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com/lacanempdf

Marie-Jean Sauret
rRepaRação Da 1•uallcaçào
Dominique Fingermann
Hcloisa Prado Rodrigues da Silva Telles

tRaoução oas coNÍeRêNc1as


Sclmia Sobreira

taaouçào oas Discussões


Claiy Khalifoh
com revisão de Dominique Fingermann

01s:;1tação oas coNÍeaêNcias


Alessandra Fernandes Carreira
Caroline F. Eltink
Cri.stiana Chacan Gallo
Paola Salinas

tRaNscR1çào oas 01scussões


Aurélio Gelpi
Maria do Socorro T. Azevedo
Marisa Baldi
Sandra Aparecida Campos Galvão

pRoJeto s:;RiiÍlco e eoitoRaçào


Danilo Henrique Carvalho
Produtores Associados Comunicação Visual
(011) 814.5444

1998

Escola Bra.tileira de Psicanálise-São Paulo


Rua Cardoso de Almeida, 60 - cj. 111
05013-000 - São Paulo - SP
Fone/fax: (OI I) 864-6290
Sumário
Apresentação

I
O Infantil e a Estrutura

Intra@~

}PJ.. Criança, o Infantil, o Sujeito

A análise de criança um século depois da


2 9'venção da psicanálise
Dize-me como tratas a criança,
5e9u
te direi quem és

II
Comentário ~bre o texto de Jacques Lacan
Õ '5'uas notas sobre a criança"
Apresentação
"O Infantil e a Estrutura" é um Seminário ele três conferências realizado por
Mnrie-Jean Sauret, em agosto de 1997, a convite ela Escola Brasileira de Psicnnálise-
São Paulo.
A idéia da organização deste evento surgiu a partir ele um cncnnlro prévio
com o trabalho de M- .J. Saurct, seu livro /Jr f'111/,1111ilr ,l /11 Strud11rr. Publicado em
1992, constituiu, para muitos, um preliminnr imprescindível para todo tratamento
possível da criança pela psicanálise.
A atualidade do livro não está cm questão, pois, com uma precisão inédita, o
autor tira todas as conseqüências passiveis do ensino ele Freud e Lacan, orientando,
assim, os analistas a não recuarem frente à crianç,'l. No entanto, entre o1quela obra e
o Seminário que agora publicamos, houve na trajetória de M11ric-Jc;u1 Saurct um
passo a mais: o seu passe e o período de dois anos cm ttue testemunhou, como Analista
da Escola, o particular da sua passagem a analista. Um puno a mais que mencion.~mos
aqui para indicar o âmago do ensinamento deste Seminário: no C'asn p:111ieular rl.1
psicanálise com crianças, como o analista pode levar em L'onta as condusí1es d.i clínica
do passe.
Dito de outra fonna, de que maneira aquele 'iue experimentou em sua própria
análise o necessário 'rieixar cair a criança' vai s11.ber trnlar o sujeito-crianc;.i e seu
sintoma? Ou aind11, como diz Marie-,lean Sauret em "li fo.ut s.ivoir laisser tombcr
l'enl'ant": "Não se trata apenas de decretar ,1uc a criança não é um conceito da
psicanálise, porque não há psicanálise a não ser do sujeito; é necessário tratar da criança
para fazê-la inexistir, 'passar ao ser': o que então deixa u seu lugar para o sujeito. A
psicanálise é uma boa maneira de deixar cair a criança! 'Onde era a criança deve cu
advir', pedindo licença para assim torcer o aforis:no freudiano".
Além do Seminário "O Infantil e a Estrutura", publicamos o comentário do
texto de Jacques Lacan "Duas notas sobre a criança", realizado por Marie-Jean Sauret
em uma noite de trabalho organizada pela Seção São Paulo da Escola Brasileira de
Psicanálise e pelo Instituto de Pesquisas em Psicanálise de São Paulo.

J),1111i11ü11u Ftii.tJ,·rm,11111
M.1·ço ,le 1998
O In\jlptil
AEst~ura
Marie-Jean Sauret

Seminário de Psicanálise com Crianças


São Paulo, 30 e 31 de agosto de 1997
O livro 1 que serve de pretexto para esse convite já é antigo. Ele
foi publicado nos anos 90, depois de ter sido defendido como tese de
doutorado de Estado em 1987, o que significa que o período de elabo-
ração e de redação é ainda anterior: sem dúvida começa por volta de
l 980. Então seria ainda atual? Certamente o é, por causa do interesse
de vocês que me obriga a considerar que podemos ser contados pelo
que escrevemos, e não é sem apreensão, desse ponto de vista, que me
;1presento diante de vocês. Minha apreensão incide sobre o fato de
sal,er se esse trabalho datado não corre o risco de tornar opaca a rela-
ção de cada um com o discurso analítico, em vez de facilitá-lo.
Para dizer a verdade, esse temor desapareceu ao constatar que os
conceitos da psicanálise se deixam dificilmente falsificar para aquele
(JUe procura reencontrar a lógica do discurso que os artic.ula. Foi assim
,1ue, na França pelo menos, Freud foi introduzido e traduzido por pes-
110:is <JUe não compreendiam grande coisa do que ele dizia: o que não
i,;omente não impediu a transmissão da psicanálise, mas sem dúvida
constituiu uma das condições necessárias do retorno a Freud que Lacan

1 Sl\llRP.T M.-,J, O,· l'!,1fn11lil,• ,I la S1r11,,l11l'r. Lea Séries de l,1 Découver1e fn,udienne,
1111•••~• l l11ivi,ni1,u·i ..• ,Ju Mirai!. Toulouse, 1992.

t' /11/,11111( ,. ,, t,;11m111m F.IIP-SP


realizou. "F,.fú· culpa" dos pioneiros franceses da psicanálise, se pode-
mos lhes atribuir a oportuniJaJe, para a psicanálise, da intervenção
de Lacan!
Essa observação não inocenta de sua falta eventual aguele que
fala ou escreve, mas nem por isso dispensa de sua responsabilidade aquele
gue lê ou escuta. Vocês estão prevenidos. Mas, no fundo, vocês se adi-
antaram a mim, já gue me interrogar sobre o gue escrevi já é assumir
sua responsabilidade de leitor. Essa observação poderá parecer preten-
siosa para alguns gue são leitores habituais dos seminários de Jacques-
Alain Miller, de Colette Soler e de alguns outros. E agui faço questão de
render homenagem ao trabalho daqueles guc me permitiram orientar-
me não apenas no ensino de Lacan, mas na própria psicanálise, se é que
para nós um e outro possam ser dissociados. Gostaria somente de in-
cluir aqui uma observação que tirei de minha própria experiêm:i.1: a
apropriação, por cada um, do discurso analítico mobiliza sua relação
com o discurso analítico e, assim, faz parte do discurso analítico. Nesse
sentido, não há relação principiante. O gue pode dizer o principiante
nos interessa, ele nos ensina sobre as vias de inscrição em um discurso .
.~ ~ ~ - , . r ~ , ~ ~ 1 ~ ; , , ~ g e
~·~ o.....,..e,,:áYdi disso, C t n l i - A : p ~ ~ - - ~
t)Ol'eiu. Por isso, do meu lado, consenti em interrogar-me sobre esse
trabalho cuja redação não somente acompanhou uma parte de minha
análise, mas constituiu um tempo de apropriação para mim do discur-
so analítico.
Uma palavra sobre o título geral "Do Infantil à Estrutura". Prefi-
ro o título escolhido aqui por Oominigue Fingermann: "O Infantil e a
Estrutura". Pois este último evita crer que se trata de uma releitura de
Freud por Lacan que levaria a esquecer o infantil em proveito da estru-
turn. Talvez poderíamos entender como uma questão incidindo sobre o
lugar do infantil na estrutura. O primeiro título incluía contudo uma

{) l11/t111til ,· 11 F.,tr11/111·,1 9 ERl'-8/'


dimensão temporal a preservar. A l'"'1te.rim·1·, eu me pergunto se, sobre
o modelo de um título de Jacques-Alain Miller, não conviria precisar
"Do Infantil à Estrutura ... e Retorno!". Então teríamos dessa vez uma
certa matriz do que se constrói em uma análise, inclusive até o passe.
Sob esse título geral. tentaria retomar três questões: é um pouco
a oportunidade para ver o que se tornaram para mim. Mas não tenho
muita certeza se perceberia bem os deslocamentos de discurso desde
a tese, pois devo confessar-lhes que não me reli. Achei preferível dedi-
car o tempo disponível ao texto de Lacan ! A primeira questão, a que
vamos tratar para começar, incide sobre a distinção entre "criança,
infantil e sujeito": essa distinção opera uma triagem entre o que é ou
não do âmbito do discurso analítico; a segunda questão incidirá sobre
a direção do tratamento com uma criança; focalizarei a última unica-
mente sobre o problema da interpretação. Esse percurso deixa bura-
cos enormes, desses que fazem crer que com um pouco mais de tempo
chegaríamos a dar conta da teoria: desejo apenas que a discussão nos
permita cercar melhor os pontos sobre os quais o Outro da teoria não
responde e referi-los ao real em jogo na experiência, esse real, o único
tJUe convence da falta fundamental do Outro que Jacques Lacan nos
ensinou a escrever JC.

/I 111/;11,11/ ,. 11 /~,11·11/11m /li EIIP-SP


A Criança, o Infantil, o Sujeito

30 de agosto de 1997
/.A CrÍnnfa
A ri nça.. não exi hu sempre. em dúvida o organismo huma-
no sempre se desenvolveu, desde a concepção até a idade adulta e,
portanto, sempre atravessou um período de imaturidade. Mas o fato
de considerar essa fração da vida como parte integrante da vida é um
fato relativamente recente: tudo se passou, na Europa pelo menos,
como se o homem nascesse muito tarde depois do parto propriamente
dito, à maneira do filhote de canguru que emigra fora do útero para a
Golsa marsupial. uanto, nomear a in ância propri. ment di • e m
uma etapa da vida individu:il. i so é um e cito J ci nciil moderna e Ja
1 • lução n •e . Nesse ponto, ignoro como a questão da criança se
e locou e se desenrolou deste lado do Atlântico: que particularidades
escandem essa história, e estou curioso, gostaria de saber.
A ciência moderna é a que nasce com Kepler, Galileu, isto é,
aquela para a qual um real existe suscetível de denunciar os saberes
existentes: como a descoberta de que a órbita dos astros não é tão
redonda como o afirmava a cosmologia de Ptolomeu. A ciên ia mo-
dn1 .1 u111da aqucl l'undada na razão por Descart s, que mobiliza a
l'llUKa f' rmal, ,1rn c.l~duzir do sab r um ponto Je c<!rteza iu idindo so-
1,rc o ser como fato de dito - desembaraçado, pelo menos
tcmdt-rn:inlmente, de toda marca do sujeito. A o jeLividade cient(Fi ea

,I ln!;,""'" ,, R,1r11l11n1 12 F.IJP-SP


universalização c:lo sab r me e r o. Uma forma sumária de locali-
zar esse passo reside na constatação segundo qual a ci OL iL1 , z ,. J 1

os obj tns dos q · · · 'upa: lim da astrologia em benefício da astro-


nomia, dos oráculos em proveito da etologia, etc.
Nesse contexto, as p1imeiras repre enta õe
da iconografia mítica ou religiosa, são r tratos
'X'VUI+ como dizer melhor t(U "a J .ilavra é o a s, ssinato da cois,l"?
criau · faz u entrncb 11 dis u1• · como morta. Ela é imediatamente
oferecida à objetivação científica que vê em seu estudo um meio de
validar as teorias pré-evolucionistas em vigor sobre as relações da
filogênese e da ontogênese.
A Revolução l• ran a, abandonand a antiga divisão social en-
tre o clero, a nobreza e o terceiro estado, ~dt,.,olMl61b.-dlnéiáâ ·
deiiniçã d n v cidadão: a discriminação do idadã
rc ·ponsâvc.l, N~ ncontrar uma base sólida n· po ·í •ão t!nl
partir di· o, 'L a pé· em- . , Lado
ta· da iência e da educação.
Sem dúvida, um estudo exaustivo deveria mostrar como a ciên-
cia moderna permitiu uma clínica médica científica e como ~
le~ a línit·a em explicar p la biolog1a t·odas as doenças observáv i
1 vou a isolar um campo e p úfi o nJc a
e erida , o organismo, mas a esse sujeito cuja rejeição relativa
condiciona a emergência da ciência. No fundo, se existe uma patolo-
gia não localizável no organismo, e se o sujeito é, por outro lado, rejei-
tado pela ciência, por que não se trataria então de uma. patologia des-
se sujeito? Assim nasce o projeto de uma ciência do sujeito, de uma
p.1imln_q1,z no seio da qual convém ressituar a psicologia da criança.
p icologia da ·iança. aparece no Lm os '('ulo
tentati a d dar pross ·gu.i.men o empre a d IV ão 411 ti-
tui ·O·ptocéfto 'ffli ci8tm!:~ 11lJ.11dbr.UWf TJ~& &,· dt!~6h,nn*i!i, · 0

{) /11f:111til r II F.1/ru/111~1 /i F./Jl'-SI'


cm que ri,._n ç,l n-=- o ré-verh · 1, o p ic ' lo-
go elimina a p,\I v a e eri e e a ri t1ça com obj1 ciência; 1
identifica então a palavra a um comportamento, presente ou ausen-
te, e a linguagem a uma variável social. ambiental. Essa posição não
está ultrapassada, uma vez que leva a estudar o autismo, por exem-
plo, estritamente do ponto de vista dos acidentes biológicos suscetí-
veis de prejudicar o acesso da criança à "comunicação".
Sem dúvida, os psicólogos de hoje vêem o limite de uma aborda-
gem biologizante. Daí a tentativa cognitivista que identifica o indivíduo
a uma máquina de tratamento da informação. O que permite distinguir
as condições biológicas de crescimento e de funcionamento da máquina
- 11 luurh1'tlre - e os programas de tratamento da informação - o ,1iiftu>,m• -.
Ao tudo orgânico do primeiro período da psicologia da criança sucedeu
um período do tudo simbólico acobertado de "tudo informação" ou "tudo
comunicação". Para dizer a verdade, esses dois períodos não se opõem
no sentido em que, em última instância, o neurônio informático está
identificado ao neurônio úmido e nos quais o trabalho illnto, : - crian ..
a r: r du2id as lc ri· da ai rendiz g m e J,J conrti ,ionam nto. Por
último, o cognitivismo é a teoria que convém ao biologismo (isto é, ao
preconceito biológico) em psicologia: a referência à máquina no fim
tem a ver com um determinismo biológico.
Em um sentido, as psicologias existentes pensam reter com a
criança a estrutura mínima do humano. Vai se tratar de servir-se dela
de alguma forma como de um ''elemento experimental", permitindo
validar as teorias do sujeito compatíveis com as exigências do capita-
lismo: medir a inteligência em Q.l. é encarar o sujeito como capaz de
acumular um saber ele mesmo capitalizável; reduzir um indivíduo às
suas per/t>r1111111ce.1 cognitivas é identificá-lo quase a uma máquina
programável; e os psicólogos até inventaram um nome para as doenças
de acumulação, as ,úMictio11,1. Se essa hipótese for legítima, não é sem

O !,i/,11111'/ e 11 1':1tm/11m EBP,Sl'


responsabilidade que difundimos nossas próprias teorias: Lat·,111
incrimina diretamente os psicanalistas em várias ocasiões, acusando-
os de não terem sabido se opor à tolice reinante, ou de não terem
estado à altura da invenção freudiana - "o ser para o sexo". Cr1i111rt1 é o
nome do desenvolvimento suposto natural <JUe parte do nascimento
(ou da concepção, ou ... ), de um tempo sem palavra observável (mas
signos de comunicações): a relação com a linguagem é regulada pela
maturação. É como dizer que essa concepção intuitiva vem no lugar
da causalidade inventada por Freud: por isso ela encerra o máximo
das resistências à psicanálise.

2. O S11jeito
Um psi ·ólo 1 0 , • A. pitz, o 11 o como hos_pitalismo,
I:acan idade se · crescente J <le-

pr ulro;· stand
1,, rganism cai no drculo do 1111b0Ll •o, org ni ·mo nao
:mn ólk '' arti ip· "d 1 p r ianle nã t nlw outra p lavr
no s nti<lo psic· n lític .
No campo da linguagem, o sujeito é apenas representado, en-
quanto que aquilo que do sujeito escapa à representação significante,
por ser representação, é indexado de reaL Exi t , portanto, un · rup
n.1ra entre organi m e o su· •ito. É para pensar suas conseqüências
que Pr ud inv nla, de um lado, o ·om ima ri11ário, como t •c1J
der pre'cntd õ s graç. ao qual o sujeit v lta a en ontTar a u11 ão 1

i. u 'r ,.ãos; e, por outro I do, a pulsá par ·pli ai' a li a1yüo no\J..1
~o~tfflffllO, e ~ . . e-0 ~·1' 11eoeeeic:!a-de·Sê·t'Mlmttrdf.rliM
~ 1 s s o significa que se o indivíduo biológico é determinado, por
exemplo, por sua anatomia, a anatomia não dita ao sujeito o que ele
deve fazer como homem ou como mulher: a pulsao é o nome desse

E/IP-SI'
silênc.io da .matornia em resp ta à. qu stõ s do sujeito que o I v, • t\ll -

Li nar igt · 1 ant . Na circunstância, ' o e1 p desse qu .tion m nl •


da r spo ,ta adot-ida que Freud chama complexo d ª ip .
A partir daí, lT ta-se de urna resposta do r I a s1gnific t - quer
ela seja feita de aceita ão ou âe recusn o sujeito surge como con "~ n-
ci~ levando a marca dessa recusa ou dessa aceitação: não há ·ujeito fora
d liuguagem, mesmo que todo o "real do sujeito" não passe ao signifiéante.
Aí se introduz a dialética do sujeito e do Outro: simbolização primordial.
desdobramento da cadeia significante, metáfora paterna, etc.
Ao utr d si rni a:aut r ai responde p la rodu -o d 11m
. ujeito. •' e ~ m1la •r d insondáveJ decisão do ser. O real da ciên-
cia - o que o organismo da criança é para a ciência - é "recoberto" pelo
real do sujeito, se "transmuta" em real do sujeito.
Sublinhemos aqui um único aspecto estrutural. esquecendo um
1
instante que falamos do sujeito correlacionado com a infância, O que
o sujeito ncontra com o significante é a po ibilidade de perguntar-,·
o t]UC ele e: o únic de t dos os objeto da ciência que continua a falar
depois da passagem da ciência. Ele deve tirar as ons qüên i tanto
cl.i pergunta q anlo da r p st.a.
Ora, qual é a rc po ta? forço o constai r qut> a ess. rergwita 1' 0

qu ~u .ou?" n-o há resp ta a não ser linguageira: meus br nome,


m onsdho d
~ ·u a qu . ad -
'" is, com exce ão dos d i prlmeir s que nao m, nã rn r pr -
' ·nl, ma não er rqu tamos num context d p i an ise. e um
1. 1 , eles não me representariam mais para um outro significante - por
çxemplo para o responsável do hotel '}Ue me pediria para dizer minha
idl•ntidade. Por outro lado, vocês podem anotar esses significantes, gravá-
lo:,; e ir embora com eles depois da conferência: eu não fico amputado de
uma parte do meu ser. que só tenho aces o ao m u s r como " ato de

/l (11!;11,1tl r II f;,tm/111>1 /6 EHP-SP


L eütci:Or.Lacan precisa no St'111Íl11Íl'IÍ1 XX 4ue a única certeza do sujeito,
certeza l!arles iana, ~ ~- sl i Tnific nle Ja cxislência. a l. pula do v rl11,
s·r."clc "-com,Lcondiç od " "·u • t( IJ
e mpl ;ir·.se ·1~d -clar-lheu pou odccam.
p .ln ro11bo de signifi<'antes com os 1uais eu me dcsi •no, <tu' 'á ~lou
,impulaJo de meu "s r d gow". Fre I l identificou e· "
e não da psicanálise) 6 n me d "de ·ej ", e11-
quanto ~ue Lac:111 chamou "g zo" essa substância I gal iva qu o su;e1-
to c1\contr,t LOmo lhe azend Fu J, m nl· lm nte faJt;
Não deduzam daí que o gozo não existe: ele tem a mesma ccm-
sistência que e sald d uma conta h ndria (uma conta
nerrativ
negativa não é uma conta nula), exceto que não há chance alguma
de poder reduzir a conta de gozo a zero e, 11f11rl1iwi, a mais. sem que
o sujeito ela palavra, constituído por essa divisão do gozo, não des-
van ça. A ,1ng1isti.1 t~ 111',,10 d,-.s· momenro, q,wn 1
scju, · folt:i<L·SCI' a111caç;1 apagar-se e, com elü, o Llcseio i: o suje1lo.
Mas é verdade que o sujeito cons guc esse outro milagre ele surripiar
alguns mais-gozar, pedacinhos de gozo substitutivo dessa conta ne-
gativa de gozo. suj ito, portanf , o qu um signi icante r pre-
li idido do goz
1

uia ':dta causa o desejo .. e permite que desse gozo agarre alguns
fragment·os. 111ei l·o não d senvolve E.I' não tem ida . Já não
seria legível que aquilo que a criança é como objeto para o Outro da
ciência (para o Outro simplesmente) é "recoberto" pelo real do su-
jeito. localizável nesse pequeno,,, que indexa o que do sujeito rateou
pela representação significante'!

J. O /11/antil
Introduzamos o terceiro termo dessa conferência que, sem dúvi-
da, vem complicar um pouco a apresentação. Podemos introduzi-la com

tJ /11/;111111 ,. ,, F.1/mltm1 li F,/IP.SP


" reforência precedente: é preciso que à necessidade venha juntar-se a
Jemanda para que surja o sujeito. Imediatamente podemos tentar enun-
ciar as experiências quase biográficas que o sujeito faz do Outro da
linguagem por intermédio daqueles que são para ele seus mediadores.
Assim é, ali.ís, o que a psicanálise colo a lado mãe: ;_te1u le ou aquela a s
uidados Je quem a crian\a deve u !mbreviv I ci . E, com o leite, a
criança bebe desde o começo o significante: itu·111p,m1ç,1,, .,ignific,wlt'
que o inscreve no campo da linguagem .

t1) O Gt1z/l J,, Outm


;.1 cl'i,m •a d v sua sobreviv"n ia e sua rela •â
em ao outro qu se ocup.1 dela, nlii"o é reus •ontar om n
sup todonutr 1u J, ,•oqoaogozodo 11tro: comefeito,porqueo
outro cuidaria da criança se esta nada fosse para ele? É ainda uma tese
conhecida: a cri, nça é Jc i11fcio I' cdJiJa e mo 1, ·lo do l:1ntasrna ria
mãe (no sentido em que já falamos disso), i to é, como promessa par..1
l.t d re uperar um pouco desse gozo qu<' ela perde ao falru .
r ·se assim, a cri.111ça mw l •ria n nhuma chance d s hr viv r, uma vez
que o in ·tinto mat ri le ertou do humano com a transmutação da
n ccssidade em pulsão e a substituição que as determinações naturais
encontraram na determinação significante. Devemos a Rosine e Robert
Lefort terem desde cedo enfatizado esse aspecto.
Para dizer a verdade, as coisas são um pouco mais complicadas:
de um lado, os pais psicóticos não têm forçosamente filhos psicóticos,
e, em todo caso, mesmo psicótica.s, a.s crianças sobrevivem, o que sig-
nifica que é a relação ao Outro, que está estruturada como um fantas-
ma. que será animada pelo fantasma eventual dos pais.Pwoutro~
dc•vvrí.1m nos oi car uma que tão prévia: s nada de nalur ..il le
r ~n, direção a um homem, ma sim eseJ
ozo, e mesmo um início de resposta. ciuestão do sei, ,

ti ,,,,;,,,,,1,.., 1-:,t/'llflllll /,\' F.IIP-SP


\1

t I e te chamamo
ºE õe pr
r rost a .
nan ã
mllll r : mulh
, nt mo UJ ito qu
o az notar reud, de 1gna d de o início ('Omo f'Jica. O que
coloca a questão de um gozo que não se alcançaria pelo falo, que não
seria o próprio do sujeito do significante, do sujeito que fala.~p
lllll lado, urn,1 mulher ai , por outro lado, cabe-lhe cn<.:arnar ess ozo
tJUe não, e alc.1m,.ari. pela via d si 1·ni I anle, ou seja, especialmente a
do falo. Por essa razão, ele, o gozo, não pode dizer-se, o que leva Lacan
a afirmar que a mulher não existe, «t~~~~
c~·~~C~0 0
__~Osujeito da fala, e O tJUC ela(:
m lll(l 1 oz pCCÍ-

dc filho e o filho m

ncontr dir tam


falta a

h) A /nJ11iiJfafãt1 Fundammtal
Ressaltemos aqui em que sentido a crian · está às voltas ·om ,1

gozo do uln,, e isso clrJ,de.a,111pid1N•••&illlllid~lfliliii~lilll~


~ - ~·•&ama· qe;e;.. _. . . .,.idM,,..aQillWiil
tal, por rtlta do .irrnifi ant . É utro que lrans orm/1 1 rit cl.1
ne •e 1dad em ap lo e qu · o artiLula a uma demanda que el aluga ao
sujeito que ele supõe: ''Gritas? Tens fome'! - uercs o seio ou a 1nam.i•
deira?". Isso funciona quase sempre, uma vez que o Outro formul.&
tanto a ~rgunta como a resposta que lhe convêm. "Qua11e teC!mprc",

tJ J,,f,1.11/ll t II t:,1mt11m /9 ~:m•.s1•


porque existem sujeitos que não consentirão na demanda do Outro -
prinumJin.l nc11Jt1., não raro mascarada sob alguma identificação imagi-
nária ... Aqui, o essencial é que, ao mesmo tempo cm que a pacific:açãô
v md utro 1 o sujei to sab qu aquilo que ele cxperim ntava er
uma falta: assim ~ o prim iro encontro com o goz ob orma de
um falta undam ntal que faz o sujeito essencialmente histérico.
O que garante que o Outro persistirá em se ocupar com a crian-
ça? Nada. É este enigma que introduz uma mudança no sentido da
demanda: " que utro quer de mim?". E úni •a ,oisa d tacável
elo corpo do sujeito é o excremento, que abre para a metáfora anal que
o sujeito traduzirá como d m e retençã . e não há desenvolvimento
do sujeito, há um "desenvolvim nto" das a es la.,iJinai segundo a
metá ora que regul as rela õ s do sujei o m utro. E ess desen -
volvimento é marcado pelo confronto com o gozo do Outro, seja como
falta, seja como excesso de cuidados, como sofrimento ou dor: o sofri-
mento, a insatisfação, a dor são efetivamente interpretados como pro-
va de que aquilo que se inscreve como menos aqui, se inscreve como
positivo na conta do Outro.

r) O lmp,1,1.1e
xplora ã mf: ntil da r 1· com utr des mbo a oum
impasse que reud identifi ou om 11ew te tÍ!J;mlÍÍ. sujeit não leli1 ,
•ar· ntia de que o utr a ·segurará t rnarnent ua br ·vivên ia. O ·
d jo ma rn aparece com c pri ho . ua demanda tom a forma J
111w vontad de g zo. Se o sujeito convier ao Outro, correrá o risco de
ser devorado segundo as modalidades de gozo oral que ele conhece, ou
levado à ablatividade segundo as do gozo anal. E se não convier, correrá
n risco de ser "vomitado" segundo as Jhodalidades da metáfora oral ou
"deixado largado" segundo as da metáfora anal. O estilo da interpretação
drpende Jo <JUe Freud havia situado sob o termo de "fixa =- 1'

1>1,,1,,,,1,J ~ ,, /C,1111(111,i l/1 EJIP.SP


Qualquer que seja esse estilo, haver impas: •. E esse impasse
não implica nenhuma saída natural em algum desenvolvimento ljlll'
seja: é o imp,
tur. rior à rela
d
L orJo com a lei. "Você não sabe por onu · une.la sua mãe, mas você o
compreenderá mais tarde. H;i lllU.L razã.u''. Para dizer a verdade, a
mensagem se limita a esse "há uma razão". e é uma mensagem que só
o sujeito que consentiu na solução significante - no princípio dara­
zão - pode receber. 1m e eito, de um laJo, uão
di 1 - <l , · razão: el r j 1tou os u princípio
tro larlo, . uj ito <JUC

. Entretanto, essa experi-


ência de em,· rna aquilo qu
ria 1.: m1 1 tá-la. uma vez que é o efeito que resulta da proclamação
da razão, a mãe é ''castrada": ela falta, por estrutura, quando o Nome­
do-Pai funciona.

h ã , etc. <' ao mesmo lempo a n'latriz d


<l sujeit com 11tro, matriz colorida por esses rastros. É enfim a
solução "ao pai" que o sujeito traz à crise infantil, incluindo as ditas
fixações como índices do gozo, oluç.ão que "1 ass .i

rantasma fundament l''.


suposto

() l411111t1 � li t,;,t/Vf//(nl 21 R/IP-SJ>


·111 iv u excesso d o rimento, e.lo qu;il ele extrai rgum 1

ri) A SaícJa
Daí se deduz a função do fantasma: sustentar o desejo na dire-
ção do gozo em falta "focando" a experiência que dele teve o sujeito;
proteger do retorno desse gozo que ameaçaria o sujeito de aniquila-
mento (só existe sujeito dividido); permitir, contudo, a.naq,em~
d rag_mento. de gozo segundo o "tr, o d erv r - " o qual o 11 •

ue10&,emtobre o·t-acro, Conviria situar aqui uma conseqüência da


heterogeneidade do gozo e do significante: é que, enquanto solução
significante, o fantasma será sempre considerado em falta pelo gozo.
sint ma a marCil Je a lha, u1 pé no ·ignifi · n o 01111" no
uando o fa11t sm fica abalado, o intom se infl, m,, arfan-
do-se de gozo, nutriodo-s e m ra ·a so d ant sma .
A título de exemplo, lembrem-se de Dora na lJual Freud destaca
o traço de "chupona" como determinando sua relação com o gozo, a
partir de uma lembrança encobridora na qual ela chupa o polegar de
sua mão esquerda enquanto manipula com a outra mão a orelha de
seu irmão. Lacan não hesitará em encarnar nisso "o incoercível objeto
oral" que responde por sua posição feminina. Esse traço está presente
em muitos dos seus sintomas (principalmente a tosse). Lembrem-se
ainda do traço de "farejador" que Freud destaca no fim de sua apre-
sentação do caso do Homem dos ratos.

4. A ln.ochrci.a íJa Criança


Sem--dtívida-o tl!nrio pt1tril(enfantin) designa & que· d o ; n ~
" · de. nv lv ; o term ,111jrih1 designa ar po ta do re 1 ao n antro
11 i I ilica t ; termo in/antiL in antile) designa ex res mente
que da. criança11lo se deeetlWilw:·tam-;t,wp,•pm,m,M. se podemos

li l11l,1111il f" ,-;,1ru11m1 ERP-SP


chamar • s irn ess · traço ineliminável dt: gozo llUe o . uj it , d •v ,w
f.tlo de ser Falante. ' rá esse traço llllc pass vai ltaz •r ,1 luz .11

tertt1ó de uma análise: o que o sujeito é omo objeção ao sali 1•, llill
sem parentesco com a posi ão f"eminina.
Contudo, eu gostaria de acentuar um único elemento suscetível de
particularizar esse sujeito correlacionado com a infh.ncia, pois é ~rn fato
que se o sujeito não tem a idade de seu organismo, ele tem a de seu gozo
- para retomar uma expressão de M.arc Strauss. É um fato ainda que a
exploração da estrutura leva um tempo real - aquele que faz crer no
desenvolvimento cronológico, quando. na verdade, se trata de um tem-
po para compreender o que resulta do instante de ver constituído pelo
confronto com o gozo. Isolemos um único momento de concluir: aquele
em que o sujeito comparece ao encontro fixado pela estrutura com o
parceiro sexual - encontro que ele pode evitar. A "liberdade de não trans-
ferência" - a expressão é de Pierre Bruno-, e o recalque, sem o qual não
há ética, dão conta dessa possibilidade de evitação.
É o quanto basta para que devamos concluir que se o sujeito
correlacionado com a infância é considerado pelo psicanalista como
contável pelo que ele diz - "tu o disseste, não podes fazer como se não
o tivesses dito, quaisquer que sejam as tuas possibilidades de lingua-
gem"-. esse sujeito continua inocente no que diz respeito ao gozo,
enquanto ele não tiver tomado por sua conta o parricídio pelo qual ele
se humaniza e enquanto ele não tiver concluído sobre as conseqüênci-
as do complexo de Édipo em relação ao gozo. Vocês podem adivinhar
a implicação para a direção da análise: certamente permitir ao sujeito
ir conforme seu ritmo, deixar inacabado, como diz Colette Solcr, u
que ainda está por vir. Mas orientando-se em uma direção que não til'
acomoda ao aforismo segundo o qual "a verdade sai da boc.& da11 cri-
anças": permitindo-lhe no hm reconhecer que nunca foi inocenle, qut-
a falta é de estrutura, que só há sujeito quando ele ,l tomu 11obn· si.

lT ,.. ,,,..\'/'
Potencialmente ele já é culpado: é o que sustenta o psicanalista para
que, por sua vez, o sujeito possa vir a assumi-la, objetivá-la e não
encarná-la como objeto.

Discussão
Debatedora: Cássia Maria Rumenos Guardado

C,l.,JÜ1 Maria Runww,, G11111y)ll(),,:


Farei duas pontuações que incluem duas questões.
Em primeiro lugar, retomo o que Marie-Jean Sauret abordou como
sendo aquilo que é o "tempo de interrogação" em relação ao significante,
a resposta a essa interrogação, como o Édipo em Freud, e a conse-
qüência que é trazida a partir daí: o sujeito como uma resposta real ao
significante. Ao Outro do significante, o real responde com a produ-
ção de um sujeito. A minha questão seria então: Eis aqui um sujeito
como efeito do real? E como articular esse sujeito, como efoito do
real, com as estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão?
Segunda pontuação, que parte de uma asserção de Marie-Jean
que me agrJ.dou muitíssimo, coloca a pertinência da psicanálise com
crianças como a psicanálise em geral, e traz também questões relativas
à instituição (a escola por exemplo): se o roubo dos significantes não
amputa uma parte do ser, é porque se é amputado de seu ser de gozo.
Coloco, então, a seguinte questão: Aí estaria a verdadeira castração,
qual então o verdadeiro nome do sujeito? Me parece que é objeto 11,

como traço de perversão, como o infantil.


Pediria também uma ajuda a Marie-Jean Sauret para uma dúvi-
da: se é a isso que Freud se refere no Manuscrito do caso do Homem
dos Ratos, quando diz que o infantil. o inconsciente é aquela parte da
sexualidade do sujeito que ficou separada, apartada para sempre na
11exu,Jidade do Outro?

'11,,,;,,,,,1 ,. ,, f,;,r,•11/111,i Enr-sr


Ainda, uma outra questão: O que isso tem a ver com a letra,
diferentemente do significante't

M11rie-Jean St11m'./:

As perguntas me permjtem acrescentar algumas precisões. O fato


de eu ter resumido o final simplificou, digamos, o caráter de tese que
eu queria dar aqui.
Com relação à primeira, talvez não tenha sido bem entendido.
Pensei que pudesse tomar transmissível uma fórmula de Lacan que
fala do sujeito como uma resposta do real. Isso não faz do sujeito um
efeito do real. porém do significante sobre o real, "o que do real pade-
ce do significante", diz Lacan. As articulações com as estruturas clíni-
cas se encontram no fato de que essa resposta constitui a estrutura. E
é por isso que introduzi uma distinção maciça entre aquele que con-
sente na solução da linguagem para regular a sua relação com o Outro
e aquele que a recusa.
Mas, como sabem, clinicamente as coisas são mais complicadas
do que aquele que se apresentaria de um lado como objeto e de outro
como falante, já que nós conhecemos sujeitos que dão a impressão de
terem aceito a solução da linguagem. mas que de certa forma recusa-
ram seu fundamento - se podemos chamar assim a foraclusão do Nome-
do-Pa.i. É o que explica que possamos ter desencadeamentos psicóticos,
rejeições de um certo tipo de solução , vistos somente mais tarde; en-
quanto que com as crianças, é verdade, estamos confrontados imedia-
tamente com as conseqüências maciças da rejeição ou da aceitação.
Vou dizer algumas palavras a respeito da segunda questão. A
fórmula "amputado de seu ser de gozo" é um pouco problemática;
teríamos de falar do gozo como faltafiintômt que não cessa de assom-
brar, contaminar o corpo por inteiro. O que Freud chama de castra-
1oão é a operação pela qual o sujeito simboliza a falta de gozo, ou seja,

t:BP-SP
é uma opera<jão que o alivia. Antes, o Outro falta, pois Freud diz que
a criança descobre em primeiro lugar a castração da mãe. Mas o Ou-
tro falta radicalmente, por estrutura; portanto, não há nenhum risco
em ser aquele que vai completá-lo. No entanto, o sujeito se pergunta
se ele tem ou não tem aquilo que, apesar de tudo, lhe permitiria recu-
perar pedaços de gozo; de qualquer forma, ele pode não ter aquilo, é
assim que Freud detecta a questão da castração para o sujeito.
Quando falamos em falta fundamental de gozo introduzida pelo
significante, se considerarmos isso do ponto de vista estrito da estrutu-
ra, seria melhor evocar a questão da privação. A criança encontra isso
no modo da frustração; ela encontra essa falta de estrutura como uma
falta vivenciada - é o que Freud traduz por frustração, uma frustração
particular, já que é o fato de responder que frustra. Aliás, isso explica, e
é uma das razões do silêncio do psicanalista. E no fundo, a castração é o
que permite recolocar no lugar essa frustração. Acho que, em algum
lugar, Lacan diz "recolocá-la em sua verdadeira ordem, ordenando-a
com a privação'', ou seja, ao fato desta falta estrutural. Essa é uma ten-
tativa de definir privação pela falta que é estrutural.

Glmza S,dnm,,n:
A partir de um conceito lacaniano, do último ensino de Lacan,
sobre a questão da língua, como poderíamos pensar esse simbólico
primordial da linguagem em relação à criança'!

Anil Lyd1i1 Sa11ttizg,1:


A minha questão é a respeito do segundo elemento lógico que
você evocou a respeito da inscrição no campo linguageiro: a insatisfa-
'iào primordial. Entendi que isso pode ser apreendido 1t p1Mlrrtill"i a
pnrtir do Édipo, mas me chamou a atenção o fato de você ter usado o
termo 'metáfora' para falar de algo que regula a relação do sujeito

f J /11f.111fl1 r ,, l~•lmlt/1\I 26 EnP-SP


com o Outro. Daí, então, teríamos: prir!leiro a satisfação que vem do
Outro, e depois o que o Outro quer em troca, abrindo-se o campo rio
dom e da retenção. Como nesse momento, nesse segundo tempo, po­
deríamos pensar a relação com a função da causa'/

Marit-.lmn Saw·tl:
Percebo que deixei de lado um aspecto da resposta às outras per­
guntas, e isso pode ajudar a responder a essas que foram feitas agora.
Podemos chamar, com Freud, de "infantil" o que da criança não
se desenvolve, e o que não se desenvolve tem a ver com o gozo. A
propósito do gozo, penso na referência de Freud que correlaciona al­
guma coisa de fixo do gozo do Homem dos Ratos com o gozo do Ou­
tro. Isso só para fazer eco a essa observação.
Na realidade, não tenho idéia sobre o que os últimos desenvolvi­
mentos de Lacan. com relação ao real, ao simbólico e ao imaginário,
mudam sobre a simbolização primordial, já que ele continua se refe­
rindo àquela primeira marca do sign ificante, tanto em "Radiophonie"
quanto em "L'Etourdit". Por exemplo, .!Sta fórmula: "o <;orpo que se
furta ao sign ificante carrega a marca da recusa primordial". É uma
fórmula que encontramos em "L'Etourdit" ou em "Radiophonie". No
entanto, é uma topologia que nos permitiria articular de uma outra
forma real. simbólico e imaginário. Mais tarde, vou me basear num
relato, mas talvez você tenha alguma idéia, então valeria a pena dizer.
A respeito da insatisfação primordial, falei em insatisfação pri­
mordial introduzida pelo próprio fato do encontro com o sign ific,mte.
Ela é interpretada após o complexo de Édipo. E é por isso, aliás, que
Lacan diz que não há um pré-edipiano, no sentido dessa interpreta­
ção, embora haja um pré-genital (Cf. Sem1iuín,1 IV). Isso quer dizer que
o sujeito encontra muito cedo essa insatisfação.
Falei em metáfora porque me parece que o sign ificante, de

t J /11J'41111tl e " E,11.,,111,, 2i ERP-SP


imediato, representa o sujeito para o outro significante; ou seja, desde
a entrada no jogo, existe essa dimensão substitutiva que faz com que o
sujeito, separado do gozo, seja orientado para ele. Eu não sei como
dizer isso ... ; seria pela significação que domina a sua relação com o
Outro. Isto é, o privilégio da boca na relação do sujeito e a sua mãe -
o que chamei metáfora oral e que Freud chama fase oral. Isto é, a
dialética, as relações entre o sujeito e o Outro passam pela experiên-
cia do que o sujeito tem de bom ou de ruim. E de fato, a partir daí
deveríamos destacar a questão da causa.
Na minha opinião, existe um texto de Freud que trata explicita-
mente desta questão: "A negação". Nele, Freud esclarece que o sujei-
to primitivo vai dividir o mundo, através da palavra, entre o que é
bom, cujas representações vai introjetar, e o que é ruim, a ser deixado
radicalmente de fora. E é na parte boa introjetada, que o recalque vai
operar. Recalque sobre o que poderia trazer desconforto de forma
secundária, ou seja, sobre o que não é bom e que, no entanto, consiste
naquilo do qual o sujeito se separou.
Existe aqui algo surpreendente em Freud que situa do lado da
Coisa (Da., D,i,_q) aquilo que é deixado ao real. E essa coisa que é deixa-
da ao real, diz ele, deixa uma marca, e essa marca é o "não" da lingua-
gem que vai funcionar do lado do campo das representações. Ou se.ia,
Freud situa nesse texto Da,, Di.n,q, o que é radicalmente perdido, mas
que funciona, de certa forma, como a causa do desejo.
É difícil improvisar sobre esse texto tão precioso. Lacan retoma esse
tema no Semintfrin VII. Pretendo aqui sublinhar que o próprio Freud uti-
liza a metáfora oral para dividir o mundo entre o que é bom e o que é
ruim, pois a menor oposição significante introduz o sujeito numa po-
sição (bom-ruim, fora-dentro) - o que vai regular a relação do sujeito
com o Outro. Então, por um lado, temos a causa como perdida e, por
outro, um rastro.

1l /11/;111111 r ,, 1-:,tm/111>1 211 ERP-SP


A análise de criança
um século depois da invenção da psicanálise

30 de agosto de 1997
Este título não anuncia um balanço. Primeiro, porque a histó-
ria da psicanálise caiu quase no domínio público: o debate entre Anna
Freud e Melanie Klein em torno da transferência está em todas as
memórias: além disso conhecemos, graças a Lacan, um bom número
de pioneiros da psicanálise com as crianças que são outras tantas
referências. Desse ponto de vista, seria mais interessante examinar
os teóricos contemporâneos: não é seguro que devêssemos elevá-los
ao nível de referência. Existe uma razão para isso: fora do campo
lacaniano - que chamamos campo freudiano-, os psicanalistas cede-
ram à dupla tentação de biologizar a pulsão e de identificar a causa a
uma determinação L11mplmu11lm: Eles fizeram crer na idéia do neuró-
0

tico segundo a qual. se o sujeito está. "ferrado", é culpa de seu pai, de


sua mãe, de suas deficiências orgânicas ou cognitivas, do que ele
encontrou durante sua infância, da sociedade e até mesmo da
interação de determinantes biopsicossociais. Em suma, a causa está
no Outro: a falta é do Outro. Estamos aí nos antípodas da conclusão
ele nossa primeira conferência.
Não se trata de negar a existência de determinantes como o or-
g,mismo, a sociedade, a história, etc. Aquele que não tem organismo
ll'vante a mão! O:a1t;ei,to-.~ieapon.....a·~.,_.•
u · d •ll!J minanh:; Para dizer a verdade, se vocês pensam que a psi-

tJ /,1/,mtil ,• 11 [,;,,,,,,,,,,. T() Ell/>-SP


canálise descobriu que as crianças são o produto daquilo yue del.ts
fizeram seus pais, então são os pais que é preciso psicanalisar. Mas,
então, se os pais não vão bem, convém dirigir-se aos pais dos pais e
assim por diante até Adão e Eva. Essa concepção psicogenética é a
versão científica da doutrina do pecado original: ela é religiosa. Por
isso, no caso, Lacan pode tratar a ciência como fantasma.
Mais que seguir esse caminho, eu vou me esforçar para exami-
nar o que pode ser a psicanálise de criança a partir do momento em
que levamos em conta os desenvolvimentos mais avançados que o en-
sino de Lacan e seus alunos permitiu. Eu me esforçarei para isso a
partir de alguns dos problemas que encontramos. A primeira questão
está colocada pelo fato mesmo de que muitos começam sua prática
analítica recebendo crianças. E, muito depressa, introduzem na ses-
são brinquedos, comida, palavras, o que eles não se permitiriam com
adultos, de sorte que podemos nos perguntar se nos mantemos sem-
pre com a criança à altura do discurso ana.lítico. Existiria uma razão
de fundamento para essas práticas, ou seriam o sintoma do fato de
que o psicanalista cedeu à tentação pedagógica'!

J. Só bá PJieanáli.le Jo Sujeito
Devemos a Rosine e Robert Lefort ter "martelado" desde muito
cedo qu a cri· nça é um analisante po,· inteiro. Tentei precisar essa
tese fazendo a distinção entre sujeito, criança e infantil, o que nos
obriga a levar em conta o tempo lógico de efetuação do sujeito, ou
melhor, o momento em que ele se encontra quanto à sua exploração
da estrutura. Alguns poderiam usar como pretexto o fato de ,1ue a
criança não tem relações sexuais, que o passe lhe está fechado, que
sua passagem a analista não está na ordem do dia, para concluir que
não há psicanálise com criança. Com efeito, consideramos que só há
análise quando levada a seu término: é pelo término que ela é avaliada.

11 t,,/,111111 r ,, f:,1,wt11n1 J/ EllP-SP


A partir .do momento em que esse término é decretado impossível.
podemos ainda falar de psicanálise?
Arrisquemo-nos a uma dupla resposta. Se só há psicanálise a partir
do término, estamos no caso geral, pois jamais podemos dizer que permi-
timos a determinado analisante, dito adulto, ir até esse término. Nós o
supomos apenas ptJJJ(vel e tentamos criar as condições para que ele possa
consegui-lo • contingl11cii1. É verdade que para a criança existe como uma
imptJJJWttúJmk, se visamos esse término. Mas falar de impossibilidade é
invocar um real: o real mesmo que é visado. Nesse sentido, como diz o
próprio Lacan, """' p.,icmufÜ,e é (1 que .,e GJptm de um p.1ic,uuz/i.,tt1. Tentare-
mos precisar o que se pode esperar do psicanalista nesse contexto.
Voltemos ao!tealpO anterior, o d respo ta c.l re· 1ao en onlro
ao signi 1caote: o sujei o é ssa re posta, escreve Lacan. ó que e .
.fBBfJHta,petle aer .ieita dec-consetttimentQ vu>·do.·r~ Abordemos,
dessa vez, a recusa. m dúvida, o uje it leva a marc d ,a recusa
qua; como-tal, -é-umamarca ,•ighifi~an~. Po riamos ilu trá-1 com
ssa cn ç que ta1,r s o vido quando utr Ih fala, que distin-
gue a fala do barulho, ou esse outro aterrorizado porque todos os
objetos se põem a lhe falar apesar dos seus urros. Nem um nem ou-
tro se encontram no pré-verbal, mas habi m inteir m nl · lingua-
-sem~Pâ1'ffl't o, habitlnff 111âi9: ~ o-o .;.. - e rtam •nte persegwclo
pele,palw,ra. o que basta para distingui-los dos objetos.
No fondo, es
o antasma d utr p· r nt L. ' la s or p ra " onden ar" para
utr o g zo que re lama como e ntrapartid d ·a pura xi lên
\!ig i!le.:ob;ete. Sabemos disso o suficiente para afirmar o que deve ser
visado na análise: epera&.q1DÚÜJno,de•ubançio·de·gozo quetondi~
cr..,...ào.aujo.ikh.~o a fórmula de Colette Soler. E, para isso,
só encontramos apoio no vestígio da recusa. A esse caroço de simbólico
d~v~ corresponder, logicamente, um caroço de corpo, um espaço de-

fl /11/,1111il, 11 1-:,1m111n1 ]2 E!IP-SP


seriado pelo gozo nem que seja sob um modo precário (testemunha-o,
talvez, o fato mesmo de que o sujeira não se arranja com a perscgui~iio
- prova de um lugar "sonhado" sem esta'!).
Lembro-me de um fragmento clínico relatado por Alexandre
Stevens. Tratava-se de um menino autista que batia a cabeça contra a
parede. Alexandre Stevens deduziu daí que o estalido da cabeça as-
sim obtido era um signo do Outro com o qual o sujeito se confrontava,
ou até mesmo um significante que representava, ao mesmo tempo,
tanto o sujeito como o Outro de que ele sofria. Se ele sofria, é que o
Outro do gozo existia. "Um significante para dois corpos", define a
holófrase. Essa construção levou Alexandre Stevens a traçar uma li-
nha a um metro da parede e cl interditar a criança de ultrapassá-la.
Assim ele evitou uma contenção educativa que foi substituída por uma
contenção significante. A surpresa foi ver o menino consentir em fa-
zer-se representar por esse traço para o Outro da parede ... em apode-
rar-se do giz e pôr-se a traçar seu percurso no piso da instituiçã~.
Um outro fragmento sempre retirado de uma prática em institui-
ção. Trata-se de um menino autista que não pára de fazer barulho com
a boca, um pouco como se ele imitasse a linguagem e como se sua
existência estivesse suspensa a esse barulho. Um dia, em reunião, ele
se agita como se quisesse, por sua vez, tomar a palavra. O talento
daqueles que o rodeavam foi lhe terem oferecido a palavra naquele
momento, pol' terem registrado uma demanda, exatamente por terem
suposto que ele consentia na oferta de falar que a instituição fazia.
Foi, nem mais nem menos, um caso particular do resultado da adição
da demanda à necessidade. E, então, pela primeira vez, esse menino
se calou, produzindo o silêncio como palavra, introduzindo uma
descontinuidade na série infinita dos barulhos. Devo na verdade re-
conhecer que foi esse fragmento clínico que me tornou acessível a
pr1:ferência demonstrada por Lacan por um discurso sem palavra.

Jj E/1/>-S/>
Evidentemente, trata-se de dois caso de psi ose, nos qu is o d -
enrolar da e· deia sig ificante de end daquele <jue s prest· isso
orno p rceiro, mo testemunha, como cr. vente, ou ainda como e-
~ do ~ p a r a retomar alguns dos significantes de nossa
língua comum. Mas isso basta para situar a primeira tarefa do psicana-
lista com aquele que se apresenta como objeto: visar essa subtração de
gozo, suscetível de fazer o leito do sujeito, como eu havia dito antes.

2. A Crianra Sintoma
Ilc bilualmenle, a criança apar ce s ja como metáfora dn amo,
os pais têm um pelo outro, ejacom metonín ia do fal tiue a mãe
1ue e pera alcan ·a.r .atrav' · do fiU10. Pal'ece-me 11

..._fumí,d~,·:q•·d.w..do~/ll,j11Dta-seà·duuDbàl1·"'*5
bre a c,·ia.nç- " qu di Íngu a cria ça ujo sin ma repre •nla a
" erdad do casal familiar" qu la "cujo sintoma qu
·nar··t em-a ver com a subjefividadt! ·da mi&":' Esses dois casos não são
idênticos e podem permitir-nos apreender como não é equivalenle te
lal ipo d pais não utro: poi a ·adeia significante a uai J mtro-
duzeltl a cri n a c nfronta ao me mo <!m o oro de j Jeles.
sim, a riança metonímia do Jesej da mãe é a m mo tempo leva-
. a encarnar o que lh falta, as duzi-la com a im gem do ue la
ama ao rn smo tempo so a am ça ser ixad.i 1· rgad , :;e el ·
der Írnpres "" d poJer a1' n ·ir o ue ela visa por uma utra via:
ba. ta a presença do eu par eiro s cxual ou nascim nt d um utro
lil110 !)al'a que isso ·lconte a. É induzido na ''criança metáfora" qu
11.1 presença é o signo mor do pai : qu efa não é o qu Ih s f. lta,
l!Ue nãu a imp •de d dar lit
1. 1 u · aom1.i ..

• iLlenl ·mente pod mo tmagmar qu os pai t ntem re up rar


el rd m d zo 's custas da crian a: p r encarnar um gozo,

() /11(,111111,· ,, F.111v11tm1 F.IIP-SP


la lorna- e o s· .u 11 art'11taJ. Lembro-me de ter ele falado
em uma escola primária sobre os direitos das crianças diante de uma
classe onde os alunos tinham 8 ou 9 anos. Eu me havia prometiJo nada
Lhes dizer que não pudesse sustentar diante de uma comunidade de psi-
canalistas. Um deles me perguntou por que os pais batiam nos liJhos
quando eles tiravam uma nota baixa. Respondi que, muitas vezes, os
pais consideravam os filhos como uma parte de si mesmos, uma vez que
os haviam concebido e os criavam e, por isso, se amavam através deles:
esperavam que os filhos conseguissem o que eles mesmos, como pais,
não haviam podido fazer. A criança sorriu, visivelmente aliviada da parte
que tinha nas surras recebidas de seus pais - o que a professora me
confirmou - e exclamou: "Então eles são masô (masoquistas)!".
b mo qu resta a essa •rian 1 •nlizar e sa p 1·tt: qu la tem
DQ-_l,QU·~ que g z yu la • -ipresta ao utro
p,aio-q~ ela·.fiitntai& Est. ' aliá
mantém;
.Q.atra.
ufro porqu se tornou o que e, te Líltimo ama: p r outro I d , eL •
ncontra nas puniçõe e na I re "'o se lar a pr de qu I ain a
~u·.O&Uró.
Em um sentido, a. !ixa oe cl.., g zo coo Iam a Jialéti~a qu
gula a rela 5u do su) ito ao utro , A tar 'a do psi analisra
apenas, nem mais nem menos, élll<~ella•dialiMicà·e·ent~fflfifip
1ue a neuro in an il
fi tu . Certamente, cada um tem presente no
espírito essa observação de Lacan: ne u· inlarl iJ ', ai •rt, I' 111
lo, a tnesm, coisa que uma psLcanáli · . O que irnpli a, ·omo fiz ,._,
n ta1·, qu ela não se analisa ... até es~ ccr o 1->onto.

J. A Metáfora Paterna
Esta é para mim a oportunidade de retomar uma passagem do

1J /,1/;111,J r ,, 1-:,rn1l11m EBP-SP


Seminário X.Xll, "RSI", que eu comentei longamente com Philippe
Lacadée e Bernard Nominé. Cito esse fragmento que se apresenta
como uma retomada da metáfora paterna: "Um pai não t m direito ao
r speito senão o· m r, a não er qu dito amor, dito r p ito,
- vo ês não vão acreditar no ouvido - pt1t-t'e1~111m1•r1fr 1 orientad ,
i t , qu el f. ça de um mulh r o je a qu • o.usa seu dese"o". O
que existe aí de inacreditável? Olhando de perto, trata-se menos de
uma definição de um p i que da condição de exercício d sua fon o·
pa ir da loc lizaçã d caa a de seu dese'o em 1111111 1ínti:n 11111/hrr: ou
seja, um pai qu renuncia a s r cbeF d horda! A partir daí, o que é
transmitido ao suj ito que nascer desse encontr é, com·-~ãê
um desci , um gozo irredu ív 1. É por ess gozo assim localizado que
o sujeito poderá assegurar-se da exceção que lhe permitirá fundamen-
tar na razão sua relação com a linguagem e garantir suas pr6prias
escolhas quanto ao gozo. Certamente vocês já sabem que existe na
França uma discussão sobre o fato de saber se há um gozo do pai real
que seja outro que não aquele que o neur6tico fantasia. A tese de Pierre
Bruno, que eu conapartilho quanto a esse ponto, vai no sentido ele
uma localização de um rea.l ineliminável.
Sublinhemos de passagem que nas mesmas páginas dcia ·~
sobre o ' I", [.,.1 an atribui o risco da psicose o p i que, longe de
situ r a ausa de seu d scjo em uma mulb r, t maria or uin pai.
Sobre isso ainda eu lhes passo o que dit Lacan: o pai intervém junto aos
filhos "excepcionalmente no bom caso - para manter na repressão, no
justo meio-Jeu.!2 a versão que lhe é pr6pria de suapai-ve,~1,io. ai-versao·\
única garantia de sua função de pai, que é a fuo ão de sintoma, tal como

1 NT: cm francês: p;rr (pai)-,vr,'<'mml, homol'anico a~nY"r.•tmml (perversamente) .

' NT: Em franch, mi-Ji,11. L."lcan chama Deus de DiL11-rr. onde ele joga c,om as palavras
Dieu (Deus) e dire (dizer).
1 NT: Em francês, 11t1r!-1v111w11.

O /11(1111//l, n P.,1ru/11m ]6 E/JP-SP


a descrevi. Basta para isso que ele seja aí um modelo da função. gi~ n
que deve ser o pai. na medida em que ele só pode ser exceção. l~le só
pode ser modelo da função realizando-lhe o tipo. ~ i ~ W·
el tenha sintomas, s acresc ntar 1·soda p11i-c•t•r.1âo patt-rn,l, i. t
qu · a sua cau a seja uma mulher qn el .iz r-Jh,
filho e gue em relaçao a d s, tlu ir -o ou não,
d.td p.it· •rna''
-~----
Essa passagem deveria ser lida toda. Cito um pouco adiante: "É
raro que ele consiga esse justo mt'ti,-,JettJ. Isso vai renovar o tema, quan-
do eu tiver tempo de retomá-lo para vocês. Mas já o disse de passa-
gem num artigo :obre chrebc, -mda pior que o p, i que pro · a let
sobr adu - ~ ~:, . . - ~ mas de preferência
atrás de todos os m11.11iJter.1" . É a itilrrc'l!llfrio do pai Lu 'e. e () ·ional 11

encontraclorn1loeal1z ~oe1 umamulherd m,.IÍ parti·ulardogoz<


Jele. Ele a e olh u segundo o gow dit, do p I u an asma ($ oa) .
'.,m r la · o ao rii; o psicólii.:o, é m nus para · Jimcusa I impostur
que ri seio cham, r a atenç-ã d ara o r to d
como u1 , 1ndicnç orle uma d tcrm111 ã da psicose. ~orno um,t a-
zio·dv..te,.,.,J~~~'Pa:t Esto·u inclimifdo•~--,q•
11m tal "p i <luc d r" 1 v suj itl a c·onfr ar• om uma situ ã
~nt&.di&il·, ,litaa,q-..,~~-~"···,wd·
ladQ $1 su.jei.t'l,,
O pai assim orientado p l au .. a do u lesCJO divi I ua 1 ,,r~· ir.1
111tre mãe e mull er: "P i. uma mulh r, n- o m i · que o horn ·111, 11fio {

11111 objeto 11 - la tem os seus [ .. .] Jos quais el.1 s~ ,·upit, l" i . o nada te 1

v rcom que! pelu(1ualelascsuporl~tcmumdesc·olJll llJll·1,1·~ ......


p1 elege como causa de seu d seja a e nstitui sintoma, "e._t;1 ml
111111h r": "1uer dizer que o g zo lâlico tarnb m lhe diz r~ p ito, conlt" -

( 1 /,1f'a111tl, ,, f,;,tmtum 17 F.RP-SP


Jacqu~s-Alain Miller retomou recentemente esse aspecto. Supondo
que seja conservado o sintagma "mãe suficientemente boa" de Winnicott,
não basta, para que ela seja "suficientemente boa" no sentido de Lacan,
que ela se contente em "veicular apenas a autoridade do Nome-do-Pai".
Convém, ainda, nota J.-A. Miller, "gu a ria.nça não ·atur para ela a.
mãe) a falta pela qual seu d sejo é suportado [ ... ] que o cuidado qu
ela prodi •a ao filho não .i. rle~viem de deseJ r enciu nto mulher''. Em
suma, conclui el : é preciso ''que o pai scj.t t.a.mbé111 tm hom m".

4. A Neurot1e Infantil
Para tentar tornar mais explícita ainda essa releitura da metáfora
paterna pelo próprio Lacan, tentemos retomar cada um de seus termos.
Para o sujeito dividid do ozo, o encontro com parceiro sexual rnns-
titüi um m io d recuperai um pouco do gozo p ri.liJo ao talaL ó que,
se nós sabemos aproximadamente o que são um pai e uma mãe, sabe-
mos menos o que é um homem e uma mulher, uma vez que o organismo
não impõe ao sujeito fazer coincidir anatomia e posição sexual.
Mulher e homem sao signi 1cantes. , uj Ílo 11-0 adot,1 a posição
I' mini na porqu lese cola o signi 1ca.nt "mulh 1" • m uma tiqu -
ta obr um ras . Enquanto representado por um significante - mes-
mo que seja o significante mulher - para um outro significante, o sujei-
to neurótico fuoeion;aà1iJÚº~ a.6iifd ele é masculino (versão lacaniana
do freudiano: ~ há. lib~ fflQCUÜl\a-,, o que é escrito pelo materna:
S.1'$ ~ S/t1. ,i designa o que do ser do sujeito escapa à representação
significante. Enquanto masculino, o sujeito está numa relação
metonímica com esta parte de seu ser que causa seu desejo: em uma
relação Metonímica quer dizer mediada pela implicação significante
(se S,, então S2).
De entrada poderíamos reservar o s1gni1ic. nte mulh r par
1 •w r o su 'eilo que t m uma relação direta com essa part d ser

/ l /11/,1111il ,· 11 t:.,1111111111 JH ElJP-Sf>


''que t~ lta ao \IUJc1to masculino '', ou seja, lado S2/t1. Essa proximidade
cxpli a o foto d uma mulher se introduzir, às vezes, na ligação com
um homem como designando essa parte que falta a ele e, por a{, cau-
sar seu desejo. É preciso completar: ela encarna ao mesmo tempo a
parte que falta a ela como sujeito falante - masculino. Às vezes, t.'l.1

consegue puxar o desejo desse homem até a paternidade "pai-versão",


escreve Lacan. Parece-me que essa tese se deduz. igualmente, dessa
observação de Laca.n a Jenny Aubry que citei da última vez: "í~1
sum , , cri, n a, na relação Jual tnã , lhe d:. im di t m
essív l, qo f t • su ·eit
- . ...-•pewce -nt>tetl'~~
Resumamos esse primeiro comentário:
PAI-VERSÃO
Homem --d•••iodc - Mulher
$ a

Essa apresentação coloca duas questões: o que leva detenninado


sujeito a se orientar na direção da posição feminina? Para que serve
ao sujeito colocar-se do lado feminino'! Não vamos comentar imedia-
tamente a primeira questão. Lacan reformula a segunda: para que serve
a uma mulher colocar-se sob o significante "mulher", "ali de onde a vê
o homem'"! Resposta: para fazer falar o que dela responde à definição
do sujeito masculino e que sem rodeios ele identifica à mãe. Em1uanto
:111jeito masculino, a mãe tem uma relação igualmente metonímica a
essa parte de ser que lhe escapa e que a criança vem representar corno.
vamos repeti-lo, "o que falta ao sujeito masculino". Essa concepção é
a mesma de Freud, que considera que só há mãe lalil'a u a 11 1d 1,
O 4uc podemos escrever dessa vez:

Mãe --deacjo de - Filho


$ a

ti /11/,111(1/, 11 /!~1/1'//IIIIII f9 F.lll'-Sl'


l", La.e no I mhrou que um m e
s - " m v z de r zar às ·ustas deles" - caso ofereça e m
do J sejo de um homem - ê:lo qual ela espera, por ulro lado, qu de
Ih ermita um acesso ao que de s u gozo e capa a elr1 própria: de
certa maneira, s uma mulher é um intoma para um h m m, ela espe-
ra dei qu ele lhe permita sintom tizar-se ela própr·ia. É de qualquer
modo uma fórmula que eu já proponho à discussão de vocês. A pai-
11erJ,fi, pela qual um homem retira essa parte de gozo que uma mulher
reintroduz no laço social para o sujeito masculino, limita a pai-i•et'Jtio
materna, o que poderíamos chamar, por analogia. sua mile-11rr.1iio. Se
uma mulher pode ser tentada a responder ao enigma do que é uma
mulher, uma vez que não há sujeito do significante a não ser masculi-
no, a pai-versão está aí precisamente para objetar a essa redução de "a
mulher" que existiria na mãe e, de cara, limitar o gozo matemo da
criança. Essa limitação do gozo, esse 11ifo lltl .'/<mi, a:;sinal. a transmis-
sao da funç'"o p,lterna, do Nome-do-Pai na nova metáfora:

pai-versão
perversão ou mãe-versão

Escrevamos )(. a foraclusão generalizada do sexo no Outro do


signilicante~,Falar de foracluáão gêtleraJiuda:sigouica~úe nãoM 110
utro op sição si nificante qu dê e nta d. içã
em relação ao sexo· todo o ignifi ·ant·e re resen o SUJCtt o divi-
e <lo goz , não lhe oferecendo, tendo como condição o Nome-do-
Pai, senão um único • ignificantc para aparelhar o gozo - o falo. A
p rtir daí, 1 onstitui um limit entre o gozo dito álico e um
zo logicamente suposto e que seria propriamente feminino, uma
v z ue n-o !>eria ai · nçado pela via do signifi ant .
Contudo podemos repartir, em tomo do Outro barrado que divi-
de o outro matemo, a dupl ligação da mulher e mãe, r p ivamente,

V /11/,1111il .- n /!,1ru111m ./{} E/JP-SI'


ao homem e à nanç I assim como o fizemos para "La Chainl? des
Pyrénées"4:

PAJ-VERSAO
_ .i-;.. ... _
Homem - .......,..__ Mulher J( Mãe Filho
a a

Assim é, me parece, strutura da neurose in anti! tal com la


duz pelo rorn n' f miliar: do pai é tr n mitid à erianç na condi-
ão do enigma, m ntid pal'.:-l. um h m m, d goz F rninino. E pr 1 a-
m esse ignifi ante em falta 1u cri as liC'ita qu ndo interrog
os pai obr o 1u ek é. la os interrogas bre quer pre ·enta, a pa e
dé"-!iêl"'(fae ~ ·wn;;petclt:-..,.._ Da mesma forma, quando ela os
questiona sobre o que deve fazer da excitação sexual precoce, da ere-
ção infantil • como confrontação com o httern.J -, ela os interroga
sobre a forma e m I s- us, lo d sejo J li' e,
a ain a, por 'alta do i ,ni 1can1 ala<l . Nos dois casos,
por pouco que o encontro com o gozo seja demasiado vivo no exces-
so de sofrimento como na frustração de satisfação, ns ·ondi õ d
d sen ad am nto di.l neuras e.st~o r unida·. E já sabemos que a
neurose consiste em tentar, a qualquer preço, resolver as dificulda-
des atuais com o gozo, de acordo com o modo pelo qual o sujeito o
abordou até aqui: oralmente ou analmente, mas sempre com a finali-
dade de dar mais uma vez ao falo anacrônico e inadequado um pou-
l'O de brilho.

'" f.,, Chatne de• Pyrénées": nomo, de uin senúnArio itine1·ante cri;ulo em 19R3 por Philip1,.,
l.,wa,lée (Bor<leaux), Bernard Numiné (Pau) e J\.\arie-Jeilfl Sauret (Tnulousr) nu 1111adro
,lu CfütEDA (Centre de Recherche sur l'Enfant dans le Discoun Analy1iq11e). Os 1rab1t-
lhu• .leite aeminário foram publicados com o noml! coletivo de "La Chatne dea Pyn!nécs",
,1111111 rsl.'olhi<lo porque a decisão pelo seminário foi tomada o,m Pau, lugar onde "pa..u11du-

1 v," 11j111lavam a utravessar os Pirineus aquelea que fugiam. durnMe II Segunda G11e1Ta
l\·\1111.liill, ,IA invasão alemã. de um lado, e do regime fra1111ui1t;L, Je nutro .

o /11/,1111,I,,, Jl..•tl'llh11'fl EBP-SP


5. O que viJa a análúe l,"je
No fundo, a áli com cr1anç i1 ci ·rá, orno ar o adulto,
s bre a form como foi tr:.tnsmitido" rianç.i o abcr, o gozo • obj -
· to~Não poderei aqui fazer melhor que repetir o que enunciava Colette
Soler há alguns anos e a que fiz alusão desde o nosso primeiro encon-
tro: " A p i an ' Lis e n i te m des azer o que foi, Jigamo ... mal~ i o,
om o o entimen o d sujeito: os nó do significant o zo no
• ~ A psicanálise invertida da criança-objeto consiste antes em
fazer o que não foi feito, ou seja, a subtração pela qual se engendra o
sujeito. Diria que a psicanálise da criança-sujeito deve dar lugar a um
certo deixar-fazer (lm'.JJer-faire), ou melhor, a um certo deixar fazer-
se? Não que o analista não deva causar, aqui como alhures, o trabalho
do simbólico pelo qual o que a estrutura programa de castração se
realiza, ao mesmo tempo em que se corrigem as fixações sintomáticas
do gozo. Mas estando cumprida essa tarefa, que ele possa consentir
em deixar o que está por vir na sua condição de inacabado";.
No fundo, o que a psicanálise depois de Lacan introduz com a
criança, e o que a psicologia, assim como uma certa psicanálise, deixa
foracluído, nada mais é que a categoria de gozo, um outro nome para
"o inútil". Calcular seu ato pelo gozo introduz a questão da ética: isso
supõe, certamente, o desejo do analista, istu é, p"r em uncionam rito
um luga nde o anali poss a olh r n nça ·ern g zar as Sl1as
custas, mesmo quando esta última se oferece a esse gozo. Um lugar
que respeita o re, lcament , o "eu não quero aber naJa isso" do
neurótico, a sua "liberdade de não transferência" eventual. Sem dúvi-
da, a análise com uma criança se assemelha, freqüentemente, ao que

·· SOLER C., "L'enfan1 et le désir de l'analyste", ln: L' m/1111/rt lrr11.,ú·,lr/.1n11~v,,tr, Séri(.'S cll!
111 Découverte fnmclienne, Presses Universitaires du M.irail. Toulouse, 1993, p. 11 .

() /11/,111111, " ,~.,,.,,,,,., F,/t/'.S/'


Jacques Lacan qualilicava de "contra-análise": uma vez que se trata
de início de alugar um desejo, significantes e até mesmo um imagin.i-
rio sobre o qual a criança se apoiará para verificar que pode sair ele
suas determinações de linguagem no ato - de fala em primeiro lugar.
Sem dúvida, é a vertente "contra a psicanálise" que justifica usos
como o jogo, o desenho, etc, que fazem acreditar em uma prática es-
pecífica com as crianças. Mas, de um lad , om < ~dult tamb ·rn '
preciso riar as , ndi õe d psican li e: d qu I CI' orm. Freud
re •orr u ao de om H m rn I Lob s. rei dizer qu e
um nali ta tiv a convicçfo qu d veria "1 [,mt<1r b.waneira" par~•
autorizar tar fa il al,sao , •le ·. lt· ia a · u a1 ao n:-o ou··' -lo. em
dúvida, é essa audácia que confere à prática de Jacques Lacan seu
estilo: essa auelu.ia~··a mesma ~ Por outro lado, qualquer que
seja a "ginástica" necessária, o qne vi· d m

d~-~ Isso é, no fundo, o que a ná)ise visa mais explicitamente:


·ttOJil&r.::• .-tdeka.~~pela,~hdadequwa,mpaeida-·
;• • ~ ~ ; , , O u seja, o que Freud designava como fim de
toda análise: llltlGllpfflU"teapacidach,,dawr,*de*réâ'lhltr: Talvez se
insista menos sobre um aspecto correlativo: com essa capacidade en-
contrada ou reencontrada, psi · alista permitiu ,LO ,mali ank, ~uc
·1pro eitou e a oporlunj aJe, in talar- ·e 10 um Ja o so ia L
Freud entreviu esse aspecto quando ele se interroga sobre a ma-
neira de fazer de uma agregação de indivíduos isolados uma entidade
l'nletiva: ele se pergunta por que os homens não se contentam com
.unar e trabalhar, por que a necessidade do trabalho e do amor não
basta para unir harmoniosamente os homens entre si. Convém, por-
l 11nto, visar além da restauração da capacidade de amar e trabalhar,
11m· é uma das primeiras formulações de Freud sobre o fim do trata-
11\~nto. Esse é, não raro, o primeiro resultado obtido com o sujeito

, 11,,1;11111/ ,· ,, &,tml11111 ./J F.RP-SP


correlacionado com a infância que demonstra o caráter anti-segregativo
da psicanálise e que demonstra ao mesmo empo qu a criança en on-
tra na p icanáli e um meio e 1 •az para lutar contra os e~ it n fastos
do di curso qu domina o ampo ocial con emporâneo, esse misto J
e. pítalismo de iência. Esse resultado me parece tanto menos
negligenciável quando m relação ao utr da ciência nó somos t •
do objetos: o que Lacan designava com o termo "in ância eneraliza-
Y.. Essa constatação confere à psicanálise com as crianças - a psica-
nálise simplesmente - uma aposta política. Daí minha surpresa diante
do fato de que os psicanalistas o enfatizem pouco.

Discussão
Debatedor2: Dominique Fingermann

D(l/mi11,111r Fin_qr.r11u11111:
"A análise de criança cem anos depois da descoberta da psica~
nálise" é uma questão que o próprio Marie-Jean Sauret escolheu
quando montamos este seminário. A ela Marie-Jean Sauret esco-
lheu responder sem fazer um relato exaustivo da psicanálise de cri-
anças, de Anna Freud até os dias de hoje; privilegiou o ponto funda-
mental a ser elucidado para que se possa falar de psicanálise com
crianças e para que um analista tenha condições de suportar o trata-
mento e essa prática.
Esse ponto fundamental é a solução do sujeito para uma crise,
um impasse. Citando Marie-Jean: " .. .o impasse com o qual o
significante põe o sujeito na sua relação com o Outro". Impasse no
qual se teriam duas alternativas, ser devorado ou ser abandonado,
deixado cair.
Coloco, então, a minha primeira pergunta dentro desse comentário

(} 1,,/,,1111/ ( ,, /•:,,,.,,,,,., EJJP-.'il'


a respeito desse "m/'. Será que a estrutura do significante, a estrutu-
ra que o significante impõe ao sujeito, não tem como conseqüência ser
devorado e ser abandonado?
Esta solução ao impasse é trabalhada por Marie-Jean Sauret .'I

partir de uma "nova versão", entre aspas. da metáfora patern;i,


explicitada por Lacan no seminário "RSI ". Essa nova versão, Lacan
chama de prre-verJton, prn-versão, pai-versão, por ele assim definida:
" .. .se o pai faz de uma mulher o objeto de seu desejo ... ".
Para que serve o equívoco que Lacan usa? Por que não falar em
versão do pai't Sei que se refere a alguma coisa que você desenvolveu
no seu trabalho de hoje; mas coloco esta questão, pois gostaria que
ficasse mais esclarecido o que essa definição, essa "pire-versão", tem
ou não a ver com a própria perversão estrutural.
Ouvi também, na sua versão da "prre-versão", que, para llUe haja
um sujeito, é preciso um pai e uma mãe. Para que um homem e uma
mulher - eventualmente homem e mulher biologicamente !alando -
saibam funcionar como pai e mãe, eles precisam saber jogar o jogo da
"prre-versão". "Jogar o jogo",jfluer-le7 'ett em francês, remete, associa-
se à questão do JemM11nl, pois deve-se jogar o jogo, ainda que não haja
relação sexual, ainda que não se saiba o que é uma mulher, ainda que
o que ela, a mulher, seja como objeto no jogo, não é o seu objeto em si.
gntão, se para haver um sujeito é preciso haver pai e mãe, para que
um homem e uma mulher saibam funcionar como pai e mãe eles têm
J~ saber jogar o jogo. Será que se pode dizer que eles têm de sa6er
jogar o ,1emhlartf do sexo, saber gozar sexualmente?
Isso remete, na minha opinião, à questão do fantasma das ori-
tctms e da cena primitiva, onde o neurótico encontra a questão do enig-
lllil de sua identidade - o enigma do sujeito ligado ao enigma do gozo -
,, n paradoxo de que, para ser pai e mãe, tem de se saber gozar sexual-
1111'111 C:' para poder transmitir a um sujeito o "não" ao gozo.

1l /11/11111,/ ,. ,, 1,;,,,.,,111·11 -15 l-:tlP-Sl'


Mt1rie-.lea.11 S1111rd:
Muito obrigado, Dominique, pelas observações que se susten-
tam por si só; acrescentaria pouca coisa.
Quanto aos termos do impasse, penso que o ponto importante é
que o sujeito desde o início encontre a incompatibilidade entre o
significante e o gozo. O modo como é negociada essa incompatibilida-
de nas relações com o Outro me parece predominantemente manifes-
tar-se desta forma: ou ser devorado ou ser abandonado.
Deveríamos, aqui, responder com casos clínicos, e veríamos en-
tão que o pesadelo da criança impõe em um determinado momento ao
sujeito, esta certeza de que ele é abandonado e, por isso, vai ser devo-
rado. Ao invés de ressaltar o lado do J,.,.ipt - como fiz para ser bem
entendido, já que é uma versão do fantasma -, é preciso insistir na
incompatibilidade entre o significante e o gozo.
Isso me leva ao segundo ponto: o equívoco "pai-versão"/
"perversão", em francês, tem uma polaridade de gozo (a perversão)
e uma polaridade significante (a versão em direção ao pai). Laca~
fala em pire-ver,1ir111 precisamente para dizer que só há versão em di-
reção ao pai, com a condição de que uma mulher saiba suscitar o
desejo de um homem, conforme o fantasma deste homem - isso su-
põe, evidentemente, o seu próprio fantasma também. Aqui, trata-se
de saber como do pai é transmitido para o filho, e aí entra em função
a perversão própria deste homem, ou seja, o que há de gozo irredutível
localizado em seu fantasma. Então, é por isso que considero que, na
realidade, Lacan fala em "pere-versão", mas também na versão em
direção ao pai.
Penso que a resposta para a terceira pergunta já está implicada
aqui . Com efeito, para que haja um sujeito neurótico é preciso, não
apenas um pai e uma mãe, mas também um homem e uma mulher.
E.sse é um ponto que tentei destacar do texto de Lacan: alguém que se

<J /11/i11111I (" i,:,1r11t111u ~6 ERP-SP


apresentaria unicamente como o pai, ou seja, que não gozaria rle un,a
mulher, deixaria a criança nas mãos do gozo do Outro por estrul'ura,
seja esta mãe boazinha ou não.
Me dou conta, ao falar, que há o risco de ouvir isso de uma ma-
neira psicológica, ou seja, tentar pacificar as relações do significante e
do gozo. Podemos tentar imaginar isso: o pai que diz ao filho "você
não sabe por onde tua mãe anda, você vai compreender mais tarde... "
diz, assim, que existe uma lei, existe uma razão. Evidentemente, o que
nós sabemos é que a criança não vai compreender isso mais tarde, já
que nem o próprio pai entende, e a mulher não sabe: é isso o enigma
do gozo. Bom, eles não sabem, ele e ela não sabem, mas isso com a
ressalva de seu próprio fantasma, de sua própria teoria.
É uma teoria que permanece compatível com a forma pela qual
Freud primeiramente elaborou a teoria do pai. Lembro que Freud,
quando se pergunta de onde vem a paternidade, inventa um mito onde
um bando de animais privados por um macho solitário - privados tan-
to do gozo das fêmeas quanto do gozo dos alimentos - matam esse
velho macho para se apoderarem do que necessitam. Isso é o mito
freudiano, imaginar que aí, de repente, eles fazem apelo ao significante
para salvar a aliança que acabam de fazer matando o animal. Esse í: o
gênio de Freud.
Esse significante tem duas vertentes. A primeira seria: "não, nós
não vamos tocar nesse gozo pelo qual o matamos"; a proibição do
incesto é a versão freudiana da incompatibilidade entre o significante
e n gozo. Enquanto que numa outra vertente, Freud imagina que eles
vão tirar um traço, ou alguma coisa do animal que eles mataram, e vão
l;izcr deste traço o signo idcntificatório de seu grupo - o totem, nu
Nt•ja, um nome do pai.
É divertido ver a confirmação que Freud recebe da antropologia,
,·,1111'orme as coisas foram elaboradas por Lévi-Strauss, onde se pode

, l /111i111111,· ,, F.,t,w/111>1 E/11'-SI'


dizer "filho de tal animal". E essa denominação serve para registrar
esse salto da natureza para a cultura. que é marcado pela paternidade.
E.sta é uma teoria que apresenta problemas, e Freud os vê, principal-
mente o fato de cada criança, por sua vez, ter de assumir o processo
de humanização: é o que ele chama de complexo de Édipo. Cada um
deve se reconhecer culpado do assassínio originário, que nem era um
assassínio, já que não eram humanos. É um assassínio a partir do
momento em que se decide que se tratava do pai, no aprr,1-mup da
introdução do significante. Freud chama de complexo de Édipo ades-
coberta, na escala de cada um, do caráter indestrutível. "não'tratável"
do pai da horda primitiva. Se cada um quer matá-lo, é por que ele é
indestrutível. impossível de ser morto. Até o final. Freud mantém o
significante, por um lado, e o pai do gozo, por outro; o sintoma é a
tradução dos embaraços do sujeito com o gozo.
O que me parece radicalmente diferente com "RSI" é .Lacan
retomar a questão, não a partir do significante, mas a partir do pró-
prio gozo. O gozo que uma mulher consente para um homem vem
por subtração, isso falando de um modo estrutural, porque nada
impede que um goze com o outro; vem por subtração do gozo que
ela poderia obter às custas de seu filho - é esta limitação de gozo que
é transmitida como "não". Lacan insiste no fato; acho que ele diz
isso de maneira bastante crua: "é preciso que ele transe com ela".
Paro por aqui meus comentários.

Mnria Crcd,iz Galletti Z.rrrrlli:


Considerando o que o senhor tem dito, desde sua primeira con-
ferência, sobre o gozo, sobre a causa do desejo, sobre o a, tanto no
fantasma quanto no esquema da sexuação, peço-lhe um comentário
sobre o ,z no discurso analítico. Pensei nos dois casos, nos dois finai11
de análise de que Lacan fala na "Proposição".

f J /11/;11,ril ~ ,, /1:,tm/111>1 E/f/'.SI'


C/111y1 R,1pp11p11r1:
Desde sua primeira conferência no dia 28/08, na N111ú 011 Ct,11,1,•/h,1
da Seç.ão São Paulo, me chama a atenção quando o senhor diz d,1
importância do pai marcar para o filho. a pby-,,,.,v,1111, indicando umà
mulher como objeto de seu desejo. No caso em que o pai não marca
para o filho essapere-1e1vti111, qual ou quais os caminhos possíveis para
1

o filho se constituir como sujeito masculino, evitando ocupar o lugar


do pai da horda primitiva'!

An,1 Ly,lt~1 S1111li,~qo:


Você apresentou a neurose infantil como uma solução que a cri-
ança encontra para a <1uestão do gozo, que seria, inclusive, a sua pr6-
pria fantasia; ela vai passar por um momento de latência, até o mo-
mento em que isso vai ser colocado à prova, no momento do encontro
com o outro sexo. Gostaria de lembrar aqui uma tese que Michel Sil -
vestre desenvolveu alguns anos atrás, segundo a qual a neurose infan-
til e a neurose do adulto não são nem homogêneas nem simétricas. Ele
distinguia a neurose do adulto da neurose infantil. ruzendo que a neu-
rose do adulto seria uma suplência ao impossível da relação sexual. A
partir de sua apresentação, fiquei pensando se tem algo disso que é
elaborado na infância e causa um certo impacto para o sujeito na vicia
"dulta, no que a gente poderia chamar de neurose do adulto. Peço-lhe
um comentário sobre isso, nessa perspectiva do encontro, sobre o lJIIC
11cria particular nesse encontro. Sabemos que existem pessoai; que
o1di.un esse encontro. até os quarenta anos ou mais. É um acidente
1•11sa trajet6ria'! É um acidente interno? É algo que desborda um pou-
1·11 l'.sta solução'! O que é que compete a isso'/

11f,U'tt-Je1111 S,1111·d:
São questões muito importantes.

t I ht/t111II/ i' 11 /~1/r11/t11'11 ./9 EIIP-SP


Sobre a pergunta relativa ao objeto ,z. devo dizer que não sei mui-
to bem como responder, pois no ensino de Lacan o objeto II indexa coi-
sas diferentes. Talvez fosse preciso ser capaz de colocar em perspectiva
esses usos do objeto "• conforme a ênfase dada: por exemplo, ao "mais
gozar" ou quando ele insiste na dimensão de operador lógico, ou seja,
do instrumento que nos permite introduzir, no nosso cálculo, o que não
pode ser alcançado pelos meios da linguagem.
A tese de Lacan é que se tudo é estrutura, nem tudo é linguagem;
por isso, Lacan não é Françoise Dolto, por exemplo. Certamente vocês
conhecem uma das obras dessa autora que se chama justamentt! "Tudo
é linguagem". Então, n é esse elemento com o qual Lacan tenta refletir
e introduzir no cálculo o que do sujeito não é significante. Podería-
mos, por exemplo. examinar de maneira precisa como em "Posição do
inconsciente" e no Srmiflárti, XI, com as operações de alienação e de
separação, Lacan evidencia essa questão do objeto enquanto uma parte
que é retirada no limite do ser, isto é, subtraída do que o sujeito é
como sentido, o que vai lhe dar, no fundo, a própria idéia da alteridade,
com o que ele vai fabricar a alteridade. Para dizer as coisas de uma
outra forma, quando se diz que "o significante representa o sujeito
para outro significante", temos de lembrar, como repeti várias vezes,
que não existe no Outro o significante que justamente faria reter o
que o sujeito é como fato de dito e o seu ser de gozo. E, desse ponto
de vista, podemos dizer que uma análise vai consistir em esgotar as
respostas do Outro. Então, se não houver no Outro o outro
significante para o qual S, representa o sujeito, quem vai fornecer o
S/! Considero que o analisante é esperado nesse momento, nesse
momento onde ele poderia produzir esse pedaço de saber sobre o
seu ser de gozo, lá onde o Outro não responde. E é assim que tento
responder sobre a relação que tem esse índice II com o passe.
Em relação à segunda pergunta. sim, realmente insisti muito n.1

() /11/,11111/ ~ ,, ,-;,1m1111·,1 ~{} E/11'-SI'


questão do pai, do pai que marca com sua "pe.re-versão ", mas também
do pai que não marca. Foi o que fiz quando lembrei a citação de Lacan
sobre o pai que se toma por um pai, o pai que se iguala à lei, aquele
que renuncia em fazer de uma mulher a causa de seu desejo. E Lacan
coloca de forma um pouco surpreendente as conseqüências desse en-
contro, a psicose.
Isso traz um problema se entendermos isso de forma mecânica, ou
seja, "tal tipo de pai, então psicose". Se encontrarmos um pai deste modo,
desta forma, sem dúvida a resposta psicótica é possível, me parece. Acho
que devemos deixar o lugar para a insondável decisão do ser, pois a
resposta do sujeito não é a resposta à psicologia de seu pai ou de sua
mãe, mas ao tipo de Outro com o qual ele se confront.a, o que é induzido
como Outro, independentemente da atenção ou dos eúorços pedagógi-
cos de seus pais. O sujeito não responde à psicologia do outro, de seu
pai ou de sua mãe, embora exista uma tendência a constderarquedeter-
minado tipo de pai ou de mãe acarretaria ou levaria a tal tipo de sujeito.
A psicologia toda está construída nessa idéia de tipologia, ou seja., "de-
terminado tipo de pai + determinado tipo de mãe= a tal tipo de sujeito".
Bom, bastaria então tomarmos as coisas por esse lado para perce-
bermos que todos os indivíduos que tivessem um determinado tipo de
mãe, um determinado tipo de pai, seriam equivalentes entre si. E. aliás,
percebemos bem nos conjuntos instituídos pela psicologia experimen-
t il l que o nome e o sobrenome pouco importam, o mais particular elo
i.ujeito é apagado pela constituição de um conjunto de diagnóstico.
O que chamamos de sujeito é o que faz com que possamos fala,·
Je um conjunto de participantes, onde cada um não somente seja difo-
ro11te de seu vizinho, mas também que o mais particular de seu gozo
Mr.ja um enigma para ele.
Estou tentando sugerir essa solução de continuidade entre as
.lotl·rminações que temos, isso é incontestável, e a resposta do sujeito

•' 1,,1,.,,,,J ,, " F.,,,.,,,,,,,, 5/ EIJl'-SP


a essas determinações; entre os dois é preciso reintroduzir a questão
da causa. Então, não é equivalente ter determinado tipo de mãe, de-
terminado tipo de pai, ser desejado ou não. Como sabem, existem neu-
róticos que se queixam de ser demasiado desejados e outros não o
suficiente. Dominique poderia até dizer que alguns até se queixam
de não serem desejados suficientemente tanto quanto demasiada-
mente, e então permanece aqui o enigma da resposta do sujeito. Cli-
nicamente, temos uma idéia da espécie de pai e da impostura com a
qual o pai está lidando, não a partir daanamnese ou do exame psico-
lógico, mas a partir da reconstrução do caso. Não sei muito bem
como avançar nesta questão, é preciso apreender clinicamente.
Sobre a última questão relacionada à neurose infantil. também
pensei na distinção feita por Michel Silvestre quando disse que a neu-
rose era a manutenção da solução adotada pela criança. Só que entre a
solução adotada pela criança e a solução do adulto, mesmo que formal-
mente se trate da mesma, há o encontro do sexual. Acho que Michel
Silvestre fala de resposta "anacrônica" num artigo sobre neurose infan-
til. Podemos fazer, então, uma releitura, a partir desse ponto de vista,
do caso do Homem dos Lobos ou do caso do Homem dos Ratos e ver
como o sujeito responde à questão do encontro sexual - de certa forma,
voltando às soluções que foram aquelas de sua neurose infantil.
Talvez o que não tenha sido bem enfatizado, falando dessa manei-
ra, é que não é a mesma coisa encontrar o sexual ou não encontrá-lo. O
que é esse encontro com o sexual? Me veio à mente uma fórmula que
Lacan faz do gozo sexual: enquanto tal, é promessa de recuperar o gozo
perdido ao falar pela via significante, e faz dele o embaixador do gozo
que falta ao sujeito. Isso faz com que exista sempre um risco em progre-
dir, em avançar para o gozo sexual; é o risco de que o sujeito se encontre
às voltas com o gozo, cuja perda constitui o sujeito. Portanto, aqui há
uma ameaça de aniquilamento. A criança tem uma solução para isso;

O /11(,111111 ~ ,r J,;,fn,f1m1 52 F.IJP-SI'


por exemplo, a neurose fóbica, decidir que não vai avançar na viJa
além de um determinado significante. Em Tt.le11ú,ii>, Lacan dá muit.i im -
portância à solução fóbica, e diz que é justamente a partir de lá dt" nndt•
Hans levava Freud e seu pai para passear que os analistas têm medo. uu
seja, os analistas permanecem aquém desse ponto de encontro.
Existem sujeitos que vão adiar esta colocação à prova do !antas·
ma, e sabemos como é difícil analisar pessoas de uma certa idade tJUl'

nunca tiveram relações sexuais e que procuram, na análise, um meio


de se protegerem desse encontro. Temos aí uma verdadeira dificulda-
de, diferente da maneira como o neurótico vai se virar com as conse-
qüências desse encontro.

D,mui11i111t Fin,t7emu11111:
Hoje, você nos expôs uma das condições do sujeito e a nomeou
"subtração de gozo". No seu testemunho do passe'', você utilizou vári-
as vezes a expressão "objeção ao saber". Pensei, então, se poderíamos
articular a "subtração de gozo" com a "alienação", e a "'objeção ao
saber" com a "separação". Nesse sentido, pensei, ainda, se a separa-
ção - a objeção ao saber • se coloca.ria do lado da resposta do sujeito ;\
sua determinação, tendo-se, assim, uma possibilidade de surgir mu -
dança, ou seja, não mais uma "insondável decisão do ser", mas unu,

posição de onde a análise pode incidir em termos de decisão.
No seu comentário sobre o texto de Lacan "As duas notas"' , vm·r
evocou uma diferença entre posição e estrutura e falou da possibilid.1dr
de mudança, talvez não do lado da estrutura, mas do lado da posii;ãu.

• Referência à apt'esentação de Marie-Jean Saunit na N,,;,,. ,1,. Cm,•rlh,, ,l,1 s~çl\11-São 1'1111 ·
lo, em 28/08/97.
7 Comentário realizado no nia 29/08/07; publicado neste volume.

O /11/i1111iJ r t1 E,,t,·11l11m [,;/jf'•.'/1'


Isso sugere uma lluestão clínica a respeito de como a incidência da
psicanálise poderia se caracterizar.

G/mz,1 S,zlonw11:
Gostaria de retomar algo que li em um de seus textos: a questão
da /11/twa como puro gozo.
Faço uma ligação com a pergunta que voce fazia, hoje, em rela-
ção às crianças do Brasil - que justamente não são cidadãs.
De certo modo, a Revolução Francesa ainda não aconteceu. É
um fenômeno da América Latina, para não falar do$ novos fenôme-
nos. Assim, existe uma perversão da civilização à qual estão submeti-
das as crianças, principalmente as crianças de rua, e na qual se obser-
va uma sexualidade precoce, a violência, a criminalidade. _E ntão, esta-
va pensando justamente sobre essa função paterna, essa função que
não existiu nessa situação, e sobre o período de latência ou mesmo sua
inexistência. Penso que seria algo a ser pesquisado. De todo modo, li
um artigo, de apenas uma nota, sobre o efeito, nessas crianças, da
ausência de latência; referia-se aos casos de criminalidade.

S1i111i1 M,~q,dhilt,,:
Ao ouvi-lo falar sobre a psicanálise com crianças hoje, incluindo
a orientação lacaniana, me lembrei de um texto de Bernard Nominé
onde diz que nos nossos meios psicanalíticos se fala muito mais facil-
mente do desejo da mãe, na sua primeira versão, do que do desejo do
pai. Ele observa que, na sua única aula do seminário "Os nomes do
pai", Lacan fala da "neurose inseparável aos nossos olhos", de uma
fuga diante do termo "desejo do pai", o qual se substitui com o termo
"demanda". É uma citação que ele faz da "Direção da cura".
Mas por que eu estou trazendo isso? Porque me pergunto, se-
guindo a idéia de que a psicanálise é uma só, se com a contribuição de

O hi/,mttl r II F.,t1•11/11m F./JP-SP


La.can algo mudou na concepção do que poderíamos pens11r 11obrc ;1

importância no trabalho com crianças.


Como você veria essa questão do fim de análise com l'rimu;as'(
Lembrando ainda Michel Silvestre que dizia ser melhor para o am,li -
sante criança. se assim pudéssemos lhe pedir, fazer sua neurose infan·
til em paz. Mas, frente ao que hoje sabemos do desejo do analista • na
vertente que impõe que é o pr6prio analista que tem a possibilidade
da escuta para que haja uma análise com criança -, como fica essa
questão do fim de análise? O senhor considera que alguma coisa mu-
dou em relação a isso'!

M,1rie-.le,m S,wrd:
Ainda agora, trata-se de questões decisivas.
Quanto à primeira pergunta, simplesmente diria que sim, para
correlacionar a "objeção ao saber" com a "separação"· o que antecipa a
resposta que eu poderia dar à última pergunta - e o que a "subtração do
gozo" dá à "alienação", ou seja, o efeito do significante.
Deixei de lado o que era a conclusão de meu texto, a saber, o que
podemos obter com o tratamento da criança. Me contentei com essa
resposta aproximativa: permitir que a neurose se efetue. Isto posto, se
considerarmos lJUe a metáfora paterna é um momento lógico. não~ .i

mesma coisa colocarmos a questão do que é uma análise antes ou dl'·


pois desse momento l6gico. Para falar como-Freud, esse momento ló-
gico introduz que não há sujeito inocente, nem a criança o é. Ela, n
criança, o sujeito, é culpada pelo assassínio do pai primitivo - preço n
pagar pela humanização. Preço a pagar para escapar de suas delermi-
nações. E é o preço a pagar para que recupere sua capacidade cll' ato.
De tal forma, poderíamos dizer que, pelo menos em seu objetivo, se
trata de trocar a inocência da criança pela responsabilidade; re11pon-
sabilidade que poderíamos associar ao objetivo fixado por Freud como

O /11/1111til, d F.•t1·11t11rrr s; F./IP-S/'


sendo o ganho na sua capacidade de amar e de trabalhar. Muitas ve-
zes se insiste nesse sintagma de Freud sobre o fim de análise e a recu-
peração da capacidade de amar; mas o próprio Freud observa que
isso não basta para os homens, isso não basta para que eles se unam
de forma harmoniosa. É preciso visar além dessa recuperação da ca-
pacidade de amar e de trabalhar, é preciso visar a inscrição dentro do
próprio laço social. E este é um resultado freqüentemente obtido pela
psicanálise, que é o de inscrever nos laços sociais aqueles que nos
procuram, mas que talvez subestimemos. pois nunca ressaltamos isso.
Penso que misturei um pouco as respostas. Vou falar a respeito
do puro gozo da criança que não é cidadã. Na França, tampa>uco a
criança é cidadã; neste verão, por exemplo, num grande número de
municípios, a polícia tem ordem para prender as crianças de mais de
doze, treze anos, que estiverem sozinhas na rua depois da meia-noite.
Os prefeitos não estão de acordo com Freud. Freud considera t1ue
uma vez ultrapassado o complexo de Édipo, elas são responsáveis pelo
que vão fazer nas ruas. Isso não desculpa os pais de sua responsabili-
dade como pais.
Gostaria de avançar nesse ponto através de duas formas. Pri-
meiro relembrando uma tese de Lacan. que consídero muito clara,
presente no Seminário A tnm4erlricitz, onde retoma a tese de Freud de
que a sociedade é repressora sexual, ou seja, a sociedade é homogênea
ao sujeito que a compõe, o neurótico, ele próprio reprimido sexual-
mente. No entanto, ele vai ter de se virar com o gozo, com o recalque
e com a repressão. Para isso, inventa soluções e, às vezes, essas solu-
ções são válidas para aqueles que estão ao seu lado. Freud chama isto
ele sublimação, e Laca.n observa que o que podemos chamar de nova
solução é um arranjo inédito com o gozo, ou seja, uma nova perver-
são. Apresenta como exemplo O ban1J11elr de Platão; o erótico, o
socrático, para não falar no amor platônico ou no amor cortês, qu"

O /11/;1111,I ,• 11 /l.,1111111m EJW.\'I'


vão mudar algo na sociedade, a tal ponto tJUe ela vai aumentar a re-
pressão. Lacan deduz que a perversão é um motor de renovação do
laço social.
Então vamos retomar a questão da criança .1 partir daí, num se-
gundo ponto. Como sabem, tanto na França quanto na Bélgica, há
hoje um enorme debate sobre a pedofilia, e o que surpreende nesse
debate talvez seja a sua debilidade. Nfl fundo, a justiça nos explica
(JUe é mal ter relações sexuais com crianças, e, como vocês já devem
saber, há processos nos Estados Unidos contra a sedução por parte
das crianças e, portanto, a criança pode ser condenada por ter seduzido
um adulto. Temos aqui um pequeno problema, não é? Não sabemos
explicar por que não deve haver gozo sexual com as crianças e por gue
o estupro é proibido. Acho que unicamente a psicanálise responde a
essa pergunta. Aqui, nos remetemos à questão do encontro sexu,\l. pois
se o sujeito é separado do gozo, se esta é a sua estrutura, recuperar o
gozo só pode ser leito conforme o seu desejo e de acordo com seu ato;
introduzir o gozo por força no corpo do outro é um crime em relação a
essa humanidade.
Vou apresentar um fragmento clínico de uma menina que fui
molestada pelo pai durante um longo tempo e que estava aterrorizada
pelo fato de ter consentido nisso; ainda mais aterrorizada pelas rnnse-
qüências para seu pai a <1uem ela ama e que havia sido detido. Então,
o que a apaziguou foi o fato de lhe dizer que quando se é criança,
desejar ter relações sexuais com o pai é normal - isso se chama com-
plexo de Édipo. O que não é normal é o pai ceder a isso. Neste caso,
l'abia a ele dizer não. O notável é o que esta menina observav.1, ela
~abia que ele deveria ter dito 'não'; portanto, ela poderia amá-lo por ter
transmitido esse não, já que é por isso que se ama o pai. Mas também
"l,1 poderia odiá-lo por ele não ter dito "não". Considero que isso situa
um pouco as coisas. Poderíamos situar, além disso, que esse horror que

( 1 /11/!11111/ ,•" 1<:,1mtw>1 Si F.fll'-SP


atribuímos ao outro que goza não é, no final das contas, nada mais
que o gozo do próprio sujeito. A partir do momento em que essa fun-
ção de delimitação do gozo não é cumprida, a criança também é capaz
de matar.
Ainda há uma outra pergunta, a última. Como sabem, esse es-
quema por mim apresentado foi justamente elaborado junto com
Bernard Nominé. Sim, acho que o passe deveria mudar alguma coisa
na psicanálise com a criança.
Vou dar apenas duas referências. Em primeiro lugar, porque a
criança se apresenta do lado do gozo que falta ao sujeito masculino;
portanto, é uma prática que mais do que outras solicita o fantasma do
clínico. Por isso acho que a psicanálise com crianças é muito ,nais
difícil. A tentação é ainda maior de intervir com o que ela está fazen-
do, principalmente porque ela não vai dizer nada.
Por isso, acho que o fato de o analista localizar sua perversão
como sujeito, localiza o que ele próprio é como objeção a todo saber;
esse fato deveria curá-lo da tentação pedagógica com relação à análise
com crianças. É apenas uma referência.

1l /11/;111/1/ r ,, f:,1r11f11m 58 EBl'-SP


Dize-me como tratas a criança,
e eu te direi qucn1 és

30 de agoslo de 1997
1. Trêd IJiiad
Ao propor este título, tinha em mente duas idéias. A primeira: a
constatação de que a psicanálise com as crianças representa, não 1raro,
uma subpsicanálise, uma psicanálise para principiante - isto é, explici-
tamente uma psicanálise que não está à altura do discurso analítico.
Existem mesmo psicanalistas que se recusam a receber crianças, por-
que elas tomam tempo, requerem um cuidado pa1ticular, acarretam in-
cômodos diversos. quando não estragam o material do consultório. Não
são elementos que cu considere desprezíveii-, porque podem tir.ar do
psicanalista a tranqüilidade necessária para psicanalisar. Mas podem
levar alguns, em nosso meio, a dedicar todo o seu tempo à psicanálise de
psicanalii.ta ou de analisantes ,1ue se orientam explicitamente para a
pi-icanálise, ou a análises de supervisão. É um problema, pois não é
garantido que os psicanalistas não fiquem, com isso, isolados da "subje-
tividade de seu tempo". Ora, vocês conhecem o duro veredicto de Lacan
em relação àqueles que sucumbiriam a uma tal eventualidade: "Seria
preferível que eles renunciassem ao exercício da psicanálise!".
A segunda idéia reside no meio mesmo do "tratamento" psicanalí-
tico da criança: a interpretação. Os trabalhos que apresentam casos de
<'rianças me dão, não raro. a impressão, como evoquei nas vezes anteri-
ores, ele que a interpretação com a criança seria de um outro registro

f) /11/;11,1il ,· ,1 /•:,1m111111 6(1 E/IP-SI'


que a interpretação propriamente analítica: ela deixa mais facilm,·ntt·
transparecer sua dimensão de sugestão, de conselho, de preo1.:upaçilo
educativa ou pedagógica. Em suma, sob esta forma também vê-se qut• o
psicanalista se permite com a criança intervenções que não se autoriza.
ria com um adulto. Mas, pelo menos, ele tenta intervir no nível requeri-
do .pelo sofrimento de seu analisante. Pois, me parece, igualmente, que
certos "acompanhamentos" de crianças merecem bem este nome: o psi-
canalista se contenta em receber a criança e em, literalmente, o "acom-
panhar". Trata-se então, de certa forma, de uma clínica sem ato. Para
dizer a verdade, freqüentemente, ela é menos a ação de psicanalistas
que de psiquiatras e de psicólogos que se autorizam unicamente por sua
formação universitária e que não têm nenhuma concepção sobre o que
poderia ser o ato que convém à direção da análise.
Aí ainda, não se trata de contentar-se com denunciar esta práti-
ca, na medida em que esses psiquiatras e psicólogos respondem a um
pedido social que cria as instituições para receber crianças junto das
quais eles são, freqüentemente, os únicos que podem trabalhar. Sim-
plesmente, se eles não escolhem o lugar que lhes impõe o pedido soci-
al. eles têm a escolha de sua resposta. Em relação a isso, lembro a
vocês duas observações de Lacan. A primeira é um convite a exami-
nar essas instih1ições, pois elas nos dão uma idéia precisa da forma comu
o campo social entende tratar o sujeito. A segunda é uma denúncia cios
próprios psicanalistas por, não apenas não terem sabido impor a 1..·on-
cepção do sujeito que decorre da descoberta freudiana, mas aind" por
se terem feito os cúmplices de uma psicologização, e até mesmo de
uma mitologização dos indivíduos, que entrega estes últimos mãos t'

pés atados ao tratamento a que o campo social entende submetê-los.


Contudo, é uma terceira idéia, uma piada de mau gosto ,1ue ouvi
na França. que me parece a mais propícia para entrar no cerne do ilS-

sunto: "alguém que não gosta das crianças não pode ser essencialmente

6/ Enf>-SI'
mau!". Um tal aforismo, que lhes peço esquecer assim que a confe-
rência acabar. não nos leva do lado das concepções evangélicas do
estilo "deixai vir a mim as criancinhas". tampouco do lado das motiva-
ções caritativas do estilo "querer o bem do próximo". O que já é mui-
to, pois querer o bem de seu próximo, Freud nos preveniu, equivale,
muitas vezes. a amar-nos na imagem de nós mesmos que ele nos de-
volve, a odiar o que ele encarna de estranho e, sobretudo, a gozar às
suas custas.
Mas existe uma outra razão que Freud havia abordado sob a
forma de um chiste. Trata-se da resposta de uma moça, candidata a
um emprego de babá, no qual seus futuros patrões perguntam quais
são as garantias de competência que ela oferece para poder cuidar
das crianças: "Eu já fui criança!". Ora, a descoberta de Freud 'con-
siste precisamente no oposto: se não sabemos o que é um.i criança, é
que nós esquecemos a criança que fomos. Nós a esquecemos porque
a recalcamos. E essa amnésia é a prova de que não amamos estrutu-
ralmente aquela criança! E que está aí uma condição da efetuação
da neurose.
Essa observação faz constatar a invenção freudiana: no infantil é
o que da criança não se desenvolve, porque se trata daquilo que o
sujeito é como gozo inemilinável, irredutível. que ele deve ao fato de
ser falante. Não podendo separar-se dele, resta-lhe o recurso do
recalcamento que localiza o infantil como traço de perversão no fan-
tasma, como meio de um ganho sobre o gozo no sintoma, etc. Sabe-
mos que no fim, a análise conduz o analisante a esse ponto: à desco-
berta do que ele mesmo é como gozo, isto é, como objeção ao saber.
Mas sabemos também que esta saída. se ela está no horizonte ela aná-
lise com uma criança, não está a seu alcance imediato. Digamos ape-
nns que é da responsabilidade do psicanalista que recebe uma criança
n;in torná-la definitivamente impossível.

t 1 /,i/i11111I ,· ,, l·:,11wt11m 62 F./IP-S/'


2. O Tralmnento
Então, do que se trata em uma análise com uma criança'! Já o
sabemos. Pode ocorrer que a criança seja ''o sintoma da verdade do
casal familiar" ou, de qualquer modo, que seu sintoma dependa Ju
subjetividade do outro. Essa definição do sintoma está confonne n
uso que dela faz Lacan, referindo-se a uma mulher, quando esta loca-
liza o gozo de um homem: ela é um sintoma para ele. Da mesma for-
ma, a criança localiza seja o gozo de uma mãe, seja alguma coisa do
gozo do casal parental. Neste caso, o trabalho clínico se orienta, às
vezes, em direção aos pais.
Por que não'! Contanto que não esqueçamos que esta criança é
suposto sujeito. E esta é a segunda acepção do sintoma, aliás não for-
çosamente incompatível com a primeira. O sujeito correlacionado com
a criança pode ser lJUestionado efetivamente quanto à sua relação com
esse gozo que ele encarna e quanto a seu consentimento em encarná-
lo. O encontro com esse desejo o confronta com o seu próprio desejo.
É, aliás. assim que Freud trata Dora que se <.Jueixa que seu pai a deixa
nas mãos do senhor K, em troca da complacência deste último a res-
peito das relações do pai com a senhora K. O que Freud pergunta .1

Dora'! Ele lhe pergunta qual a participação dela nesta situação cfo
qual ela declara sofrer. Vocês conhecem a resposta: enquanto seu p;ii
ílerta com a senhora K, ela cuida dos filhos do casal K. para permitir
à senhora K ficar disponível!
O clínico atento descobre então o sofrimento de um sujeito ,)s
voltas com um desejo, que leva este último a oferecer-se à<Juilo ele lJU~
ele sofre e que, se não constitui, pelo menos "inílama" seu sintoma. O
sintoma é, portanto, também o de um conflito próprio do sujeito e do
qual o Outro parental, no exemplo, não tem idéia. Se a int<'rpretaçâo
é o instrumento da análise, como ela opera?

O ln/1111111 ~ ,, E.,tml11m F.81'-SI'


J. OJ ParadO.TDd 'ila lnterpref.afão
Nós o sal>emos: o significante divide o sujeito do gozo, e as com-
plicações do sujeito resultam da forma como se enodam o significante
e o gozo no sintoma. Um sintoma ineliminável. pois que real, simbóli-
co e imaginário - de que o sujeito é constituído - só se mantêm juntos
graças ao sintoma, se o sujeito é neurótico; graças a uma suplência (e
até mesmo um Ji111home), se ele é psicótico. Sabemos, em conseqüên-
cia, que a interpretação deve visar o real do ser de gozo do sujeito a
fim de "modificar" a solução fantasmática e permitir um enodamento
diferente. Eu não me estenderei sobre a modificação da solução
fantasmática, querendo apenas indicar que o fantasma deve ser toca-
do e mesmo "atravessado".
O ser de gozo do sujeito é um buraco no simbólico, uma vez que
o simbólico só existe por excluí-lo. Esse buraco constitui o recalque
originário, um buraco que só cessa por ser interpretado:~. aliás, o que
recentemente Jacques-Alain Miller nos lembrou com sua fórmula "o
inconsciente interpreta". O inconsciente só faz isso. E justamente essa
interpretação pelo inconsciente só faz acrescentar ao fracasso do fan-
tasma a ser tratado o gozo irredutível: ela nutre o sintoma mais que o
atenuaria se ela o reduzisse ao que ele tem de irredutível. O que vai
fazer o psicanalista? O que é a interpretação psicanalítica? A inter-
pretação se resumiria a um uso do significante? Qual'! O ~ignificante
é capaz de um duplo efeito. Primeiro, um efeito de buraco, de enco-
menda para o nosso propósito: ele divide o sujeito do gozo, escamo-
teia o objeto de gozo que nomeia, orquestra o desaparecimento do ser
de gozo do sujeito mesmo que se engendra por fazer-se representar
por um significante para um outro. É, aliás, por isso que toda articula-
ção significante é, ao mesmo tempo. demanda de restituição de um
mais-gozar.
Mas o significante acarreta um outro efeito: o efeito de sentido

lJ /11(n111il r 11 /t.,rmt11m EBP-SI'


que fica no lugar do gozo com o qual ele orquestra o desaparecimen-
to. De sorte que o sujeito goza com esse sentido que substituiu o gozo:
o que Lacan designa como .'J11za-.1en1t,Jo 1- e que constitui um obstáculo
maior à análise. Freud, que localizou este obstáculo como tal. reco-
mendava servir-se dele para permitir ao obsessivo instalar-se na tran11·
ferência, mas com a condição, em seguida, de não deixá-lo gozar com
as sessões. "obstando" a transierência.
Esse duplo efeito resulta da característica do significante por ser
sempre reversível em outro sentido: o que aprendemos a escrever S2.
Lacan foi assim levado a distinguir três estados de língua, segundo a
forma como ela trata o sentido. Ele retoma, retificando-a, uma distin-
ção antiga entre palavra plena e palavra vazia. A palavra plena é a
palavra plena de sentido, aquela que se vale do duplo sentido, do equí-
voco. A palavra vazia é a que se livrou do sentido em proveito da
comunicação: seus prot6tipos poderiam ser colhidos na comunicação
animal, se essa comunicação se apoiasse numa língua e, mais segura-
mente, na comunicação científica - o que eu estou tentando fazer di-
ante de vocês!
Conhecemos os inconvenientes desses dois estados de língua em
relação à interpretação: a palavra plena de sentido organiza o fracasso
do real que ela visa, substituindo-lhe o sentido com o qual ela enchar'-'ª
o sujeito e seu sintoma; a. palavra vazia. elimina o significante em sua
função de representação do sujeito para um outro significante. Ela u
elimina em proveito de signos certamente não equívocos, inaptos a
transmitir o que quer que seja do sujeito, mas capaz de captar o r~.il
da ciência. Temos, então, de um lado, a palavra plena que veicula "111-
guma coisa" do sujeito sem poder captar seu real, e do outro. unrn

1 NT: em francêsi111i.,-.~11., que pro.luz homofonin cum1,•11i.1,,,,,,..,, gu:.o

O h,ji1111i/ e,, F.,tm/11r,1 65 F./IP-SI'


palavra vazia capaz de captar o real da ciência ao preço da renúncia
ao sujeito.
Daí a procura, por Lacan, de um terceiro estado da língua tJUC,
como a palavra plena, veicularia alguma coisa do sujeito e, como a pala-
vra vazia, permitiria cercar-lhe o real. Ele vai procurar esse estado da
língua do lado da poesia, mais particularmente da poesia chinesa. Lacan
retém da poesia que fracassa que ela é capaz de desembaraçar-se da
significação. Ele deduz daí que o problema que a interpretação psica-
nalítica deve resolver consiste em constatar o duplo sentido do
significante, para só desembaraçar-se de um 1í111'rt1 Jm/1,Jo. Como'! Redu-
zindo um só dos dois sentidos do significante a uma significação - não
importa qual: uma significação que tome impossível ao sentido queres-
ta verter em um outro sentido. Ele chama .,mtitl11 lmwc,1 esse sentido
irreversível. daí em diante disponível para outra coisa t1ue não para se
articular a um outro significante e reverter-se em um outro sentido.
Essa definição parece abstrata. Vamos esclarecê-la clinica~ente.
Por enquanto contentemo-nos com torná-la transmissível. Seja um exem-
plo de duplo sentido. Cada um dos significantes dessa pergunta é equí-
voca: "Qual é o comprimento médio de um crocodilo, da cabeça à cau-
da'/". A resposta é suscetível de suspender todo equívoco, reduzindo-o
à significação de uma comunicação científica: "Dois metros". O que
ocorre se torno a lançar a pergunta: "E qual é o comprimento médio de
um crocodilo, da cauda à cabeça, na subida?" Não sei se vocês ficaram
sensíveis ao efeito de Jtm-JmtiJ,, que nos confronta imediatamente com
as fronteiras do simbólico. Eis o que eu queria sugerir-lhes: o JmtiJn
lmwm, porque, não estando atulhado do sentido nem da comunicação,
fica disponível para cifrar o real. nas fronteiras do simbólico.
O exemplo do crocodilo apresenta um limite, por ser um jogo de
palavras que mobiliza o cômico, isto é, que chama em auxílio o
significante do cômico, um significante que nos garante que o Outro

( J /11/;1111il r II J,;,1rut11m 6/S EBP-SP


não está em perigo - o falo. É preciso, pois, um passo a mnis na inkr·
pretação psicanalítica: que ela incida precisamente sohre o pnntn ondl·
não há Outro que responda, dando a oportunidade ao sujeito <ll' lnl'.l·
lizar ali o que ele seu ser faz objeção ao saber.
Para dar uma idéia do que pode ser essa significação lJUe libera o
,1enllÜ,1 /,rnnco para esse uso, La.can inspira-se na poesia cortês. Trata·
se de uma poesia que põe em seu centro a figura da dama, quando o
significante escamoteia até foracluí-lo, o Outro sexo, para concluir
sobre sua inexistência: "o amor é vazio", ou melhor. assim como Lacan
rende homenagem a Freud por tê-lo lembrado à nossa civilização "a
morte é o amor". Fim da demanda de restituição do gozo perdido ao
falar, porque o objeto da demanda não existe. Com isso, o poeta cortês
inventa uma poesia que vai mudar, por séculos, as relações entre os
homens e as mulheres na Europa. O cavaleiro que saía em bando,
violando e raptando as mulheres que cobiçava, o mesmo que de dia
escrevia a poesia cortês, pôs-se daí por diante a desejá-las, sob o efeito
de sua própria interpretação.

4. O Pequeno HanJ
Por muito tempo, li a intervenção de Freud em relação a Hans à
maneira da de Melanie Klein junto a Dick: como um enxerto signifo:ank
do Édipo, uma molécula de Édipo, como nos diz Lacan, que vai prolif~-
rar. Contudo, uma particularidade nos chama a atenção: com sua inter-
pretação, Freud inventa o complexo de Édipo na análise. É a primei,-.,
vez que tal intervenção ocorre: por essa razão, ela constitui uma saída
fora dos limites do saber habitual. Devo a Pierre Bruno haver retom11-
do a estrutura dessa interpretação.
No fundo, poderíamos imaginar que um dos problemas cl.i inter·
pretação consiste em percorrer os ditos do analisante, ~m indicar o que
os ordena e os organiza, o que imediatamente permite constituí-los nllno

O h1/,111til e,, E•trul11m 6í 1-:III'-SI'


conjunto: trata-se, portanto, de encontrar um apoio fora do conjunto
dos ditos. Essa enunciação, cujo sujeito não seria localizável no con-
junto dos ditos, é o que Lacan nos ensinou a distinguir do Jito como
1Jizer. Em que a interpretação de Freud seria um tJize.r'l
Lembremo-nos dos termos em que Freud os traz: "Bem a11lr,, de ti,
,,,i· ao 1111mJ,,, m JÍi .,a/,ifl </flt 11,1,1reni1 um prqurno llfll1J que 1i·ti1 ,t/tM/111· tm1/11 dt'
,111fl tntir q11e, pm· c,wJa <)ú.111, 11110 dú'Clu·,a de Jt11tit· múJo de Jm pa,;· <' o b111 ti1
1

L'tJllltU)o ti J(II pm'. ''. Que se trata exatamente de uma interpretação é con-
firmado pelas conseqüências da intervenção de l''reud. Primeira conse-
qüência, o comentário de Hans: "O prt,jr,IJOI' t,1m•e,w1 com Dm,1 pam Jilbtl'
1tuJo 1:1Jo Je antem,iii?". No fundo, a intervenção de Freud se reduz a um
"T,u)o 11 'l"e l'tlci 11~ diz, H,111J, mif o ,1t16ia. ", Mas, de onde Freud o sabe'!
Eis a questão induzida por Freud, questão que faz existir um sujeito de
uma enunciação inlocalizável nos ditos de Freud, como nos ditos de
Hans - o sujeito dessa enunciação inlocalizável que, com ,irmtÍl, 1Hans
situa do lado de Deus. Nesse sentido, a interpretação de Freud mobili-
za um impossível dizer.
Existe um segundo efeito que, aproximado da admiração de Hans
suscitada pelo que chamaremos impropriamente o "dizer de Freud",
sublinha um pouco mais a estrutura da interpretação. Com efeito,
passado o tempo para compreender o que o professor lhe en1;1nciou,
Hans retruca a seu pai: "Por </llt 1'flL'i me cliJJt t/llt: m mno m,wuit t 1111e l por
i.J,,n ,111r eu tenb1111uJo, t/fllllldo l 1•11ci quem amol''. De alguma forma, Hans
declara que o professor fala certamente com Deus para predizer o
futuro como ele o faz, mas que sua predição é falsa. Por que ele não
retoma a sua apreciação do professor e declara que é ele, o professor
Freud, que está errado? Porque precisamos atribuir essa contradição
precisamente à interpretação.
A interpretação tem como efeito captar um ponto exterior ao
conjunto dos ditos que, por essa razão, designaremos de real. mas,

(l /11/i111fll r II f~1fl•11/11m 6K EBP-SI'


por marcá-lo com o significante que lhe pertence no l'onju1110 do!I
ditos. De alguma forma, ela tem como efeito produzir um;1 •'. l]Uiva-
lência entre A e não A: é, nem mais nem menos, a inconsistêncin do Outro
que faz se equivalerem o real do sujeito e seu ser como fato de clilo <JUC <'
assim produzido. Essa inconsistência revela a verdadeira estrutura du
Outro, que não é de 1.111"11mpldeza: falta o significante que diria o ()UC éo
Outro sem resto. mas significante ao qual. a partir daí, se poderia supl.t··
mentar justamente com o significante de uma falta no Outro. Ess11
incompleteza não é de absoluta 1i1e.,1:11it1c1i1 ,J,, 011/m: apesar das afirma-
ções mil vezes repetidas da inexistência do Outro, continuamos a falar, a
ler autores, a realizar encontros ... Não existe Outro do Outro, Outro <JUe
paliaria as faltas do Outro. Não há Outro a não ser do real: ao tentar fazer
do real do sujeito um elemento do Outro, o Outro se torna inconsistente.
Sem dúvida, se-ria necessário levar esta releitura do caso Hans
até o isolamento pela criança dessa mancha preta na boca do cav,tlo,
onde se focaliza o mais heterogêneo e a causa da fobia.
Será que- toda interpretação psicanalítica, na medida em que
mobiliza o real. não induziria que tanto o analisante como o analista
"já o sabiam"? Já o sabiam no sentido em que o que a interpretação
introduz é precisamente o (JUe permite traçar os limites do saber. Esse-
ponto além desses limites, por ser trazido ao interior dos limites do
saber, pelo fato mesmo de ser indexado pelo significante, denunl'ia ;i
inconsistência do Outro com esse efeito de in111in que não está ausente
do caso Hans.
O exemplo do pequeno Hans torna perceptível o apelo ;w lug;ir
inlocalizável no Outro do sujeito da enunciação da interprC!t,u;áo psi-
canalítica: é a coincidência desse lugar e do real. portanto, qul' pl'rmi-
te definir não o dito, mas o dizer inaudível e, por essa rn1..in,
impronunciável dessa interpretação.

() l,,fa11til r II F.,tm/111>1 F./11'-SI'


5.EI
A fim de precisar o que pode ser a interpretação com a criança,
apresentarei um fragmento de minha prática que se apóia no desenho
- mas demonstra sua relação com a escrita.
EI é um menino adotado por volta dos três anos de idade, tendo
hoje oito anos. Nascido na América Latina, ele começa a questionar
sua mãe sobre as suas origens e o abandono inicial e não faz mais seus
trabalhos escolares. Ele se encontra atormentado pela questão de sua
origem - como todo sujeito, sem dúvida - mas sua questão o embaraça
precisamente porque encontra uma consistência imaginária, um sen-
tido, no fato justamente de ser adotado: o que contamina tanto o pro-
blema de sua identidade - Sou /1m11co 1/f1 prtt,1? - como o saber escolar
em relação ao qual se encontra inibido, principalmente na aprendiza-
gem da escrita.
Durante algumas sessões, ele se recusa a ficar só comigo. As mais
das vezes, ele se senta ao colo de sua mãe, a quem ele faz falar em s~u
lugar. Interrompo, então, as entrevistas, propondo-lhe que só volte se
quiser. Ele volt,l e. desta vez, deixa a sua mãe em um espaço lJUe se
encontra entre a sala de espera e meu consultório. E aí ele desenha
várias vezes uma bandeira azul-branco-vermelho. Cada vez que eu o
nomeio "francês", ele pinta o branco de amarelo. Débil. preciso de
várias sessões antes de ter a intuição que ele tenta casar duas bandei-
ras em uma - a de seu país de nascimento e a de seu país de adoção.
Em um sentido, ele faz da bandeira, um S1 por definição, um S 2, um
significante equívoco, que seria reversível de um país a outro.
Eu lhe digo, interpretando que, com isso, ele faz a bandeira de
uma nação imp11,,.,(,1e( Efetivamente, parece-me, 11 f'/1,iltrtill'i, que essa
interpretação é muito precisamente construída em cima do moclelo da
interpretação psicanalítica que Lacan toma emprestado à poesia. Po-
demos eonsiderar o desenho da primeira bandeira como um significante

(l /11/i111ttl ,· ,, t,;,r,·,1111r,1 i// 1:-:11r.sr


sob o qual a criança se esforça para localizar-se, ao mesmo tempo cm
que tenta deter o escoamento do sentido. Ele só consegue produ1.ir
uma segunda bandeira. Eu lhe interpreto isso de alguma form;t !!Ígni-
ficando-lhe que não existe país que corresponda à sua demanda : de-
manda de um país cuja bandeira, que mistura. as cores do país ele ;1do-
ção e do país de origem, seria o significante. Esse país não existe: o
amor é vazio. A nova bandeira fica reduzida ao que Lacan chama um
JetttiJo lmzn,-o, disponível para indexar um real. Já fora da sessão, um
pouco mais tarde, ele anuncia à sua mãe: ''.11.qom eu ,1011 nuzrmm d111~1. "'.

Tudo se passa como se a bandeira que ele escreveu, suplementada


com minha intervenção e elevada por ela ao impossível, mobilizasse -
eu não tenho outro termo - esse ponto de real inlo~alizável na
enunciação de El ou da minha. Sua criação faz EI depender a existên-
cia desse impossível do que fica indeterminado na enunciação da in-
terpretação. Evidentemente, a conseqüência é uma pacificação do su-
jeito. Na sessão seguinte, ele desenha. uma mulher nua - branca, de
qualquer forma não pintada de marrom-, furando o papel no lugar do
sexo para corrigir um "erro" - uma mancha puntiforme, da qual se
teria podido crer tratar-se de um pênis. "O ,tt.~O Je lll1ltl llllllhrr" não se
vê, comenta ele, como para melhor me advertir do real de que se trata.
Contudo, é demasiado cedo para dizer se ele questiona além do rtrnl
da castração materna. o do Outro sexo.
É claro que a bandeira da identificação imaginária impossível
constitui como tal uma invenção "poética" ... a partir do momento ~m
que o psicanalista o acolhe como tal (precisei de tempo para ii.so) .
Essa criação deslastra o sujeito do gozo do lminc11: a cor de sua nnv,a
mãe na qual tentava restaurar-se narcisistamente, ele, o abandonado.
A interpretação, com seu efeito no real, ratifica o abalo das identilic:t-
ções de El pelo encontro da questão da origem; esta parece precipitá-
lo em uma outra identificação: "Eu Jllll m111n1111 t.ft11~1. ' '. gsse 1111mY1111

O h,ft111t11 ~ a F.1trut11ru 71 E/JP-SP


encerra em francês recursos de equívoco que não são de mau prog-
nóstico: mais vale ser 11u1nY1m 2 do significante - isto é, tolo -, pois ao
menos os 1ui<J-1t,l1>J ermm 3• Mas é a pulsação que precede sua conclu-
são ,1ue devemos reter: o momento em que o sujeito descobre que
bmnc(J e 11uir1YJm são apenas significantes. mas que ele não dispõe se-
não do significante para se responsabilizar por sua identificação (até
se "descolar" do desejo de sua mãe). Certamente, não se trata de um
fim de análise no sentido requerido pelo passe, ainda que aquilo que
distingue essa saída de um passe não seja da ordem da restauração de
um identificação: não há sujeito desidentificado.
Ele só dispõe do significante e do contraponto do pedacinho de
gozo que ele sacrifica para simbolizar, com a castração, o gozo perdido
ao falar. Lacan nos ensinou a procurar essa cessão de gozo do lado des-_
ses objetos irredutíveis ao significante. Não se trataria aqui "claramen-
te" do "lhtzr? Entre o interesse pela cor de sua pele e o sexo que não se,
vê, há no consentimento em sua cor de origem um consentimento em
ser sob o olhar de sua mãe, até mesmo um consentimento em reduzir-se
ao objeto olhar desnarcisado ... antes de narcisá-lo de novo.
Confirmação de que, para "apanhar" o real, o sujeito aposta exata-
mente aquilo com que tenta simbolizar sua castração, a l.i'hnt tk cnme que a
pulsão contorna, mas que constitui o osso do seu narcisismo, uma vez que
aí localiza o que ele considera o suporte de seu ser. Em suma, ele o reveste
com seu eu (®u). Isto é precisa.mente o que cai no passe: essa ganga
narcisista que toma disponível o objeto a como consistência lógica.
A interpretação que obtém a divisão entre a ganga narcisista e a
consistência lógica do objeto me parece poder ser qualificada como
poética: ela detém o gozo do sentido pelo engendramento do real no

' NT, v!lima enganada na gíria do francês.


' NT, Ir., 11,111-d11pr,, er1·mt. que produz homofonia com lu n11m.1-d11-pert' • os nomes-do-pai.

/J /11/;11,ti/ ,· ,, f~•fmf/11>1 i2 EJJP-SP


qual sustenta essa consistência lógica. Nós tocamos aqui nas 11uestõc~
mais candentes da psicanálise. Apesar da dificuldade Je estrutura,
deixem-me sugerir o seguinte: no passe, o objeto se torna, então, letrn
viva, uma vez que esta última designa o real engendrado pt!la
enunciação mesma. Para que a letra fique assim disponível para o real.
é preciso efetivamente que o sujeito renuncie a travesti-la: é o «]UI! f
designado pela expressão "queda do objeto" com a travessia das iden•
tificações que esse último sustenta. A interpretação mobiliza um pon-
to de enunciação inlocalizável, segundo a fórmula de Pierre Bruno,
tanto em seu desenho da bandeira de uma nação impossível (uma vez
que ele misturava as cores da França e de seu país de origem) como
em meu enunciado dessa impossibilidade. Essa impossibilidade torna
o ponto de enunciação inlocalizável disponível para o real. A criança
se assegura de sua identificação, de sua pertinência à comunidade dos
humanos, mais do que à de uma nação, a partir dessa colocação em
jogo de uma função de exceção: existe um real que escapa ao
significante e limita o hábitat da linguagem.
Na sessão seguinte, ele faz um desenho em que junta olhos e
meu nome e inclui o conjunto em um rosto, levando sua obra de ma-
neira decidida para oferecê-la à sua mãe: confirmação de que o objl!to
em torno do quaJ ele se constrói e que reconstrói na transferência. é u
tipo de olhar que ele é para ela. Vocês se lembram também que a inter-
pretação é imediatamente seguida do desenho de uma mulht'r forad.i
no lugar do sexo com esse comentário: ''V ,,e.Yo tlt uma mulher n,l11,1t' ,,/".
Não seria uma confirmação do que Freud chamava "a sohrl'tax11 dCI
infantil e do feminino" e que, para o sujeito correlacionado l'om a in-
fância, como para todo sujeito, "o real já está ali"'!

6. Padde e Fim
Várias vezes fiz alusão ao passe, esse prol·edimento inventado

V lrrf,111111 r rr 1-:,tmt111n rr 1-.:til'-SP


por Lacan para registrar o testemunho do anaJisante que passa a analis-
ta e localizar sobre o que se efetua essa passagem. Sabemos que esse
momento é aquele em que o analisante, de um lado, se reduz ao que ele
é como objeção ao saber, o que dele objeta ao todo homem; e que ele é
também consentimento em fazer servir essa descoberta na análise de
um outro. Eu me explicaria sobre o passe em um outro momento.
Contudo, gostaria de retomar pela enésima vez uma anedota sus-
cetível de dar a perspectiva de nosso trabalho. Já evoquei como o
sujeito, não podendo responder à pergunta do que ele é, se assegura
pela identificação de sua pertinência a uma comunidade - familiar,
grupal, de casal e, primeiramente, humana. Com a condição de renun-
ciar a uma parte de gozo que lhe constitui o Limite exterior e na base
da qual ele imagina o que seria para ele o horror do gozo e mesmo da
fibrura do pai real. Ele se dá uma teoria de sua pertinência à comuni-
dade e da natureza da fronteira: o fantasma. Uma análise leva o sujei-
to até avaliar não apenas essa teoria, mas assim como Hans e El 'o
sugerem, essa parte de gozo a que seu ser se reduz.
Gostaria de evocar mais uma vez uma experiência de travessia
selvagem do fantasma. Trata-se dessa equipe argentina de rugby, cujo
avião se espatifou nos Andes. Aqueles que não morreram no acidente
só puderam sobreviver graças ao fato de ter devorado os mortos. Fi-
quei particularmente tocado pelas explicações de um deles sobre o
que havia de horrível nessa história. Tratava-se do estudante de medi-
cina que teve a responsabilidade de retirar a carne dos cadáveres. O
horror estaria ligado ao fato mesmo de ter caído em um lugar inóspi-
to'! Não. Eram desportistas e, assim, resistentes nas dificuldades. En-
tão, estaria ligado, para esse homem, ao fato de que ele teve de cortar
a carne de seu próximo morto? Tampouco: estudante de medicina, ele
já havia dissecado cadáveres, o que fizera com respeito e da forma
mais limpa possível.

() ,,,,;,,,,,/ ( ,, f;,,,.,,,111>1 7./ E/JP-SP


Ou seria o fato de dever a sua sobrevivência à ca,·ne de um outro
humano? Não exatamente, uma vez que na medicina, as lransl'usõC's
de sangue e transplantes de órgãos são agora práticas corriqueiras.
Não, o horror tem a ver com outra coisa. Tem a ver. primeiro, l'Olll 11

teoria, que acreditamos universal, do que é um homem: é homem a<Juele


que renunciou a gozar às custas de seu próximo - proibição do inct.·~-
to, interdição do assassinato e do canibalismo. Essas três modalidades
do não ao gozo traçam a fronteira da humanidade. E eis que, para
sobreviver, aqueles homens precisaram atravessar essa fronteira t.'

devorar seu semelhante. Ora, o que aconteceu'? Precisamente nada.


Eis o horror, um real de um novo tipo: não há pai real. no sentido do
fantasma, para nos garantir nossa humanidade. Nada nos garante
quanto à nossa humanidade. Só existe o signihcante,./itz-de-ro11/a 1 o do
interdito. O horror do pai real, do qual era suposto comer seus fühor,;,
está, contudo, justificado: uma vez que esse horror. esse inumano que
assegura cada um quanto à sua humanidade, habita cada um que se
descobre capaz de devorar aqueles que ama. Mesmo a criança, con-
cretamente comercializada aqui, é ali um assassino.

Discussio
Debatedora: Alba Abreu Lima

AI/Jt1 Ahrm Lim,1:


Agradeço a Marie-Jean Sauret, pois durante esses dias tivemos
uma explanação brilhante e muito precisa sobre alguns conceitos muito
importantes da clínica. Tenho questões a colocar; algumas provm:,ulai-
pelo próprio título, muito sugestivo. Na verdade, são seis questões,
talvez já respondidas através da própria conferência. Coloco-as, por-
que me fizeram pensar:

7í 1':/IP-S/'
l. Considero que esta seja uma pergunta de muitos, não só mi-
nha: Que resposta o analista pode dar, trabalhando numa instituição
pública, sem ser tomado pela ordem social ou da ciência?
2. Eu gostaria de ouvir sua opinião sobre os analistas que não
atendem crianças. Existiria uma justificativa. lógica para isso'!
3. O terceiro ponto, abordado de forma muito dara em uma de
suas conferências, refere-se ao equívoco de tratar a família, uma vez
que se trata do sintoma da criança, um gozo do par parental ou gozo da
mãe. Enfim, esse equívOl.'O de tomar a. família em tratamento.
4. Uma <JUestão sobre o "sentido branco" (Jen,, btmc) . Ela. seria
correia.ta da proposta de Laca.o: o psicanalista como retor (rrctmr), no
sentido de que ele faz um jogo para equivocar. Em português, traduzimos
por retórico. Mas, rectifie (em &ancês), nos remete à questão da pulsão.
6. Na "Conferência norte-americana", Lacan fala que a estrutu-
ra da interpretação é a mesma do sintoma. Quando você fez um con-
junto no quadro, propondo a equivalência entre A e não-A, fiquei pen-
'
sando se a definição da inconsistência do Outro poderia ser pensada
aí. Apresento como uma questão, uma dúvida.
6. Uma questão sobre a sua intervenção no caso clínico. Traba-
lho com adoção e adoção internacional. O caso me interessou muito
porque, na minha experiência, é difícil convencer os juristas disso que
você interpreta muito bem com o "sentido branco", de que é pr~ciso
ultrapassar, não uma identificação a um país (Colômbia, França, etc.),
mas ultrapassar para pertencer ao mundo dos humanos, ao ser falante
que tem essa perda de gozo. Não é uma questão, mas uma resposta.
que você me deu. Obriga.da.

D,mun_qo., Paulo ln/tznte:


A minha pergunta se refere a. algo que você tratou muito rapida-
mente no começo de sua conferência: a. demanda na análise com crianças.

( I /11/;111/il r ,, F. ,tm/111-., i6 EBP-SP


Na sua tese, D111i~/1111til à t.Jlmt11m, você trata essa questão da deanancla,
transferindo para uma questão da angústia que a criança tem em relação
ao sintoma e que configura, de certa forma, uma demanda, não de an,ili-
se, mas de um certo alívio em relação ao excesso de gozo do sintom;1.
Gostaria que você comentasse alguma coisa nesse sentido.

Angeliniz H,zrt1ri:
Minha pergunta retoma uma questão de ontem. Entendi que
Marie-Jean Sauret faz uma diferença entre letra e escrita. Gostaria
que comentasse isso, se possível, na medida em que, com Lacan em
"Lituraterre", vemos como, com o significante, fazemos caligrafia, <-1ue
ele não serve para escrever. Dessa forma, L.ican nos conduz à letr-a.

Luiz l~zrltJJ N,~q11etin:


Apreciei muito a maneira como você interveio para interpretar o
desenho do menino adotado. Me pareceu um exemplo muito preciso
do uso da lógica no trabalho analítico.
Gostaria que você falasse alguma coisa mais sobre isso, ou seja, o
trabalho com a ambigüidade da linguagem a partir do pensamento l6gico.

Manit L1lcú1 Pe.,.u111:


No seu relato de quinta-feira (28/08/98), realizado na Noilt ti,,
Gm.,elb,, da Seção São Paulo-EBP. o senhor nos fez compreender, no~
passou a idéia, llUe quando um sujeito se depara com a não exi11tê1n·ia
de um Outro do Outro, acontece uma regulação de um novo laço 110-

cial. De um lado, há um ganho de saber sobre o seu gozo e, de outro,


surge uma apreensão no sujeito.
Essa apreensão estaria ligada ao impossível? Ou seja, quando se
procura uma análise, se lida com a impotência e se sai pelo impossível'!
Esse impossível estaria ligado às pulsões parciais relativas a cada suj~ito'!

(} lnf,1111iJ ~" E.•h·11f111w li


Ana Lydi,z S1Znlli1,1711:
A forma como você explicou os efeitos da interpretação foi para
mim muito esclarecedora a respeito do que Lacan fala, em seu texto
"Introdução à edição alemã dos &crit,,,/', sobre a fuga do sentido~.
utilizando, inclusive, a imagem do tonel das Danaides.
Fiquei me perguntando: em relação à fuga do sentido e conside-
rando a forma como você colocou, qual seria o efeito disso sobre o
sintoma? levando em consideração o lado S2 do sintoma, o lado de
significação, e o lado do real, o ponto de real que a interpretação visa.

Marie-Jrm, Stlftrel:
Eu não prometo responder. Afinal de contas, por uma razão de
estrutura: se de fato lidamos com um real da psicanálise, isso, de ante•
mão, põe em xeque minha resposta, ao mesmo tempo que existe lógica
para explicar esse fracasso. É muito mais do que uma precaução ort1-
tória; é para temperar o que estou induzindo: a própria impossibilida-
de de responder a cada pergunta levantada. De qualquer forma, vou
fazer um esforço.
Primeira pergunta: Que resposta um analista pode dar, trabalhan-
do em uma instituição, sem ser tomado pela ordem social ou da ciência'!
Conhecemos a crítica severa de Lacan em relação aos "psi" - psi-
quiatras, psicanalistas talvez não, ele não coloca os psicanalistas nesta
série - <JUe, querendo ou não, colaboram com a ordem social.
Aqui seria preciso falar de casos, e suponho que a maioria seja
casos de consultório ou de instituições. No fundo, poderíamos, a par-
tir da instituição, verificar se há ou não análise. A instituição é, muitas

• N.E.: FruiJr tlt .,m,,: tradu:tido babitualinente por 'foga' do sentido. O tenno 'fuga' refere-
~" aqui a e•coamento, esc.ope, vazamento, vazão. Lacan utiliza. indusivc, a imagem do
tone,) das Danaides, urn tonel sem fundo.

O l,d,111111 ~ ,, /•:,tmlm·,1 7K EnP-SP


vezes, me parece, o único lugar onde a criança tem a oportunidade de
encontrar um analista. Vamos tentar fazer com que esse encontro não
seja um &acasso. Me parece que esse encontro não é sistematicamen-
te malogrado.
Eu não tenho nenhuma tese sobre psicanálise em instituição, em-
bora eu cuide de instituições. Eu não trabalho em instituições, eu admi-
nistro instituições que atendem autistas e tento criar as condições para
que os autistas dessas instituições encontrem analistas.
A segunda pergunta: Por que alguns analistas não atendem cri-
anças? Para mim talvez seja até uma questão simétrica a "por que
existem analistas que só atendem crian\!as7".
Formalmente, as duas posições trazem um problema para mim .
Porém, considero que existe uma resposta de fundo. Tentei mostrar o
laço entre a criança e o que há de mais particular no gozo de cada um;
portanto, a criança solicita de imediato o fantasma do clínico, ou seja,
mobiliza o máximo da resistência à psicanálise. E a resposta pode ser
eliminá-las de seu consultório por essa razão ou, ao contrário, só delas
tratar, porque assim se pode gozar delas mais facilmente.
Mas, a partir daí, podemos entender que há outra razão: atender
crianças é particularmente difícil, e precisamos criar as condições pi1ra
que haja algo da psicanálise com crianças. Isto requer condições de dis-
ponibilidade que nem sempre estamos capazes de garantir. AC, talvez.
seja melhor se abster do que proporcionar um encontro fracassado.
Existem muitas questões desse tipo que poderíamos examinnr
em nosso meio. Por·razões ligadas ao desenvolvimento do nosso C,'lm·
po, sabemos que existem psicanalistas que só recebem psil:anali11t:u,
em análise. A questão é saber se isso é efeito do fantasma desses psica-
nalistas ou se está ligado às suas relações com a causa analftka. Dom,
devemos pergüntar a cada um.
A terceira questão, a respeito do equívoco, é mais um comentário

O /n/1111/il r n F.,tmlt11n 79 F./IP-S/'


do que uma questão. Portanto, deixo-a como tal.
Sobre o "sentido branco" associado ao que Lacan chamou de retor.
Essa pergunta me fez lembrar que eu tinha a intenção de trabalhar so-
bre o retor, o que não fiz; mas acho que está no mesmo caminho.
O quinto ponto, sobre a definição de sintoma nas "Conferências
norte-americanas", vou responder junto com a última pergunta, de
Ana Lydia.
A interpretação teria a mesma estrutura que o sintoma, sim, com
um pé no significante e outro no gozo. Isso também poderia ser associ-
ado ao que Lacan diz: que o sintoma tem a mesma estrutura do chiste. É
sempre aquela mesma idéia: ter um pé no significante e como ir para o
real. Vou falar sobre isso mais adiante.
Sobre adoção, graças ao seu comentário, vou esclarecer um pon-
to. Confirmar a sua pertinência ao mundo dos humanos supõe que se
supere o que há de mais particular no seu gozo. E esse é um dos limi-
tes do relato que lhes apresentei, desse es~udante de medicina. Não
sabemos o que é particular no gozo dele, o que o tornou singularmen-
te sensível ao que aconteceu.
Portanto, estou de acordo com você. A questão da criança ado-
tada não se coloca no nível do país ou da comunidade, mas sim de
como se sustenta sua identificação, sua posição de sujeito.
Domingos lembrou a forma como eu abordei a questão da deman-
da da criança. Não me lembro bem, mas parece que na ocasião eu esta-
va pensando no caso Richard, de Melanie Klein. Para ela, a angústia
era o motor, tanto de demanda quanto de análise, e ao mesmo tempo
permitia embreagem no tratamento analítico. Então, como podem ver,
essa demanda é primeiramente uma demanda de alívio.
Pedir, demandar uma análise é antes de tudo pedir um alívio.
Gostaria apenas de observar. e penso que você vai concordar comigo,
que de certa forma esta é a regra geral: os sujeitos não demandam

1/(/ EJJP-SP
fazer análise. No sentido estrito, o que os sujeitos demandam ao psi-
canalista é não fazer análise, é reforçar o fantasma, permitir gozar
conforme as modalidades com as quais se sonha. Isto é um dos aspe<.:-
tos da "fraude" psicanalítica; o psicanalista tira proveito dessa deman-
da para desviar totalmente dessa demanda de reparo do fantasma.
Se levarmos isso a sério, perceberemos a necessidade da ética, para
que essa "fraude" não seja uma canalhice. Não vou entrar nesse assun-
to, mas existe uma questão básica que é trazida por toda demanda.
Em relação à questão de Angelina Harari, sobre a diferença entre
letra e escrita, estou totalmente de acordo com o seu comentário de
"Lituraterre", onde Lacan evoca os rastros, os sulcos que o significante
pode cavar, por ser significante. No fundo, se nós sabemos se o
significante se separa do gozo. são os próprios traços do significante,
que são os traços onde poderia estar o gozo, o que, aos poucos, levou
Lacan a definir a relação entre o significante e o gozo como a "coloca-
ção de presença" de dois lugares absolutamente heterogêneos. Porém,
esses traços são tudo o que o sujeito tem dessa heterogeneidade. Esses
traços são o "litoral", como ele diz nesse texto, entre o significante e o
gozo; é isso que ele refere ou relaciona, penso eu, com a escrita. Ne,u;e
sentido, é uma escrita que está. presente em toda língua, isto é, também
naquelas que não teriam relação com a escrita, enquanto letra.
Portanto, uma análise poderia levar o sujeito a ter uma idéia do
que, para ele. esse "litoral" está feito, ou seja, o que para ele fixa algo
do gozo, sustenta seu desejo e o orienta para recuperar pedaços dt.>
gozo. Mas, neste texto há uma frase que chamou minha atenção: é
preciso que essa letra volte ao simbólico para ser lida. Eu entendo i!lso
como o momento em que o sujeito vai se explicar com esse rastro, que
no fundo constitui a primeira letra de sua elaboração teórica.
Não sei você concorda com isso, mas é mais ou menos assim que
. .
eu veJo as cmsas.

O Infantil r 11 1'~1tmr11m ,VI F.l1P-SP


A questão de Luiz Carlos a respeito do uso da lógica requer um
longo desenvolvimento, e eu não vou fazê-lo agora.
Tomemos, em primeiro lugar, esta definição: a lógica é a ciência
do real. No exemplo que dei, mas também no exemplo de Freud. o
recurso à lógica permite localizar, por exemplo, para o pequeno Hans,
a inconsistência do Outro. Gostaria, antes, de fazer eco à sua questão,
com uma observação de Lacan sobre a lógica, observação que me sur-
preendeu e que considero sumamente interessante: a lógica, enquanto
ciência do real, traz o rastro do sujeito que a enuncia. Esta indicação é
extremamente preciosa para nós.
Tentei abordar esse tema num artigo publicado em Quar/Q nº 61.
l]Ue se chama" A lógica da ironia". Esse artigo, justamente, me impe-
de de responder à sua pergunta, pois eu teria de fazer todo esse de-
senvolvimento.
A pergunta de Maria Lúcia, se eu a entendi bem, parece já in-
cluir a sua resposta. Ou seja, podemos situar o movimento da análise
a partir da impotência, impotência em reduzir o sintoma, em obter a
resposta ao que nós somos, até o que se apresenta com sendo absolu-
tamente irredutível ao significante, quase como uma prova. E aqui
devemos tentar demonstrar que é efetivamente com o impossível que
o sujeito se depara.
Sobre a questão da fuga do sentido, apresentada por Ana Lydia.
Qual seria o efeito da interpretação no sintoma? Não sei se resumi bem
a questão, mas vou dizer o que pensei enquanto você fazia a pergunta.
Quando digo que o sintoma tem um pé no gozo e outro no
significante, é um,a forma de levar em conta a sua função, pois, no
fundo, ele deveria ter um terceiro pé no próprio fantasma e, assim,
poderíamos imaginar que ele mantém o real, o simbólico e o imaginá-
rio. O imaginário não é idêntico ao fantasma , mas o sujeito pode fan-
1,u:iar tJUe é o Outro que mantém e sustenb tudo isso, e que seu sinto-

, , t,,/i111t11,• ,, ,~,11·11/11111 EBP-Sl'


ma é o resultado da inabilidade do Outro. O efeito da interpretação
revela a. inconsistência do Outro, mas o fato de tocar na inconsistên-
cia do Outro ou na incompleteza do Outro, marca bem essa diferença
entre impotência e impossível. A incompleteza do Outro pode deixar
o sujeito na via da impotência; o Outro não é capaz de ,nc- ajudar a
"sair dessa", de dar a resposta ou a interpretação que me ajudar!am a
me sentir melhor. Mas a inconsistência do Outro é o fim da possibili-
dade de recorrer ao Outro para solucionar ou regular a sua relação
com o gozo. Podemos dizer que é o fim da tentativa de nutrir o sinto-
ma com o sentido. De certa forma, é o que Lacan pode chamar "can-
celamento da assinatura do inconsciente"5 • Mas o sintoma mantém
sempre um pé no real e no simbólico e como o Outro falta, al'ho que
nós podemos entender que o sintoma fique reduzido à sua função, ou
seja, o sujeito descobre que nada mantém real. siml:i6lico t• imaginá-
rio, nada, a não ser o sintoma que ele é.
O tema merece maiores esclarecimentos, mas encerro aqui.
\

1' N .T.: Imagem forjada em cima de cancelamrnto da uainatura de um prriódico (jornal

ou rrviata).

O l,,f,111til ( a F.,tmtmw li} EBP-SI'


\

Comentário sobre o texto de Jacques Lacan


"Duas notas sobre a criança"

29 de agosto de 1997

Atividade organizada pela Seção São Paulo da fücola Brasileira de Psicanálise


e pelo Instituto de Pesquisas em Psicanálise de São Pauk1
Boa noite. Vou fazer um comentário, quer dizer, vou propor a vocês
um certo número de observações, das quai'i algumas ficarão bastante
próximas da leitura de Lacan dessas "Duas Notas Sobre a Criança".
Eu me apoiarei também sobre um texto de Jacqucs-Alain Miller
que, sei, não chegou ao Brasil, um texto, que é uma intervenção reali-
zada em Lausannc, intitulado "A Criança Entre a Mulher e a Mãe".
Um texto que data de 2 de junho de 1996, por um lado também um
comentário sobre essas "Duas Notas Sobre a Criança", de Lacan.
A primeira observação, ou observação preliminar: o que nós te-
mos o costume de chamar "Duas Notas Sobre a Criança" (é a primei-
ra observação que eu tomo emprestada a Jacques-Alain Miller) cons-
titui apenas uma nota, da qual a primeira parte é a segunda. e se vocês
a lerem assim verão que se lê seguido, que é o que eu vou tentar fazer.
Começo então pelo primeiro parágrafo da segunda parte: o fra-
casso das utopias comunitárias. Parece-me que este fracasso reside na
impossibilidade em que essas utopias se encontraram de suprimir a
família. Isto é, a impossibilidade de escapar também àquilo que faz.
digamos, a depreciação da vida amorosa do neurótico. Isto é uma cons-
tatação. Vou fazer uma observação que não comento. Encontrei pelo
menos uma criança autista que nasceu quando seus pais viviam nesse
tipo de comunidade. A surpresa desse diagnóstico de Lacan do fra-

,V6
casso das utopias comunitárias é da data dessa mesma nota. Pois em
1969, na Europa em todo caso, está em plena moda uma renovação
das utopias comunitárias.
A segunda observação é que, apesar dos ataques que lhe são di-
rigidos, a família resiste. Ela resiste reduzida ao que l'etn de irredutível.
, um pouco como se poderia dizer do Jti1th,mu. Salvo que ,;e trata aqui
' de uma irredutibilidade ligada à exigência de uma transmissão, trans-
missão, pode-se antecipar, dos elementos necess,irios para ciuc haja
' sujeito. Conhecemos esses elementos: o saber, o gozo e o objeto. Aqui
há uma tese bastante forte: não há família, não há sujeitu, nu sentido
dessa irredutibilidade. Lacan precisa que esta transminão é ela or-
dem, eu cito, de uma "constituição subjetiva/'. Isso permite im1i11tir sobre
o fato de que essa transmissão é de uma outra ordem llll~ a ordem
natural. Não há necessidade de família para fozer tilhos, '!ms para
fazer sujeitos, sim . Então essa transmissão implica. de diz. n relação
com um "desejo que não seja anônimo".
Minha terceira observação tem a ver com esse "desejo não anô-
nimo". É um terceiro parágrafo da segunda parte, onde l ...1l'.tll escla-
rece essa questão do desejo não anônimo. Quero obsi:rvar <JUe ele fal.i
da função da mãe e do pai, enquanto que esquematicamente nós te-
mos mais o hábito de falar da função paterna e do papel da mãe. Por
exemplo, Freud falava da mãe do pequeno Hans l'orno "atiuela que
cumpria o papel que o destino lhe fixou" . O desejo ela mãe sai cio
anonimato, sai do anonimato num sentido geraJ, pois o desejo do ho-
mem é o desejo do Outro, o desejo da mãe sai do anonimato pelo fato
1
de que "seus cuidados, diz Lacan, levam a marca de um interesse par-
ticularizado". E a.í Lacan faz uma observação, me parece muito preci-
sa, ele diz: "ainda que fosse pela via de suas próprias faltas" . O que eu
compreendo aqui, essa marca particularizada, talvez uma marca de
faJta de interesse, vale mais uma marca negativa que nenhuma marca.

K7
Quanto ao que diz respeito ao pai, a fórmula de Lacan, "o nome do pai
é o vetor de uma encarnação da Lei no desejo", me parece antecipar a
revisão da metáfora paterna que Lacan vai dar em "RSI", e segundo a
qual um pai não tem direito ao respeito, e nem tem direito ao amor, a
não ser que ele faça de uma mulher a causa de seu desejo. Esse ponto
vai ser retomado. Então isso é a primeira parte da nota.
A quarta observação. Lacan parece distinguir o sintoma da cri-
ança do sintoma comum ao neurótico pelo lugar desse sintoma. "O
sintoma da criança se encontra em lugar de corresponder ao que há
de sintomático na estrutura familiar". Então ele corresponde ao que
há de sintomático na estrutura familiar, sem dúvida porque a criança
não pode prescindir da sustentação, do suporte concreto do outro para
animar a estrutura. É um caso particular da definição geral que faz do
sintoma um representante da verdade. Ma.s, precisa Lacan, o que há
de sintomático na criança depende ou do casal ou da mãe. O pai foi
poupado, ele não evoca unicamente o pai. Minha idéia, e nós podemos
discutir sobre isso, é que o pai celibatário é uma mãe. Como aquela
que se ocupa de seu rebento.
Quinta observação. Não vou desenvolver o caso em que o sinto-
ma representa a verdade do casal familiar. Vou fazê-lo amanhã. Apro-
veito para citar uma observação precisa de Jacques-Alain Miller, que
considera que esse caso em que o sintoma da criança representa a
verdade do casal familiar é o caso em que "a criança não satura para a
mãe a falta pela qual se sustenta seu desejo"."[ ... ] a mãe só é suficien-
temente boa, se ela não o for demasiado, se os cuidados que ela prodiga
à criança não a desviarem de desejar enquanto mulher". Jacques-Alain
Miller dá duas fórmulas. Ela não deve ser "desviada de encontrar o
significante de seu desejo no corpo de um homem". O pai também
deve ser um homem, observa Jacques-Alain Miller.
Sexta observação. Em compensação, ressaltaremos o caso em
que o sintoma depende da subjetividade da mãe, caso que supõe que u
criança está implicada como correlativa do fantasma da mãe. Me pa-
rece que ser o objeto do fantasma da mãe é uma condição ele sobrevi-
vência da criança que não pode contar, para sobreviver, com nenhum
instinto materno. Dizendo de outra maneira, poderíamos concluir
dessas observações de Lacan, que ser o objeto do fantasma da mãe é
uma condição necessária à sobrevivência da criança, mas não é uma
condição suficiente para a efetuação do sujeito neurótico.
Sétima observação. É o caso do q:ial Lacan não fala, mas ouvi-
mos falar em análise. É o caso em que a mãe só se interessa pelo seu
homem, e reciprocamente, isto é, o caso em que a criança não dividi-
ria a mãe. nem a completaria, mas que talvez cairia como um dejeto.
Parece-me que Jacques-Alain Miller faz alusão a isso em seu artigo.
Parece que a clínica nos coloca diante de situações como essa.
Oitava observação. Eu lhes proponho escrever: S.1'$, SJa. o que
Lacan chama aqui "a parte tomada do desejo da mãe", ou seja, o lado
objeto do saber do outro. Dou essa fórmula para justificar um pouco
mais esta escrita que dá conta de uma observação de Lacan em um
outro texto, "Discurso de encerramento das Jornadas sobre a psicose
da criança", no qual fala da "infância generalizada", para designar o
fato de que podemos ser todos objetos do saber da ciência. Sem medi-
ação, Lacan coloca em seguida, sem mediação induzida para o sujeito
entre identificação e a parte tomada do desejo da mãe. Sem essa medi-
ação, a criança permanece como objeto do fantasma da mãe. E 1..-'\c.tn
nos diz: "revelando a verdade desse objeto", mais do ttue interpretan-
do a sua mãe. Sabemos, por outro lado, que quando o Nome-do-Pai
reina, o significante se divide. É essa mediação que se poderia escre-
ver aqui, simplesmente com uma flecha entre S 1 e s~: de modo que
temos uma mediação que dá aqui a matriz do discurso do senhor como
discurso do inconsciente - S.IS-+ S/11.

11'9
Nona observação. "A criança re11/iz11 (está em itálico no texto) a
presença do que Lacan designa como objeto a no fantasma". É uma
observação lateral e ocorre a Lacan escrevê-la em terceira pessoa. Eu
vou só sublinhar esse 'realiza'. É uma pergunta. Será que não há aí
um índice do retorno no real daquilo que é cortado do simbólico? Eu
diria que uma mulher faz um filho, porque a mulher não existe. Dei-
xemos assim, um pouco enigmático.
Décima observação. Lacan examina minuciosamente a posição
da mãe. E quando eu coloquei esse esquema, o materna do discurso do
senhor, se trata da estrutura do inconsciente do sujeito. Aqui se trata
da posição subjetiva da mãe. Eu creio que a fórmula de Lacan é muito
clara; a criança vem no lugar do objeto, saturando o modo de falta que
é específica para a mãe, qualquer que seja a estrutura da mãe, neuró-
tica, psic6tica ou perversa.
Décima primeira observação. A criança barra o acesso à mãe de
sua própria verdade, dando corpo a esse objeto e impondo a exigência
de ser protegido. Observem, não é sem conseqüência para a direção
de uma análise. quando uma mulher decide ter um filho, gerar um
filho, ou quando ela está grávida. Então se compreende que Freud
tenha podido pedir às mulheres em análise com ele para adiar essa
decisão de ter um filho. Enquanto que hoje, se se pedisse a uma mu-
lher que esperasse terminar a análise, então isso seria uma contribui-
ção para o controle da natalidade, ou então ajudaria àqueles que que-
rem ter filhos depois dos sessenta anos. Mas há de qualquer forma
uma verdadeira questão.
Décima segunda observação. Aqui, acabamos de falar da mãe.
Agora vamos falar do sintoma da criança para observar que a fun-
ção que o filho representa para mãe é acrescida, ganha uma eficácia,
se a criança apresenta sintomas somáticos. Então me parece que a
expressão "sintoma somático" designa ao mesmo tempo o signo de

91/
uma patologia médica e a função que ele assume para essa mãe . A
realidade da deficiência, ou da desvantagem, dá o máximo de garantia
à mãe pelo fato de que não "se" irá ver em outro lugar ou embaixo o
que essa desvantagem da criança representa para ela. Dizendo mais
claramente, se você vê uma criança deficiente ou em desvantagem. se
imagina mal uma t}Uestão tão brutal como "qual o benefício secundá -
rio que você pode ter ao ter um filho assim?" A mattr,~z mesma da
criança, sua desvantagem, sua deficiênc:a, se presta a ser lida de acor-
do com a estrutura materna. Para "testemunhar a culpa" da mãe neu-
rótica, "servir de fetiche" para a mãe perversa, "encarnar uma recusa
primordial" da mãe psicótica. Essas três proposições mereceriam um
longo comentário. Eu vou extrair um, talvez dois.
A dimensão fetiche que uma criança é suscetível de preencher,
eu creio que a questão se coloca por saber se é reservada a uma mãe
perversa, ou se não seria, como lembra Jacques-Alaiu Miller "uma
perversão normal. lado mulher". Eu cito, "é o que se chama de amor
matemo, que pode chegar até a fotichização do objeto infantil ". A
observação sobre a psicose me evoca um comentário de Lacan no Se-
mituú·ti, X. :;obre a mãe do esquizofrênico que subjetiva o seu bebê
1 como um puro real. Eu faço essa observação pela oportunidade que
isso me dá de retificar uma maneira de compreender isso, que quere-
ria dizer que se se tem uma mãe psicórica, se é psicótico. Toda a clíni-
ca vai contra. O que se trata aqui é do lugar que ocupa a criança para
sua mãe. Mas a criança pode subjetivar a sua relação com a mãe de
maneira completamente diferente. Se ,1ão fosse assim, não se faria
psicanálise, porque não se poderia mudar nada da posição da criança.
Mas no que concerne a sua estrutura, é um outro problema.
Décima terceira observação. É um pedacinho de frase que me
deteve, que me chamou a atenção particularmente. Vou ler a frase: ''a
criança na relação dual com a mãe lhe dá imediatamente acessível. o

9/
que falta ao sujeito masculino". Me parece que se deve entender por
sujeito masculino o sujeito representado por um significante para ou-
tro significante. É possível ler muito claramente no materna do discur-
so do senhor, que dá a estrutura do inconsciente, que o S 1 não faz mais
do que representar o sujeito e recorre ao S 2 para produzir o que do
sujeito escapa à representação, por ser uma representação. Mas o que
produz a articulação significante é, seja um efeito de sentido seja uma
significação, que o real do sujeito continua a escapar da representação
significante. O "' que é o produto sob o S2, designa ao término da
operação, da articulação significante, o que resiste definitivamente à
representação. Isto é o que falta ao sujeito masculino, aquele que se
submete à lei do significante. A lei do significante é: não há S 1 sem S 2,
regida pelo Nome-do-Pai. Então o a inden os rastros de gozo quase
biográficos que o sujeito tira de seu debate inaugural com o Outro.
São esses rastros que conseguem se localizar no fantasma do sujeito
(fixação diria Freud) de onde eles orientam o desejo, em direção ao
tipo de objeto suscetível de restituir ao sujeito o gozo que ele perde ao
, falar. Enfim. quanto mais a criança é deficiente mais ela chega perto
do real, mais ela dá corpo a esse objeto, mais ela solicita de sua mãe
que se abandone à inclinação, à tendência de seu fantasma em detri-
mento de sua verdade.
Décima quarta observação. É um comentário que incide sobre o
pai, que é um pouco ausente dessa nota. É para introduzir o tipo de
pai que não consente na mediação. Eu tomei isso emprestado ao semi-
nário "RSJ" onde Lacan fala do pai que se toma por um pai. Se pode-
ria escrever que o significante pai o representa como sujeito. Se pode
escrever também: Si/$. É aquele que pode dizer "eu sou o pai". É um
pai que não consente em desejar uma mulher. A tese de "RSI" é que
esse pai contravém, transgride a função do Nome-do-Pai. Isso supõe
que nós tenhamos essa idéia de que o No.ne-do-Pai é o significante

92
que introduz a impossibilidade para o significante de se significar a si
mesmo. Apoiando-me sobre dois textos, vou retomar o texto em que
eu me apoiava, de Jacques-Alain Miller: "não admitindo o particul.tr
do desejo no outro, o pai esmaga na criança o sujeito sob o outro do
saber". É de novo o que se poderia escrever nesse lado direito: Sia .
"Por este fato", diz Miller, "o pai, o falso pai [ ... ) constrange cada vez
mais essa criança a encontrar refúgio no fantasma materno, o fantas-
ma de uma mãe negada como mulher".
Décima quinta observação. Minha tendência é a. de chamar su-
jeito masculino o sujeito do significante, e portanto, situar a posição
feminina, assim como o texto nos convida a fazê-lo, do lado do S./n,
de tal maneira que assim fica visível, legível neste texto a divisão de
uma mulher entre o que ela é como sujeito falante-masculino e a posi-
ção feminina caracterizada pelo seu consentimento em ocupar para
um homem a posição de objeto de seu gozo, a causa de seu desejo. O
homem, aquele que escolheu a posição masculina não importa qual
seja a sua anatomia, o homem não teria outra saída a não ser identifi-
car uma mulher como promessa. de gozo. Sem dúvida uma mulher
tem necessidade desse desvio por um homem para sintomatizar sua
própria relação com o gozo, consentindo igualmente, e aqui uma ob-
servação de Colette Soler, em ser um sintoma para ele; mas uma mu-
lher tem outro recurso, aceder diretamente com a criança a uma espé-
cie de retorno no real daquilo que falta ao sujeito masculino, isto é,
aquilo que falta a ela mesma na medida em que é um ser que fala.
Última observação. Eu não resisto a pôr lado a lado duas fórmu-
las de Lacan. Uma que está neste texto, onde ele fala do a como "aqui-
lo que falta ao sujeito masculino", e outra fórmula que está em "A
Significação do Falo": o falo na medida em que ele falta à mulher.
Então tl é o que falta ao sujeito masculino, e o falo é o que falta à
mulher. Nesse texto, essa segunda dimensão fica em segundo plano.

9]
talvez porque at1uela que ele deveria ter desenvolvido na conseqüên-
cia da criança como sintoma da verdade do casal parental, é a criança
metáfora do amor. É alguma coisa que Freud tinha muito bem obser-
vado, quando, por exemplo, distingue as mulheres que de alguma
maneira saram de sua neurose tendo um filho, porque elas dão à luz a
castração, e aquelas que o parto torna loucas. Me parece que é a cri-
ança como objeto de gozo que se deveria acentuar, de maneira que se
tem nesse texto aqui uma versão laca.niana do que Freud chamou da
superposição em estrato do infantil e do feminino. O que nós podería-
mos escrever, a/-<p. São as duas fórmulas, o a, o que falta ao sujeito
masculino, e o falo, o que falta ao sujeito feminino, à mulher.
Se eu pudesse acrescentar uma palavra, esse texto não trata nunca
da "insondável decisão do ser". Eu lembro a vocês, para remediar um
efeito de leitura, que eu sinto que se poderia imputar a resposta da
criança pelo que ela é para seu pai ou para sua mãe. Não importa o
que induza o pai ou a mãe, a resposta do sujeito é a resposta do sujeito.
Obrigado.

Discussão
Com os comentários iniciais de Helena Bicall10 (São Paulo),
Maria de Fátima Sarmento (Salvador) e
Domingos Paulo lnfàntc (São Paulo)

Helma Bicn.lhfl:
Eu faria um comentário e uma questão.
Meu comentário diz respeito ao 2º parágrafo da parte 11 do texto
de Lacan "Duas Notas sobre a Criança" onde ele traz a seguinte arti-
culação: como pensar a função de resíduo sustentada pela família con-
jugal e que implica num desejo que não seja anônimo? Meu comentá-
rio parte de uma articulação trazida por Lacan no Sem111tfrú1 XX. Ao
discutir a relação homem/mulher a partir das fórmulas da sexuação,
Lacan diz que quando o homem crê abordar a mulher, o que aborJa é
a causa de seu desejo, designada como objeto ,z. "Só lhe é dado alcan-
çar seu parceiro sexual, que é o Outro, por intermédio do que para ele
é a causa de seu desejo" (LrSémúwire, Li111-e~ Enmre, Paris, Seuil, p. 75).
Essa condição do lado masculino, de onde um homem entra tendo
relação com o gozo fálico, faz a relação homem/mulher pela conjun-
ção do $ com o objeto a incidir de início no campo fantasmático. Do
lado mulher, sua condição de não-toda em relação à função fálica a
coloca num ponto de divisão, como mostra Lacan na carta a J. Aubry,
entre sua relação ao falo e o valor de objeto II que a criança ocupa no
real de seu fantasma, implicada como objeto. Assim nQ casal parental.
a parceria para cada um deles no par, seu verdadeiro par, é o objeto a.
Esse é o real que estará em jogo no casal parental, e é a este real que o
sintoma da criança aparece como resposta. Eu pediria um comentário
seu sobre como é que a criança está na dependência dessa condição de
o homem fazer a mulher emergir como causa de seu desejo, para tirar
a criança desse valor de objeto ,z para o Outro.

fiftima S,zmu11ll1:
Lacan deixa claro nas "Duas notas" que o sujeito só pode ser pen-
sado a partir da função do pai e da mãe, e o que está em jogo nessas
funções não é a satísfação das necessidades, mas o gozo. A família é um
lugar de transmissão do gozo. A modernidade, no entanto, tem se esfor-
çado para mostrar que é possível abrir mão da função do pai. Na clíni-
ca, podemos ver de perto os estragos matemos, ou seja, a criança é
mantida na posição de objeto sem a referência de um homem.
A título de ilustração, posso dar o exemplo de uma garota que
venho atendendo há algum tempo; apresenta a condição de filha adoti-

9S
va e a mãe orgulha-se de se preservar como virgem até hoje. O temor
desta garota, agora na puberdade, é de ser o par sexual dessa mãe.
Isto pode ser visto através de um sonho em que ela tem o pênis e está
desvirginando a mãe.
Gostaria de ouvir a sua opinião sobre essa crise do pai na moder-
nidade.

Domin.q,,., Paulo lnfimte:


Marie-Jean Sauret nos apresentou dezesseis notas sobre as "Duas
notas"; nos disse ainda, que se trata, na verdade, de uma única nota.
Ocorreu-me colocar em perspectiva as posições em relação à cri-
ança, que Lacan menciona neste texto, do ponto de vista das escanções
lógicas da efetuação do sujeito e, desta forma, acredito que existiriam
duas vertentes.
Numa primeira, levando em conta a dialética pré-genital, não
seria a mesma coisa ser objeto ,i do fantasma materno no momento da
incorporação simbólica, por exemplo, ou no momento infantil propri-
amente dito, quando o desejo materno particularizado tem a sua im-
portância com a implicação da dialética fálica . Seria a ocasião em que
se colocaria algo que você citou: a criança como metáfora do amor
que a mãe tem pelo pai, ou, metonímia do que lhe falta.
A outra vertente seria a dialética que ocorre já no complexo
de Édipo.
E pergunto se. a partir daí, quando dizemos que a criança é ob-
jeto do fantasma materno, estamos dizendo que ela está como objeto,
mas como sujeito nesta posição de objeto?
Acho importante essa colocação porque a interpretação que nós
fizemos durante muito tempo destas notas de Lacan é que haveria
basicamente a criança como sintoma, isso na estrutura neurótica, e a
criança como objeto na estrutura psicótica.

96
Mt11·ie-Jr.c1n Saurd:
São observações notáveis. Vou apenas tentar dizer o que elas
despertam em mim, pois são observações que se bastam, são mais
que questões.
A primeira questão, de Helena Bicalho, faz referência ao esque-
ma do Sr.mi.tufni, XX. É um esquema, eu lhes lembro, que está dividido
em duas partes; a parte superior é ocupada pelas fórmulas da exceção.
Existe um X que diz não à função fálica, e do outro lado, não-todo X.
Não vou comentar isso. É um esquema que durante muito tempo le-
mos simplesmente "lado homem", "lado mulher", e que teria ali a fun-
ção paterna de um lado, e o não-todo feminino, de outro.

Vou usá-lo somente para dizer que o lado esquerdo é o lado mas-
culino, do sujeito, e o outro, o lado petit a, o lado feminino.
O que Helena chamou "o espaço do fantasma" se escreve com
uma flecha do$ ao a. Podemos ver, a partir deste esquema, o lugar
onde Lacan escreveu o significante de A barrado [S(}()].
A questão que você está trazendo, é pre~iso introduzir a criança
como sintoma do que ocorre entre os pais.
Faço uma observação prévia: não considero que se possa dizer
"aqui estão os homens e aqui, as mulheres''; senão se poderia dizer que
só há sujeitos masculinos, e só os homens falariam. Dito de outra forma,
é um quadro que divide o sujeito, com um problema particular, depen-
dendo de que se entre nesse quadro lado homem ou lado mulher. Se se

91
entra lado homem, todo sujeito é falante, não há sujeito que escape à
função falica. Esse sujeito dividido dó gozo pelo fato de falar, vai pro-
curar recuperar esse gozo. entre outras coisas, pela via sexual, elegen-
do uma mulher como causa de seu desejo, como promessa de recupe-
ração de um gozo sexual. Mas o esquema é feito de tal maneira que o
comentá.rio de Lacan diz que o sujeito homem não vai mais longe que
do chupar pedaços de corpo. Aí há um sujeito que tem um embaraço
máximo. O sujeito que entra assim do lado feminino, é também um
sujeito que fala, ou seja, é um sujeito que é de alguma forma a sede
dessa divisão. É um sujeito que, enquanto mulher, tem relação com o
fato de que não há significante, não há significante que possa dizer o
que é uma mulher para um homem, não há significante que possa
falar da foraclusão generalizada do sexo.
Então, o que uma mulher, no fundo, espera de um homem, é que
ele a identifique como mulher; é uma tentativa de procurar do lado de
um falo a resposta à pergunta do que ela é como mulher. Mas isso já é
uma tese freudiana. O que é exacerbado por esse movimento é precisa-
mente o que escapa dela, escapa por estrutura, de todo tratamento pelo
significante, o que Freud poderia chamar o Pmi.i,wiJ primitivo. Ou en-
tão reduzir. ou trazer a questão do PmimeiJ para o fim da análise.
É nesse contexto que Lacan situa uma mulher, e que, de acordo
com o espaço de seu pr6prio fantasma, tenta recuperar o que ela per-
de de gozo ao falar, do lado da criança.. Dizendo de outra forma, tem
no fato da criança alguma coisa do gozo que ela não recupera do lado
do homem. O sintoma da criança é, como você disse, uma resposta ao
real do gozo colocado em jogo no casal.
Creio que é o que simplesmente se pode compreender aqui, eu
leio isso também com o seminário "RSI". As coisas poderiam ser es-
critas assim: se poderia escrever a mãe com o objeto de seu gozo, a
criança, mas o que Lacan diz em ''RSI" é que, se como mulher ela

98
consente em servir ao gozo do homem, me parece que se pode dizer
que o gozo que ela vai lhe dar é transmitido à criança como subtração
do que ela tomaria às custas da criança.
Dizendo de outro modo, é o que Lacan chama de perr-1•m11i111: o
fato de se oferecer ao gozo de um homem, do lJUal ela terá uma crian-
ça, essa ph•t-vt1v1on de alguma forma se substitui à perversão dela.
Enfim, é uma subtração de gozo que é transmitida. E é essa subtra-
ção que faz o leito, o lugar do sujeito. Na medida em que essa subtra-
ção é mal feita, o sintoma da criança 'pega fogo'.
É a única observação que posso fazer com o seu comentário que
está. bem articulado. Aliás, observo que entre a passagem do Smui1,í-
r1i1 XX que você citou e as "Duas notas" existe um intervalo de três
anos, e apresentam verdadeiramente a mesma estrutura.
Sobre a segunda pergunta. Primeiro, uma observação de deta-
lhe, depois uma observação mais geral. O comentário de detalhe é
provocado pelo fragmento clínico que você trouxe, que me lembrou
um texto de Lacan, "A juventude de Gide", na qual a mãe de GiJe
renuncia de alguma forma ao gozo sexual, para se consagrar de algu-
ma forma a ser a mãe do amor. Gide vai encontrar a mãe do desejo na
forma de uma tia, e com a resposta perversa que vocês conhecem,
salvo que Lacan coloca uma questão sobre esse ponto, que mereceria
ser indicada, e que é por que via o fantasma passa da mãe à criança.
Porque aqui, neste caso preciso, o sonho da criança não parece com o
que a mãe diz.
A observação mais geral sobre a função do pai. Creio que esta-
mos num tempo onde o laço social dominante é caracterizado pela ci-
ência e pelo mercado. Poderíamos dizer assim: é um laço social que vai
explorar a estrutura do sujeito desejante, quer dizer, um laço ttue vai
lhe fazer crer que aquilo que lhe falta vai ser fabricado pela ciên(·ia, e
que ele vai poder adquirir, se se.rvir no mercado. Lacan caracteriza

!19
assim o que chamou o discurso do capitalismo, chamando precisa-
mente individuo o sujeito completado por seu gozo. Me parece que o
toxicômano é um paradigma desse indivíduo que convém ao capitalis-
mo. Que convém em teoria, porque o capitalismo não sabe o que fazer
com esse toxicômano.
O problema é colocado pelo efeito do discurso da ciência, o sa-
ber dominante que é um saber que tende a suturar o sujeito. O indiví-
duo tem todo dia a oportunidade de verificar, em todo o caso na Fran-
ça, que ele não pode se servir, como ele quer, no mercado. Dizendo de
outra forma., o que lhe falta, aquilo que lhe falta, deve se encontrar em
algum lugar. Na França, uma das razões do crescimento do racismo
nos períodos de crise, creio, se trata de identificar aqueles que poderi-
am dispor do gozo que não estaria à disposição dos outros. É por isso
que se pode dizer que os imigrantes são todos desempregados que
arruinam a Previdência Social e que ao mesmo tempo tomam o traba-
lho dos franceses.
Há um fato de estrutura. um discurso dominante que não dá
mais muito lugar ao Je.mMa11t, mesmo o crescimento da religião, os
integrismos, é um integrismo de acordo com a ciência.
Não sei se vocês viram, como eu, a televisão hoje. Na Argélia,
houve um massacre de toda uma cidade em nome de Deus. Eu tomo
isso para ir no sentido de um tempo em que a função do pai 'vai mal
das pernas'. Será que a solução estaria na restauração do mito? Eu
não acredito. Mesmo que o mito seja melhor que nada.
Penso que durante um momento, um dos mitos modernos, um
falso mito, foi constituído pela. psicologia. A psicologia constituiu um
lugar de acolJúda do sujeito, um lugar que temperou a sua relação com
o gozo. Hoje mesmo, a psicologia se faz científica, quer tratar o sujeito
como um objeto. Por exemplo, a psicologia cognitiva vai tratar o sujeito
como uma máquina de cognição, de tratamento de informações - o que

J/ltl
Lacan etiquetou com o termo "infância generalizada". Daqui por di-
ante nós somos os objetos do saber.
Não sei o que dizer sobre sua questão, a não ser que a psicanáli-
se tem uma enorme responsabilidade porl1uc ela é, no fundo, a única
teoria hoje que sustenta a idéia de que o sujeito é irredutível ao saber.
Eu não ouso continuar, mas me concentrari;1 em oferecer nova-
mente uma nota clínica. A ausência de referência a um homem . no
caso em que a mulher faz ou não caso da palavl'il de um homem , é algo
importante, mas não é a causa da psicose, do lado da rt"11posta cio su-
jeito. Talvez as mães psicóticas mostrem isso melhor, p1m1ue para elas
o Nome~fo-Pai é foraclu(do, mas são capazes de tramuniti -lo à. crian-
ça. É preciso contar com a resposta do sujeito. H.i outr.as l.'C1i11a,; ,1ue
poderíamos discutir. como o fato de que presl·i11dir do pili ni'iu {: um
inconveniente mas na condição de se servir dele.
Essa questão é verdadeiramente um arcabouço, um an<lai1m·.
Sobre a última questão, a de Domingos, estou eompletamcnlt!
de acordo com as duas versões que separou e, sohretudo, ele pró-
prio completou.
Como ele, vou sublinhar o segundo ponto ou, talvez, complicar
um pouco. Com efeito, não é a mesma coisa ser um ohjcto, por,1ul' !le
encontrássemos crianças que fossem objetos, não poderíamos fazer
nada, e escolher essa posição é uma fórmula que vale p.ir.t ll prncição
feminina. Freud fazia observar, de toda maneira, que a posição passi-
va é uma posição pela qual era preciso se dar muito trabalho, se en-
tender que uma criança na posição de objeto implica uma escolha <lo
sujeito. Evidentemente é bem complexo, mas é o rnai11 aberto à nossa
intervenção, porque o sujeito está aí. E se não há a menor manifesta-
ção do sujeito, estaríamos num momento, não anterior, mas diferente
da incorporação significante. Mesmo a criança que se apresenta como
objeto, mesmo assim há momentos em que ela reage ao significante; e

/ti/
é nesses momentos, a partir deles que a gente pode pegá-los, alcançá-
lus. Talvez seja isso que tenha dado corpo a essa distinção entre "cri-
ança sintoma" na neurose e "criança objeto" na psicose. Mas, ainda
uma vez, se a criança não é nada para a sua mãe • os psicólogos o
demonstraram experimentalmente com Spitz-, ela morre.

A11_qtli1111 H"'nri:
Me chamou a atenção a mãe à qual Marie-Jean se refere no tex-
to: uma mãe para quem a criança nada significa. Isso reforçou uma
figura que Lacan trabalha, não saberia mencionar precisamente onde,
mas lembro que foi discutida na jornada "Os dizeres do sexo" da Es-
cola d_a Causa Freudiana: Medeia, com a expressão a "verdadeira
mulher". Peço-lhe um comentário a respeito.

A11,1 LyJi11 Sa11/1~1.1J,1:


Fiquei surpresa quando você disse que as "Duas notas" são na
realidade uma nota. Tinha conhecimento dessa intervenção de Miller
em Lausanne, mas esperava que houvesse outras notas e não que fos-
se uma só.
Para pensar na possibilidade de existir uma outra nota, tinha
feito, anteriormente, uma leitura a partir de "Os complexos familia-
res". Isso permite, ao meu ver, apresentar uma estrutura parecida com
a estrutura das "Duas notas", com um capítulo sobre a família e o
outro sobre o sintoma; nas "Duas notas'', a primeira parte é sobre o
sintoma, a segunda, sobre a famdia.
Penso que se pode dizer que há três concepções distintas de famí-
lia em Lacan, e ,1ue se definem a partir das concepções do Édipo. Te-
mos uma concepção do Édipo com "Os complexos familiares" e depois
o Édipo temário completado com o complexo de castração. No fundo,
é a teoria da metáfora paterna que vai se revelar insuficiente

///2
para tratar isso que se inscreve do pai, para dar conta da inexistência
da relação sexual.
Essas "Duas notas", acredito, poderiam ser pensadas a partir da
terceira teoria do Édipo, a teoria que você invocou como a dapere-vewion.
Pergunto, então, se essa concepção daperc-vei.1úm não esta.ria já presen-
te, de uma certa forma, no momento da redação das ''Duas notas". Po-
deríamos pensar aqui num questionamento do que transmite o pai para
além dos ideais destacados em "Os complexos familiares"?

11'/,me-Jean Saurel:
Não tenho muita resposta a dar, tanto a uma quanto à outra questão.
Não tinha pensado em colocar essa fórmula "a mãe para quem a
criança nada significa" em relação com a "verdadeira mulher".
Com efeito, é uma questão de saber se há uma antinomia entre a
mulher e a mãe. No fundo, ela poderia ser mulher total renunciando a
ser mãe. É alguma coisa que se pode encontrar como teoria do neuró-
tico. Parece-me que se encontraria mais a teoria contrária, a mulher
pensando que ela poderá ser mulher no dia em que for mãe.
Pensei imediatamente em Medeia, da qual Jacques-Alain Milll'r
falou nesse texto de Lausanne; mas, justamente, Medeia não é ;ilguérn
para quem a criança não representa nada, é até mesmo o ,:onlrário.
Ela tenta alcançar Jasão com aquilo que vai lhe faltar du,tS veze11.
Aqui há um verdadeiro canteiro de obras de questõe?t 1mlirt• 11
qual poderíamos avançar com uma clínica diferencial que di11inguiru1
a posição que o sujeito assume entre mulher e mãe. Parl!'<!t'·llll', 110

entanto, que Lacan coloca uma divisão e não um.i 1111tinmn1,1. I\


antinomia se encontra no neurótico. Precisarfamm; V<'rili,·,u·.

(,'lr.11 (1/ .\'11/,,,,,,.,,,


Pensava justamente sobre essa questão ,itu.ul.a l'ºr 1"'4t 1111 c,111 "J\
juventude de Gid~". Gide teve, justamente, uma mãe que não era mu-
lher, e teve uma mulher que é a "verdadeira mulher". Então, me parece
que há um efeito, como o que é rechaçado do real. um efeito de foraclusão.

Marit-.le,111 S,mrd:
· Não quero improvisar em cima de Gide, porque é uma questão
muitó-complicada. Realmente, é uma das referências sobre o proble-
ma do qual falamos.
Sobre a questão de Ana Lydia, que Jacques-Alain Miller diga
que há uma nota é menos importante do que a ordem da leitura. Você
diz, aliás, que em "Os complexos familiares" os temas são apresenta-
dos precisamente na ordem inversa, e que isso poderia ser um argu-
mento de leitura. É dito, Lacan escreve na ordem que quiser, mas
penso· que é mais lógico no sentido sugerido por Miller.
Acho muito interessante e estou de acordo com o que você diz
sobre a concepção da família; acho que se pode dizer que se depura ao
mesmo tempo em que Lacan precisa a estrutura do sujeito. Verdadeira-
mente, não sei se a questão dapb't-JJerJÚm está presente no momento das
"Dúás notás". Aliás, o que é surpreendente desde "Os complexos fami-
liares" é que o rigor de Lacan é tal que ele não impede os desenvolvi-
mentos posteriores. E aí poderíamos nos perguntar qual era o real que
ele visava com "Os complexos familiares", porque se a teoria muda, o
reai, com o qual ele tentava se explicar, é o mesmo. É por isso, me pare-
ce1 ·q1,1e temos a impressão que a estrutura atravessa a sua obra.

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