressao feminina dentro do sistema social. Embora Rosaldo e Atkinson nao trabalhem com a nocdo de opressdo, e Rubin bd fa¢a, permanece em ambas a questao do porqué, da ori- gem, ndo mais histérica, mas ldgica ou sociolégica, dessa assimetria ou opressdo, bem como a de sua provavel universalidade. 1. Segundo Rosaldo e Atkinson, a distincdo hierarquizada entre o mas- culino e o feminino elaborada pela cultura ‘/ongot pode ser encontra- da com variagGes mais ou menos evidentes em grande parte das sociedades tribais. As formulas magicas dos /fongot marcam positivamente a ati- vidade de caca masculina e negativamente as atividades femininas de cultivo e colheita. As autoras tentam explicar por que a experiéncia e os significados que definem esses dominios Ihes conferem um sen- tido oposto e hierarquizado. A resposta utiliza a oposi¢ao entre dois conceitos: /ife-giving e life-taking (dar a vida e tirar a vida). O primeiro define 0 sexo femi- nino e o segundo o masculino. Dar a vida através do parto é uma funcdo natural do corpo da mulher, sua marca biolégica, sobre a qual se exerce pouco ou nenhum controle. As mulheres, menos dis- socidveis de suas funcées sexuais, sfo representadas como produto- ras de filhos. O /ife-giving, ndo-intencional, é incapaz de transcender 0 bioldgico, daf a sua associac¢do simbdélica com os processos ‘‘natu- rais” da terra, do crescimento das plantas, dos ciclos anuais de ferti- lidade. Associa¢ao que atribui “‘naturalmente’’ 4 mulher essas tarefas econémicas e refor¢a a categoria cultural feminina. A cac¢a e a guerra, o ato de matar, de tirar a vida, garante pelo contrério ao homem o controle intencional sobre o fluxo dos pro- cessos naturais, em particular sobre a vida e a morte. Essa atividade intencional, dirigida a outro corpo, torna-se um meio para transcen- der culturalmente o biolégico. “Dar a vida” e ‘‘tirar a vida” apare- cem assim como ontologicamente incompativeis e culturalmente hierarquizados: dar a vida como condico de ser dentro do reino 28 da Natureza e tirar a vida como criacdéo cultural sob o controle masculino. 2. Gayle Rubin, partindo das formulacdes de Lévi-Strauss em Estrutu- ras elementares do parentesco,>? elabora através do conceito de sis- tema sexo-género a questdo da opressdo da mulher como socialmente construfda. Esse conceito, cujas formas empiricas observaveis sdo os sistemas de parentesco, refere-se 4 producdo cultural das identi- dades de género, englobando os fatos da biologia. Sua hipdtese é a de que a subordinacdo feminina deve ser explicada como produto das relacdes pelas quais os sistemas sexo-género séo produzidos e organizados. Em sua obra, Lévi-Strauss retoma a tese, desenvolvida por Mauss em ‘Ensaio sobre a dddiva’’,>> de que o significado da dddiva é a criacdo ou reafirmacao de lacos de reciprocidade que qualificam o social. Para Lévi-Strauss 0 casamento sintetiza a forma mais basi- ca de troca, pois pela dupla regra do tabu do incesto e da exogamia os grupos humanos obrigam-se a entrar em relagdo, o que é feito através da circulacéo de mulheres. Na leitura de Rubin, a mulher, como bem trocado, ver-se-ia investida de alteridade pela posicdo que ocupa nesse sistema, posicéo atribufda por quem ‘‘tem nas mdos as regras do jogo’’. Ou seja, mesmo detendo uma posicao pri- vilegiada no conjunto dos bens trocados, erigida em signo cultural, sfmbolo da luta do homem contra a Natureza, a mulher permanece dadiva trocada entre grupos masculinos e sob a tutela dos quais estd tanto antes quanto depois do casamento. Assim, embora enquanto género, tanto homens quanto mu- theres sejam categorias socialmente construidas, a tese de Rubin é a de que as mulheres na qualidade de bens transacionados, s4o antes condutores do que parceiros na relacdo que se forja. E aos homens que cabe o poder e o prestigio do estabelecimento do vincule social. As relagGes desse sistema sdo tais que as mulheres ndo estado em con- digdes de realizar os beneficios de sua prépria circulacdo. Segundo 32 Lévi-Strauss, C. 1976 Estruturas elementares do parentesco. Petrépolis, Vozes. 33 Mauss, M. 1974 “Ensaio sobre a dadiva’', in Sociologia e antropologia. S. Paulo, Ed. Pedagégica e Universitaria. 29 Rubin, 0 termo lévi-straussiano “‘troca de mutheres”’ expressa o fato de que as relagdes sociais de um sistema de parentesco especificam que os homens tém certos direitos sobre sua parentela feminina, mas que as mulheres, por sua vez, néo tém os mesmos direitos sobre si mesmas ou sobre sua parentela masculina. Ora, se & 0 estabelecimento da alianca por casamento entre grupos o que realiza a passagem da Natureza a Cultura, a derrota histérica da mulher seria simultanea a criac&o da cultura. A teoria do social em Lévi-Strauss 6, para Rubin, uma teoria implicita da opressdo feminina. Com o resumo da argumentacdo desses dois artigos visamos destacar a articulagdo da proposicdo feminista — opressdo da mulher — com um quadro tedrico antropolégico. O trabalho de Rosaldo e Atkinson 6 um ensaio de precisdo conceitual sobre a natureza da relagdo que institui diferencas entre os sexos, no estilo que a tradi- ¢o da disciptina consagrou, o da relativizagdo das categorias de and- lise. Voltaremos a esse ponto brevemente. Por sua vez, Gayle Rubin, acatando o ponto de vista feminista — 0 de opress&o —, reinterpreta, 4 sua luz, uma das mais importantes teorias sobre a alianca produzi- das pela antropologia. Iv. Gostariamos de propor um balango critico dessa produ¢do. Enquan- to antropdlogas, mulheres, feministas, temos procedido aqui a uma objetivacdo de nds mesmas, como uma das epigrafes deste trabalho indica ao falar da possibilidade ilimitada de fracionamento do sujei- to do discurso, Desdobramento esse, que é uma condicao de relati- vizar as categorias do discurso que se empreende. Para nés o conjunto dos trabalhos examinados apresenta um eixo comum que se sobrepde as suas diferencas. A convergéncia reside na eleic¢do de um problema, que detona as investigacdes, cons- trufdo em termos de “‘opressio da mulher’’. Nele subsumem-se cer- tos pressupostos que convém explicitar. O primeiro diz respeito a identificagdo de uma iguatdade substancial de todas as mulheres, origindria da biologia e da sua “opressdo ou discriminacdo’’ por parte do mundo masculino. O segundo é o reconhecimento de uma desi- gualdade entre homens e mulheres relativa aos direitos que assegu- 30 ram a participagao na sociedade, na pol(tica, no poder, em ultima andlise. Pretendemos circunscrever esse problema como eminente- mente moderno, historicamente determinado. Através desse pro- cedimento sera possivel apontar os impasses a que conduz ao ser transportado como hipdtese para a histéria da humanidade em geral, bem como os seus limites enquanto operador conceitual. A proposicao ‘‘opresséo da mulher’’ requer uma série de cate- gorias correlatas como direitos, poder, desigualdade, consciéncia, que é logicamente necessdria para qualificar, através de sua presen- ¢a/auséncia, a propria opressdo ou o seu grau. Essas categorias gene- ralizadas so eregidas como conceitos, a partir dos quais se trabalha e reflete sobre o material analisado, quando de fato se trata de valo- res, representac6es absolutizadas. Estamos tidando com uma confi- guragao de valores, e por isso mesmo pode-se dizer que, quando um é utilizado, aciona, logicamente, o recurso ao outro. Essa configura- gdo apresenta uma categoria abrangente, matriz, que 6 a de indivi- duo. Nao o individuo como sujeito empfrico de fala, pensamento e vontade, mas o individuo como valor, enquanto sujeito moral. Ora, essa categoria, para nés téo naturalizada, é excepcional, produ- to de um processo histérico preciso, e sé possui significado no inte- rior do sistema que a produziu — no caso em questdo, a sociedade ocidental moderna. Adiantamos consideracdes que seraéo ampliadas na segunda parte deste artigo. A possibilidade de relativizagdo das préprias categorias operan- tes no sistema de representacdes da sociedade ocidental inscreve-se no movimento de sofisticagdo do conceito de cultura mencionado jd no inicio. Esse movimento permite que a antropologia se torne capaz de pensar a sociedade que a produziu. Ao mesmo tempo que © outro nao & mais o ‘‘exético”, o conhecido, torna-se este também objeto de estranhamento. Assim, em Simone de Beauvoir estd presente a categoria indi- viduo através da de sujeito transcendente a partir de quem se avalia a histéria da mulher. Esssa nogdo, transportada aos exemplos de outras culturas, permite que Beauvoir formule uma condicao gené- rica de opressdo para a mulher e, ao mesmo tempo, postule a exis- téncia de um género mulher universal. E justamente com este bias que Gayle Rubin lé a expressdo “troca de mulheres’ como sendo correspondente a “‘uma percep- cdo profunda de um sistema em que as mulheres nao tém direitos 31 plenos sobre si mesmas’’. Interessante notar o ponto cego ao lado da genialidade do seu pensamento. Rubin formula expressamente com © conceito “sexo-género” a natureza e a imposicao sociais dos pa- péis sexuais. Nesse sentido néo hd “direitos plenos” Por parte dos sujeitos empiricos que os desempenham — sejam estes homens ou mulheres. E o fato de tomar o individuo — eas categorias corre- latas a essa nogdo ~ como valor o que Ihe franqueia a leitura de um cédigo de estruturacdo do social como opressor, recaindo sobre as mulheres 0 grau maior de opressdo. As interpretagdes da evolucdo humana de Firestone e Reed so igualmente construidas por essa pléiade de categorias. A mesma inspirag¢do que faz crer num matriarcado, num passado mitico, que se equipara, em Reed, a igualdade de direitos dos sistemas coleti- vistas, opera na imagem utdpica de um futuro. Essa projecdo com uma dupla diregdo sé é possivel transportando mais uma vez Para todos os tempos e todas as sociedades a categoria de individuo. O trabalho de Rosaldo e Atkinson é nesse sentido singular no contexto dessa produgdo. Sua utilizagéo do conceito de assimetria para trabalhar a distingdo cultural elaborada entre o masculino e o feminino nos ilongot corresponde exatamente a uma tentativa de evitar a interferéncia valorativa da categoria opressdo. E a especificidade da problematica contempordnea que infor- ma essa investigacdo que nos parece importante nao perder de vista. As categorias de igualdade, opressdo, poder, expressam questées fun- cionais e reais assim como forga politica, ganhando sentido sé na medida em que conseguimos situd-las no quadro da prépria ideologia que as produziu historicamente, o Feminismo como uma das formas tomadas pelo individualismo moderno. Concluindo, falar em termos universais da condig¢do da mulher como de opresséo traz duas conseqiiéncias inter-relacionadas. Con- duz, por um lado, a questdo de suas origens, cuja resposta impde a formulacdo de historias conjeturais ou revivescimento de mitos. Por outro, implica paradoxalmente a ndo-radicalizacdo da percepcdo sobre a qual repousa, em ultima andlise, toda a forca politica trans- formadora desse discurso — a de ser a mulher uma categoria social- mente construfda. Quando Simone de Beauvoir escreve a frase que se tornou classica do feminismo: “(Nao se nasce mulher, torna-se mu- Iher”’, inaugura-se um vasto espectro de contestacdo sobre a “natu- ralidade’’ dos atributos do papel feminino: passividade, emociona- lidade, dependéncia, domesticidade etc. Questiona-se a existéncia 32 de uma esséncia feminina, afirmando-a cultural, e ndo atdvica. A mulher é assim uma construcdo social. A realizagdo plena de todas as conseqiiéncias dessa afirmacao, que entretanto nao é alcancada, implica a nosso ver nado sé o reconhecimento da possibilidade de transformacdo, como a percep¢do de que nao existe a Mulher, e sim mulheres. Nao existindo uma determinacdo natural ou ontoldgica dos papéis,3* nao existe igualmente uma Mulher, enquanto género universal, mas uma pluralidade de mutheres. A tarefa de uma antropologia da mulher seria justamente a de tentar perceber e delimitar a singularidade cultural dessas rea- lizagdes35 bem como, através da comparag¢ao entre estas, apreender e problematizar suas constantes. Uma dessas constantes 6 a gene- ralidade, evidente, de um principio de relacdo assimétrica entre homem e mulher, complementar e hierarquicamente valorizada no pdélo masculino, que, sem duvida, permanece como um problema candente. Os mitos produzidos pelo feminismo, vistos como visdes do desejo de mudanga, revelam ndo uma validade cientifica, hd tempo contestada, mas uma forga politica. Fornecem, a nivel ideoldégico, a forca de uma estrutura totalizante e totalmente significativa para a procura da identidade de um novo sujeito social: a muther parti- cular e as mulheres enquanto grupos. SEGUNDA PARTE L Agora, trata-se de fazer a antropologia pensar o feminismo enquanto movimento social, procedendo a uma andlise das relagdes do femi- 34 A questdo da determinacdo biolégica dos papéis sexuais foi hd muito con- testada pelas obras da antropdéloga Margaret Mead, em especial Sexo e tempe- ramento (escrito em 1931), S. Paulo, Perspectiva, 1969; e Macho e fémea {em 1949), Petropolis, Vozes, 1971. 35 A trajetéria dos trabalhos antropolégicos sobre a mulher tem caminhado 33 nismo com o quadro geral de representacdes onde ele nasce. Nao se trata mais tao-somente das questdes intelectuais afins, mas de um contingente de valores com o qual ele dialoga, mais do que isso, que © estrutura. Esse tipo de procedimento pode suscitar alguma resis- téncia em razao de que o feminismo, como outros discursos, se arro- ga o status de revoiuciondrio, e portanto reclama para si uma ruptura com o pensamento de época. A nomeacdo de revoluciondrio produz um fetiche que se antepde as investidas de situar tal discurso num campo de producao ideoldgica historicamente demarcada. Por que o feminismo, em que pese a seus antecedentes reque- ridos no sufragismo, surge como movimento ha 15 anos? Ou ainda, tendo surgido nos chamados paises de capitalismo avancado, por que hoje ele pode ser encontrado nos mais diversos confins do globo? Essas questGes assim formuladas tém por objetivo situar esse movimento como recente, singular apesar dos significativos esforcos feministas de reconstruir um passado para as mulheres, “retird-las do siléncio a que foram impostas’’. Nao se trata, como vimos, de revelar, mas de construir uma histéria que permanece teleologica- mente orientada pelas nossas questdes atuais. Mas, finalmente, o que aconteceu para que as mulheres adquirissem “‘consciéncia” da sua opressao? Longe de pretender serem essas consideracdes de natureza acusatoria ao feminismo, com um intuito escamoteado de roubar-lhe legitimidade politica e eficdcia simbolica, ou de vaticinar sua derrota futura em razao de seus limites, procede-se a uma discussdo que se quer no seu interior. Pensé-lo como uma utopia ndo lhe rouba os mé- ritos de transformacao social. Um dos limites deste texto refere-se ao grau de generalidade com que estamos tratando a questéo. Nao estamos aqui fazendo uma andlise de atuacdo de nenhum grupo especifico, nem mesmo delimi- tando o universo social de ocorréncia, Brasil, Estados Unidos ou Franca. A generalidade é proposital. Dirfammos mesmo que, em se no sentido da necessidade de relativizar a formulagado da condi¢ao da mulher em outras sociedades como de opressao, ou ao menos a ‘‘suspensdo”’ da ques- tao de sua universalidade e origens, indicando a necessidade de estudos mais especificos e o levantamento de dados mais complexos. Ver a esse respeito Rapp, R. 1979 ‘‘Review essay: anthropology”, in Signs, 4 (3) e Lamphere, L. 1977 ‘Review essay: anthropology”, in Signs, 2 (3). tratando do feminismo, uma de suas caracteristicas é ser de certo modo difuso. Como foi dito, poder/amos falar em diversos feminismos e gru- pos de mulheres, em diversos paises, que atuam politicamente sob essa denominacdo. Aqui nasce uma primeira definicdo poss(vel para 0 movimento, esta também a ser examinada. O feminismo reivindica para as mulheres, categoria que surge inquestiondvel do reino da natureza, da biologia, um espaco exclusivo da atuacdo politica. Pos- tula que, na histéria da humanidade, as mulheres tenham sido sem- pre submetidas a uma ordem dominantemente masculina, mas que agora “adquiriram consciéncia de sua opress&o0 milenar’’ e dos seus interesses — que sO elas mesmas podem defender. Esses interesses exprimir-se-iam na luta ‘“‘contra a discriminagdo da mulher na socie- dade", o que pode ser traduzido no rebelar-se contra a imposicdo de um papel social alocado a um sexa, no caso o “segundo sexo’’, ou “sexo fragil’’. As palavras de ordem propdem uma autonomia da sexuali- dade feminina, requerem para o sexo feminino a autonomia atri- buida ao masculino. E a reivindicagdo de direitos iguais, do igua- litarismo, que ganha uma logica meridiana. O raciocinio da igualdade ndo 6, entretanto, compartilhado por todos os grupos sociais, e mes- mo no cOmputo geral das sociedades conhecidas ndo foi essa a logica que dominou. A nocéo de igualdade como valor faz parte de um sistema de representagdes que se denomina individualismo.*® Seguiremos neste artigo algumas das consideragdes de Louis Dumont,37 que desenvol- veu uma teoria sobre esse sistema de representacdes como o domi- nante nas sociedades modernas. Esse detalhamento parece-nos im- portante por fundamentar a interpretacdo que aqui sugeriremos: a percepcdo do feminismo como um desdobramento do individua- lismo. Como esse autor o demonstra, uma das principais caracteris- ticas do individualismo é conceber a génese do social derivada da 3% De modo algum o uso que faremos desse conceito se prende as conotacdes mesquinhas que 0 termo no senso comum possa ter. 37 Para a elaboracdo detalhada das questGes que indicaremos, ver as seguin- tes obras de Dumont: 1977 ‘‘Prefécio’’ ao Homo aequalis. Paris, Gatlimard; 1972 “Prefdcio” ao Homo hiearchicus. Londres, Paladin; 1978 “La concep- tion moderne de I’individu — notes sur la genése, en relation avec tes conceptions de ia politique de l’Etat 4 partir du XVINIEME siécle”, in Esprit, Paris. 35 existéncia primeira dos individuos, ou ainda do somatdrio destes. O termo “individuo” engloba dois planos conceituais distintos: um como representante da espécie humana, realidade empirica por exce- léncia e, portanto, presente em qualquer sociedade; o segundo como categoria, valor que constroi a representacaéo mesma dessa espécie humana, pensada no individualismo como anterior ao social. Tais concepcdes estdo tao fortemente arraigadas que é extremamente delicada a sua distincéo, tarefa que a antropologia desse Marcel Mauss3* vem tentanto cumprir: demonstrar a nao-universalidade da representacdo da espécie humana que a civilizac¢do ocidental adotou. A partir dai concebem-se dois tipos de sociedade, as de tipo hierérquico, ou “tradicionais’’, onde a totalidade social prevalece sobre os individuos na acepcdo emptrica, e as sociedades tipo ‘‘mo- derno’’, onde a representacado da totalidade se enfraqueceu conco- mitantemente com o aparecimento da categoria individuo como agente normativo das instituigdes. O individualismo, nome que esse sistema moderno toma pelo deslocamento da representacdo de totalidade para o individuo, agencia uma continua fragmenta- ¢do do todo social em dominios crescentemente auténomos. Dar que, para Dumont, falar em insténcias como politico, econdmico, ideo- ldgico, psicolégico s6 é possivel em se tratando de sociedades que procederam 4 autonomizacdo dessas esferas, as sociedades modernas. Essa concepcf4o moderna de individuo, sua relagéo com a sociedade, bem como as realidades sociais que produz, estao em con- tinua elaboracdo. Assim, o individualismo do século XX tem suas particularidades frente ao do século XIX.*? Dumont pretendeu, em varios trabalhos, retracar a trajetoria de afirmacdo dessa ideologia como dominante. Os principais eventos que falam de sua consoli- dacdo seriam o Luteranismo, a Declaracdo dos Direitos do Homem, 38 Mauss, Marcel 1974 ‘Uma categoria do espirito humana: a nocao de pes- soa, a nocdo do eu”, in Sociologia e Antropologia. Sdo Paulo, Ed. Pedagégica Universitaria. 39 G. Simmel dedicou-se ao matizar os diferentes momentos da ideologia individualista, especialmente nos seguintes artigos: ‘Individual and society in eighteenth century and nineteeth century views of life’, in Wolk, K. (org.) 1950 The sociology of G. Simme/. Nova York, The Free Press; ‘Freedom and the individual”, in Levine 1971a On individuality and social forms. Chicago, The University of Chicago Press; ‘Group expansion and the develop- ment of individuality’, in Levine, op. cit. 36 a Revolucao Industrial e a constituicdo do Estado burgués. Esses eventos sdo significativos porque cada um deles traz a luz a entrada em vigor, em determinado dominio, da prevaléncia do individuo (ou de seus interesses) sobre o social. Dentre eles, destacamos a Declaracdo dos Direitos do Homem, que melhor serve aos nossos propdsitos. Nela firma-se uma identi- dade de homem que é livre, igual nesta humanidade e que possui direitos que devem ser respeitados, donde o principio de represen- tacao politica e a consagrada formula da divisdéo dos poderes, a seg- mentacdo do poder, Desde 0 momento em que o individualismo se afirma como Oo corpo de representacdes dominantes, levando em consideracdo o qudo problematica 6 a sua localizacdo histérica precisa e o grau de generalidade implicado, esté em processo uma continua, iricessante fragmentacdo, autonomizacao de esferas. No nosso caso, aquele que concerne 4 representagdo de/da mulher na sociedade, o feminismo vem expressar mais um desdobramento dessa ideologia individualista, agora investindo sobre um dos dominios renitentes a destotalizacdo: a familia.*° Na interpretacdo de Dumont, a histéria das sociedades moder- nas € a histéria de sucessivas autonomizacées, do politico frente ao religioso, do econdmico frente ao politico. O feminismo, por um lado, pode ser entendido como um dos nomes que o individualismo toma no processo de autonomizacdo da sexualidade com relacdo a 40 E crucial neste ponto a seguinte ressalva: Dumont sociologicamente valori- za as totalidades hierarquizadas garantidas nas sociedades tradicionais, e de- nuncia (e neste ponto € secundado por Lévi-Strauss) o individualismo como desagregador e em alguma medida colocando em risco a reproducéo social. Quanto ao feminismo, suas criticas sio da mesma ordem, pois que a operacdo da iguatdade entre os sexos e a consequente diluicdo dos papéis sexuais coloca em risco o casal, a familia nuclear, uma totalidade hierarquicamente constitulda. O individualismo é entdo, na sua obra, percebido como nefasto para o devir social. Significativas so, nesse sentido, suas andlises sobre o nacional- socialismo — caso limite das sociedades modernas — onde postula a correlacdo entre individualismo, enfraquecimento de representacdo da totalidade, viotén- cia e caos social. A par do uso que fazemos da sua obra, especialmente o modo de inter- pretacao da categoria de individuo, interessante pelo a/to grau de sintese ana- I’tica que apresenta, nos distanciamos de Dumont na valorizacdo socioldgica @ também politica da hierarquia como relacdo agenciadora de harmonia social. 37 familia. Outra face dessa mesma autonomia estd contida nos chama- dos movimentos de liberagao homossexual. Sem duvida esses dois movimentos, expressdes de transformacdo social, trazem questdes de natureza distinta a institui¢do familiar, mas ambos indicam, atra- vés das identidades sexuais que elaboram, a subtracao da sexualida- de a familia e a sua constituiggo enquanto dominio auténomo.*! A questao esbocada no pardgrafo anterior, de natureza assaz complexa, pode ser examinada, pelo menos, em dois 4ngulos que em verdade sdo complementares: o de autonomizacdo da sexualidade, exemplarmente tratado por Foucault na Vontade do saber® e o da nuclearizacdo da familia por Ariés na Histdria social da crianca e da familia.™ No é fortuito que esses dois autores, como Dumont, remontem suas analises ao século XVI como o momento da génese da sociedade ocidental. A partir de tal data, prefiguram-se separagses de esferas sociais, demarcacdes de dom/nios, verdadeiras fronteiras internas, que parti- cularizam o social moderno. E justamente nesse sentido que se pode falar em destotalizacdo. A familia nuclear nasce pela autonomizacao frente a parentela, delineia-se um campo para os eventos do sexo — a sexualidade, enseja-se uma novidade histérica, a oposicdo entre privado e publico como dominios que se excluem. Sob o nome de revolucdo ou liberacdo sexual presencia-se ha duas décadas uma transformacdo que faz colidir estes dois processos — de autonomizacdo da sexualidade e de nuclearizacdo da familia —, explicitando-os como uma tensdo. O movimento de liberagdo de mu- theres é expressdo desse conflito por postular a afirmacao de uma sexualidade que se quer regular a si propria fora das prescrigdes da familia. Trata-se, portanto, de um novo momento do que Foucault 41 OQ sentido da autonomizacao aqui, como nos demais exemplos menciona- dos, 60 processo de dissolucdo das relagées sociais que determinada institui¢do, a um tempo do seu desenvolvimento histérico, impde. No exemplo do movi- mento feminista e dos homossexuais, esté um foco a disjuncdo entre sexuali- dade, reproducdo e familia, esta tradicionalmente o focus da realizacao dessa combinatéria. 42 Nessa obra (Foucault, M. 1977 Histéria da sexualidade. A vontade de saber. Rio, Graal), Michel Foucault mostra como essa autonomizagao, corresponden- te a um processo cumulativo de elaboragao discursiva, é constituida pela psi- candalise-e dela constitutiva. 43 Ariés, P. 1978 Histéria social da crianca e da familia. Rio, Zahar. 38 tinha demonstrado como a oposic¢do entre o dispositivo da alianga, que focaliza o grupo e o dispositivo da sexualidade, onde prevalece 0 individuo. Mas a causa feminista ndo se restringe a reivindicagdo da auto- nomia da sexualidade feminina, pois combina na mesma luta politica a substantivizagao da cidadania das mutheres. Ora, ocorre que essa dupla direcéo encaminha uma jndividualizag¢do da mulher de certo modo similar 4 do sexo masculino, j4 constitufda. Na histéria das relacdes entre os sexos, o homem, enquanto género, por ter sua iden- tidade precipuamente referida ao dominio do trabalho, da politica, do publico enfim, individualiza-se primeiro. A postulagdo da mulher enquanto individuo vem questionar a sua alocacdo exclusiva no do- minio do privado, o fundamento da distingdo de papéis sexuais, que a institui¢do familiar, na sua feigao nuclear, expressa. Pois o que é uma familia nuclear senado um homem, uma mulher e criangas? As mulheres em movimento requerem autonomia, realizagéo enquanto individuos, fracionando a totalidade hierarquizada da familia. O préximo passo nao sera o das criancas? Tal pergunta nos ocorre quando se assiste na Suécia a constituigado de tribunais onde criancas a partir de sete anos podem recorrer contra os pais, apelando para os seus direitos. A sociedade ocidental, que, na imagem de Philippe Ariés, téo bem operou a distingao entre adultos e criancas, coloca-se contemporaneamente, na !dgica de estabelecimento de direitos, a questdo de se as criancas ndo seriam também iguais. Essa eterna cons- trucdo/destruicdo nao seré a propria natureza, na metdfora de Lévi- Strauss, das sociedades ‘‘maquinas-a-vapor’’? Il. Passamos agora a examinar alguns aspectos do movimento feminista que, em sendo detalhados, podem melhor ilustrar a sua matriz indi- vidualista e captar a riqueza que se produz na interacgdo desse prin- cipio com um movimento social. Agrupamos nossas observagdes em dois planos que, na verdade, s6 podem ser distinguidos formalmente: o plano das reivindicacdes e o plano da organizacao. No plano da atuacdo politica, o feminismo tem-se caracteriza- do desde seus primérdios, atribuidos ao sufragismo norte-americano e inglés da segunda metade do século XIX e inicio do século XX, 39 pela extensao as mulheres dos direitos reservados aos homens. Assim, desde a campanha pelo voto feminino (quando as sufragistas habil- mente argumentavam apoiadas no texto da Declaracdo dos Direitos do Homem) até as lutas atuais (saldrios iguais, acesso das mulheres a cargos de decisdo), 0 movimento reivindica um entendimento da cidadania feminina igual 4 masculina: é a famosa luta pelos direitos iguais. A luta politica das mulheres enquanto sexo elege o indicador “direitos” como aquele através do qual se pode mensurar a igualdade entre os sexos, A argumentacdo dos direitos desdobra-se indefinidamente: igualdade no trabalho; igualdade jurfdica — como o demostram as lutas em diversos paises sobre os cédigos que sancionam a posicdo da mulher, subordinada 4 do homem, no interior da familia (por exemplo, o direito de decisdo sobre o patrimdénio familiar); e mesmo igualdade moral. Nao seria esse o caso dos recentes acontecimentos — agosto de 1980 — em Minas? Em decorréncia dos assassinatos de mulheres por seus maridos alegando legitima defesa da honra, orga- niza-se uma frente de mulheres para atuar junto a imprensa e aos tribunais. O que desejam essas mulheres? Apenas a criminalizacdo dos maridos assassinos? Nao estdo elas entendendo tanto que a honra masculina nado deve mais se definir pela mediacdo da mulher quanto que as mulheres tém o direito a um status jur/dico de igual, afirman- do uma honra individual? Interessante notar entretanto que, ao apoiar-se nessa ldgica reivindicativa e igualitaria, o feminismo ao mesmo tempo denuncia a precariedade do igualitarismo. Ou seja, afirmando a mulher como indiv(duo, e portanto o individuo como valor, o feminismo torna-se capaz de revelar a presenca e operdncia de uma série de relacdes hie- rarquizadas na sociedade moderna, e ganha nesse movimento uma forca e poder de transformacao efetivos. Ha entre as lutas polfticas feministas aquelas que postulam, recortam como interesse exclusivo ds mulheres, concernentes a sua individualidade, aquilo que se passa em seus corpos, donde a série de reivindicagdes ligadas 4 contracepcao e a legalizacdo do aborto. Através destas, tibera-se a mulher do “‘fatalismo bioldgico”, da subor- dinagdo incondicional 4 espécie — uma das origens, como vimos, apontadas para dar conta da sua opressdo. Nao é acidental que Fires- tone, uma feminista radical, acabe por propor como solucdo os bebés de proveta. 40 O slogan “livre apropriagio do corpo” e suas variantes™ indi- cam que se deseja que a decisao sobre a concepcdo seja do livre arbi- trio das mulheres. Neles firma-se a dimensdo individual como o polo valorado frente as ingeréncias da ordem social. Observa-se aqui o Principio de autonomizacgdo tantas vezes falado. Focaliza-se agora © corpo feminino, pois é sobre ele que esté dada a relacdo social que conjuga sexualidade e reproducdo, que a contracepcdo e o aborto propdem-se a separar. A légica que postula que as mulheres sdo iguais entre si, na biologia e na histéria de opressdo, quando transtadada para o plano da organizacdo politica, exprime-se através da tentativa de radicali- zar a prdtica democrdtica. Nesse plano explicitam-se enfaticamente operadores individualistas tais como o da descentralizacdo do movi- mento, @ mesmo esta categoria. Desse Angulo sdo extremamente elucidativas as discussGes sobre representacdo no movimento, o ques- tionamento da delegacdo da fala, critica radical 4 constituicdo de liderancas e hierarquias. Toma-se, portanto, a mecdnica demoeré- tica — todas as mulheres falam — como paradigma realizdvel. Sem davida o feminismo foi historicamente o herdeiro de uma série de questdes presentes nos acontecimentos de 1968, cujo legado mais significativo talvez seja o debate no interior do movimento sobre sua disting¢ao de uma estrutura partiddria. A originalidade do feminismo enquanto movimento social construido por valores individualistas pode ser percebida também no fato de ele eleger como significativo, politicamente relevante, o dominio das relagdes que sdo socialmente consideradas como pes- soais. O privilegiamento do individual expressa-se na estrutura celu- lar do movimento: os Consciousness-Raising Group, ou Grupos de Reflexdo, nome adotado no Brasil, onde se procede a uma socializa- ¢do entre mulheres das vivéncias pessoais.45 Ora, mas é justamente 44 Por exemplo, ‘““Aborto-Corpo Livre” encontrava-se entre a série de s/ogans pintados nos muros da zona sul da cidade do Rio de Janeiro no més de outu- bro de 1980. Esses s/ogans, que inclufam “Abaixo a violéncia contra as mulhe- res”, ficaram conhecidos como "as pichagdes feministas’’ — t’tulo da matéria do Jornal do Brasil em 25 de setembro de 1980, p. 1, 19 caderno e contracapa do caderno B. 45 Seguidamente as andlises sobre esse modo feminista de experimentacdo da vivéncia pessoal em grupo comparam-no aos grupos de natureza terapéutica, em razdo da importancia atriburda 4 subjetividade e ao psicolégico. Uma dife- 41 af, e 0 nome em inglés é bastante esclarecedor, que se forja a ‘‘cons- ciéncia feminista’’, em verdade um prisma de leitura da realidade pessoal como produto do social. Aquilo que parecia ser pessoal, individual, que para as mulhe- res se agudizava em razdo da dicotomia privado/publico, na expe- riéocia do grupo de reflexao ganha inteligibilidade como uma cons- trugdo social, no caso, a de género. Duas figuras de discurso dao conta dessa percep¢do — a idéia de “Eu coletivo’’ e de “O pessoal é politico”. O feminismo, exemplo de prdtica e ideologia de um uni- verno individualista, ao pér em foco, valorizar a experiéncia indivi- dual, relativiza-a, descobrindo-a no interior do social. Produzindo essa visdo totalizadora esté dada a sua condicdo e a sua forca de fazer politica. Nossa preocupacdo neste artigo foi acompanhar, tanto ao ni- vel da produgdo tedrica quanto da pratica politica das mulheres feministas, os tracos ideolégicos que caracterizam a modernidade desse movimento. Pretendemos com tal procedimento, de um lado, avaliar a interacdo do discurso feminista com as disciptinas acadé- micas, especialmente a antropologia, e, de outro, em estabelecendo as relagdes do feminismo com determinado sistema de valores, cir- cunscrever historicamente as questGes que coloca bem como os limi- tes que daf podem surgir. Acreditamos ter alcancado o objetivo que nos propusemos, qual seja o da desnaturalizacao e concomitante relativizagdo da categoria muther. A questao feminista parte da afirmacdo de ser a identidade feminina socialmente produzida. A partir dessa premissa estrutura-se uma pratica politica transformadora das formas como esta identidade se contrdi, percebidas como opressivas 4 muther. Nesse movimento, é requisito indispensdvel a instauracdo do discurso feminista a produ- go de uma categoria de mulher que lhe permita tanto identificar criticamente as formas atuais e anteriores,de ser mulher, quanto pro- por um novo existir, indicar diregdes de transformacao. E a categoria de individuo que, embutida na de muther, habilita essa dupla opera- ¢ao. Como pudemos perceber, a matriz individualista, ndo-relativiza- da, conduz 4 sua universalizacdo, produzindo-se uma humanidade renca marcante reside na auséncia nesses grupos de reflexdo da figura de auto- ridade do terapeuta. 42 feminina indiferenciada. A nivel da produco teérica, esse procedi- mento implica o transladamento, para culturas e sociedades outras, de um sistema de valores alheio a estas. Coloca-se como problema um certo comprometimento etnocéntrico do discurso, apandgio que ndo € exclusivo do feminismo. Se, como vimos, trata-se de uma Produc¢ao que se funda, ela também, na afirmacdo da singularidade do fato de ser mulher, parece-nos fundamental instaurar-se no seu interior o reconhecimento de, e a reflexdo sobre, a diversidade/singu- laridade das producées culturais da identidade feminina. Dentro desse mesmo raciocinio, desenvolve-se a segunda parte deste artigo, que tentou apontar direcdes de leitura sobre determina- dos aspectos do feminismo. O intuito foi antes o de sugerir questdes, do que propriamente definir respostas. Uma destas diz respeito a certo recorte de classe do feminismo em decorréricia de seu cunho individualista. Nao seriam as mulheres de determinadas insergdes sociais onde predomina a representagdo de individuo as mais sensi- veis ao idedrio e a pratica feminista? Ndo sera em razdo disso que o cerne de producdo e reproducdo do movimento sejam determinados segmentos da chamada classe média? A questdo é delicada mas nem por isso se deve evitd-la. Sugeri- mos que o feminismo, enquanto ideologia e acdo politica, é especifi- co mesmo em sua relacao com a estrutura de classes. Afirma-lo nado Ihe diminui méritos de movimento revoluciondrio, ou, como temos preferido nos expressar, eficacia polftica. A natureza da intervencado que ele propGe e realiza sobre os valores de determinada sociedade opera no sentido de garantir espacos sociais para a atua¢ao das mu- Iheres, sejam elas feministas ou ndo. Reside exatamente al o efeito de mudanga, pois que, ampliando-se a arena de participacao real, os interesses femininos ganham espacos de representacg’o. E sob sua inspiragéo que as mulheres se firmam como sujeito social. Con- tudo, a mulher, como sujeito social que se afirma, nado é uma reali- dade homogénea e monolitica, mas vive, existe na concretude das diferencas sociais e culturais que a constituem. 43 Ariés, Philippe Bachofen, J.J. Beard, Mary R. Beauvoir, Simone de Belotti, Elena Berger, L.P.e Luckmann, Th. Cadernos da Associacéo de Mutheres, 3 CERM Chester, Phyllis Dumont, Louis Engels, F. Firestone, Shulamith BIBLIOGRAFIA 1978. Histéria social da crianga e da familia. Rio, Zahar. 1861. Das Mutterrecht. Estocarda. 1973. Woman as force in history. Londres, Mac- millan Publishers. 1949. Le deuxiéme sexe. Paris, Gallimard. (Ed. brasileira: O segundo sexo. 44 ed., Sd Paulo, Difu- so Européia do Livro, 1970.} 1976. O descondicionamento da mulher. Petropo- lis, Vozes. 1976. A construgdo social da realidade. Petropolis, Vozes. 1979. “‘O movimento de mulheres no Brasil’’. So Paulo. 1975. Les femmes aujourd‘hui, demain. Paris, Ed. 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