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O Infantil e A Estrutura - Marie-Jean Sauret
O Infantil e A Estrutura - Marie-Jean Sauret
com/lacanempdf
Marie-Jean Sauret
rRepaRação Da 1•uallcaçào
Dominique Fingermann
Hcloisa Prado Rodrigues da Silva Telles
1998
I
O Infantil e a Estrutura
Intra@~
II
Comentário ~bre o texto de Jacques Lacan
Õ '5'uas notas sobre a criança"
Apresentação
"O Infantil e a Estrutura" é um Seminário ele três conferências realizado por
Mnrie-Jean Sauret, em agosto de 1997, a convite ela Escola Brasileira de Psicnnálise-
São Paulo.
A idéia da organização deste evento surgiu a partir ele um cncnnlro prévio
com o trabalho de M- .J. Saurct, seu livro /Jr f'111/,1111ilr ,l /11 Strud11rr. Publicado em
1992, constituiu, para muitos, um preliminnr imprescindível para todo tratamento
possível da criança pela psicanálise.
A atualidade do livro não está cm questão, pois, com uma precisão inédita, o
autor tira todas as conseqüências passiveis do ensino ele Freud e Lacan, orientando,
assim, os analistas a não recuarem frente à crianç,'l. No entanto, entre o1quela obra e
o Seminário que agora publicamos, houve na trajetória de M11ric-Jc;u1 Saurct um
passo a mais: o seu passe e o período de dois anos cm ttue testemunhou, como Analista
da Escola, o particular da sua passagem a analista. Um puno a mais que mencion.~mos
aqui para indicar o âmago do ensinamento deste Seminário: no C'asn p:111ieular rl.1
psicanálise com crianças, como o analista pode levar em L'onta as condusí1es d.i clínica
do passe.
Dito de outra fonna, de que maneira aquele 'iue experimentou em sua própria
análise o necessário 'rieixar cair a criança' vai s11.ber trnlar o sujeito-crianc;.i e seu
sintoma? Ou aind11, como diz Marie-,lean Sauret em "li fo.ut s.ivoir laisser tombcr
l'enl'ant": "Não se trata apenas de decretar ,1uc a criança não é um conceito da
psicanálise, porque não há psicanálise a não ser do sujeito; é necessário tratar da criança
para fazê-la inexistir, 'passar ao ser': o que então deixa u seu lugar para o sujeito. A
psicanálise é uma boa maneira de deixar cair a criança! 'Onde era a criança deve cu
advir', pedindo licença para assim torcer o aforis:no freudiano".
Além do Seminário "O Infantil e a Estrutura", publicamos o comentário do
texto de Jacques Lacan "Duas notas sobre a criança", realizado por Marie-Jean Sauret
em uma noite de trabalho organizada pela Seção São Paulo da Escola Brasileira de
Psicanálise e pelo Instituto de Pesquisas em Psicanálise de São Paulo.
J),1111i11ü11u Ftii.tJ,·rm,11111
M.1·ço ,le 1998
O In\jlptil
AEst~ura
Marie-Jean Sauret
1 Sl\llRP.T M.-,J, O,· l'!,1fn11lil,• ,I la S1r11,,l11l'r. Lea Séries de l,1 Découver1e fn,udienne,
1111•••~• l l11ivi,ni1,u·i ..• ,Ju Mirai!. Toulouse, 1992.
30 de agosto de 1997
/.A CrÍnnfa
A ri nça.. não exi hu sempre. em dúvida o organismo huma-
no sempre se desenvolveu, desde a concepção até a idade adulta e,
portanto, sempre atravessou um período de imaturidade. Mas o fato
de considerar essa fração da vida como parte integrante da vida é um
fato relativamente recente: tudo se passou, na Europa pelo menos,
como se o homem nascesse muito tarde depois do parto propriamente
dito, à maneira do filhote de canguru que emigra fora do útero para a
Golsa marsupial. uanto, nomear a in ância propri. ment di • e m
uma etapa da vida individu:il. i so é um e cito J ci nciil moderna e Ja
1 • lução n •e . Nesse ponto, ignoro como a questão da criança se
e locou e se desenrolou deste lado do Atlântico: que particularidades
escandem essa história, e estou curioso, gostaria de saber.
A ciência moderna é a que nasce com Kepler, Galileu, isto é,
aquela para a qual um real existe suscetível de denunciar os saberes
existentes: como a descoberta de que a órbita dos astros não é tão
redonda como o afirmava a cosmologia de Ptolomeu. A ciên ia mo-
dn1 .1 u111da aqucl l'undada na razão por Descart s, que mobiliza a
l'llUKa f' rmal, ,1rn c.l~duzir do sab r um ponto Je c<!rteza iu idindo so-
1,rc o ser como fato de dito - desembaraçado, pelo menos
tcmdt-rn:inlmente, de toda marca do sujeito. A o jeLividade cient(Fi ea
2. O S11jeito
Um psi ·ólo 1 0 , • A. pitz, o 11 o como hos_pitalismo,
I:acan idade se · crescente J <le-
pr ulro;· stand
1,, rganism cai no drculo do 1111b0Ll •o, org ni ·mo nao
:mn ólk '' arti ip· "d 1 p r ianle nã t nlw outra p lavr
no s nti<lo psic· n lític .
No campo da linguagem, o sujeito é apenas representado, en-
quanto que aquilo que do sujeito escapa à representação significante,
por ser representação, é indexado de reaL Exi t , portanto, un · rup
n.1ra entre organi m e o su· •ito. É para pensar suas conseqüências
que Pr ud inv nla, de um lado, o ·om ima ri11ário, como t •c1J
der pre'cntd õ s graç. ao qual o sujeit v lta a en ontTar a u11 ão 1
i. u 'r ,.ãos; e, por outro I do, a pulsá par ·pli ai' a li a1yüo no\J..1
~o~tfflffllO, e ~ . . e-0 ~·1' 11eoeeeic:!a-de·Sê·t'Mlmttrdf.rliM
~ 1 s s o significa que se o indivíduo biológico é determinado, por
exemplo, por sua anatomia, a anatomia não dita ao sujeito o que ele
deve fazer como homem ou como mulher: a pulsao é o nome desse
E/IP-SI'
silênc.io da .matornia em resp ta à. qu stõ s do sujeito que o I v, • t\ll -
uia ':dta causa o desejo .. e permite que desse gozo agarre alguns
fragment·os. 111ei l·o não d senvolve E.I' não tem ida . Já não
seria legível que aquilo que a criança é como objeto para o Outro da
ciência (para o Outro simplesmente) é "recoberto" pelo real do su-
jeito. localizável nesse pequeno,,, que indexa o que do sujeito rateou
pela representação significante'!
J. O /11/antil
Introduzamos o terceiro termo dessa conferência que, sem dúvi-
da, vem complicar um pouco a apresentação. Podemos introduzi-la com
t I e te chamamo
ºE õe pr
r rost a .
nan ã
mllll r : mulh
, nt mo UJ ito qu
o az notar reud, de 1gna d de o início ('Omo f'Jica. O que
coloca a questão de um gozo que não se alcançaria pelo falo, que não
seria o próprio do sujeito do significante, do sujeito que fala.~p
lllll lado, urn,1 mulher ai , por outro lado, cabe-lhe cn<.:arnar ess ozo
tJUe não, e alc.1m,.ari. pela via d si 1·ni I anle, ou seja, especialmente a
do falo. Por essa razão, ele, o gozo, não pode dizer-se, o que leva Lacan
a afirmar que a mulher não existe, «t~~~~
c~·~~C~0 0
__~Osujeito da fala, e O tJUC ela(:
m lll(l 1 oz pCCÍ-
dc filho e o filho m
h) A /nJ11iiJfafãt1 Fundammtal
Ressaltemos aqui em que sentido a crian · está às voltas ·om ,1
r) O lmp,1,1.1e
xplora ã mf: ntil da r 1· com utr des mbo a oum
impasse que reud identifi ou om 11ew te tÍ!J;mlÍÍ. sujeit não leli1 ,
•ar· ntia de que o utr a ·segurará t rnarnent ua br ·vivên ia. O ·
d jo ma rn aparece com c pri ho . ua demanda tom a forma J
111w vontad de g zo. Se o sujeito convier ao Outro, correrá o risco de
ser devorado segundo as modalidades de gozo oral que ele conhece, ou
levado à ablatividade segundo as do gozo anal. E se não convier, correrá
n risco de ser "vomitado" segundo as Jhodalidades da metáfora oral ou
"deixado largado" segundo as da metáfora anal. O estilo da interpretação
drpende Jo <JUe Freud havia situado sob o termo de "fixa =- 1'
ri) A SaícJa
Daí se deduz a função do fantasma: sustentar o desejo na dire-
ção do gozo em falta "focando" a experiência que dele teve o sujeito;
proteger do retorno desse gozo que ameaçaria o sujeito de aniquila-
mento (só existe sujeito dividido); permitir, contudo, a.naq,em~
d rag_mento. de gozo segundo o "tr, o d erv r - " o qual o 11 •
tertt1ó de uma análise: o que o sujeito é omo objeção ao sali 1•, llill
sem parentesco com a posi ão f"eminina.
Contudo, eu gostaria de acentuar um único elemento suscetível de
particularizar esse sujeito correlacionado com a infh.ncia, pois é ~rn fato
que se o sujeito não tem a idade de seu organismo, ele tem a de seu gozo
- para retomar uma expressão de M.arc Strauss. É um fato ainda que a
exploração da estrutura leva um tempo real - aquele que faz crer no
desenvolvimento cronológico, quando. na verdade, se trata de um tem-
po para compreender o que resulta do instante de ver constituído pelo
confronto com o gozo. Isolemos um único momento de concluir: aquele
em que o sujeito comparece ao encontro fixado pela estrutura com o
parceiro sexual - encontro que ele pode evitar. A "liberdade de não trans-
ferência" - a expressão é de Pierre Bruno-, e o recalque, sem o qual não
há ética, dão conta dessa possibilidade de evitação.
É o quanto basta para que devamos concluir que se o sujeito
correlacionado com a infância é considerado pelo psicanalista como
contável pelo que ele diz - "tu o disseste, não podes fazer como se não
o tivesses dito, quaisquer que sejam as tuas possibilidades de lingua-
gem"-. esse sujeito continua inocente no que diz respeito ao gozo,
enquanto ele não tiver tomado por sua conta o parricídio pelo qual ele
se humaniza e enquanto ele não tiver concluído sobre as conseqüênci-
as do complexo de Édipo em relação ao gozo. Vocês podem adivinhar
a implicação para a direção da análise: certamente permitir ao sujeito
ir conforme seu ritmo, deixar inacabado, como diz Colette Solcr, u
que ainda está por vir. Mas orientando-se em uma direção que não til'
acomoda ao aforismo segundo o qual "a verdade sai da boc.& da11 cri-
anças": permitindo-lhe no hm reconhecer que nunca foi inocenle, qut-
a falta é de estrutura, que só há sujeito quando ele ,l tomu 11obn· si.
lT ,.. ,,,..\'/'
Potencialmente ele já é culpado: é o que sustenta o psicanalista para
que, por sua vez, o sujeito possa vir a assumi-la, objetivá-la e não
encarná-la como objeto.
Discussão
Debatedora: Cássia Maria Rumenos Guardado
M11rie-Jean St11m'./:
t:BP-SP
é uma opera<jão que o alivia. Antes, o Outro falta, pois Freud diz que
a criança descobre em primeiro lugar a castração da mãe. Mas o Ou-
tro falta radicalmente, por estrutura; portanto, não há nenhum risco
em ser aquele que vai completá-lo. No entanto, o sujeito se pergunta
se ele tem ou não tem aquilo que, apesar de tudo, lhe permitiria recu-
perar pedaços de gozo; de qualquer forma, ele pode não ter aquilo, é
assim que Freud detecta a questão da castração para o sujeito.
Quando falamos em falta fundamental de gozo introduzida pelo
significante, se considerarmos isso do ponto de vista estrito da estrutu-
ra, seria melhor evocar a questão da privação. A criança encontra isso
no modo da frustração; ela encontra essa falta de estrutura como uma
falta vivenciada - é o que Freud traduz por frustração, uma frustração
particular, já que é o fato de responder que frustra. Aliás, isso explica, e
é uma das razões do silêncio do psicanalista. E no fundo, a castração é o
que permite recolocar no lugar essa frustração. Acho que, em algum
lugar, Lacan diz "recolocá-la em sua verdadeira ordem, ordenando-a
com a privação'', ou seja, ao fato desta falta estrutural. Essa é uma ten-
tativa de definir privação pela falta que é estrutural.
Glmza S,dnm,,n:
A partir de um conceito lacaniano, do último ensino de Lacan,
sobre a questão da língua, como poderíamos pensar esse simbólico
primordial da linguagem em relação à criança'!
Marit-.lmn Saw·tl:
Percebo que deixei de lado um aspecto da resposta às outras per
guntas, e isso pode ajudar a responder a essas que foram feitas agora.
Podemos chamar, com Freud, de "infantil" o que da criança não
se desenvolve, e o que não se desenvolve tem a ver com o gozo. A
propósito do gozo, penso na referência de Freud que correlaciona al
guma coisa de fixo do gozo do Homem dos Ratos com o gozo do Ou
tro. Isso só para fazer eco a essa observação.
Na realidade, não tenho idéia sobre o que os últimos desenvolvi
mentos de Lacan. com relação ao real, ao simbólico e ao imaginário,
mudam sobre a simbolização primordial, já que ele continua se refe
rindo àquela primeira marca do sign ificante, tanto em "Radiophonie"
quanto em "L'Etourdit". Por exemplo, .!Sta fórmula: "o <;orpo que se
furta ao sign ificante carrega a marca da recusa primordial". É uma
fórmula que encontramos em "L'Etourdit" ou em "Radiophonie". No
entanto, é uma topologia que nos permitiria articular de uma outra
forma real. simbólico e imaginário. Mais tarde, vou me basear num
relato, mas talvez você tenha alguma idéia, então valeria a pena dizer.
A respeito da insatisfação primordial, falei em insatisfação pri
mordial introduzida pelo próprio fato do encontro com o sign ific,mte.
Ela é interpretada após o complexo de Édipo. E é por isso, aliás, que
Lacan diz que não há um pré-edipiano, no sentido dessa interpreta
ção, embora haja um pré-genital (Cf. Sem1iuín,1 IV). Isso quer dizer que
o sujeito encontra muito cedo essa insatisfação.
Falei em metáfora porque me parece que o sign ificante, de
30 de agosto de 1997
Este título não anuncia um balanço. Primeiro, porque a histó-
ria da psicanálise caiu quase no domínio público: o debate entre Anna
Freud e Melanie Klein em torno da transferência está em todas as
memórias: além disso conhecemos, graças a Lacan, um bom número
de pioneiros da psicanálise com as crianças que são outras tantas
referências. Desse ponto de vista, seria mais interessante examinar
os teóricos contemporâneos: não é seguro que devêssemos elevá-los
ao nível de referência. Existe uma razão para isso: fora do campo
lacaniano - que chamamos campo freudiano-, os psicanalistas cede-
ram à dupla tentação de biologizar a pulsão e de identificar a causa a
uma determinação L11mplmu11lm: Eles fizeram crer na idéia do neuró-
0
J. Só bá PJieanáli.le Jo Sujeito
Devemos a Rosine e Robert Lefort ter "martelado" desde muito
cedo qu a cri· nça é um analisante po,· inteiro. Tentei precisar essa
tese fazendo a distinção entre sujeito, criança e infantil, o que nos
obriga a levar em conta o tempo lógico de efetuação do sujeito, ou
melhor, o momento em que ele se encontra quanto à sua exploração
da estrutura. Alguns poderiam usar como pretexto o fato de ,1ue a
criança não tem relações sexuais, que o passe lhe está fechado, que
sua passagem a analista não está na ordem do dia, para concluir que
não há psicanálise com criança. Com efeito, consideramos que só há
análise quando levada a seu término: é pelo término que ela é avaliada.
Jj E/1/>-S/>
Evidentemente, trata-se de dois caso de psi ose, nos qu is o d -
enrolar da e· deia sig ificante de end daquele <jue s prest· isso
orno p rceiro, mo testemunha, como cr. vente, ou ainda como e-
~ do ~ p a r a retomar alguns dos significantes de nossa
língua comum. Mas isso basta para situar a primeira tarefa do psicana-
lista com aquele que se apresenta como objeto: visar essa subtração de
gozo, suscetível de fazer o leito do sujeito, como eu havia dito antes.
2. A Crianra Sintoma
Ilc bilualmenle, a criança apar ce s ja como metáfora dn amo,
os pais têm um pelo outro, ejacom metonín ia do fal tiue a mãe
1ue e pera alcan ·a.r .atrav' · do fiU10. Pal'ece-me 11
..._fumí,d~,·:q•·d.w..do~/ll,j11Dta-seà·duuDbàl1·"'*5
bre a c,·ia.nç- " qu di Íngu a cria ça ujo sin ma repre •nla a
" erdad do casal familiar" qu la "cujo sintoma qu
·nar··t em-a ver com a subjefividadt! ·da mi&":' Esses dois casos não são
idênticos e podem permitir-nos apreender como não é equivalenle te
lal ipo d pais não utro: poi a ·adeia significante a uai J mtro-
duzeltl a cri n a c nfronta ao me mo <!m o oro de j Jeles.
sim, a riança metonímia do Jesej da mãe é a m mo tempo leva-
. a encarnar o que lh falta, as duzi-la com a im gem do ue la
ama ao rn smo tempo so a am ça ser ixad.i 1· rgad , :;e el ·
der Írnpres "" d poJer a1' n ·ir o ue ela visa por uma utra via:
ba. ta a presença do eu par eiro s cxual ou nascim nt d um utro
lil110 !)al'a que isso ·lconte a. É induzido na ''criança metáfora" qu
11.1 presença é o signo mor do pai : qu efa não é o qu Ih s f. lta,
l!Ue nãu a imp •de d dar lit
1. 1 u · aom1.i ..
J. A Metáfora Paterna
Esta é para mim a oportunidade de retomar uma passagem do
' NT: Em franch, mi-Ji,11. L."lcan chama Deus de DiL11-rr. onde ele joga c,om as palavras
Dieu (Deus) e dire (dizer).
1 NT: Em francês, 11t1r!-1v111w11.
11111 objeto 11 - la tem os seus [ .. .] Jos quais el.1 s~ ,·upit, l" i . o nada te 1
4. A Neurot1e Infantil
Para tentar tornar mais explícita ainda essa releitura da metáfora
paterna pelo próprio Lacan, tentemos retomar cada um de seus termos.
Para o sujeito dividid do ozo, o encontro com parceiro sexual rnns-
titüi um m io d recuperai um pouco do gozo p ri.liJo ao talaL ó que,
se nós sabemos aproximadamente o que são um pai e uma mãe, sabe-
mos menos o que é um homem e uma mulher, uma vez que o organismo
não impõe ao sujeito fazer coincidir anatomia e posição sexual.
Mulher e homem sao signi 1cantes. , uj Ílo 11-0 adot,1 a posição
I' mini na porqu lese cola o signi 1ca.nt "mulh 1" • m uma tiqu -
ta obr um ras . Enquanto representado por um significante - mes-
mo que seja o significante mulher - para um outro significante, o sujei-
to neurótico fuoeion;aà1iJÚº~ a.6iifd ele é masculino (versão lacaniana
do freudiano: ~ há. lib~ fflQCUÜl\a-,, o que é escrito pelo materna:
S.1'$ ~ S/t1. ,i designa o que do ser do sujeito escapa à representação
significante. Enquanto masculino, o sujeito está numa relação
metonímica com esta parte de seu ser que causa seu desejo: em uma
relação Metonímica quer dizer mediada pela implicação significante
(se S,, então S2).
De entrada poderíamos reservar o s1gni1ic. nte mulh r par
1 •w r o su 'eilo que t m uma relação direta com essa part d ser
pai-versão
perversão ou mãe-versão
PAJ-VERSAO
_ .i-;.. ... _
Homem - .......,..__ Mulher J( Mãe Filho
a a
'" f.,, Chatne de• Pyrénées": nomo, de uin senúnArio itine1·ante cri;ulo em 19R3 por Philip1,.,
l.,wa,lée (Bor<leaux), Bernard Numiné (Pau) e J\.\arie-Jeilfl Sauret (Tnulousr) nu 1111adro
,lu CfütEDA (Centre de Recherche sur l'Enfant dans le Discoun Analy1iq11e). Os 1rab1t-
lhu• .leite aeminário foram publicados com o noml! coletivo de "La Chatne dea Pyn!nécs",
,1111111 rsl.'olhi<lo porque a decisão pelo seminário foi tomada o,m Pau, lugar onde "pa..u11du-
1 v," 11j111lavam a utravessar os Pirineus aquelea que fugiam. durnMe II Segunda G11e1Ta
l\·\1111.liill, ,IA invasão alemã. de um lado, e do regime fra1111ui1t;L, Je nutro .
·· SOLER C., "L'enfan1 et le désir de l'analyste", ln: L' m/1111/rt lrr11.,ú·,lr/.1n11~v,,tr, Séri(.'S cll!
111 Découverte fnmclienne, Presses Universitaires du M.irail. Toulouse, 1993, p. 11 .
Discussão
Debatedor2: Dominique Fingermann
D(l/mi11,111r Fin_qr.r11u11111:
"A análise de criança cem anos depois da descoberta da psica~
nálise" é uma questão que o próprio Marie-Jean Sauret escolheu
quando montamos este seminário. A ela Marie-Jean Sauret esco-
lheu responder sem fazer um relato exaustivo da psicanálise de cri-
anças, de Anna Freud até os dias de hoje; privilegiou o ponto funda-
mental a ser elucidado para que se possa falar de psicanálise com
crianças e para que um analista tenha condições de suportar o trata-
mento e essa prática.
Esse ponto fundamental é a solução do sujeito para uma crise,
um impasse. Citando Marie-Jean: " .. .o impasse com o qual o
significante põe o sujeito na sua relação com o Outro". Impasse no
qual se teriam duas alternativas, ser devorado ou ser abandonado,
deixado cair.
Coloco, então, a minha primeira pergunta dentro desse comentário
11f,U'tt-Je1111 S,1111·d:
São questões muito importantes.
D,mui11i111t Fin,t7emu11111:
Hoje, você nos expôs uma das condições do sujeito e a nomeou
"subtração de gozo". No seu testemunho do passe'', você utilizou vári-
as vezes a expressão "objeção ao saber". Pensei, então, se poderíamos
articular a "subtração de gozo" com a "alienação", e a "'objeção ao
saber" com a "separação". Nesse sentido, pensei, ainda, se a separa-
ção - a objeção ao saber • se coloca.ria do lado da resposta do sujeito ;\
sua determinação, tendo-se, assim, uma possibilidade de surgir mu -
dança, ou seja, não mais uma "insondável decisão do ser", mas unu,
•
posição de onde a análise pode incidir em termos de decisão.
No seu comentário sobre o texto de Lacan "As duas notas"' , vm·r
evocou uma diferença entre posição e estrutura e falou da possibilid.1dr
de mudança, talvez não do lado da estrutura, mas do lado da posii;ãu.
• Referência à apt'esentação de Marie-Jean Saunit na N,,;,,. ,1,. Cm,•rlh,, ,l,1 s~çl\11-São 1'1111 ·
lo, em 28/08/97.
7 Comentário realizado no nia 29/08/07; publicado neste volume.
G/mz,1 S,zlonw11:
Gostaria de retomar algo que li em um de seus textos: a questão
da /11/twa como puro gozo.
Faço uma ligação com a pergunta que voce fazia, hoje, em rela-
ção às crianças do Brasil - que justamente não são cidadãs.
De certo modo, a Revolução Francesa ainda não aconteceu. É
um fenômeno da América Latina, para não falar do$ novos fenôme-
nos. Assim, existe uma perversão da civilização à qual estão submeti-
das as crianças, principalmente as crianças de rua, e na qual se obser-
va uma sexualidade precoce, a violência, a criminalidade. _E ntão, esta-
va pensando justamente sobre essa função paterna, essa função que
não existiu nessa situação, e sobre o período de latência ou mesmo sua
inexistência. Penso que seria algo a ser pesquisado. De todo modo, li
um artigo, de apenas uma nota, sobre o efeito, nessas crianças, da
ausência de latência; referia-se aos casos de criminalidade.
S1i111i1 M,~q,dhilt,,:
Ao ouvi-lo falar sobre a psicanálise com crianças hoje, incluindo
a orientação lacaniana, me lembrei de um texto de Bernard Nominé
onde diz que nos nossos meios psicanalíticos se fala muito mais facil-
mente do desejo da mãe, na sua primeira versão, do que do desejo do
pai. Ele observa que, na sua única aula do seminário "Os nomes do
pai", Lacan fala da "neurose inseparável aos nossos olhos", de uma
fuga diante do termo "desejo do pai", o qual se substitui com o termo
"demanda". É uma citação que ele faz da "Direção da cura".
Mas por que eu estou trazendo isso? Porque me pergunto, se-
guindo a idéia de que a psicanálise é uma só, se com a contribuição de
M,1rie-.le,m S,wrd:
Ainda agora, trata-se de questões decisivas.
Quanto à primeira pergunta, simplesmente diria que sim, para
correlacionar a "objeção ao saber" com a "separação"· o que antecipa a
resposta que eu poderia dar à última pergunta - e o que a "subtração do
gozo" dá à "alienação", ou seja, o efeito do significante.
Deixei de lado o que era a conclusão de meu texto, a saber, o que
podemos obter com o tratamento da criança. Me contentei com essa
resposta aproximativa: permitir que a neurose se efetue. Isto posto, se
considerarmos lJUe a metáfora paterna é um momento lógico. não~ .i
30 de agoslo de 1997
1. Trêd IJiiad
Ao propor este título, tinha em mente duas idéias. A primeira: a
constatação de que a psicanálise com as crianças representa, não 1raro,
uma subpsicanálise, uma psicanálise para principiante - isto é, explici-
tamente uma psicanálise que não está à altura do discurso analítico.
Existem mesmo psicanalistas que se recusam a receber crianças, por-
que elas tomam tempo, requerem um cuidado pa1ticular, acarretam in-
cômodos diversos. quando não estragam o material do consultório. Não
são elementos que cu considere desprezíveii-, porque podem tir.ar do
psicanalista a tranqüilidade necessária para psicanalisar. Mas podem
levar alguns, em nosso meio, a dedicar todo o seu tempo à psicanálise de
psicanalii.ta ou de analisantes ,1ue se orientam explicitamente para a
pi-icanálise, ou a análises de supervisão. É um problema, pois não é
garantido que os psicanalistas não fiquem, com isso, isolados da "subje-
tividade de seu tempo". Ora, vocês conhecem o duro veredicto de Lacan
em relação àqueles que sucumbiriam a uma tal eventualidade: "Seria
preferível que eles renunciassem ao exercício da psicanálise!".
A segunda idéia reside no meio mesmo do "tratamento" psicanalí-
tico da criança: a interpretação. Os trabalhos que apresentam casos de
<'rianças me dão, não raro. a impressão, como evoquei nas vezes anteri-
ores, ele que a interpretação com a criança seria de um outro registro
sunto: "alguém que não gosta das crianças não pode ser essencialmente
6/ Enf>-SI'
mau!". Um tal aforismo, que lhes peço esquecer assim que a confe-
rência acabar. não nos leva do lado das concepções evangélicas do
estilo "deixai vir a mim as criancinhas". tampouco do lado das motiva-
ções caritativas do estilo "querer o bem do próximo". O que já é mui-
to, pois querer o bem de seu próximo, Freud nos preveniu, equivale,
muitas vezes. a amar-nos na imagem de nós mesmos que ele nos de-
volve, a odiar o que ele encarna de estranho e, sobretudo, a gozar às
suas custas.
Mas existe uma outra razão que Freud havia abordado sob a
forma de um chiste. Trata-se da resposta de uma moça, candidata a
um emprego de babá, no qual seus futuros patrões perguntam quais
são as garantias de competência que ela oferece para poder cuidar
das crianças: "Eu já fui criança!". Ora, a descoberta de Freud 'con-
siste precisamente no oposto: se não sabemos o que é um.i criança, é
que nós esquecemos a criança que fomos. Nós a esquecemos porque
a recalcamos. E essa amnésia é a prova de que não amamos estrutu-
ralmente aquela criança! E que está aí uma condição da efetuação
da neurose.
Essa observação faz constatar a invenção freudiana: no infantil é
o que da criança não se desenvolve, porque se trata daquilo que o
sujeito é como gozo inemilinável, irredutível. que ele deve ao fato de
ser falante. Não podendo separar-se dele, resta-lhe o recurso do
recalcamento que localiza o infantil como traço de perversão no fan-
tasma, como meio de um ganho sobre o gozo no sintoma, etc. Sabe-
mos que no fim, a análise conduz o analisante a esse ponto: à desco-
berta do que ele mesmo é como gozo, isto é, como objeção ao saber.
Mas sabemos também que esta saída. se ela está no horizonte ela aná-
lise com uma criança, não está a seu alcance imediato. Digamos ape-
nns que é da responsabilidade do psicanalista que recebe uma criança
n;in torná-la definitivamente impossível.
Dora'! Ele lhe pergunta qual a participação dela nesta situação cfo
qual ela declara sofrer. Vocês conhecem a resposta: enquanto seu p;ii
ílerta com a senhora K, ela cuida dos filhos do casal K. para permitir
à senhora K ficar disponível!
O clínico atento descobre então o sofrimento de um sujeito ,)s
voltas com um desejo, que leva este último a oferecer-se à<Juilo ele lJU~
ele sofre e que, se não constitui, pelo menos "inílama" seu sintoma. O
sintoma é, portanto, também o de um conflito próprio do sujeito e do
qual o Outro parental, no exemplo, não tem idéia. Se a int<'rpretaçâo
é o instrumento da análise, como ela opera?
4. O Pequeno HanJ
Por muito tempo, li a intervenção de Freud em relação a Hans à
maneira da de Melanie Klein junto a Dick: como um enxerto signifo:ank
do Édipo, uma molécula de Édipo, como nos diz Lacan, que vai prolif~-
rar. Contudo, uma particularidade nos chama a atenção: com sua inter-
pretação, Freud inventa o complexo de Édipo na análise. É a primei,-.,
vez que tal intervenção ocorre: por essa razão, ela constitui uma saída
fora dos limites do saber habitual. Devo a Pierre Bruno haver retom11-
do a estrutura dessa interpretação.
No fundo, poderíamos imaginar que um dos problemas cl.i inter·
pretação consiste em percorrer os ditos do analisante, ~m indicar o que
os ordena e os organiza, o que imediatamente permite constituí-los nllno
L'tJllltU)o ti J(II pm'. ''. Que se trata exatamente de uma interpretação é con-
firmado pelas conseqüências da intervenção de l''reud. Primeira conse-
qüência, o comentário de Hans: "O prt,jr,IJOI' t,1m•e,w1 com Dm,1 pam Jilbtl'
1tuJo 1:1Jo Je antem,iii?". No fundo, a intervenção de Freud se reduz a um
"T,u)o 11 'l"e l'tlci 11~ diz, H,111J, mif o ,1t16ia. ", Mas, de onde Freud o sabe'!
Eis a questão induzida por Freud, questão que faz existir um sujeito de
uma enunciação inlocalizável nos ditos de Freud, como nos ditos de
Hans - o sujeito dessa enunciação inlocalizável que, com ,irmtÍl, 1Hans
situa do lado de Deus. Nesse sentido, a interpretação de Freud mobili-
za um impossível dizer.
Existe um segundo efeito que, aproximado da admiração de Hans
suscitada pelo que chamaremos impropriamente o "dizer de Freud",
sublinha um pouco mais a estrutura da interpretação. Com efeito,
passado o tempo para compreender o que o professor lhe en1;1nciou,
Hans retruca a seu pai: "Por </llt 1'flL'i me cliJJt t/llt: m mno m,wuit t 1111e l por
i.J,,n ,111r eu tenb1111uJo, t/fllllldo l 1•11ci quem amol''. De alguma forma, Hans
declara que o professor fala certamente com Deus para predizer o
futuro como ele o faz, mas que sua predição é falsa. Por que ele não
retoma a sua apreciação do professor e declara que é ele, o professor
Freud, que está errado? Porque precisamos atribuir essa contradição
precisamente à interpretação.
A interpretação tem como efeito captar um ponto exterior ao
conjunto dos ditos que, por essa razão, designaremos de real. mas,
6. Padde e Fim
Várias vezes fiz alusão ao passe, esse prol·edimento inventado
Discussio
Debatedora: Alba Abreu Lima
7í 1':/IP-S/'
l. Considero que esta seja uma pergunta de muitos, não só mi-
nha: Que resposta o analista pode dar, trabalhando numa instituição
pública, sem ser tomado pela ordem social ou da ciência?
2. Eu gostaria de ouvir sua opinião sobre os analistas que não
atendem crianças. Existiria uma justificativa. lógica para isso'!
3. O terceiro ponto, abordado de forma muito dara em uma de
suas conferências, refere-se ao equívoco de tratar a família, uma vez
que se trata do sintoma da criança, um gozo do par parental ou gozo da
mãe. Enfim, esse equívOl.'O de tomar a. família em tratamento.
4. Uma <JUestão sobre o "sentido branco" (Jen,, btmc) . Ela. seria
correia.ta da proposta de Laca.o: o psicanalista como retor (rrctmr), no
sentido de que ele faz um jogo para equivocar. Em português, traduzimos
por retórico. Mas, rectifie (em &ancês), nos remete à questão da pulsão.
6. Na "Conferência norte-americana", Lacan fala que a estrutu-
ra da interpretação é a mesma do sintoma. Quando você fez um con-
junto no quadro, propondo a equivalência entre A e não-A, fiquei pen-
'
sando se a definição da inconsistência do Outro poderia ser pensada
aí. Apresento como uma questão, uma dúvida.
6. Uma questão sobre a sua intervenção no caso clínico. Traba-
lho com adoção e adoção internacional. O caso me interessou muito
porque, na minha experiência, é difícil convencer os juristas disso que
você interpreta muito bem com o "sentido branco", de que é pr~ciso
ultrapassar, não uma identificação a um país (Colômbia, França, etc.),
mas ultrapassar para pertencer ao mundo dos humanos, ao ser falante
que tem essa perda de gozo. Não é uma questão, mas uma resposta.
que você me deu. Obriga.da.
Angeliniz H,zrt1ri:
Minha pergunta retoma uma questão de ontem. Entendi que
Marie-Jean Sauret faz uma diferença entre letra e escrita. Gostaria
que comentasse isso, se possível, na medida em que, com Lacan em
"Lituraterre", vemos como, com o significante, fazemos caligrafia, <-1ue
ele não serve para escrever. Dessa forma, L.ican nos conduz à letr-a.
Marie-Jrm, Stlftrel:
Eu não prometo responder. Afinal de contas, por uma razão de
estrutura: se de fato lidamos com um real da psicanálise, isso, de ante•
mão, põe em xeque minha resposta, ao mesmo tempo que existe lógica
para explicar esse fracasso. É muito mais do que uma precaução ort1-
tória; é para temperar o que estou induzindo: a própria impossibilida-
de de responder a cada pergunta levantada. De qualquer forma, vou
fazer um esforço.
Primeira pergunta: Que resposta um analista pode dar, trabalhan-
do em uma instituição, sem ser tomado pela ordem social ou da ciência'!
Conhecemos a crítica severa de Lacan em relação aos "psi" - psi-
quiatras, psicanalistas talvez não, ele não coloca os psicanalistas nesta
série - <JUe, querendo ou não, colaboram com a ordem social.
Aqui seria preciso falar de casos, e suponho que a maioria seja
casos de consultório ou de instituições. No fundo, poderíamos, a par-
tir da instituição, verificar se há ou não análise. A instituição é, muitas
• N.E.: FruiJr tlt .,m,,: tradu:tido babitualinente por 'foga' do sentido. O tenno 'fuga' refere-
~" aqui a e•coamento, esc.ope, vazamento, vazão. Lacan utiliza. indusivc, a imagem do
tone,) das Danaides, urn tonel sem fundo.
1/(/ EJJP-SP
fazer análise. No sentido estrito, o que os sujeitos demandam ao psi-
canalista é não fazer análise, é reforçar o fantasma, permitir gozar
conforme as modalidades com as quais se sonha. Isto é um dos aspe<.:-
tos da "fraude" psicanalítica; o psicanalista tira proveito dessa deman-
da para desviar totalmente dessa demanda de reparo do fantasma.
Se levarmos isso a sério, perceberemos a necessidade da ética, para
que essa "fraude" não seja uma canalhice. Não vou entrar nesse assun-
to, mas existe uma questão básica que é trazida por toda demanda.
Em relação à questão de Angelina Harari, sobre a diferença entre
letra e escrita, estou totalmente de acordo com o seu comentário de
"Lituraterre", onde Lacan evoca os rastros, os sulcos que o significante
pode cavar, por ser significante. No fundo, se nós sabemos se o
significante se separa do gozo. são os próprios traços do significante,
que são os traços onde poderia estar o gozo, o que, aos poucos, levou
Lacan a definir a relação entre o significante e o gozo como a "coloca-
ção de presença" de dois lugares absolutamente heterogêneos. Porém,
esses traços são tudo o que o sujeito tem dessa heterogeneidade. Esses
traços são o "litoral", como ele diz nesse texto, entre o significante e o
gozo; é isso que ele refere ou relaciona, penso eu, com a escrita. Ne,u;e
sentido, é uma escrita que está. presente em toda língua, isto é, também
naquelas que não teriam relação com a escrita, enquanto letra.
Portanto, uma análise poderia levar o sujeito a ter uma idéia do
que, para ele. esse "litoral" está feito, ou seja, o que para ele fixa algo
do gozo, sustenta seu desejo e o orienta para recuperar pedaços dt.>
gozo. Mas, neste texto há uma frase que chamou minha atenção: é
preciso que essa letra volte ao simbólico para ser lida. Eu entendo i!lso
como o momento em que o sujeito vai se explicar com esse rastro, que
no fundo constitui a primeira letra de sua elaboração teórica.
Não sei você concorda com isso, mas é mais ou menos assim que
. .
eu veJo as cmsas.
ou rrviata).
29 de agosto de 1997
,V6
casso das utopias comunitárias é da data dessa mesma nota. Pois em
1969, na Europa em todo caso, está em plena moda uma renovação
das utopias comunitárias.
A segunda observação é que, apesar dos ataques que lhe são di-
rigidos, a família resiste. Ela resiste reduzida ao que l'etn de irredutível.
, um pouco como se poderia dizer do Jti1th,mu. Salvo que ,;e trata aqui
' de uma irredutibilidade ligada à exigência de uma transmissão, trans-
missão, pode-se antecipar, dos elementos necess,irios para ciuc haja
' sujeito. Conhecemos esses elementos: o saber, o gozo e o objeto. Aqui
há uma tese bastante forte: não há família, não há sujeitu, nu sentido
dessa irredutibilidade. Lacan precisa que esta transminão é ela or-
dem, eu cito, de uma "constituição subjetiva/'. Isso permite im1i11tir sobre
o fato de que essa transmissão é de uma outra ordem llll~ a ordem
natural. Não há necessidade de família para fozer tilhos, '!ms para
fazer sujeitos, sim . Então essa transmissão implica. de diz. n relação
com um "desejo que não seja anônimo".
Minha terceira observação tem a ver com esse "desejo não anô-
nimo". É um terceiro parágrafo da segunda parte, onde l ...1l'.tll escla-
rece essa questão do desejo não anônimo. Quero obsi:rvar <JUe ele fal.i
da função da mãe e do pai, enquanto que esquematicamente nós te-
mos mais o hábito de falar da função paterna e do papel da mãe. Por
exemplo, Freud falava da mãe do pequeno Hans l'orno "atiuela que
cumpria o papel que o destino lhe fixou" . O desejo ela mãe sai cio
anonimato, sai do anonimato num sentido geraJ, pois o desejo do ho-
mem é o desejo do Outro, o desejo da mãe sai do anonimato pelo fato
1
de que "seus cuidados, diz Lacan, levam a marca de um interesse par-
ticularizado". E a.í Lacan faz uma observação, me parece muito preci-
sa, ele diz: "ainda que fosse pela via de suas próprias faltas" . O que eu
compreendo aqui, essa marca particularizada, talvez uma marca de
faJta de interesse, vale mais uma marca negativa que nenhuma marca.
K7
Quanto ao que diz respeito ao pai, a fórmula de Lacan, "o nome do pai
é o vetor de uma encarnação da Lei no desejo", me parece antecipar a
revisão da metáfora paterna que Lacan vai dar em "RSI", e segundo a
qual um pai não tem direito ao respeito, e nem tem direito ao amor, a
não ser que ele faça de uma mulher a causa de seu desejo. Esse ponto
vai ser retomado. Então isso é a primeira parte da nota.
A quarta observação. Lacan parece distinguir o sintoma da cri-
ança do sintoma comum ao neurótico pelo lugar desse sintoma. "O
sintoma da criança se encontra em lugar de corresponder ao que há
de sintomático na estrutura familiar". Então ele corresponde ao que
há de sintomático na estrutura familiar, sem dúvida porque a criança
não pode prescindir da sustentação, do suporte concreto do outro para
animar a estrutura. É um caso particular da definição geral que faz do
sintoma um representante da verdade. Ma.s, precisa Lacan, o que há
de sintomático na criança depende ou do casal ou da mãe. O pai foi
poupado, ele não evoca unicamente o pai. Minha idéia, e nós podemos
discutir sobre isso, é que o pai celibatário é uma mãe. Como aquela
que se ocupa de seu rebento.
Quinta observação. Não vou desenvolver o caso em que o sinto-
ma representa a verdade do casal familiar. Vou fazê-lo amanhã. Apro-
veito para citar uma observação precisa de Jacques-Alain Miller, que
considera que esse caso em que o sintoma da criança representa a
verdade do casal familiar é o caso em que "a criança não satura para a
mãe a falta pela qual se sustenta seu desejo"."[ ... ] a mãe só é suficien-
temente boa, se ela não o for demasiado, se os cuidados que ela prodiga
à criança não a desviarem de desejar enquanto mulher". Jacques-Alain
Miller dá duas fórmulas. Ela não deve ser "desviada de encontrar o
significante de seu desejo no corpo de um homem". O pai também
deve ser um homem, observa Jacques-Alain Miller.
Sexta observação. Em compensação, ressaltaremos o caso em
que o sintoma depende da subjetividade da mãe, caso que supõe que u
criança está implicada como correlativa do fantasma da mãe. Me pa-
rece que ser o objeto do fantasma da mãe é uma condição ele sobrevi-
vência da criança que não pode contar, para sobreviver, com nenhum
instinto materno. Dizendo de outra maneira, poderíamos concluir
dessas observações de Lacan, que ser o objeto do fantasma da mãe é
uma condição necessária à sobrevivência da criança, mas não é uma
condição suficiente para a efetuação do sujeito neurótico.
Sétima observação. É o caso do q:ial Lacan não fala, mas ouvi-
mos falar em análise. É o caso em que a mãe só se interessa pelo seu
homem, e reciprocamente, isto é, o caso em que a criança não dividi-
ria a mãe. nem a completaria, mas que talvez cairia como um dejeto.
Parece-me que Jacques-Alain Miller faz alusão a isso em seu artigo.
Parece que a clínica nos coloca diante de situações como essa.
Oitava observação. Eu lhes proponho escrever: S.1'$, SJa. o que
Lacan chama aqui "a parte tomada do desejo da mãe", ou seja, o lado
objeto do saber do outro. Dou essa fórmula para justificar um pouco
mais esta escrita que dá conta de uma observação de Lacan em um
outro texto, "Discurso de encerramento das Jornadas sobre a psicose
da criança", no qual fala da "infância generalizada", para designar o
fato de que podemos ser todos objetos do saber da ciência. Sem medi-
ação, Lacan coloca em seguida, sem mediação induzida para o sujeito
entre identificação e a parte tomada do desejo da mãe. Sem essa medi-
ação, a criança permanece como objeto do fantasma da mãe. E 1..-'\c.tn
nos diz: "revelando a verdade desse objeto", mais do ttue interpretan-
do a sua mãe. Sabemos, por outro lado, que quando o Nome-do-Pai
reina, o significante se divide. É essa mediação que se poderia escre-
ver aqui, simplesmente com uma flecha entre S 1 e s~: de modo que
temos uma mediação que dá aqui a matriz do discurso do senhor como
discurso do inconsciente - S.IS-+ S/11.
11'9
Nona observação. "A criança re11/iz11 (está em itálico no texto) a
presença do que Lacan designa como objeto a no fantasma". É uma
observação lateral e ocorre a Lacan escrevê-la em terceira pessoa. Eu
vou só sublinhar esse 'realiza'. É uma pergunta. Será que não há aí
um índice do retorno no real daquilo que é cortado do simbólico? Eu
diria que uma mulher faz um filho, porque a mulher não existe. Dei-
xemos assim, um pouco enigmático.
Décima observação. Lacan examina minuciosamente a posição
da mãe. E quando eu coloquei esse esquema, o materna do discurso do
senhor, se trata da estrutura do inconsciente do sujeito. Aqui se trata
da posição subjetiva da mãe. Eu creio que a fórmula de Lacan é muito
clara; a criança vem no lugar do objeto, saturando o modo de falta que
é específica para a mãe, qualquer que seja a estrutura da mãe, neuró-
tica, psic6tica ou perversa.
Décima primeira observação. A criança barra o acesso à mãe de
sua própria verdade, dando corpo a esse objeto e impondo a exigência
de ser protegido. Observem, não é sem conseqüência para a direção
de uma análise. quando uma mulher decide ter um filho, gerar um
filho, ou quando ela está grávida. Então se compreende que Freud
tenha podido pedir às mulheres em análise com ele para adiar essa
decisão de ter um filho. Enquanto que hoje, se se pedisse a uma mu-
lher que esperasse terminar a análise, então isso seria uma contribui-
ção para o controle da natalidade, ou então ajudaria àqueles que que-
rem ter filhos depois dos sessenta anos. Mas há de qualquer forma
uma verdadeira questão.
Décima segunda observação. Aqui, acabamos de falar da mãe.
Agora vamos falar do sintoma da criança para observar que a fun-
ção que o filho representa para mãe é acrescida, ganha uma eficácia,
se a criança apresenta sintomas somáticos. Então me parece que a
expressão "sintoma somático" designa ao mesmo tempo o signo de
91/
uma patologia médica e a função que ele assume para essa mãe . A
realidade da deficiência, ou da desvantagem, dá o máximo de garantia
à mãe pelo fato de que não "se" irá ver em outro lugar ou embaixo o
que essa desvantagem da criança representa para ela. Dizendo mais
claramente, se você vê uma criança deficiente ou em desvantagem. se
imagina mal uma t}Uestão tão brutal como "qual o benefício secundá -
rio que você pode ter ao ter um filho assim?" A mattr,~z mesma da
criança, sua desvantagem, sua deficiênc:a, se presta a ser lida de acor-
do com a estrutura materna. Para "testemunhar a culpa" da mãe neu-
rótica, "servir de fetiche" para a mãe perversa, "encarnar uma recusa
primordial" da mãe psicótica. Essas três proposições mereceriam um
longo comentário. Eu vou extrair um, talvez dois.
A dimensão fetiche que uma criança é suscetível de preencher,
eu creio que a questão se coloca por saber se é reservada a uma mãe
perversa, ou se não seria, como lembra Jacques-Alaiu Miller "uma
perversão normal. lado mulher". Eu cito, "é o que se chama de amor
matemo, que pode chegar até a fotichização do objeto infantil ". A
observação sobre a psicose me evoca um comentário de Lacan no Se-
mituú·ti, X. :;obre a mãe do esquizofrênico que subjetiva o seu bebê
1 como um puro real. Eu faço essa observação pela oportunidade que
isso me dá de retificar uma maneira de compreender isso, que quere-
ria dizer que se se tem uma mãe psicórica, se é psicótico. Toda a clíni-
ca vai contra. O que se trata aqui é do lugar que ocupa a criança para
sua mãe. Mas a criança pode subjetivar a sua relação com a mãe de
maneira completamente diferente. Se ,1ão fosse assim, não se faria
psicanálise, porque não se poderia mudar nada da posição da criança.
Mas no que concerne a sua estrutura, é um outro problema.
Décima terceira observação. É um pedacinho de frase que me
deteve, que me chamou a atenção particularmente. Vou ler a frase: ''a
criança na relação dual com a mãe lhe dá imediatamente acessível. o
9/
que falta ao sujeito masculino". Me parece que se deve entender por
sujeito masculino o sujeito representado por um significante para ou-
tro significante. É possível ler muito claramente no materna do discur-
so do senhor, que dá a estrutura do inconsciente, que o S 1 não faz mais
do que representar o sujeito e recorre ao S 2 para produzir o que do
sujeito escapa à representação, por ser uma representação. Mas o que
produz a articulação significante é, seja um efeito de sentido seja uma
significação, que o real do sujeito continua a escapar da representação
significante. O "' que é o produto sob o S2, designa ao término da
operação, da articulação significante, o que resiste definitivamente à
representação. Isto é o que falta ao sujeito masculino, aquele que se
submete à lei do significante. A lei do significante é: não há S 1 sem S 2,
regida pelo Nome-do-Pai. Então o a inden os rastros de gozo quase
biográficos que o sujeito tira de seu debate inaugural com o Outro.
São esses rastros que conseguem se localizar no fantasma do sujeito
(fixação diria Freud) de onde eles orientam o desejo, em direção ao
tipo de objeto suscetível de restituir ao sujeito o gozo que ele perde ao
, falar. Enfim. quanto mais a criança é deficiente mais ela chega perto
do real, mais ela dá corpo a esse objeto, mais ela solicita de sua mãe
que se abandone à inclinação, à tendência de seu fantasma em detri-
mento de sua verdade.
Décima quarta observação. É um comentário que incide sobre o
pai, que é um pouco ausente dessa nota. É para introduzir o tipo de
pai que não consente na mediação. Eu tomei isso emprestado ao semi-
nário "RSJ" onde Lacan fala do pai que se toma por um pai. Se pode-
ria escrever que o significante pai o representa como sujeito. Se pode
escrever também: Si/$. É aquele que pode dizer "eu sou o pai". É um
pai que não consente em desejar uma mulher. A tese de "RSI" é que
esse pai contravém, transgride a função do Nome-do-Pai. Isso supõe
que nós tenhamos essa idéia de que o No.ne-do-Pai é o significante
92
que introduz a impossibilidade para o significante de se significar a si
mesmo. Apoiando-me sobre dois textos, vou retomar o texto em que
eu me apoiava, de Jacques-Alain Miller: "não admitindo o particul.tr
do desejo no outro, o pai esmaga na criança o sujeito sob o outro do
saber". É de novo o que se poderia escrever nesse lado direito: Sia .
"Por este fato", diz Miller, "o pai, o falso pai [ ... ) constrange cada vez
mais essa criança a encontrar refúgio no fantasma materno, o fantas-
ma de uma mãe negada como mulher".
Décima quinta observação. Minha tendência é a. de chamar su-
jeito masculino o sujeito do significante, e portanto, situar a posição
feminina, assim como o texto nos convida a fazê-lo, do lado do S./n,
de tal maneira que assim fica visível, legível neste texto a divisão de
uma mulher entre o que ela é como sujeito falante-masculino e a posi-
ção feminina caracterizada pelo seu consentimento em ocupar para
um homem a posição de objeto de seu gozo, a causa de seu desejo. O
homem, aquele que escolheu a posição masculina não importa qual
seja a sua anatomia, o homem não teria outra saída a não ser identifi-
car uma mulher como promessa. de gozo. Sem dúvida uma mulher
tem necessidade desse desvio por um homem para sintomatizar sua
própria relação com o gozo, consentindo igualmente, e aqui uma ob-
servação de Colette Soler, em ser um sintoma para ele; mas uma mu-
lher tem outro recurso, aceder diretamente com a criança a uma espé-
cie de retorno no real daquilo que falta ao sujeito masculino, isto é,
aquilo que falta a ela mesma na medida em que é um ser que fala.
Última observação. Eu não resisto a pôr lado a lado duas fórmu-
las de Lacan. Uma que está neste texto, onde ele fala do a como "aqui-
lo que falta ao sujeito masculino", e outra fórmula que está em "A
Significação do Falo": o falo na medida em que ele falta à mulher.
Então tl é o que falta ao sujeito masculino, e o falo é o que falta à
mulher. Nesse texto, essa segunda dimensão fica em segundo plano.
9]
talvez porque at1uela que ele deveria ter desenvolvido na conseqüên-
cia da criança como sintoma da verdade do casal parental, é a criança
metáfora do amor. É alguma coisa que Freud tinha muito bem obser-
vado, quando, por exemplo, distingue as mulheres que de alguma
maneira saram de sua neurose tendo um filho, porque elas dão à luz a
castração, e aquelas que o parto torna loucas. Me parece que é a cri-
ança como objeto de gozo que se deveria acentuar, de maneira que se
tem nesse texto aqui uma versão laca.niana do que Freud chamou da
superposição em estrato do infantil e do feminino. O que nós podería-
mos escrever, a/-<p. São as duas fórmulas, o a, o que falta ao sujeito
masculino, e o falo, o que falta ao sujeito feminino, à mulher.
Se eu pudesse acrescentar uma palavra, esse texto não trata nunca
da "insondável decisão do ser". Eu lembro a vocês, para remediar um
efeito de leitura, que eu sinto que se poderia imputar a resposta da
criança pelo que ela é para seu pai ou para sua mãe. Não importa o
que induza o pai ou a mãe, a resposta do sujeito é a resposta do sujeito.
Obrigado.
Discussão
Com os comentários iniciais de Helena Bicall10 (São Paulo),
Maria de Fátima Sarmento (Salvador) e
Domingos Paulo lnfàntc (São Paulo)
Helma Bicn.lhfl:
Eu faria um comentário e uma questão.
Meu comentário diz respeito ao 2º parágrafo da parte 11 do texto
de Lacan "Duas Notas sobre a Criança" onde ele traz a seguinte arti-
culação: como pensar a função de resíduo sustentada pela família con-
jugal e que implica num desejo que não seja anônimo? Meu comentá-
rio parte de uma articulação trazida por Lacan no Sem111tfrú1 XX. Ao
discutir a relação homem/mulher a partir das fórmulas da sexuação,
Lacan diz que quando o homem crê abordar a mulher, o que aborJa é
a causa de seu desejo, designada como objeto ,z. "Só lhe é dado alcan-
çar seu parceiro sexual, que é o Outro, por intermédio do que para ele
é a causa de seu desejo" (LrSémúwire, Li111-e~ Enmre, Paris, Seuil, p. 75).
Essa condição do lado masculino, de onde um homem entra tendo
relação com o gozo fálico, faz a relação homem/mulher pela conjun-
ção do $ com o objeto a incidir de início no campo fantasmático. Do
lado mulher, sua condição de não-toda em relação à função fálica a
coloca num ponto de divisão, como mostra Lacan na carta a J. Aubry,
entre sua relação ao falo e o valor de objeto II que a criança ocupa no
real de seu fantasma, implicada como objeto. Assim nQ casal parental.
a parceria para cada um deles no par, seu verdadeiro par, é o objeto a.
Esse é o real que estará em jogo no casal parental, e é a este real que o
sintoma da criança aparece como resposta. Eu pediria um comentário
seu sobre como é que a criança está na dependência dessa condição de
o homem fazer a mulher emergir como causa de seu desejo, para tirar
a criança desse valor de objeto ,z para o Outro.
fiftima S,zmu11ll1:
Lacan deixa claro nas "Duas notas" que o sujeito só pode ser pen-
sado a partir da função do pai e da mãe, e o que está em jogo nessas
funções não é a satísfação das necessidades, mas o gozo. A família é um
lugar de transmissão do gozo. A modernidade, no entanto, tem se esfor-
çado para mostrar que é possível abrir mão da função do pai. Na clíni-
ca, podemos ver de perto os estragos matemos, ou seja, a criança é
mantida na posição de objeto sem a referência de um homem.
A título de ilustração, posso dar o exemplo de uma garota que
venho atendendo há algum tempo; apresenta a condição de filha adoti-
9S
va e a mãe orgulha-se de se preservar como virgem até hoje. O temor
desta garota, agora na puberdade, é de ser o par sexual dessa mãe.
Isto pode ser visto através de um sonho em que ela tem o pênis e está
desvirginando a mãe.
Gostaria de ouvir a sua opinião sobre essa crise do pai na moder-
nidade.
96
Mt11·ie-Jr.c1n Saurd:
São observações notáveis. Vou apenas tentar dizer o que elas
despertam em mim, pois são observações que se bastam, são mais
que questões.
A primeira questão, de Helena Bicalho, faz referência ao esque-
ma do Sr.mi.tufni, XX. É um esquema, eu lhes lembro, que está dividido
em duas partes; a parte superior é ocupada pelas fórmulas da exceção.
Existe um X que diz não à função fálica, e do outro lado, não-todo X.
Não vou comentar isso. É um esquema que durante muito tempo le-
mos simplesmente "lado homem", "lado mulher", e que teria ali a fun-
ção paterna de um lado, e o não-todo feminino, de outro.
Vou usá-lo somente para dizer que o lado esquerdo é o lado mas-
culino, do sujeito, e o outro, o lado petit a, o lado feminino.
O que Helena chamou "o espaço do fantasma" se escreve com
uma flecha do$ ao a. Podemos ver, a partir deste esquema, o lugar
onde Lacan escreveu o significante de A barrado [S(}()].
A questão que você está trazendo, é pre~iso introduzir a criança
como sintoma do que ocorre entre os pais.
Faço uma observação prévia: não considero que se possa dizer
"aqui estão os homens e aqui, as mulheres''; senão se poderia dizer que
só há sujeitos masculinos, e só os homens falariam. Dito de outra forma,
é um quadro que divide o sujeito, com um problema particular, depen-
dendo de que se entre nesse quadro lado homem ou lado mulher. Se se
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entra lado homem, todo sujeito é falante, não há sujeito que escape à
função falica. Esse sujeito dividido dó gozo pelo fato de falar, vai pro-
curar recuperar esse gozo. entre outras coisas, pela via sexual, elegen-
do uma mulher como causa de seu desejo, como promessa de recupe-
ração de um gozo sexual. Mas o esquema é feito de tal maneira que o
comentá.rio de Lacan diz que o sujeito homem não vai mais longe que
do chupar pedaços de corpo. Aí há um sujeito que tem um embaraço
máximo. O sujeito que entra assim do lado feminino, é também um
sujeito que fala, ou seja, é um sujeito que é de alguma forma a sede
dessa divisão. É um sujeito que, enquanto mulher, tem relação com o
fato de que não há significante, não há significante que possa dizer o
que é uma mulher para um homem, não há significante que possa
falar da foraclusão generalizada do sexo.
Então, o que uma mulher, no fundo, espera de um homem, é que
ele a identifique como mulher; é uma tentativa de procurar do lado de
um falo a resposta à pergunta do que ela é como mulher. Mas isso já é
uma tese freudiana. O que é exacerbado por esse movimento é precisa-
mente o que escapa dela, escapa por estrutura, de todo tratamento pelo
significante, o que Freud poderia chamar o Pmi.i,wiJ primitivo. Ou en-
tão reduzir. ou trazer a questão do PmimeiJ para o fim da análise.
É nesse contexto que Lacan situa uma mulher, e que, de acordo
com o espaço de seu pr6prio fantasma, tenta recuperar o que ela per-
de de gozo ao falar, do lado da criança.. Dizendo de outra forma, tem
no fato da criança alguma coisa do gozo que ela não recupera do lado
do homem. O sintoma da criança é, como você disse, uma resposta ao
real do gozo colocado em jogo no casal.
Creio que é o que simplesmente se pode compreender aqui, eu
leio isso também com o seminário "RSI". As coisas poderiam ser es-
critas assim: se poderia escrever a mãe com o objeto de seu gozo, a
criança, mas o que Lacan diz em ''RSI" é que, se como mulher ela
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consente em servir ao gozo do homem, me parece que se pode dizer
que o gozo que ela vai lhe dar é transmitido à criança como subtração
do que ela tomaria às custas da criança.
Dizendo de outro modo, é o que Lacan chama de perr-1•m11i111: o
fato de se oferecer ao gozo de um homem, do lJUal ela terá uma crian-
ça, essa ph•t-vt1v1on de alguma forma se substitui à perversão dela.
Enfim, é uma subtração de gozo que é transmitida. E é essa subtra-
ção que faz o leito, o lugar do sujeito. Na medida em que essa subtra-
ção é mal feita, o sintoma da criança 'pega fogo'.
É a única observação que posso fazer com o seu comentário que
está. bem articulado. Aliás, observo que entre a passagem do Smui1,í-
r1i1 XX que você citou e as "Duas notas" existe um intervalo de três
anos, e apresentam verdadeiramente a mesma estrutura.
Sobre a segunda pergunta. Primeiro, uma observação de deta-
lhe, depois uma observação mais geral. O comentário de detalhe é
provocado pelo fragmento clínico que você trouxe, que me lembrou
um texto de Lacan, "A juventude de Gide", na qual a mãe de GiJe
renuncia de alguma forma ao gozo sexual, para se consagrar de algu-
ma forma a ser a mãe do amor. Gide vai encontrar a mãe do desejo na
forma de uma tia, e com a resposta perversa que vocês conhecem,
salvo que Lacan coloca uma questão sobre esse ponto, que mereceria
ser indicada, e que é por que via o fantasma passa da mãe à criança.
Porque aqui, neste caso preciso, o sonho da criança não parece com o
que a mãe diz.
A observação mais geral sobre a função do pai. Creio que esta-
mos num tempo onde o laço social dominante é caracterizado pela ci-
ência e pelo mercado. Poderíamos dizer assim: é um laço social que vai
explorar a estrutura do sujeito desejante, quer dizer, um laço ttue vai
lhe fazer crer que aquilo que lhe falta vai ser fabricado pela ciên(·ia, e
que ele vai poder adquirir, se se.rvir no mercado. Lacan caracteriza
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assim o que chamou o discurso do capitalismo, chamando precisa-
mente individuo o sujeito completado por seu gozo. Me parece que o
toxicômano é um paradigma desse indivíduo que convém ao capitalis-
mo. Que convém em teoria, porque o capitalismo não sabe o que fazer
com esse toxicômano.
O problema é colocado pelo efeito do discurso da ciência, o sa-
ber dominante que é um saber que tende a suturar o sujeito. O indiví-
duo tem todo dia a oportunidade de verificar, em todo o caso na Fran-
ça, que ele não pode se servir, como ele quer, no mercado. Dizendo de
outra forma., o que lhe falta, aquilo que lhe falta, deve se encontrar em
algum lugar. Na França, uma das razões do crescimento do racismo
nos períodos de crise, creio, se trata de identificar aqueles que poderi-
am dispor do gozo que não estaria à disposição dos outros. É por isso
que se pode dizer que os imigrantes são todos desempregados que
arruinam a Previdência Social e que ao mesmo tempo tomam o traba-
lho dos franceses.
Há um fato de estrutura. um discurso dominante que não dá
mais muito lugar ao Je.mMa11t, mesmo o crescimento da religião, os
integrismos, é um integrismo de acordo com a ciência.
Não sei se vocês viram, como eu, a televisão hoje. Na Argélia,
houve um massacre de toda uma cidade em nome de Deus. Eu tomo
isso para ir no sentido de um tempo em que a função do pai 'vai mal
das pernas'. Será que a solução estaria na restauração do mito? Eu
não acredito. Mesmo que o mito seja melhor que nada.
Penso que durante um momento, um dos mitos modernos, um
falso mito, foi constituído pela. psicologia. A psicologia constituiu um
lugar de acolJúda do sujeito, um lugar que temperou a sua relação com
o gozo. Hoje mesmo, a psicologia se faz científica, quer tratar o sujeito
como um objeto. Por exemplo, a psicologia cognitiva vai tratar o sujeito
como uma máquina de cognição, de tratamento de informações - o que
J/ltl
Lacan etiquetou com o termo "infância generalizada". Daqui por di-
ante nós somos os objetos do saber.
Não sei o que dizer sobre sua questão, a não ser que a psicanáli-
se tem uma enorme responsabilidade porl1uc ela é, no fundo, a única
teoria hoje que sustenta a idéia de que o sujeito é irredutível ao saber.
Eu não ouso continuar, mas me concentrari;1 em oferecer nova-
mente uma nota clínica. A ausência de referência a um homem . no
caso em que a mulher faz ou não caso da palavl'il de um homem , é algo
importante, mas não é a causa da psicose, do lado da rt"11posta cio su-
jeito. Talvez as mães psicóticas mostrem isso melhor, p1m1ue para elas
o Nome~fo-Pai é foraclu(do, mas são capazes de tramuniti -lo à. crian-
ça. É preciso contar com a resposta do sujeito. H.i outr.as l.'C1i11a,; ,1ue
poderíamos discutir. como o fato de que presl·i11dir do pili ni'iu {: um
inconveniente mas na condição de se servir dele.
Essa questão é verdadeiramente um arcabouço, um an<lai1m·.
Sobre a última questão, a de Domingos, estou eompletamcnlt!
de acordo com as duas versões que separou e, sohretudo, ele pró-
prio completou.
Como ele, vou sublinhar o segundo ponto ou, talvez, complicar
um pouco. Com efeito, não é a mesma coisa ser um ohjcto, por,1ul' !le
encontrássemos crianças que fossem objetos, não poderíamos fazer
nada, e escolher essa posição é uma fórmula que vale p.ir.t ll prncição
feminina. Freud fazia observar, de toda maneira, que a posição passi-
va é uma posição pela qual era preciso se dar muito trabalho, se en-
tender que uma criança na posição de objeto implica uma escolha <lo
sujeito. Evidentemente é bem complexo, mas é o rnai11 aberto à nossa
intervenção, porque o sujeito está aí. E se não há a menor manifesta-
ção do sujeito, estaríamos num momento, não anterior, mas diferente
da incorporação significante. Mesmo a criança que se apresenta como
objeto, mesmo assim há momentos em que ela reage ao significante; e
/ti/
é nesses momentos, a partir deles que a gente pode pegá-los, alcançá-
lus. Talvez seja isso que tenha dado corpo a essa distinção entre "cri-
ança sintoma" na neurose e "criança objeto" na psicose. Mas, ainda
uma vez, se a criança não é nada para a sua mãe • os psicólogos o
demonstraram experimentalmente com Spitz-, ela morre.
A11_qtli1111 H"'nri:
Me chamou a atenção a mãe à qual Marie-Jean se refere no tex-
to: uma mãe para quem a criança nada significa. Isso reforçou uma
figura que Lacan trabalha, não saberia mencionar precisamente onde,
mas lembro que foi discutida na jornada "Os dizeres do sexo" da Es-
cola d_a Causa Freudiana: Medeia, com a expressão a "verdadeira
mulher". Peço-lhe um comentário a respeito.
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para tratar isso que se inscreve do pai, para dar conta da inexistência
da relação sexual.
Essas "Duas notas", acredito, poderiam ser pensadas a partir da
terceira teoria do Édipo, a teoria que você invocou como a dapere-vewion.
Pergunto, então, se essa concepção daperc-vei.1úm não esta.ria já presen-
te, de uma certa forma, no momento da redação das ''Duas notas". Po-
deríamos pensar aqui num questionamento do que transmite o pai para
além dos ideais destacados em "Os complexos familiares"?
11'/,me-Jean Saurel:
Não tenho muita resposta a dar, tanto a uma quanto à outra questão.
Não tinha pensado em colocar essa fórmula "a mãe para quem a
criança nada significa" em relação com a "verdadeira mulher".
Com efeito, é uma questão de saber se há uma antinomia entre a
mulher e a mãe. No fundo, ela poderia ser mulher total renunciando a
ser mãe. É alguma coisa que se pode encontrar como teoria do neuró-
tico. Parece-me que se encontraria mais a teoria contrária, a mulher
pensando que ela poderá ser mulher no dia em que for mãe.
Pensei imediatamente em Medeia, da qual Jacques-Alain Milll'r
falou nesse texto de Lausanne; mas, justamente, Medeia não é ;ilguérn
para quem a criança não representa nada, é até mesmo o ,:onlrário.
Ela tenta alcançar Jasão com aquilo que vai lhe faltar du,tS veze11.
Aqui há um verdadeiro canteiro de obras de questõe?t 1mlirt• 11
qual poderíamos avançar com uma clínica diferencial que di11inguiru1
a posição que o sujeito assume entre mulher e mãe. Parl!'<!t'·llll', 110
Marit-.le,111 S,mrd:
· Não quero improvisar em cima de Gide, porque é uma questão
muitó-complicada. Realmente, é uma das referências sobre o proble-
ma do qual falamos.
Sobre a questão de Ana Lydia, que Jacques-Alain Miller diga
que há uma nota é menos importante do que a ordem da leitura. Você
diz, aliás, que em "Os complexos familiares" os temas são apresenta-
dos precisamente na ordem inversa, e que isso poderia ser um argu-
mento de leitura. É dito, Lacan escreve na ordem que quiser, mas
penso· que é mais lógico no sentido sugerido por Miller.
Acho muito interessante e estou de acordo com o que você diz
sobre a concepção da família; acho que se pode dizer que se depura ao
mesmo tempo em que Lacan precisa a estrutura do sujeito. Verdadeira-
mente, não sei se a questão dapb't-JJerJÚm está presente no momento das
"Dúás notás". Aliás, o que é surpreendente desde "Os complexos fami-
liares" é que o rigor de Lacan é tal que ele não impede os desenvolvi-
mentos posteriores. E aí poderíamos nos perguntar qual era o real que
ele visava com "Os complexos familiares", porque se a teoria muda, o
reai, com o qual ele tentava se explicar, é o mesmo. É por isso, me pare-
ce1 ·q1,1e temos a impressão que a estrutura atravessa a sua obra.
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