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A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O DIREITO DOS POVOS INDÍGENAS


À TERRA: UMA ANÁLISE DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL SOBRE A DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA
SERRA DO SOL1

Júlia Ribeiro Marques2

RESUMO: O presente trabalho pretende fazer uma análise da decisão do Supremo Tribunal
Federal sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a fim de possibilitar uma
melhor compreensão acerca da contribuição desse julgamento para a questão dos direitos
indígenas à terra hoje no Brasil. Para tanto, proceder-se-á a um estudo dos dispositivos
constitucionais referentes ao direitos indígenas, mais precisamente do art. 231 e seus
parágrafos, examinando-se a evolução do tratamento dispensado aos povos indígenas nas
Constituições anteriores até a promulgação da atual Constituição, bem como os pressupostos
constitucionais que configuram os direitos dos povos indígenas à terra (originariedade dos
direitos e tradicionalidade da ocupação), as garantias constitucionais que emanam desses
pressupostos e o instituto da demarcação.

Palavras-chave: Constituição Federal. Princípio da Integração ou da Assimilação. Princípio


da Interação. Direitos originários. Terras tradicionalmente ocupadas. Posse permanente.
Usufruto Exclusivo. Garantias constitucionais. Demarcação. Raposa Serra do Sol. Supremo
Tribunal Federal. Julgamento.

INTRODUÇÃO

Os direitos indígenas, no Brasil, ainda que tenham sido objeto de preocupação do


legislador desde os tempos em que nosso país era Colônia de Portugal, só tomaram contorno
constitucional com a Carta de 1934, a qual foi seguida pelas de 1937, de 1946 e de 1967,
todas com a mesma abordagem: os povos indígenas como realidades transitórias, que seriam,

1
Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), apresentado como requisito parcial para obtenção
do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, e aprovado com nota máxima pela Banca Examinadora composta pelo
Prof. Me. Plínio Saraiva Melgaré (orientador), Prof. Me. Dilso Domingos Pereira e Prof. Me. Eugênio Facchini
Neto, em 25/06/2012.
2
Acadêmica do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais da PUCRS. Contato: julia.rmarques@hotmail.com.
  2

gradualmente, assimilados e integrados à sociedade envolvente, deixando, por conseguinte, de


serem índios.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, de cunho marcadamente


democrático e fundamentada no princípio da dignidade da pessoa humana, é conferido aos
indígenas um capítulo específico destinado a reconhecer seus direitos fundamentais: o
Capítulo VIII, formado pelos arts. 231 e 232. Estes dispositivos constitucionais inauguraram
um novo princípio norteador das relações entre comunidades indígenas, sociedade envolvente
e Estado, abandonando oficialmente a postura integracionista e assimilacionista até então
vigente, para adentrar em uma concepção de interação entre estes segmentos.

Assim, no seu art. 231, caput, nossa Carta Magna estabelece que “são reconhecidos aos
índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens”.

Todavia, há mais de quinhentos anos, na prática, o direito indígena à terra é justamente


o mais violado, inclusive nos dias atuais, quando estas comunidades estão protegidas por uma
Constituição Federal considerada extremamente avançada no tocante à garantia dos seus
direitos. Os índios são vítimas de toda sorte de violência física e moral, perpetrada por
segmentos da sociedade interessados na exploração e ocupação de suas terras, o que dá
origem a inúmeros conflitos locais que têm como objeto a disputa sobre áreas indígenas.

Entre os casos de conflitos em terras indígenas, o mais proeminente no cenário pós-


Constituição de 1988 é aquele ensejado pela demarcação da área Raposa Serra do Sol, no
Estado de Roraima, que, além de ter ganho uma grande repercussão na mídia e na opinião
pública nacionais, bem como perante organizações internacionais, foi objeto de uma decisão
emblemática do Supremo Tribunal Federal no tocante ao reconhecimento dos direitos dos
índios à terra.

Nesses termos, partindo-se do estudo das normas constitucionais relativas aos direitos
indígenas, mais especificamente do art. 231, caput e parágrafos, o presente trabalho objetiva
examinar os pressupostos constitucionais que configuram os direitos dos índios à terra, para
melhor entender as garantias constitucionais que emanam destes direitos e o próprio instituto
da demarcação. Ao final, tendo como substrato este estudo, é realizada uma análise da decisão
do Supremo Tribunal Federal no caso da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol,
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com o fim de possibilitar um maior esclarecimento acerca da importância de referido


julgamento para a questão dos direitos indígenas à terra hoje no Brasil.

1 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E OS POVOS INDÍGENAS

1.1 OS POVOS INDÍGENAS E AS CONSTITUIÇÕES ANTERIORES

No Brasil, os direitos dos povos indígenas são reconhecidos desde o período colonial.
Diversos instrumentos normativos decretados pela Coroa Portuguesa dispunham acerca da
soberania indígena e dos seus direitos territoriais sobre as áreas que ocupavam.

Todavia, em 1822 o Brasil torna-se independente de Portugal e passa a adotar um


sistema jurídico inspirado nos Estados nacionais constitucionais, os quais haviam se
constituído a partir de uma concepção burguesa de Estado, território, governo e povo únicos.
Dessa forma, o reconhecimento da soberania das comunidades indígenas, antes existente na
legislação colonial, acaba sendo inconcebível dentro de um Estado brasileiro que se pretendia
uno, com território, governo e povo homogêneos.3

Nesse contexto, em 1824 é promulgada a primeira Constituição brasileira, conhecida


como Constituição do Império, que não trouxe qualquer dispositivo relativo aos direitos
indígenas, permanecendo silente quanto à existência destes no cenário nacional. Somente em
1834, com a Reforma Constitucional do Império, os indígenas são incorporados ao texto da
Carta Magna por meio de ato adicional: “Art. 11, §5º- Atribui competência às Assembléias
Legislativas Provinciais ‘para promover cumulativamente com as Assembléias e Governos
Gerais (...) a catechese e civilização do indígena e o estabelecimento de colônias’.”4

Em 1890, após a proclamação da República em 15 de novembro de 1889, é promulgada


uma nova Constituição, em cujo texto não se encontrava qualquer dispositivo que fizesse
menção às comunidades indígenas.

Embora continuassem a surgir normas infraconstitucionais relativas às comunidades


indígenas e suas terras na vigência dessas duas Constituições, apenas com a promulgação da
Constituição de 1934 a questão passa a ser matéria constitucional. Os direitos indígenas foram
abordados em dois dispositivos, quais sejam, o art. 5º, inciso XIX, alínea “m”, e o art. 129.

3
MARÉS de Souza Filho, Carlos Frederico. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá,
2005, p. 62.
4
CUNHA, Manuela Carneiro da. Os Direitos do Índio: ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.
212.
  4

O primeiro dispunha sobre a competência exclusiva da União para legislar sobre a


incorporação dos indígenas à sociedade nacional: “Art. 5º - Compete privativamente à União:
(...) XIX - legislar sobre: (...) m) incorporação dos silvícolas à comunhão nacional.”5

O art. 129, localizado no Título IV, “Da Ordem Econômica e Social”, previa o respeito
à posse das terras em que os indígenas se encontrassem permanentemente localizados,
contudo vedava a estes a possibilidade de aliená-las: “Art. 129 – Será respeitada a posse de
terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto,
vedado aliená-las.”6

Sobre a natureza da posse permanente e a razão da inalienabilidade das terras


indígenas, Freitas Junior afirma :
[...] o pressuposto da localização permanente utilizado para determinar a existência
da posse indígena parece referir-se a uma posse imemorial dos índios sobre as terras
que se pretendem suas. Não havia uma compreensão de terra indígena como um
habitat cultural de um povo. [...]
O gravame da inalienabilidade em relação às terras indígenas correspondeu a uma
proteção adicional concedida aos interesses dos índios. Considerando as terras
indígenas inalienáveis, proibindo, inclusive, os próprios índios de aliená-las ou
transferi-las, a Constituição de 1934 restringia o tratamento depredatório e negocista
dado àquelas terras, dificultando as freqüentes espoliações aos direitos dos
indígenas. 7

Em 1937 é instaurado o Estado Novo por Getúlio Vargas, e uma nova Constituição é
promulgada, a “Polaca”. Esta Carta conservou o reconhecimento do direito indígena à terra,
apenas modificando um pouco os seus termos: “Art. 154 – Será respeitada aos silvícolas a
posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém,
vedada a alienação das mesmas.”8

A Lei Maior de 1937 suprimiu o artigo que previa a competência da União para legislar
sobre a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional, o que estava diretamente

5
BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ:
Congresso Nacional, 1934. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm>. Acesso em: 25 mar. 2012.
6
BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ:
Congresso Nacional, 1934. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm>. Acesso em: 25 mar. 2012.
7
FREITAS JUNIOR, Luís de. A Posse das Terras Tradicionalmente Ocupadas pelos Índios como um
Instituto Diverso da Posse Civil e sua Qualificação como um Direito Constitucional Fundamental.
2010.247 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Programa de Pós-Graduação em Direito
Constitucional, Universidade de Fortaleza, Ceará, Fortaleza, 2010, p. 63.
8
BRASIL. Constituição (1937). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Congresso
Nacional, 1937. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao37.htm>.
Acesso em: 25 mar. 2012.
  5

relacionado com a estrutura autoritária de poder promovida pelo Estado Novo, em que o
governo tudo podia, ainda que sem o respaldo da vontade popular.9

Com a promulgação da Constituição de 1946, a competência da União para legislar


sobre a incorporação dos índios à comunhão nacional voltou a ser matéria constitucional,
estando prevista nos seguintes termos: “Art. 5º - Compete à União: (...) XV - legislar sobre:
(...) r) incorporação dos silvícolas à comunhão nacional.”10

Outrossim, a Lei Maior de 1946 manteve o dispositivo referente ao respeito à posse dos
indígenas sobre as terras onde se encontrassem permanentemente localizados, impondo aos
índios a proibição de transferi-las, por qualquer título: “Art. 216 – Será respeitada aos
silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de
não a transferirem.” 11

Cabe salientar que, na esteira das Constituições de 1934 e de 1937, a Carta de 1946
exigia a localização permanente dos índios sobre as terras como pressuposto para a
configuração do seu direito de posse sobre elas. Essa localização permanente era entendida
como um pressuposto do passado, ou seja, devia haver uma ocupação da terra desde tempos
imemoriais pela comunidade indígena.12

A Constituição de 1967, promulgada três anos após o Golpe Militar de 1964, elaborada
pelo ainda ativo Congresso Nacional, manteve a competência exclusiva da União para legislar
sobre a incorporação dos indígenas à comunhão nacional, nestes termos: “Art. 8º - Compete à
União: (...) XVII - legislar sobre: (...) o) nacionalidade, cidadania e naturalização;
incorporação dos silvícolas à comunhão nacional;” 13

No seu art. 186, dispôs sobre o direito das comunidades indígenas às terras por elas
habitadas, a ainda procedeu a um avanço em relação às Constituições anteriores ao garantir-
lhes o usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes: “Art.
186. É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o
seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas
9
FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 63.
10
BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Congresso
Nacional, 1946. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm>.
Acesso em: 25 mar. 2012.
11
BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Congresso
Nacional, 1946. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm>.
Acesso em: 25 mar. 2012.
12
FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 65.
13
BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativo do Brasil. Brasília, DF: Congresso
Nacional, 1967. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao67.htm>.
Acesso em: 27 mar. 2012
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existentes”.14 Dessa forma, explicitou os direitos dos índios sobre as terras que ocupavam, ao
mesmo tempo em que estabeleceu garantias de eficácia destes direitos, bem como distinguiu-
os do direito de propriedade.15

É oportuno ressaltar que, quando o dispositivo falava em assegurar aos indígenas a


posse permanente das terras que habitam, a contrario sensu das Constituições anteriores, essa
posse permanente devia ser entendida, a partir de então, como uma garantia para o futuro, no
sentido de propiciar aos grupos indígenas o seu habitat,16 deixando de ser exigido como um
pressuposto referente a uma ocupação passada.

A Constituição de 1967 ainda trouxe em seu texto uma inovação: em seu art. 4º, inciso
IV, incluiu as terras ocupadas pelos indígenas entre os bens da União: “Art. 4º - Incluem-se
entre os bens da União: (...) IV - as terras ocupadas pelos silvícolas.”17 Essa atribuição da
propriedade à União (e não aos grupos indígenas) deve ser entendida como uma medida de
proteção adicional aos direitos destas comunidades, pois as suas terras ficavam ipso facto
inalienáveis, exceto por autorização legislativa,18 impedindo, dessa forma, sua alienação pelos
Estados e Municípios, bem como a usurpação realizada pelos posseiros e pelas oligarquias
rurais.19

Em 17 de outubro de 1969, o governo ditatorial do General Costa e Silva outorgou a


Emenda Constitucional nº 1, mantendo a propriedade da União sobre as terras indígenas (art.
4º, IV) e a sua competência exclusiva para legislar sobre a incorporação dos indígenas à
comunhão nacional (art. 8º, XVII, “o”). Entretanto, modificou o art. 186 da Carta de 1967,
redigindo-o nestes termos:
Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei
federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o
seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas
existentes.
§1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer
natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras
habitadas pelos silvícolas.
§2º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes

14
BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativo do Brasil. Brasília, DF: Congresso
Nacional, 1967. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao67.htm>.
Acesso em: 27 mar. 2012
15
CUNHA, Andreia. Território e Povos Indígenas. 2006. 155 f. Dissertação (Mestrado em Direito Econômico
e Social) – Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico e Social, Pontifícia Universidade Católica do
Paraná, Curitiba, 2006, p. 35.
16
FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 65.
17
BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativo do Brasil. Brasília, DF: Congresso
Nacional, 1967. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao67.htm>.
Acesso em: 27 mar. 2012
18
CUNHA, M., op. cit., p. 94.
19
VILLARES, Luiz Fernando. Direito e Povos Indígenas. Curitiba: Juruá, 2009, p. 110.
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direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do


Índio.20

A Emenda Constitucional nº 1/69, além de determinar a extinção e a nulidade dos


efeitos jurídicos de atos que lesionassem os direitos territoriais dos índios, restabeleceu
expressamente a inalienabilidade das terras por eles ocupadas, que havia sido suprimida do
texto constitucional quando da promulgação da Constituição de 1967, assegurando-as, assim,
por duas vias. Segundo Freitas Junior:
Declaradas patrimônio da União e também inalienáveis, as terras habitadas pelos
índios estavam por duas vias asseguradas; enquanto bens da União só seriam
alienados mediante autorização legislativa, por outro lado, sendo essas terras por
natureza inalienáveis, nem a própria União, legítima proprietária, poderia transferi-
las, mesmo com autorização legislativa. 21

Cabe consignar, também, que este dispositivo constitucional continuou referindo-se à


posse permanente dos indígenas sobre as terras por eles ocupadas no sentido de garantir
estabilidade de seus direitos sobre o seu habitat, em uma perspectiva para o futuro.

Ressalte-se que, por trás dessa ampla proteção dos direitos territoriais indígenas, estava
a política de segurança nacional característica do Governo Militar, cuja intenção era
estabelecer um controle mais efetivo em relação às terras ocupadas pelos índios,
principalmente na Amazônia, pois consideravam-nas estratégicas para a defesa das fronteiras
nacionais.22

Dessa breve retrospectiva histórica, podemos concluir que, embora houvesse uma
preocupação do legislador com a questão indígena desde o período Colonial, inclusive
elevando-a ao status de matéria constitucional em 1934, esse tratamento dispensado aos
índios era pautado por uma idéia integracionista, ou seja, de que seus direitos mereciam
proteção apenas enquanto eles não fossem assimilados pela sociedade nacional de forma
progressiva, consubstanciando uma noção de transitoriedade da realidade indígena no País.

20
BRASIL. Constituição (1967). Emenda Constitucional nº 1 de 17 de outubro de 1969. Altera na íntegra o texto
da Constituição de 1967. Brasília, DF: 1969. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em:
31 mar. 2012.
21
FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 66.
22
MONTANARI JUNIOR, Isaias. Terra Indígena e a Constituição Federal: Pressupostos Constitucionais para a
Caracterização das Terras Indígenas. In: XV CONGRESSO NACIONAL DO CONPENDI, 2006, Manaus.
Anais de Manaus. Disponível em:
<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/manaus/estado_dir_povos_isaias_montanari_jr.pdf>. Acesso
em: 18 out. 2011.
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1.2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E OS POVOS INDÍGENAS: UMA


MUDANÇA DE PARADIGMA

Em 05 de outubro de 1988, após vinte anos de uma ditadura militar caracterizada pela
reiterada violação de direitos humanos, foi promulgada a oitava Constituição brasileira, um
marco da redemocratização no País. A Constituição Cidadã, como ficou conhecida,
estabeleceu como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil o princípio da
dignidade da pessoa humana, valor basilar de todos os direitos fundamentais.

Partindo dessa ótica democrática e humanitária, alicerçada na dignidade da pessoa


humana, a nova Carta Magna, em seu preâmbulo, reconhece a sociedade brasileira como uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, estabelecendo entre os objetivos do Estado
brasileiro, em seu art. 3º, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a
promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.

Sob essa inspiração pluralista, os povos indígenas brasileiros conquistaram um capítulo


inteiro na Constituição dispondo sobre seus direitos, o Capítulo VIII – Dos Índios, formado
pelos arts. 231 e 232, inserido no Título VIII – Da Ordem Social, além de diversos outros
artigos espalhados ao longo do texto da Lei Maior. Nesse sentido, José Afonso da Silva
assim afirma:
É inegável, contudo, que ela deu um largo passo à frente na questão indígena, com
vários dispositivos referentes aos índios, nos quais dispõe sobre a propriedade das
terras ocupadas pelos índios, a competência da União para legislar sobre populações
indígenas, autorização congressual para mineração em terras indígenas, relações das
comunidades indígenas com suas terras, preservação de suas línguas, usos, costumes
e tradições. Os arts. 231 e 232 é que estabelecem as bases dos direitos dos índios.23

Entretanto, apesar da Constituição Cidadã ter surgido neste contexto de consolidação da


dignidade da pessoa humana, a conquista desses dispositivos constitucionais não se deu de
forma simples, tendo sido resultado também de uma intensa mobilização dos indígenas
brasileiros e de setores da sociedade civil24.

Em que pese a Constituição não tenha atingido um grau de proteção totalmente


satisfatório para os povos indígenas, porquanto acabou cedendo às pressões de elites
economicamente interessadas na exploração de suas terras e prevendo algumas exceções às
garantias de seus direitos, ela logrou apontar um conteúdo mínimo de direitos capazes de
23
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 855.
24
ARAÚJO, Ana Valéria. Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, LACED/Museu Nacional, 2006, p.
38.
  9

assegurar às comunidades indígenas uma existência mais digna. Assim expõe Márcia Cristina
Altvater Vilas Boas:
Evidente que a nossa Constituição não esgotou todo o conteúdo dos direitos a que
fazem jus os povos indígenas, mas é indiscutível ter sinalizado de forma salutar um
conteúdo mínimo necessário, para que a partir deles viesse o reconhecimento de
outros direitos que direta ou indiretamente decorram daqueles expressamente
previstos nos arts. 231 e 232.25

Dentro desse conteúdo mínimo de direitos que a Constituição Cidadã sinalizou, ela
acabou por revolucionar a relação entre povos indígenas, Estado e sociedade nacional, ao
reconhecer àqueles, no seu art. 231, sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, bem como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
impondo à União o dever de demarcá-las e de proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Explicitando isso em seu texto, a Carta Magna reconheceu aos índios o seu direito à diferença
cultural e à identidade étnica, ou seja, de serem índios e de assim permanecerem para sempre,
sem qualquer condição ou termo, colocando um fim ao paradigma da integração ou
assimilação, e inaugurando o paradigma da interação.26

Até a promulgação da Constituição de 1988, a política orientadora da relação dos povos


indígenas com o Estado e a comunhão nacional tinha como base ideológica uma concepção
evolucionista e preconceituosa, assentada em duas premissas: a primeira, de que os índios
eram realidades transitórias e “atrasadas”, que seriam, inevitavelmente, assimiladas pela
sociedade dita “civilizada”; e a segunda, de que o Estado deveria, através da tutela, proteger
essas populações enquanto não se houvessem incorporado à comunhão nacional, assegurando
a sua transição pacífica e harmoniosa para essa sociedade entendida como mais civilizada e
moderna.27

Entretanto, a política de assimilação, vista até então como a melhor alternativa para as
comunidades indígenas, acabou mostrando-se, na prática, como uma medida nefasta na vida
dessas populações.

Assim, na década de 1980, começa a se impor no Brasil a teoria da relatividade


cultural, inicialmente defendida pelo antropólogo teuto-americano Franz Boas e, aqui, pelos
irmãos Orlando e Cláudio Villas-Boas, criadores do Parque Nacional do Xingu. Esta
concepção sustenta que não é possível comparar sociedades e culturas humanas entre si, no
25
VILAS BOAS, Márcia Cristina Altvater. Os Povos Indígenas Brasileiros e a Transição Paradigmática.
Porto Alegre: Núria Fabris, 2012, p. 71.
26
BARRETO, Helder Girão. Direitos Indígenas: vetores constitucionais. Curitiba: Juruá, 2005, p. 104.
27
RODRIGUES, Maria Guadalupe Moog. Indigenous Rights in Democratic Brazil. Human Rights Quarterly,
Baltimore, v. 24, n. 2, p. 487, maio 2002.
  10

sentido de se afirmar que uma é mais evoluída em relação a outra, porquanto cada qual
apresenta modos de viver e de pensar altamente complexos e constituídos de inúmeras
singularidades, só podendo ser descritas por conceitos próprios. Dessa forma, os povos
indígenas brasileiros passam a ser reconhecidos como realidades culturalmente diferentes,
com formas próprias de organização e de desenvolvimento, e não mais como uma sociedade
“atrasada”, fadada à transitoriedade e, posteriormente, à assimilação.28

É nesse contexto teórico que surge a Constituição de 1988, afirmando o direito dessas
comunidades de serem e permanecerem culturalmente diferentes do resto da sociedade
nacional, sem qualquer condição ou termo, abandonando definitivamente a concepção
integracionista.

Dessa forma, garantindo o direito dos povos indígenas à sua diferença cultural e à sua
identidade étnica, a Carta Magna inaugura o paradigma da interação, baseado em uma relação
de horizontalidade entre as comunidades indígenas e a sociedade envolvente, na qual ambas
podem interagir entre si em condições de igualdade.29 O indivíduo ou o grupo aos quais não
se reconhece suas especificidades culturais ou étnicas jamais será capaz de reconhecer sua
própria identidade, sendo colocado, assim, à margem da sociedade, e, por conseguinte, não
podendo relacionar-se igualitariamente com esta.30

2 DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS À TERRA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL


DE 1988

2.1 DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS À TERRA E SEUS PRESSUPOSTOS


CONSTITUCIONAIS

A questão da terra é o ponto central dos direitos constitucionais dos povos indígenas,
pois adquire caráter de sobrevivência física e cultural para eles.31 Diferentemente da
sociedade ocidental e capitalista, para os índios a terra não é apenas o espaço físico que
habitam, é elemento de sua espiritualidade, é onde seus ancestrais repousam e onde se
assentam suas crenças. É uma singular relação de reciprocidade, em que o índio, vendo-se

28
KAYSER, Hartmut-Emanuel. Os Direitos dos Povos Indígenas do Brasil: desenvolvimento histórico e
estágio atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2010, p. 210 et seq.
29
LEITÃO. Ana Valeria Nascimento de Araújo. Direitos Culturais dos Povos Indígenas: aspectos de seu
reconhecimento. In SANTILLI, Juliana (Org.). Os Direitos Indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Fabris,
1993, p. 228.
30
BARRETO, op. cit., p. 104.
31
SILVA, J., op. cit., p. 856.
  11

como parte integrante da natureza e da terra, faz desta elemento essencial para sua própria
existência.

Por essa razão, a Constituição Federal de 1988, além de reconhecer aos povos indígenas
a sua organização social, línguas, crenças e tradições, também garante a essas populações os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, tendo em vista que seus
direitos à diferença cultural e à identidade étnica só serão assegurados se lhes forem
garantidos seus direitos territoriais. Não é por outro motivo que o extermínio de milhares de
índios e o desaparecimento de inúmeras comunidades têm sua causa não apenas na violência
imediata contra eles praticada mas também na violência mediata da subtração de seus
territórios.32

Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 assegura os direitos indígenas à terra em


quatro dispositivos, estando o núcleo desses direitos e as garantias deles decorrentes
expressamente estabelecidos no art. 231 e seus sete parágrafos. O caput desse dispositivo
assim determina: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários às terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

O caput do art. 231 revela os dois pressupostos constitucionais que configuram e dão
conteúdo aos direitos dos povos indígenas à terra, quais sejam, a originariedade dos direitos
(direitos originários) e a tradicionalidade da ocupação (terras que tradicionalmente ocupam).
O primeiro é o pressuposto constitucional que legitima os direitos indígenas à terra, e o
segundo é o pressuposto através do qual tais direitos se revelam.33

O reconhecimento constitucional da originariedade desses direitos significa que eles são


congênitos e anteriores à formação do próprio Estado brasileiro, assentando-se no fato de que
os índios já habitavam o que hoje é o território nacional muito antes da chegada dos primeiros
europeus colonizadores.34 Com isso, a nossa Carta Magna acolheu o indigenato, um instituto
jurídico luso-brasileiro, cuja origem encontra-se nos primeiros tempos da Colônia, quando o
Alvará de 1º de abril de 1680, posteriormente confirmado pela Lei de 6 de julho de 1755,

32
LOBO, Luiz Felipe Bruno. Direito Indigenista Brasileiro: Subsídios à sua Doutrina. São Paulo: LTr, 1996,
p. 44-45.
33
FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 83.
34
MACHADO, Costa (Org.); FERRAZ, Anna Candida da Cunha (Coord.). Constituição Federal Interpretada.
Barueri: Manole, 2011, p. 1230.
  12

afirmou que, nas terras outorgadas a particulares em sesmarias, sempre seria reservado o
direito dos índios sobre elas, uma vez que são seus primários e naturais senhores.35

De acordo com a teoria do indigenato, os direitos indígenas à terra são inatos, ou seja,
existentes a partir do nascimento de cada indígena, não se submetendo a legitimação e
registro posterior, uma vez que reconhecidos como existentes anteriormente à formação do
Estado brasileiro, e, obviamente, do próprio ordenamento jurídico pátrio, ao passo que os
direitos de outros, não-índios, decorrentes da ocupação, são adquiridos ao longo da vida, e
estes sim sujeitos a posterior legitimação e registro.36

Os direitos originários dos índios recaem sobre as terras tradicionalmente ocupadas por
eles. A fim de evitar interpretações distorcidas que pudessem descaracterizar tais terras como
verdadeiros territórios de um povo, o legislador constituinte detalhou e especificou o conceito
de “terras tradicionalmente ocupadas”,37 assim dispondo no §1º do art. 231 da Constituição
Federal:
§1.º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios aquelas habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Dessa forma, terras tradicionalmente ocupadas pelos índios é um conceito jurídico que
reúne quatro situações complementares, todas necessárias e nenhuma suficiente sozinha,
tomadas segundo os usos, costumes e tradições de cada povo: a) as habitadas pela
comunidade em caráter permanente; b) as utilizadas para as atividades produtivas da
comunidade; c) as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu
bem-estar, e; d) as necessárias à sua reprodução física e cultural.38

Quando a Constituição afirma que as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas


são aquelas habitadas por eles em caráter permanente, não se refere a uma posse imemorial,
ou seja, desde tempos remotos impossíveis de mensuração pela memória, nem,
necessariamente, a uma ocupação ininterrupta e atual, tendo em vista os inúmeros casos em
que as comunidades indígenas são expulsas de suas terras por meio de violência física ou
moral. Este conceito deve ser entendido como aquelas terras em que a comunidade
35
SILVA, J., op. cit., p. 860.
36
MENDES JUNIOR, João. Os Indigenas do Brazil, seus Direitos Individuaes e Politicos. São Paulo: Fac-
Similar, 1912, p. 58-59.
37
BARBOSA, Marco Antonio. Direito Antropológico e Terras Indígenas no Brasil. São Paulo: Plêiade, 2001,
p. 94.
38
ARRUDA, Rinaldo. Territórios Indígenas no Brasil: aspectos jurídicos e socioculturais. In SOUZA LIMA,
Antonio Carlos; BARROSO-HOFFMANN, Maria. Etnodesenvolvimento e Políticas Públicas: bases para uma
nova política indigenista. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2002, p. 139.
  13

desenvolve, atualmente, todos os aspectos cotidianos de sua vida, ou, verificando-se a


inexistência de posse atual em razão de sua expulsão por meio de violência, aquelas em que
haja vestígios de sua ocupação permanente em um passado vivo e palpitante, capaz de ser
reconstituído pela história oral, pelo modo de ocupação ou por rastros de sua presença na
área.39

As terras utilizadas para as atividades produtivas da comunidade são as áreas em que


esta desenvolve a agricultura, a caça, a pesca, a coleta, ou seja, onde exerce qualquer
atividade com o fim de produzir e obter os elementos necessários a sua subsistência.40

As terras imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-


estar dos povos indígenas remete à idéia de que este espaço deve ser suficientemente extenso,
a fim de que, pelo crescimento demográfico e pela constante e intensiva exploração do solo,
não venha a ser impossibilitada a conservação dos recursos naturais dos quais a população
indígena precisa para sobreviver.41

Por fim, as terras necessárias à reprodução física e cultural das comunidades indígenas
relacionam-se com o fato de que as terras consideradas tradicionalmente ocupadas devem
abranger um espaço suficiente a permitir o desenvolvimento da população indígena, tanto em
um sentido demográfico quanto em um sentido cultural.

Note-se que, quando a Constituição sujeita o conceito de terras indígenas


tradicionalmente ocupadas aos usos, costumes e tradições das comunidades, isso significa que
a tradicionalidade atende ao modo cultural como essas etnias relacionam-se com a terra,
conforme seus códigos, padrões, crenças, instituições, formas de produção, reprodução e
valores espirituais42, variando de acordo com o universo simbólico e com a cosmologia de
cada uma das comunidades indígenas.

Observe-se que a tradicionalidade deve ser interpretada sob o ponto de vista de que as
culturas indígenas, como quaisquer outras, são dinâmicas e transformam-se ao longo do
tempo, pois nenhuma cultura é estática e isolada, ela está sempre relacionando-se com outras.
Portanto, eventuais mudanças decorrentes do contato com outras comunidades, indígenas ou

39
SILVA, Lásaro Moreira da. O Reconhecimento dos Direitos Originários dos Índios sobre suas Terras
Tradicionais na Constituição Federal de 1988 e a Extensão do Conceito de Terras Indígenas Tradicionalmente
Ocupadas. Revista Jurídica Unigran, Dourados, v. 6, n. 11, p. 150, jan./jul. 2004.
40
BARBOSA, op. cit., p. 94.
41
BARBOSA, loc. cit.
42
MONTANARI JUNIOR, op. cit.
  14

não, de forma alguma representam a negação de seus conhecimentos tradicionais ou de sua


identidade cultural e étnica. Nesse sentido, Rinaldo Arruda destaca:
Dentro desse socialmente construído campo de significados, o atual dilema indígena
se eterniza: se continuam ‘autênticos’, são vistos – com simpatia ou não – como
‘selvagens’, sem condições de autodeterminação. Se incorporam em sua constelação
cultural elementos da modernidade, passam a perder legitimidade como índios e
seus direitos passam a ser contestados.43

Destarte, existindo ocupação tradicional sobre a terra indígena, nos termos do §1º do
art. 231, incidirão sobre ela os direitos originários da comunidade que a ocupa. Estes direitos
originários estão consignados no §2º do art. 231: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do
solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.”

Aos povos indígenas são reconhecidos, então, os direitos de posse permanente e de


usufruto exclusivo.

O direito à posse permanente revela-se como uma destinação das terras indígenas, para
sempre, como habitat da comunidade, vale dizer, como o espaço onde desenvolvem sua
organização social, seus costumes, suas tradições, suas línguas e suas crenças, não
restringindo-se a uma mera relação material entre homem e coisa, própria do direito civil.44

Em razão desse direito de posse permanente, o §5º do art. 231 garante aos povos
indígenas a vedação de sua remoção das suas terras:
§5.º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum
do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua
população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso
Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o
risco.

Contudo, essa garantia possui duas exceções: casos de catástrofe ou de epidemia que
ponham em risco as populações indígenas e casos de interesse da soberania do País. Na
primeira situação, o presidente pode ordenar diretamente a remoção, porém, deverá haver
verificação e anuência posterior do Congresso Nacional (ad referendum), e, na segunda
situação, a remoção só é possível após deliberação do Congresso Nacional. Note-se que, em
qualquer dos casos, é garantido às comunidades indígenas o seu retorno imediato logo que o
risco haja cessado.

43
ARRUDA, op. cit., p. 139.
44
SILVA, J., op. cit., p. 860.
  15

O direito de usufruto exclusivo que os povos indígenas têm sobre o solo, os rios e os
lagos existentes nas terras que tradicionalmente ocupam lhes garante os meios para sua
autossustentação física, cultural e econômica, mediante a exploração dos recursos ambientais
de seus territórios.

Dessa forma, os direitos de posse permanente e de usufruto exclusivo têm caráter


complementar, pois não há como se cogitar a efetivação do primeiro sem assegurar o
segundo. Nesses termos, Roberto A. O. Santos:
Os dois institutos, o usufruto exclusivo e a posse permanente, completam-se e
apóiam-se reciprocamente. A posse é necessária e deve ser permanentemente
afirmada. Mas ela, só, não basta às comunidades indígenas, que precisam empregar
as riquezas possuídas na sua própria manutenção, no seu lazer, no desfrute de seus
valores culturais e, se o quiserem, na absorção da cultura chamada branca. Por seu
turno, o usufruto não é um usufruto qualquer, mas uma variante que preserva todo
tempo a posse da terra, base da segurança econômica e do futuro biocultural da
sociedade indígena.45

Note-se que o direito ao usufruto exclusivo recai apenas sobre as riquezas do solo, dos
rios e dos lagos, excluindo dessa regra os potenciais de energia hidráulica e as riquezas
minerais, que, de acordo com o art. 176, caput, da Constituição Federal, constituem
propriedade distinta da do solo, para fins de exploração e aproveitamento. É o que dispõe o
§3º do art. 231:
§3.º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a
pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados
com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-
lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

Todavia, o próprio §3º do art. 231 estabelece requisitos constitucionais exigidos para a
exploração dos potenciais de energia hidráulica, bem como para a pesquisa e a lavra das
riquezas minerais que se derem em terras indígenas, quais sejam, a autorização do Congresso
Nacional, a consulta prévia às comunidades indígenas afetadas e, no caso de exploração dos
recursos, a participação destas nos resultados da lavra, na forma da lei.

Embora estejam tramitando, atualmente, vários projetos de lei sobre mineração ou


aproveitamento de potenciais hidrelétricos em terras indígenas, no Senado e na Câmara dos
Deputados, nenhum foi aprovado ainda e, diante da sua inexistência, qualquer atividade dessa
espécie em terras indígenas tradicionais deve ser considerada ilegal.

Essa exceção ao direito de usufruto exclusivo dos povos indígenas mostra-se um grave
retrocesso na garantia de seus direitos territoriais, devendo-se pensar em estendê-lo também

45
SANTOS. Roberto A. O. A Parceria Agrícola em Terras Indígenas. In SANTILLI, Juliana (Org.). Os Direitos
Indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Fabris, 1993, p. 182.
  16

para os potenciais de energia hidráulica e as riquezas minerais, como forma de garantir-lhes


plenamente os direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam.46

Neste ponto, torna-se importante salientar que a utilização de recursos naturais pelos
povos indígenas, de modo geral, é realizada de forma altamente sustentável, em virtude da
especial relação que o índio tem com a terra, dela só retirando o suficiente para a sua
sobrevivência e autodeterminação, sem esgotá-la jamais. De acordo com Andréia Cunha, “os
sistemas tradicionais de manejo dos recursos naturais pelos povos indígenas devem não só ser
respeitados pela sociedade envolvente como também, incorporados e assimilados porque
permitem falar em uma sustentabilidade ambiental”.47

Mesmo havendo, por um lado, essa exceção ao direito de usufruto exclusivo,


possibilitando a exploração dos potenciais de energia hidráulica, bem como a pesquisa e a
lavra dos recursos minerais em terras indígenas por não-índios, a Constituição Federal
estabelece, por outro, uma importante garantia a este direito no §7º do art. 231, quando
proíbe, sem quaisquer exceções, a garimpagem em terras indígenas por meio de cooperativas.

Nessa linha, cabendo aos indígenas os direito de posse permanente e de usufruto


exclusivo, a propriedade das terras tradicionalmente ocupadas por eles pertence à União,
conforme estatui o art. 20, inciso XI, da Constituição Federal. Esse domínio visa somente dar
maior proteção e garantia a tais terras, pois está estritamente vinculado ao cumprimento
daqueles direitos.

Diante disso, o §4º do art. 231 determina que “as terras de que trata este artigo são
inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas imprescritíveis”. A inalienabilidade e a
indisponibilidade das terras tradicionalmente ocupadas, portanto, são uma garantia aos
direitos territoriais indígenas em virtude dessa propriedade vinculada da União. Assim, as
terras indígenas não podem ser vendidas, doadas, permutadas nem utilizadas como garantia de
créditos,48 pois inalienáveis, assim como não podem ter sua destinação à posse permanente e
ao usufruto exclusivo indígena desvirtuada, porquanto indisponíveis.

Já a imprescritibilidade dos direitos indígenas à terra significa que estes não são
atingidos pelo decurso do tempo ou pela consumação de fatos contrários a eles, o que inclui a
sua continuidade de vigência mesmo nos casos em que tenham sido expulsos de suas terras,
por conta do caráter originário desses direitos.

46
VILLARES, op. cit., p. 245.
47
CUNHA, A., op. cit., p. 75.
48
KAYSER, op. cit., p. 242.
  17

Por fim, uma das mais importantes garantias encontra-se no §6º do art. 231, que trata da
nulidade e extinção de atos que prejudiquem os direitos dos povos indígenas à terra:
§6.º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por
objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a
exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes,
ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou ações
contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação
de boa-fé.

De acordo com esse dispositivo, são nulos e extintos os atos de terceiros não-índios que
prejudiquem os direitos indígenas de posse permanente e de usufruto exclusivo sobre as terras
que tradicionalmente ocupam, uma vez que tais direitos são originários e, por isso, anteriores
a quaisquer outros atos de ocupação. Entretanto, essa garantia não é absoluta, porquanto
admite exceção em um caso: quando houver relevante interesse público da União, segundo o
que dispuser lei complementar. Porém, deve-se atentar para o fato de que esta lei ainda não
foi criada, logo, a regulamentação de validade e extinção desses atos é irrestrita.49

De qualquer forma, quando nulo e extinto um ato perpetrado contra os direitos


territoriais indígenas, não existe direito de ação ou direito à indenização contra os índios, suas
comunidades ou organizações que lhes representem, porquanto estes não são acionáveis.
Todavia, contra a União, a quem cabe a propriedade e o dever de proteção sobre as terras
tradicionalmente ocupadas, o direito de ação e o direito de indenização são possíveis no caso
de benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé pelos posseiros.50

2.2 DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS

O caput do art. 231 da Constituição Federal, em sua parte final, impõe à União o dever
de demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, bem como de proteger e
fazer respeitar todos os seus bens: “São reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários às terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Do dispositivo constitucional infere-se que, quando uma determinada sorte de terras é


tradicionalmente ocupada pelos índios, ou seja, respeita os elementos do §1º do art. 231, são
reconhecidos os seus direitos originários sobre elas, surgindo para a União a obrigação de
demarcá-las.

49
KAYSER, op. cit., p. 245.
50
KAYSER, loc. cit.
  18

Importa ressaltar que a demarcação de terras indígenas não é ato constitutivo de


direitos, uma vez que, conforme exposto anteriormente, os direitos indígenas sobre as terras
tradicionalmente ocupadas são originários e reconhecidos pelo Estado, logo, preexistentes à
formação deste e, por conseguinte, sua existência independe de qualquer ato estatal, inclusive
do demarcatório.51

Diante disso, tem-se que a demarcação dessas terras é ato administrativo de


competência da União (uma vez que se trata de bens de sua propriedade) e de natureza
meramente declaratória, pois sua única função é limitar geograficamente determinado espaço
territorial, onde é reconhecida a ocupação tradicional de índios, e, diante disso, precisar a real
extensão dos seus direitos originários à posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas
do solo, rios e lagos nele existentes, a fim de assegurar a plena eficácia do dever estatal de
proteger tais terras.52

Em que pese o dever jurídico do Estado de proteger as terras indígenas tradicionalmente


ocupadas independa da existência de demarcação, esta constitui-se em importante instrumento
de proteção física daquelas, bem como dos direitos e interesses indígenas, pois, segundo
Tércio Sampaio Ferraz Junior, “tem o sentido de conferir certeza e segurança ao exercício do
direito, no que se refere ao seu conteúdo (faculdades) e objeto (terras ocupadas
tradicionalmente)”.53 Ademais, para além de proteger os seus direitos territoriais, a
demarcação também permite aos povos indígenas o efetivo exercício dos seus direitos
culturais, como bem observado por João Pacheco de Oliveira e Marcelo Piedrafita Iglesias:
Mais que atividade topográfica, cartográfica ou jurídica, demarcar é criar condições
sociais para que surja, dentro de um grupo étnico territorializado, uma forma de
organização política capaz não só de promover a adequada administração dos
recursos fundiários e ambientais, mas também de atualizar a própria cultura,
enriquecendo-a com novas experiências, sem prejuízo da reprodução de seu
patrimônio cognitivo e da manutenção de valores tidos por seus membros atuais
como centrais.54

Quanto ao procedimento demarcatório, este é atualmente regulamentado pelo Decreto


nº 1.775, de 08 de janeiro de 1996, compondo-se de seis etapas distintas: 1) identificação e

51
KAYSER, op. cit., p. 246.
52
LEITÃO, Raimundo Sergio Barros. Natureza jurídica do ato administrativo de reconhecimento de terra
indígena – a declaração em juízo. In SANTILLI, Juliana (Org.). Os Direitos Indígenas e a Constituição. Porto
Alegre: Fabris, 1993, p. 67.
53
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A Demarcação de Terras Indígenas e seu Fundamento Constitucional.
Revista Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, n. 3, p. 695, jan./jun. 2004.
54
OLIVEIRA, João Pacheco de; IGLESIAS, Marcleo Piedrafita. As demarcações participativas e o
fortalecimento das organizações indígenas. In SOUZA LIMA, Antonio Carlos; BARROSO-HOFFMANN,
Maria. Estado e Povos Indígenas no Brasil: bases para uma nova política indigenista II. Rio de Janeiro: Contra
Capa/LACED, 2002, p. 67.
  19

delimitação; 2) aprovação e publicação; 3) impugnação (ou contraditório); 4) decisão e


demarcação; 5) homologação e registro.55 É realizado por iniciativa e sob a orientação da
FUNAI , sendo garantido ao grupo indígena que tem o interesse na demarcação a participação
em todas as fases do procedimento.

A título ilustrativo, colaciona-se abaixo quadro elaborado pelo Instituto Socioambiental


(ISA), que informa a situação jurídica das terras indígenas hoje no Brasil, sendo possível
observar que, do total de terras indígenas atualmente conhecidas, 66,72% já foram
demarcadas, homologadas ou registradas:

Quadro: Situação das TIs no Brasil


Situação Nº TIs Extensão (hectares)
Em identificação 125 9.964
Com restrição de uso a não índios 5 842.022
Total 130 (19,32%) 851.986 (0,76%)
Identificada 25 (3,71%) 2.822.857 (2,50%)
Declarada 69 (10,25%) 4.888.944 (4,34%)
Reservada 20 106.229
Homologada 30 5.549.675
Reservada ou Homologada com Registro no CRI e/ou SPU 399 98.471.415
Total 449 (66,72%) 104.127.319 (92,40%)
Total Geral 673 (100%) 112.691.106 (100%)
Fonte: http://pib.socioambiental.org/pt/c/0/1/2/situacao-juridica-das-tis-hoje, acessado em: 10/05/2012

Da análise desses dados, conclui-se que, embora a União ainda esteja em mora com seu
dever constitucional de demarcação das terras indígenas, é inegável que, a partir da
Constituição Federal de 1988, houve uma considerável aceleração no tocante ao número de
processos demarcatórios deflagrados e de áreas efetivamente demarcadas.56

A demarcação é, portanto, um processo de territorialização de fundamental importância


para os indígenas, pois permite o seu reconhecimento em uma modalidade de cidadania que
lhes é peculiar, como sujeitos de direito diferenciados.57

55
LOBO, op. cit., p. 59.
56
RIOS. Aurélio Veiga. Terras Indígenas no Brasil: definição, reconhecimento e novas formas de aquisição. In
SOUZA LIMA, Antonio Carlos; BARROSO-HOFFMANN, Maria. Além da Tutela: bases para uma nova
política indigenista III. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2002, p. 69.
57
CUNHA, A., op. cit., p. 64.
  20

3 ANÁLISE DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO CASO DA


DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL

3.1 HISTÓRICO DA DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL

As terras indígenas são o objeto central de inúmeras disputas e conflitos entre índios por
um lado, que reivindicam os seus direitos originários, e segmentos não-indígenas por outro,
com os mais diversos interesses econômicos nessas áreas. E tais conflitos locais acirram-se
justamente com o início do procedimento demarcatório, pois é quando estabelece-se a
reivindicação formal sobre tais terras.58 Interessante destacar as palavras de Dalmo de Abreu
Dallari sobre o tema:
Embora a imprensa conceda muito mais espaço a articulistas ligados ao agronegócio
e a setores militares retrógrados e preconceituosos, incapazes de uma visão realista e
humanista da presença indígena na história e na sociedade contemporânea do Brasil,
têm sido também divulgadas algumas informações importantes reveladoras da
truculência e do desprezo pela ética e pelo direitos que caracterizam os invasores de
terras indígenas. Uns, que se comportam como grileiros ricos, poderosos e sem
escrúpulos, buscam apoderar-se de grandes extensões de terras sem pagar por elas,
para ali implantar empreendimentos agropecuários. Valendo-se de sua superioridade
econômica, e associando-se a oligarcas e políticos sem ética nem compromisso
social, invadem terras sabidamente indígenas e, para resistir aos protestos e
tentativas de retomada das áreas pelos legítimos ocupantes, criam milícias
particulares, exibem reservas de armas e munições e proclamam suas disposições de
resistir por meios violentos às determinações, inclusive judiciais, para que
desocupem as terras invadidas. A par desses existem outros invasores, como os
mineradores que, na busca de riquezas, envenenam as águas, destroem a vegetação e
provocam outros sérios danos à natureza, retirando dos índios as possibilidades
mínimas de sobrevivência física e cultural. Outros invasores de áreas indígenas vão
à procura de riquezas contidas na extraordinária variedade da flora brasileira, muitas
vezes simulando objetivos puramente científicos ou sociais ou, ainda, religiosos. E
os índios são as grandes vítimas, praticamente indefesas, sendo quase anulados os
direitos que lhes são assegurados pela Constituição.59

No Brasil, destaca-se, no cenário pós-Constituição de 1988, o conflito desencadeado


pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, considerado um dos casos mais
emblemáticos no tocante a conflitos em terras indígenas, tendo em vista sua ampla
repercussão na mídia nacional e na opinião pública, bem como perante o cenário
internacional, havendo mobilizado diversos segmentos da sociedade, como grupos jurídicos,
políticos e acadêmicos, a colocarem em pauta a questão indígena no País.

58
ARAÚJO, Ana Valéria e LEITÃO, Sérgio. Direitos Indígenas: avanços e impasses pós-1988. In SOUZA
LIMA, Antonio Carlos; BARROSO-HOFFMANN, Maria. Além da Tutela: bases para uma nova política
indigenista III. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2002, p. 29.
59
DAALARI, Dalmo de Abreu . A Raposa Serra do Sol e os direitos constitucionais no Brasil. In MIRAS, Julia
Trujillo; GONGORA, Majoí Fávero; MARTINS, Renato e PATEO, Rogério Duarte do. Makunaima Grita!
Terra Indígena Raposa Serra do Sol e os Direitos Constitucionais no Brasil. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p.
17-18.
  21

A Terra Indígena Raposa Serra do Sol localiza-se na região nordeste do Estado de


Roraima, dentro da Amazônia Legal, na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana,
abrangendo um área oficial de 1.747.464 hectares, onde habitam 19.933 indígenas, divididos
em cinco etnias, quais sejam, Ingarikó, Makuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana.60

O início do procedimento administrativo de demarcação dessa área indígena remonta ao


ano de 1977, quando a FUNAI designou o primeiro grupo de trabalho para sua identificação.
Desde então, em face de divergências políticas, diversos grupos de trabalho foram
sucessivamente instituídos, até que, em 1993, foi elaborado relatório conclusivo, identificando
formalmente a Raposa Serra do Sol em uma área de 1.678.800 hectares.61

Três anos após a identificação formal da área pela FUNAI, em face de controvérsias
sobre o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, em 1996 foi editado
o Decreto nº 1.775, revogando os Decretos nº 22/1991 e 608/1992, que até então dispunham
sobre tal procedimento, introduzindo uma fase de impugnação e contraditório, na qual
Estados, Municípios e outros interessados na demarcação podem apresentar contestações ao
relatório do grupo de trabalho perante a FUNAI.

Dessa forma, foram apresentadas contestações pelo Estado de Roraima, pelo Município
de Normandia e por vários ocupantes não-índios. Em despacho expedido em julho de 1996, a
FUNAI considerou improcedentes todos os argumentos apresentados nas contestações,
enviando o procedimento ao Ministro da Justiça da época, Nelson Jobim. O Ministro expediu
o despacho nº 80/1996, mandando a FUNAI aprimorar e modificar o seu relatório, a fim de
reduzir a área em 300.000 hectares. Essa decisão foi claramente uma tentativa de conciliação
de interesses políticos divergentes sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol.

O despacho do Ministro Nelson Jobim foi duramente criticado por movimentos


indígenas e órgãos de assistência e proteção ao índio, os quais consideraram sua atitude uma
afronta aos princípios constitucionais,62 além de ter sido censurado, no “Relatório sobre a
Situação dos Direitos Humanos no Brasil” de 1997, pela Comissão Interamericana de Direito
Humanos – CIDH, órgão da Organização dos Estados Americanos – OEA.63

60
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos Indígenas do Brasil. De Olho nas Terras Indígenas. Disponível em:
<http://ti.socioambiental.org/#!/terras-indigenas/3835>. Acesso em: 12 maio 2012.
61
FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 158.
62
MOTA, Carolina e GALAFASSI, Bianca. A demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol: processo
administrativo e conflitos judiciais. In MIRAS, Julia Trujillo; GONGORA, Majoí Fávero; MARTINS, Renato e
PATEO, Rogério Duarte do. Makunaima Grita! Terra Indígena Raposa Serra do Sol e os Direitos
Constitucionais no Brasil. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p. 92.
63
KAYSER, op. cit., p. 403.
  22

Diante da pressão interna e do alcance internacional que o conflito começava a ter, em


11 de dezembro de 1998, o novo Ministro da Justiça, Renan Calheiros, expediu o despacho nº
50, revogando o Despacho nº 80/96. Na mesma data, o Ministro editou a Portaria nº
820/1998, declarando a Terra Indígena Raposa Serra do Sol de posse permanente das cinco
etnias que a habitam, com uma extensão contínua de 1.678.800 hectares, mantendo-se fiel ao
relatório de identificação da FUNAI e excluindo de sua abrangência apenas as instalações do
6º Pelotão Especial de Fronteiras e a sede do município de Uiramutã.64

Diante da edição da referida portaria, inúmeras ações judiciais passaram a ser ajuizadas
por ocupantes não-indígenas e por representantes do Estado de Roraima, perante o Supremo
Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, a Justiça Federal e a Justiça Estadual, todas
com o intuito de questionar a validade do ato administrativo do Ministro da Justiça. Cumpre
registrar que, em realidade, desde 1993, com a identificação da área pela FUNAI, muitas
ações possessórias já haviam sido intentadas contra a União, perante as Justiças Estadual e
Federal.65 Ainda, importa consignar que, em muitas dessas ações ajuizadas desde 1993, foram
concedidas inúmeras e sucessivas liminares suspendendo os efeitos da demarcação e
causando diversos prejuízos às comunidades indígenas que habitam a área.

Nesse ínterim, diante do crescente acirramento dos conflitos em torno da demarcação da


área, em 13 de abril de 2005, o então Ministro da Justiça, Márcio Thomas Bastos, expediu
nova portaria, a de nº 534/2005, revogando a Portaria nº 820/1998, declarando a posse
permanente dos grupos Ingarikó, Makuxi, Taurepang e Wapixana sobre a terra indígena, em
uma extensão contínua de 1.747.464 hectares, apenas excluindo, além da sede do município
de Uiramutã e do 6º Pelotão Especial de Fronteiras, os equipamentos e instalações públicas
estaduais e federais já existentes.66

Em 15 de abril de 2004, o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, assinou o


decreto de homologação da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, doze anos
após a identificação formal desta pela FUNAI, colocando um fim ao procedimento
administrativo demarcatório desta área.67

Algumas ações populares foram ajuizadas questionando a validade da Portaria nº


534/2005 e do decreto presidencial homologatório, dentre elas a Petição nº 3.388, cujo
64
MOTA, Carolina e GALAFASSI, Bianca, op. cit., p. 92.
65
Ibid., p. 98.
66
BRASIL. Portaria n.º 534, de 13 de abril de 2005. Define os limites da terra indígena Raposa Serra do Sol.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 abr.2005, Seção 1, p. 59.
67
BRASIL. Decreto do Presidente da República, de 15 de abril de 2005. Homologa a demarcação administrativa
da terra indígena Raposa Serra do Sol. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 abr. 2005, Seção 1, p. 11.
  23

julgamento pelo Supremo Tribunal Federal pôs um fim às controvérsias judiciais que
envolviam a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

3.2 ANÁLISE DO JULGAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA


DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL

Em 20 de maio de 2005, foi ajuizada ação popular (Petição nº 3.388/RR) pelo Senador
da República Affonso Botelho Neto, assistido pelo também Senador Francisco Mozarildo de
Melo Cavalcanti, contra a União, impugnando o modelo contínuo de demarcação da terra
indígena Raposa Serra do Sol68.

No bojo dessa ação popular, foram levados ao Supremo Tribunal Federal, por meio da
Petição nº 3.388, diversos interesses fundamentalmente divergentes em relação à demarcação
da área Raposa Serra do Sol, compondo um complexo quadro de análise da questão indígena
no Brasil.

O julgamento do caso teve seu início no dia 27 de agosto de 2008, encerrando-se apenas
no dia 19 de março de 2009. Nesta data, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos,
julgou a ação popular parcialmente procedente, de acordo com os fundamentos do Voto do
Ministro Relator, Carlos Ayres Britto, declarando a constitucionalidade do procedimento
administrativo demarcatório e, por conseguinte, da demarcação contínua da terra indígena,
porém, submetendo esse reconhecimento a dezenove salvaguardas propostas pelo Ministro
Menezes Direito. Restaram vencidos em seus votos os Ministros Joaquim Barbosa, que julgou
a ação popular totalmente improcedente, e Marco Aurélio, o qual suscitou a preliminar de
nulidade do processo e, no mérito, julgou a ação totalmente procedente.69

Diante disso, passa-se à análise da decisão do Supremo Tribunal Federal, cujos


fundamentos encontram-se no Voto-condutor do Ministro Carlos Ayres Britto, bem como nas
dezenove salvaguardas propostas pelo Ministro Menezes Direito.

Analisando o Voto-condutor, é possível observar que, para se chegar ao julgamento do


caso concreto da demarcação da Raposa Serra do Sol, foram examinados quatro temas de
pertinência fundamental para a questão indígena no Brasil hoje: a relação das comunidades
indígenas com a sociedade brasileira, o status jurídico das terras indígenas, as regras

68
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição nº 3.388/RR. Requerente: Affonso Botelho Neto. Requerido:
União. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Brasília, DF, 19 de março de 2009. Diário de Justiça Eletrônico,
Brasília, DF, 30 mar. 2009. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612760>. Acesso em: 14 maio de 2012.
69
O resumo da parte dispositiva foi realizado com base no Acórdão da Petição nº 3.388.
  24

constitucionais referentes à demarcação das terras indígenas e, por fim, o modelo de


demarcação destas terras.

No tocante à relação das comunidades indígenas com a sociedade brasileira, o Supremo


Tribunal Federal as reconhece como parte essencial da realidade sócio-cultural de nosso País,
enquanto uma das principais vertentes étnicas formadoras da nação brasileira, conjuntamente
com negros e brancos. E é exatamente isso que a nossa Constituição Federal reconhece em
seu preâmbulo quando afirma ser a nossa sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
bem como quando reconhece aos índios um Capítulo inteiro destinado à proteção e garantia
de seus direitos fundamentais. Assim, reconhecendo tais direitos e viabilizando mecanismos
oficiais para sua afirmação e efetivação, a Constituição Federal permite uma relação
horizontal de interação entre as comunidades indígenas e os demais segmentos sócio-culturais
que compõem a sociedade brasileira.

Outro ponto importante abordado no Voto do Relator é o status jurídico das terras
indígenas e a competência constitucional da União para demarcá-las e proteger todos os bens
nelas existentes, materiais ou imateriais (entenda-se: todos os bens físicos e culturais). O
Supremo afirma que todas as terras indígenas fazem parte do território nacional, tanto que são
bens de domínio da União, nos termos do art. 20, inciso XI, da Constituição Federal.

A propriedade atribuída à União tem tão-somente o cunho de conferir maior proteção às


terras indígenas, porquanto, de qualquer forma, ficam elas vinculadas à garantia dos seus
direitos, cabendo apenas aos índios a posse permanente e o usufruto exclusivo dos recursos
naturais atinentes ao solo, rios e lagos, tornando tais bens indisponíveis e inalienáveis, bem
como os direitos sobre eles imprescritíveis.

Ainda, no Voto é explicitada a natureza especial e peculiar das terras indígenas, pois
não se caracterizam nem como propriedade privada, nem como território. De acordo com a
exposição do Relator, território se define como “parte elementar de cada qual das nossas
pessoas jurídicas federadas”, juntamente com o povo e o governo, sendo o espaço em que
incide determinada ordem jurídica soberana e autônoma. Todavia, aqui deve ser realizada
uma ressalva em relação ao Voto: o Supremo Tribunal Federal distingue as terras indígenas
de territórios no sentido político, ou seja, como elemento formador do Estado e que
fisicamente limita o poder deste.70 Obviamente, as terras indígenas não constituem território
político no sentido constitucional, porém é inegável que estes espaços assumem, nos termos

70
MARÉS, op. cit., p. 120.
  25

em que são conceituados pela própria Carta Magna no §1º do art. 231, verdadeiro caráter
territorial para as etnias que neles habitam, no sentido de constituir pressuposto essencial para
a própria sobrevivência física e cultural de um determinado grupo de pessoas, no caso, os
indígenas.

Em relação às regras constitucionais para a demarcação de terras indígenas,


aproximando-se do cerne da questão objeto do julgamento, o Relator prevê quatro marcos
para coordenar a sua realização, que dão seu conteúdo positivo.

O primeiro é o marco temporal da ocupação, segundo o qual, para incidirem os direitos


dos índios sobre determinada porção de terras, deve-se verificar a sua ocupação tradicional na
data da promulgação da Constituição Federal (5 de outubro de 1988), não havendo que se
considerar ocupação anterior ou posterior.

Neste ponto específico, deve ser feita uma crítica em relação a tal posicionamento do
Supremo Tribunal Federal: ao considerar a ocupação tradicional apenas como aquela que se
verifica no dia 5 de outubro de 1988, é aberta uma lacuna para a não efetivação dos direitos
das comunidades indígenas que foram expulsas e espoliadas de suas terras, por meio de
violência física ou moral, antes dessa data. Estipular tal marco temporal é, infelizmente,
ignorar o fato de que muitos grupos indígenas que atualmente pleiteiam seus direitos não
estão ocupando suas terras em virtude de terem sido outrora expulsos, o que não pode, de
forma alguma, retirar-lhes seus direitos constitucionais sobre estas áreas. 71

O segundo marco é o da tradicionalidade da ocupação, o qual, segundo o Relator,


significa que a ocupação tradicional deve possuir caráter de permanência, mas também deve
caracterizar-se pelo modo cultural próprio como cada etnia relaciona-se com a terra, de
acordo com seus costumes e sua cosmovisão.

O terceiro marco é o da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da


ocupação, o qual diz respeito às quatro condições que conceituam as terras indígenas
tradicionais e que estão previstas no §1º do art. 231 da Constituição, extraindo-se do Voto-
condutor que o referido dispositivo constitucional possui duas funções, quais sejam, a de
determinar quais espaços territoriais devem ser considerados na demarcação de uma terra
indígena, e a de estabelecer a finalidade prática da demarcação dessa área. Segundo o Voto,
estas características/finalidades previstas no art. 231, §1º, fazem com que a posse indígena
sobre as terras tradicionais seja um instituto fundamentalmente diferente da posse civilista,

71
VILLARES, op. cit., p. 117.
  26

porquanto naquela a terra deixa de ser mero objeto como é nesta, e passa a ganhar a conotação
de um ente em que os indígenas desenvolvem seus usos, costumes, tradições culturais e
religiosas.72

O quarto marco é o do princípio da proporcionalidade, que significa levar em conta, no


ato demarcatório, aquilo que é necessário e imprescindível para assegurar às comunidades
indígenas a sua dignidade humana, e não apenas a sua sobrevivência física, devendo ser
interpretado sempre de acordo com o universo simbólico do indígena.

Por fim, antes de adentrar especificamente no caso da terra indígena Raposa Serra do
Sol, no Voto é examinado o tema que constitui a grande controvérsia nos autos da ação
popular: o modelo de demarcação das terras indígenas, se contínua ou “em ilhas”.

O Supremo reconhece que a demarcação contínua de terras indígenas (sem


fragmentações territoriais) é a única forma de se viabilizar os quatro imperativos
constitucionais presentes no §1º do art. 231 da Carta Magna, bem como de efetivar os direitos
originários dos índios à posse permanente e ao usufruto exclusivo dos recursos naturais destas
áreas. Ademais, a Corte afirma que, além de contínua, a demarcação deve ser realizada de
forma monoétnica ou intraétnica, para que cada etnia tenha para si uma porção de terras em
que possa desenvolver-se conforme sua própria cultura, excluindo da demarcação os espaços
fundiários entre um grupo e outro, inclusive com o intuito de evitar aproximação demasiada
entre comunidades inimigas ou grandes vazios demográficos. Porém, a demarcação
interétnica é admitida se, no plano dos fatos, for observado que diferentes etnias convivem e
circulam harmoniosamente umas nos espaços das outras, sem que isso gere conflitos.

Por derradeiro, chega-se à decisão do caso concreto acerca da demarcação da terra


indígena Raposa Serra do Sol.

O Supremo Tribunal Federal reconheceu a área em uma extensão contínua de 1.747.464


hectares como de ocupação tradicional pelas etnias indígenas que nela habitam (Ingarikó,
Makuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana), nos termos do §1º do art. 231 da Constituição
Federal. Declarando a tradicionalidade da ocupação da Raposa Serra do Sol, a Suprema Corte
reconheceu que sobre elas incidem os direitos indígenas originários de posse permanente e de
usufruto exclusivo das riquezas existentes em seu solo, rios e lagos, conforme preconiza o art.
231, caput e §2º, da Constituição Federal.

72
MENDES, Gilmar Ferreira. O domínio da União sobre as terras indígenas: o Parque Nacional do Xingu.
Brasília: Ministério Público Federal, 1988, p. 58.
  27

Nessa toada, nos termos do §6º do art. 231 da Constituição Federal, declarou nulas as
titulações conferidas pelo INCRA a não-índios nessa área, bem como inválidas a ocupação da
Fazenda Guanabara e a posse dos rizicultores privados que a exploravam, reconhecendo a
prevalência dos direitos originários indígenas sobre todos estes atos.

A Suprema Corte confirmou que a demarcação em modelo contínuo se deu em


conformidade com todas as coordenadas constitucionais, não padecendo de quaisquer
nulidades, pois obedeceu ao marco temporal da data da promulgação da Constituição Federal
de 1988, da tradicionalidade da ocupação, da abrangência fundiária e da finalidade prática,
bem como atendeu ao princípio da proporcionalidade extensiva. Outrossim, admitiu para esse
caso específico a demarcação interétnica, tendo em vista que as etnias Ingarikó, Makuxi,
Wapixana, Patamona e Taurepang convivem na região sem conflitos armados há, pelo menos,
150 anos, possuem uma língua de tronco comum, além de cultivarem entre si intensas
relações de trocas e uniões exogâmicas, não lhes causando qualquer prejuízo essa forma de
demarcação.

Assim, foi declarada a constitucionalidade da demarcação contínua da terra indígena


Raposa Serra do Sol, contudo, devendo ser observadas dezenove salvaguardas que dizem
respeito, resumidamente, ao direito de usufruto das comunidades indígenas sobre as terras
tradicionalmente ocupadas, a questões ligadas à soberania nacional e ao meio-ambiente, bem
como ao processo de demarcação das terras indígenas.73

A grande parte das condicionantes já estão previstas, explícita ou implicitamente, no


próprio texto da Constituição Federal, algumas de caráter protetivo, e outras enquadrando-se
nas exceções previstas às garantias constitucionais, como aquela que afirma que o usufruto
exclusivo das comunidades indígenas sobre o solo, os rios e lagos é relativizado sempre que
houver relevante interesse público da União, o que está implícito no §6º do art. 231 da Carta
Magna. Outras condicionantes não constam do texto da Constituição Federal, e constituem
situações prejudiciais à concreção dos direitos indígenas territoriais, como, por exemplo,
aquela que veda a ampliação de terras indígenas já demarcadas, que pode vir a ser um
impedimento para que a União corrija erros passados em outras demarcações, em que os
direitos indígenas à terra não tenham sido efetivamente protegidos e resguardados.

De qualquer forma, a grande polêmica gerada pela estipulação dessas dezenove

73
YOKOYA SIMONI, M.. O reconhecimento dos direitos dos povos indígenas sob a perspectiva internacional e
a brasileira. Boletim Meridiano 47, Brasília, Vol. 10, N. 105, ago. 2010, p. 41. Disponível em:
<http://seer.bce.unb.br/index.php/MED/article/view/726>. Acesso em: 05 Nov. 2011.
  28

ressalvas está na possibilidade de sua repercussão fora do processo referente ao caso da


demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Todavia, porquanto trata-se de ação
popular, tem-se que as ressalvas nela contidas, e não constantes do texto constitucional, não
podem ser invocadas com efeito vinculante para outras ações judiciais que versem sobre a
demarcação de outras terras indígenas, pois seus limites objetivos e subjetivos dizem respeito
somente ao caso da Raposa Serra do Sol,74 o que também não impede que elas venham a ser
empregadas em outros casos semelhantes por força jurisprudencial e interpretativa.

CONCLUSÕES

Conforme a análise e os comentários tecidos sobre o julgamento do Supremo Tribunal


Federal no caso da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol no presente trabalho, a
conclusão à qual se chega é que a Suprema Corte fundamentou sua decisão de forma
eminentemente compatível com o caráter protetivo da Constituição Federal em relação aos
povos indígenas brasileiros, reconhecendo-os como sujeitos de direitos diferenciados, que
lhes são atribuídos em virtude de sua especial e peculiar condição de primeiros ocupantes do
que hoje é território brasileiro, além de vertente sócio-cultural essencial na formação da nossa
sociedade.

O mérito do julgamento do Supremo Tribunal Federal não se encontra apenas no fato de


reconhecerem a importância da garantia dos direitos à terra para as comunidades indígenas,
exaltando os pressupostos constitucionais da originariedade desses direitos e da
tradicionalidade da ocupação. A grande conquista está no fato desse reconhecimento ter como
base ideológica o princípio da interação entre índios e a sociedade envolvente, em que os
direitos à terra são assegurados, por meio de medidas afirmativas como a demarcação, para
que os indígenas possam preservar sua diferença cultural e sua identidade étnica e, por
conseguinte, relacionar-se de maneira igualitária com o restante da sociedade.

Entretanto, à Suprema Corte não pode ser atribuído um posicionamento absolutamente


protetivo em relação aos direitos indígenas, o que se evidencia em dois pontos da decisão:
quando afirma que o marco temporal da ocupação para fins de demarcação é a data da
promulgação da Constituição Federal, porquanto exclui-se da proteção constitucional aquelas
comunidades que foram expulsas de suas terras antes da referida data; e quando faz as
dezenove ressalvas às quais a constitucionalidade da demarcação da área Raposa Serra do Sol

74
CUNHA, A., op. cit., p. 166.
  29

deve submeter-se, porquanto muitas delas, como já visto, representam um grave retrocesso
para a questão indígena no Brasil.

Dessa forma, o julgamento do Supremo Tribunal Federal trouxe grandes contribuições


para a causa indígena no Brasil, ao reconhecer o caráter de direito humano fundamental que a
garantia da terra adquire para os indígenas, embora também tenha apresentado algumas
regressões no tocante à interpretação e aplicação de determinados pontos das normas
constitucionais. De todo modo, a decisão do Supremo Tribunal Federal não tem caráter
vinculante em relação a futuras decisões relativas a esse assunto, mas com certeza constitui-se
em um precedente jurisprudencial com grande força interpretativa para futuros julgamentos
que tenham os direitos indígenas à terra como objeto.

Assim, a partir desse caso emblemático e do entendimento eminentemente protetivo e


humanitário da Suprema Corte, espera-se do Poder Judiciário, que até então possuía uma
tradição conservadora e retrógrada em relação às causas indígenas, um novo rumo em seu
posicionamento, de maneira mais compatível com as próprias normas constitucionais,
reconhecendo a natureza especialíssima dos direitos indígenas à terra.
  30

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