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A Constituição Federal e o Direito Dos Povos Indígenas
A Constituição Federal e o Direito Dos Povos Indígenas
RESUMO: O presente trabalho pretende fazer uma análise da decisão do Supremo Tribunal
Federal sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a fim de possibilitar uma
melhor compreensão acerca da contribuição desse julgamento para a questão dos direitos
indígenas à terra hoje no Brasil. Para tanto, proceder-se-á a um estudo dos dispositivos
constitucionais referentes ao direitos indígenas, mais precisamente do art. 231 e seus
parágrafos, examinando-se a evolução do tratamento dispensado aos povos indígenas nas
Constituições anteriores até a promulgação da atual Constituição, bem como os pressupostos
constitucionais que configuram os direitos dos povos indígenas à terra (originariedade dos
direitos e tradicionalidade da ocupação), as garantias constitucionais que emanam desses
pressupostos e o instituto da demarcação.
INTRODUÇÃO
1
Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), apresentado como requisito parcial para obtenção
do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, e aprovado com nota máxima pela Banca Examinadora composta pelo
Prof. Me. Plínio Saraiva Melgaré (orientador), Prof. Me. Dilso Domingos Pereira e Prof. Me. Eugênio Facchini
Neto, em 25/06/2012.
2
Acadêmica do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais da PUCRS. Contato: julia.rmarques@hotmail.com.
2
Assim, no seu art. 231, caput, nossa Carta Magna estabelece que “são reconhecidos aos
índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens”.
Nesses termos, partindo-se do estudo das normas constitucionais relativas aos direitos
indígenas, mais especificamente do art. 231, caput e parágrafos, o presente trabalho objetiva
examinar os pressupostos constitucionais que configuram os direitos dos índios à terra, para
melhor entender as garantias constitucionais que emanam destes direitos e o próprio instituto
da demarcação. Ao final, tendo como substrato este estudo, é realizada uma análise da decisão
do Supremo Tribunal Federal no caso da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol,
3
No Brasil, os direitos dos povos indígenas são reconhecidos desde o período colonial.
Diversos instrumentos normativos decretados pela Coroa Portuguesa dispunham acerca da
soberania indígena e dos seus direitos territoriais sobre as áreas que ocupavam.
3
MARÉS de Souza Filho, Carlos Frederico. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá,
2005, p. 62.
4
CUNHA, Manuela Carneiro da. Os Direitos do Índio: ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.
212.
4
O art. 129, localizado no Título IV, “Da Ordem Econômica e Social”, previa o respeito
à posse das terras em que os indígenas se encontrassem permanentemente localizados,
contudo vedava a estes a possibilidade de aliená-las: “Art. 129 – Será respeitada a posse de
terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto,
vedado aliená-las.”6
Em 1937 é instaurado o Estado Novo por Getúlio Vargas, e uma nova Constituição é
promulgada, a “Polaca”. Esta Carta conservou o reconhecimento do direito indígena à terra,
apenas modificando um pouco os seus termos: “Art. 154 – Será respeitada aos silvícolas a
posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém,
vedada a alienação das mesmas.”8
A Lei Maior de 1937 suprimiu o artigo que previa a competência da União para legislar
sobre a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional, o que estava diretamente
5
BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ:
Congresso Nacional, 1934. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm>. Acesso em: 25 mar. 2012.
6
BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ:
Congresso Nacional, 1934. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm>. Acesso em: 25 mar. 2012.
7
FREITAS JUNIOR, Luís de. A Posse das Terras Tradicionalmente Ocupadas pelos Índios como um
Instituto Diverso da Posse Civil e sua Qualificação como um Direito Constitucional Fundamental.
2010.247 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Programa de Pós-Graduação em Direito
Constitucional, Universidade de Fortaleza, Ceará, Fortaleza, 2010, p. 63.
8
BRASIL. Constituição (1937). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Congresso
Nacional, 1937. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao37.htm>.
Acesso em: 25 mar. 2012.
5
relacionado com a estrutura autoritária de poder promovida pelo Estado Novo, em que o
governo tudo podia, ainda que sem o respaldo da vontade popular.9
Outrossim, a Lei Maior de 1946 manteve o dispositivo referente ao respeito à posse dos
indígenas sobre as terras onde se encontrassem permanentemente localizados, impondo aos
índios a proibição de transferi-las, por qualquer título: “Art. 216 – Será respeitada aos
silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de
não a transferirem.” 11
Cabe salientar que, na esteira das Constituições de 1934 e de 1937, a Carta de 1946
exigia a localização permanente dos índios sobre as terras como pressuposto para a
configuração do seu direito de posse sobre elas. Essa localização permanente era entendida
como um pressuposto do passado, ou seja, devia haver uma ocupação da terra desde tempos
imemoriais pela comunidade indígena.12
A Constituição de 1967, promulgada três anos após o Golpe Militar de 1964, elaborada
pelo ainda ativo Congresso Nacional, manteve a competência exclusiva da União para legislar
sobre a incorporação dos indígenas à comunhão nacional, nestes termos: “Art. 8º - Compete à
União: (...) XVII - legislar sobre: (...) o) nacionalidade, cidadania e naturalização;
incorporação dos silvícolas à comunhão nacional;” 13
No seu art. 186, dispôs sobre o direito das comunidades indígenas às terras por elas
habitadas, a ainda procedeu a um avanço em relação às Constituições anteriores ao garantir-
lhes o usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes: “Art.
186. É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o
seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas
9
FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 63.
10
BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Congresso
Nacional, 1946. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm>.
Acesso em: 25 mar. 2012.
11
BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Congresso
Nacional, 1946. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm>.
Acesso em: 25 mar. 2012.
12
FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 65.
13
BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativo do Brasil. Brasília, DF: Congresso
Nacional, 1967. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao67.htm>.
Acesso em: 27 mar. 2012
6
existentes”.14 Dessa forma, explicitou os direitos dos índios sobre as terras que ocupavam, ao
mesmo tempo em que estabeleceu garantias de eficácia destes direitos, bem como distinguiu-
os do direito de propriedade.15
A Constituição de 1967 ainda trouxe em seu texto uma inovação: em seu art. 4º, inciso
IV, incluiu as terras ocupadas pelos indígenas entre os bens da União: “Art. 4º - Incluem-se
entre os bens da União: (...) IV - as terras ocupadas pelos silvícolas.”17 Essa atribuição da
propriedade à União (e não aos grupos indígenas) deve ser entendida como uma medida de
proteção adicional aos direitos destas comunidades, pois as suas terras ficavam ipso facto
inalienáveis, exceto por autorização legislativa,18 impedindo, dessa forma, sua alienação pelos
Estados e Municípios, bem como a usurpação realizada pelos posseiros e pelas oligarquias
rurais.19
14
BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativo do Brasil. Brasília, DF: Congresso
Nacional, 1967. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao67.htm>.
Acesso em: 27 mar. 2012
15
CUNHA, Andreia. Território e Povos Indígenas. 2006. 155 f. Dissertação (Mestrado em Direito Econômico
e Social) – Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico e Social, Pontifícia Universidade Católica do
Paraná, Curitiba, 2006, p. 35.
16
FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 65.
17
BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativo do Brasil. Brasília, DF: Congresso
Nacional, 1967. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao67.htm>.
Acesso em: 27 mar. 2012
18
CUNHA, M., op. cit., p. 94.
19
VILLARES, Luiz Fernando. Direito e Povos Indígenas. Curitiba: Juruá, 2009, p. 110.
7
Ressalte-se que, por trás dessa ampla proteção dos direitos territoriais indígenas, estava
a política de segurança nacional característica do Governo Militar, cuja intenção era
estabelecer um controle mais efetivo em relação às terras ocupadas pelos índios,
principalmente na Amazônia, pois consideravam-nas estratégicas para a defesa das fronteiras
nacionais.22
Dessa breve retrospectiva histórica, podemos concluir que, embora houvesse uma
preocupação do legislador com a questão indígena desde o período Colonial, inclusive
elevando-a ao status de matéria constitucional em 1934, esse tratamento dispensado aos
índios era pautado por uma idéia integracionista, ou seja, de que seus direitos mereciam
proteção apenas enquanto eles não fossem assimilados pela sociedade nacional de forma
progressiva, consubstanciando uma noção de transitoriedade da realidade indígena no País.
20
BRASIL. Constituição (1967). Emenda Constitucional nº 1 de 17 de outubro de 1969. Altera na íntegra o texto
da Constituição de 1967. Brasília, DF: 1969. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em:
31 mar. 2012.
21
FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 66.
22
MONTANARI JUNIOR, Isaias. Terra Indígena e a Constituição Federal: Pressupostos Constitucionais para a
Caracterização das Terras Indígenas. In: XV CONGRESSO NACIONAL DO CONPENDI, 2006, Manaus.
Anais de Manaus. Disponível em:
<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/manaus/estado_dir_povos_isaias_montanari_jr.pdf>. Acesso
em: 18 out. 2011.
8
Em 05 de outubro de 1988, após vinte anos de uma ditadura militar caracterizada pela
reiterada violação de direitos humanos, foi promulgada a oitava Constituição brasileira, um
marco da redemocratização no País. A Constituição Cidadã, como ficou conhecida,
estabeleceu como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil o princípio da
dignidade da pessoa humana, valor basilar de todos os direitos fundamentais.
assegurar às comunidades indígenas uma existência mais digna. Assim expõe Márcia Cristina
Altvater Vilas Boas:
Evidente que a nossa Constituição não esgotou todo o conteúdo dos direitos a que
fazem jus os povos indígenas, mas é indiscutível ter sinalizado de forma salutar um
conteúdo mínimo necessário, para que a partir deles viesse o reconhecimento de
outros direitos que direta ou indiretamente decorram daqueles expressamente
previstos nos arts. 231 e 232.25
Dentro desse conteúdo mínimo de direitos que a Constituição Cidadã sinalizou, ela
acabou por revolucionar a relação entre povos indígenas, Estado e sociedade nacional, ao
reconhecer àqueles, no seu art. 231, sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, bem como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
impondo à União o dever de demarcá-las e de proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Explicitando isso em seu texto, a Carta Magna reconheceu aos índios o seu direito à diferença
cultural e à identidade étnica, ou seja, de serem índios e de assim permanecerem para sempre,
sem qualquer condição ou termo, colocando um fim ao paradigma da integração ou
assimilação, e inaugurando o paradigma da interação.26
Entretanto, a política de assimilação, vista até então como a melhor alternativa para as
comunidades indígenas, acabou mostrando-se, na prática, como uma medida nefasta na vida
dessas populações.
sentido de se afirmar que uma é mais evoluída em relação a outra, porquanto cada qual
apresenta modos de viver e de pensar altamente complexos e constituídos de inúmeras
singularidades, só podendo ser descritas por conceitos próprios. Dessa forma, os povos
indígenas brasileiros passam a ser reconhecidos como realidades culturalmente diferentes,
com formas próprias de organização e de desenvolvimento, e não mais como uma sociedade
“atrasada”, fadada à transitoriedade e, posteriormente, à assimilação.28
É nesse contexto teórico que surge a Constituição de 1988, afirmando o direito dessas
comunidades de serem e permanecerem culturalmente diferentes do resto da sociedade
nacional, sem qualquer condição ou termo, abandonando definitivamente a concepção
integracionista.
Dessa forma, garantindo o direito dos povos indígenas à sua diferença cultural e à sua
identidade étnica, a Carta Magna inaugura o paradigma da interação, baseado em uma relação
de horizontalidade entre as comunidades indígenas e a sociedade envolvente, na qual ambas
podem interagir entre si em condições de igualdade.29 O indivíduo ou o grupo aos quais não
se reconhece suas especificidades culturais ou étnicas jamais será capaz de reconhecer sua
própria identidade, sendo colocado, assim, à margem da sociedade, e, por conseguinte, não
podendo relacionar-se igualitariamente com esta.30
A questão da terra é o ponto central dos direitos constitucionais dos povos indígenas,
pois adquire caráter de sobrevivência física e cultural para eles.31 Diferentemente da
sociedade ocidental e capitalista, para os índios a terra não é apenas o espaço físico que
habitam, é elemento de sua espiritualidade, é onde seus ancestrais repousam e onde se
assentam suas crenças. É uma singular relação de reciprocidade, em que o índio, vendo-se
28
KAYSER, Hartmut-Emanuel. Os Direitos dos Povos Indígenas do Brasil: desenvolvimento histórico e
estágio atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2010, p. 210 et seq.
29
LEITÃO. Ana Valeria Nascimento de Araújo. Direitos Culturais dos Povos Indígenas: aspectos de seu
reconhecimento. In SANTILLI, Juliana (Org.). Os Direitos Indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Fabris,
1993, p. 228.
30
BARRETO, op. cit., p. 104.
31
SILVA, J., op. cit., p. 856.
11
como parte integrante da natureza e da terra, faz desta elemento essencial para sua própria
existência.
Por essa razão, a Constituição Federal de 1988, além de reconhecer aos povos indígenas
a sua organização social, línguas, crenças e tradições, também garante a essas populações os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, tendo em vista que seus
direitos à diferença cultural e à identidade étnica só serão assegurados se lhes forem
garantidos seus direitos territoriais. Não é por outro motivo que o extermínio de milhares de
índios e o desaparecimento de inúmeras comunidades têm sua causa não apenas na violência
imediata contra eles praticada mas também na violência mediata da subtração de seus
territórios.32
O caput do art. 231 revela os dois pressupostos constitucionais que configuram e dão
conteúdo aos direitos dos povos indígenas à terra, quais sejam, a originariedade dos direitos
(direitos originários) e a tradicionalidade da ocupação (terras que tradicionalmente ocupam).
O primeiro é o pressuposto constitucional que legitima os direitos indígenas à terra, e o
segundo é o pressuposto através do qual tais direitos se revelam.33
32
LOBO, Luiz Felipe Bruno. Direito Indigenista Brasileiro: Subsídios à sua Doutrina. São Paulo: LTr, 1996,
p. 44-45.
33
FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 83.
34
MACHADO, Costa (Org.); FERRAZ, Anna Candida da Cunha (Coord.). Constituição Federal Interpretada.
Barueri: Manole, 2011, p. 1230.
12
afirmou que, nas terras outorgadas a particulares em sesmarias, sempre seria reservado o
direito dos índios sobre elas, uma vez que são seus primários e naturais senhores.35
De acordo com a teoria do indigenato, os direitos indígenas à terra são inatos, ou seja,
existentes a partir do nascimento de cada indígena, não se submetendo a legitimação e
registro posterior, uma vez que reconhecidos como existentes anteriormente à formação do
Estado brasileiro, e, obviamente, do próprio ordenamento jurídico pátrio, ao passo que os
direitos de outros, não-índios, decorrentes da ocupação, são adquiridos ao longo da vida, e
estes sim sujeitos a posterior legitimação e registro.36
Os direitos originários dos índios recaem sobre as terras tradicionalmente ocupadas por
eles. A fim de evitar interpretações distorcidas que pudessem descaracterizar tais terras como
verdadeiros territórios de um povo, o legislador constituinte detalhou e especificou o conceito
de “terras tradicionalmente ocupadas”,37 assim dispondo no §1º do art. 231 da Constituição
Federal:
§1.º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios aquelas habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Dessa forma, terras tradicionalmente ocupadas pelos índios é um conceito jurídico que
reúne quatro situações complementares, todas necessárias e nenhuma suficiente sozinha,
tomadas segundo os usos, costumes e tradições de cada povo: a) as habitadas pela
comunidade em caráter permanente; b) as utilizadas para as atividades produtivas da
comunidade; c) as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu
bem-estar, e; d) as necessárias à sua reprodução física e cultural.38
Por fim, as terras necessárias à reprodução física e cultural das comunidades indígenas
relacionam-se com o fato de que as terras consideradas tradicionalmente ocupadas devem
abranger um espaço suficiente a permitir o desenvolvimento da população indígena, tanto em
um sentido demográfico quanto em um sentido cultural.
Observe-se que a tradicionalidade deve ser interpretada sob o ponto de vista de que as
culturas indígenas, como quaisquer outras, são dinâmicas e transformam-se ao longo do
tempo, pois nenhuma cultura é estática e isolada, ela está sempre relacionando-se com outras.
Portanto, eventuais mudanças decorrentes do contato com outras comunidades, indígenas ou
39
SILVA, Lásaro Moreira da. O Reconhecimento dos Direitos Originários dos Índios sobre suas Terras
Tradicionais na Constituição Federal de 1988 e a Extensão do Conceito de Terras Indígenas Tradicionalmente
Ocupadas. Revista Jurídica Unigran, Dourados, v. 6, n. 11, p. 150, jan./jul. 2004.
40
BARBOSA, op. cit., p. 94.
41
BARBOSA, loc. cit.
42
MONTANARI JUNIOR, op. cit.
14
Destarte, existindo ocupação tradicional sobre a terra indígena, nos termos do §1º do
art. 231, incidirão sobre ela os direitos originários da comunidade que a ocupa. Estes direitos
originários estão consignados no §2º do art. 231: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do
solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.”
O direito à posse permanente revela-se como uma destinação das terras indígenas, para
sempre, como habitat da comunidade, vale dizer, como o espaço onde desenvolvem sua
organização social, seus costumes, suas tradições, suas línguas e suas crenças, não
restringindo-se a uma mera relação material entre homem e coisa, própria do direito civil.44
Em razão desse direito de posse permanente, o §5º do art. 231 garante aos povos
indígenas a vedação de sua remoção das suas terras:
§5.º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum
do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua
população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso
Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o
risco.
Contudo, essa garantia possui duas exceções: casos de catástrofe ou de epidemia que
ponham em risco as populações indígenas e casos de interesse da soberania do País. Na
primeira situação, o presidente pode ordenar diretamente a remoção, porém, deverá haver
verificação e anuência posterior do Congresso Nacional (ad referendum), e, na segunda
situação, a remoção só é possível após deliberação do Congresso Nacional. Note-se que, em
qualquer dos casos, é garantido às comunidades indígenas o seu retorno imediato logo que o
risco haja cessado.
43
ARRUDA, op. cit., p. 139.
44
SILVA, J., op. cit., p. 860.
15
O direito de usufruto exclusivo que os povos indígenas têm sobre o solo, os rios e os
lagos existentes nas terras que tradicionalmente ocupam lhes garante os meios para sua
autossustentação física, cultural e econômica, mediante a exploração dos recursos ambientais
de seus territórios.
Note-se que o direito ao usufruto exclusivo recai apenas sobre as riquezas do solo, dos
rios e dos lagos, excluindo dessa regra os potenciais de energia hidráulica e as riquezas
minerais, que, de acordo com o art. 176, caput, da Constituição Federal, constituem
propriedade distinta da do solo, para fins de exploração e aproveitamento. É o que dispõe o
§3º do art. 231:
§3.º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a
pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados
com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-
lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
Todavia, o próprio §3º do art. 231 estabelece requisitos constitucionais exigidos para a
exploração dos potenciais de energia hidráulica, bem como para a pesquisa e a lavra das
riquezas minerais que se derem em terras indígenas, quais sejam, a autorização do Congresso
Nacional, a consulta prévia às comunidades indígenas afetadas e, no caso de exploração dos
recursos, a participação destas nos resultados da lavra, na forma da lei.
Essa exceção ao direito de usufruto exclusivo dos povos indígenas mostra-se um grave
retrocesso na garantia de seus direitos territoriais, devendo-se pensar em estendê-lo também
45
SANTOS. Roberto A. O. A Parceria Agrícola em Terras Indígenas. In SANTILLI, Juliana (Org.). Os Direitos
Indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Fabris, 1993, p. 182.
16
Neste ponto, torna-se importante salientar que a utilização de recursos naturais pelos
povos indígenas, de modo geral, é realizada de forma altamente sustentável, em virtude da
especial relação que o índio tem com a terra, dela só retirando o suficiente para a sua
sobrevivência e autodeterminação, sem esgotá-la jamais. De acordo com Andréia Cunha, “os
sistemas tradicionais de manejo dos recursos naturais pelos povos indígenas devem não só ser
respeitados pela sociedade envolvente como também, incorporados e assimilados porque
permitem falar em uma sustentabilidade ambiental”.47
Diante disso, o §4º do art. 231 determina que “as terras de que trata este artigo são
inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas imprescritíveis”. A inalienabilidade e a
indisponibilidade das terras tradicionalmente ocupadas, portanto, são uma garantia aos
direitos territoriais indígenas em virtude dessa propriedade vinculada da União. Assim, as
terras indígenas não podem ser vendidas, doadas, permutadas nem utilizadas como garantia de
créditos,48 pois inalienáveis, assim como não podem ter sua destinação à posse permanente e
ao usufruto exclusivo indígena desvirtuada, porquanto indisponíveis.
Já a imprescritibilidade dos direitos indígenas à terra significa que estes não são
atingidos pelo decurso do tempo ou pela consumação de fatos contrários a eles, o que inclui a
sua continuidade de vigência mesmo nos casos em que tenham sido expulsos de suas terras,
por conta do caráter originário desses direitos.
46
VILLARES, op. cit., p. 245.
47
CUNHA, A., op. cit., p. 75.
48
KAYSER, op. cit., p. 242.
17
Por fim, uma das mais importantes garantias encontra-se no §6º do art. 231, que trata da
nulidade e extinção de atos que prejudiquem os direitos dos povos indígenas à terra:
§6.º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por
objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a
exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes,
ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou ações
contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação
de boa-fé.
De acordo com esse dispositivo, são nulos e extintos os atos de terceiros não-índios que
prejudiquem os direitos indígenas de posse permanente e de usufruto exclusivo sobre as terras
que tradicionalmente ocupam, uma vez que tais direitos são originários e, por isso, anteriores
a quaisquer outros atos de ocupação. Entretanto, essa garantia não é absoluta, porquanto
admite exceção em um caso: quando houver relevante interesse público da União, segundo o
que dispuser lei complementar. Porém, deve-se atentar para o fato de que esta lei ainda não
foi criada, logo, a regulamentação de validade e extinção desses atos é irrestrita.49
O caput do art. 231 da Constituição Federal, em sua parte final, impõe à União o dever
de demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, bem como de proteger e
fazer respeitar todos os seus bens: “São reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários às terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
49
KAYSER, op. cit., p. 245.
50
KAYSER, loc. cit.
18
51
KAYSER, op. cit., p. 246.
52
LEITÃO, Raimundo Sergio Barros. Natureza jurídica do ato administrativo de reconhecimento de terra
indígena – a declaração em juízo. In SANTILLI, Juliana (Org.). Os Direitos Indígenas e a Constituição. Porto
Alegre: Fabris, 1993, p. 67.
53
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A Demarcação de Terras Indígenas e seu Fundamento Constitucional.
Revista Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, n. 3, p. 695, jan./jun. 2004.
54
OLIVEIRA, João Pacheco de; IGLESIAS, Marcleo Piedrafita. As demarcações participativas e o
fortalecimento das organizações indígenas. In SOUZA LIMA, Antonio Carlos; BARROSO-HOFFMANN,
Maria. Estado e Povos Indígenas no Brasil: bases para uma nova política indigenista II. Rio de Janeiro: Contra
Capa/LACED, 2002, p. 67.
19
Da análise desses dados, conclui-se que, embora a União ainda esteja em mora com seu
dever constitucional de demarcação das terras indígenas, é inegável que, a partir da
Constituição Federal de 1988, houve uma considerável aceleração no tocante ao número de
processos demarcatórios deflagrados e de áreas efetivamente demarcadas.56
55
LOBO, op. cit., p. 59.
56
RIOS. Aurélio Veiga. Terras Indígenas no Brasil: definição, reconhecimento e novas formas de aquisição. In
SOUZA LIMA, Antonio Carlos; BARROSO-HOFFMANN, Maria. Além da Tutela: bases para uma nova
política indigenista III. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2002, p. 69.
57
CUNHA, A., op. cit., p. 64.
20
As terras indígenas são o objeto central de inúmeras disputas e conflitos entre índios por
um lado, que reivindicam os seus direitos originários, e segmentos não-indígenas por outro,
com os mais diversos interesses econômicos nessas áreas. E tais conflitos locais acirram-se
justamente com o início do procedimento demarcatório, pois é quando estabelece-se a
reivindicação formal sobre tais terras.58 Interessante destacar as palavras de Dalmo de Abreu
Dallari sobre o tema:
Embora a imprensa conceda muito mais espaço a articulistas ligados ao agronegócio
e a setores militares retrógrados e preconceituosos, incapazes de uma visão realista e
humanista da presença indígena na história e na sociedade contemporânea do Brasil,
têm sido também divulgadas algumas informações importantes reveladoras da
truculência e do desprezo pela ética e pelo direitos que caracterizam os invasores de
terras indígenas. Uns, que se comportam como grileiros ricos, poderosos e sem
escrúpulos, buscam apoderar-se de grandes extensões de terras sem pagar por elas,
para ali implantar empreendimentos agropecuários. Valendo-se de sua superioridade
econômica, e associando-se a oligarcas e políticos sem ética nem compromisso
social, invadem terras sabidamente indígenas e, para resistir aos protestos e
tentativas de retomada das áreas pelos legítimos ocupantes, criam milícias
particulares, exibem reservas de armas e munições e proclamam suas disposições de
resistir por meios violentos às determinações, inclusive judiciais, para que
desocupem as terras invadidas. A par desses existem outros invasores, como os
mineradores que, na busca de riquezas, envenenam as águas, destroem a vegetação e
provocam outros sérios danos à natureza, retirando dos índios as possibilidades
mínimas de sobrevivência física e cultural. Outros invasores de áreas indígenas vão
à procura de riquezas contidas na extraordinária variedade da flora brasileira, muitas
vezes simulando objetivos puramente científicos ou sociais ou, ainda, religiosos. E
os índios são as grandes vítimas, praticamente indefesas, sendo quase anulados os
direitos que lhes são assegurados pela Constituição.59
58
ARAÚJO, Ana Valéria e LEITÃO, Sérgio. Direitos Indígenas: avanços e impasses pós-1988. In SOUZA
LIMA, Antonio Carlos; BARROSO-HOFFMANN, Maria. Além da Tutela: bases para uma nova política
indigenista III. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2002, p. 29.
59
DAALARI, Dalmo de Abreu . A Raposa Serra do Sol e os direitos constitucionais no Brasil. In MIRAS, Julia
Trujillo; GONGORA, Majoí Fávero; MARTINS, Renato e PATEO, Rogério Duarte do. Makunaima Grita!
Terra Indígena Raposa Serra do Sol e os Direitos Constitucionais no Brasil. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p.
17-18.
21
Três anos após a identificação formal da área pela FUNAI, em face de controvérsias
sobre o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, em 1996 foi editado
o Decreto nº 1.775, revogando os Decretos nº 22/1991 e 608/1992, que até então dispunham
sobre tal procedimento, introduzindo uma fase de impugnação e contraditório, na qual
Estados, Municípios e outros interessados na demarcação podem apresentar contestações ao
relatório do grupo de trabalho perante a FUNAI.
Dessa forma, foram apresentadas contestações pelo Estado de Roraima, pelo Município
de Normandia e por vários ocupantes não-índios. Em despacho expedido em julho de 1996, a
FUNAI considerou improcedentes todos os argumentos apresentados nas contestações,
enviando o procedimento ao Ministro da Justiça da época, Nelson Jobim. O Ministro expediu
o despacho nº 80/1996, mandando a FUNAI aprimorar e modificar o seu relatório, a fim de
reduzir a área em 300.000 hectares. Essa decisão foi claramente uma tentativa de conciliação
de interesses políticos divergentes sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol.
60
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos Indígenas do Brasil. De Olho nas Terras Indígenas. Disponível em:
<http://ti.socioambiental.org/#!/terras-indigenas/3835>. Acesso em: 12 maio 2012.
61
FREITAS JUNIOR, op. cit., p. 158.
62
MOTA, Carolina e GALAFASSI, Bianca. A demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol: processo
administrativo e conflitos judiciais. In MIRAS, Julia Trujillo; GONGORA, Majoí Fávero; MARTINS, Renato e
PATEO, Rogério Duarte do. Makunaima Grita! Terra Indígena Raposa Serra do Sol e os Direitos
Constitucionais no Brasil. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p. 92.
63
KAYSER, op. cit., p. 403.
22
Diante da edição da referida portaria, inúmeras ações judiciais passaram a ser ajuizadas
por ocupantes não-indígenas e por representantes do Estado de Roraima, perante o Supremo
Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, a Justiça Federal e a Justiça Estadual, todas
com o intuito de questionar a validade do ato administrativo do Ministro da Justiça. Cumpre
registrar que, em realidade, desde 1993, com a identificação da área pela FUNAI, muitas
ações possessórias já haviam sido intentadas contra a União, perante as Justiças Estadual e
Federal.65 Ainda, importa consignar que, em muitas dessas ações ajuizadas desde 1993, foram
concedidas inúmeras e sucessivas liminares suspendendo os efeitos da demarcação e
causando diversos prejuízos às comunidades indígenas que habitam a área.
julgamento pelo Supremo Tribunal Federal pôs um fim às controvérsias judiciais que
envolviam a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Em 20 de maio de 2005, foi ajuizada ação popular (Petição nº 3.388/RR) pelo Senador
da República Affonso Botelho Neto, assistido pelo também Senador Francisco Mozarildo de
Melo Cavalcanti, contra a União, impugnando o modelo contínuo de demarcação da terra
indígena Raposa Serra do Sol68.
No bojo dessa ação popular, foram levados ao Supremo Tribunal Federal, por meio da
Petição nº 3.388, diversos interesses fundamentalmente divergentes em relação à demarcação
da área Raposa Serra do Sol, compondo um complexo quadro de análise da questão indígena
no Brasil.
O julgamento do caso teve seu início no dia 27 de agosto de 2008, encerrando-se apenas
no dia 19 de março de 2009. Nesta data, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos,
julgou a ação popular parcialmente procedente, de acordo com os fundamentos do Voto do
Ministro Relator, Carlos Ayres Britto, declarando a constitucionalidade do procedimento
administrativo demarcatório e, por conseguinte, da demarcação contínua da terra indígena,
porém, submetendo esse reconhecimento a dezenove salvaguardas propostas pelo Ministro
Menezes Direito. Restaram vencidos em seus votos os Ministros Joaquim Barbosa, que julgou
a ação popular totalmente improcedente, e Marco Aurélio, o qual suscitou a preliminar de
nulidade do processo e, no mérito, julgou a ação totalmente procedente.69
68
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição nº 3.388/RR. Requerente: Affonso Botelho Neto. Requerido:
União. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Brasília, DF, 19 de março de 2009. Diário de Justiça Eletrônico,
Brasília, DF, 30 mar. 2009. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612760>. Acesso em: 14 maio de 2012.
69
O resumo da parte dispositiva foi realizado com base no Acórdão da Petição nº 3.388.
24
Outro ponto importante abordado no Voto do Relator é o status jurídico das terras
indígenas e a competência constitucional da União para demarcá-las e proteger todos os bens
nelas existentes, materiais ou imateriais (entenda-se: todos os bens físicos e culturais). O
Supremo afirma que todas as terras indígenas fazem parte do território nacional, tanto que são
bens de domínio da União, nos termos do art. 20, inciso XI, da Constituição Federal.
Ainda, no Voto é explicitada a natureza especial e peculiar das terras indígenas, pois
não se caracterizam nem como propriedade privada, nem como território. De acordo com a
exposição do Relator, território se define como “parte elementar de cada qual das nossas
pessoas jurídicas federadas”, juntamente com o povo e o governo, sendo o espaço em que
incide determinada ordem jurídica soberana e autônoma. Todavia, aqui deve ser realizada
uma ressalva em relação ao Voto: o Supremo Tribunal Federal distingue as terras indígenas
de territórios no sentido político, ou seja, como elemento formador do Estado e que
fisicamente limita o poder deste.70 Obviamente, as terras indígenas não constituem território
político no sentido constitucional, porém é inegável que estes espaços assumem, nos termos
70
MARÉS, op. cit., p. 120.
25
em que são conceituados pela própria Carta Magna no §1º do art. 231, verdadeiro caráter
territorial para as etnias que neles habitam, no sentido de constituir pressuposto essencial para
a própria sobrevivência física e cultural de um determinado grupo de pessoas, no caso, os
indígenas.
Neste ponto específico, deve ser feita uma crítica em relação a tal posicionamento do
Supremo Tribunal Federal: ao considerar a ocupação tradicional apenas como aquela que se
verifica no dia 5 de outubro de 1988, é aberta uma lacuna para a não efetivação dos direitos
das comunidades indígenas que foram expulsas e espoliadas de suas terras, por meio de
violência física ou moral, antes dessa data. Estipular tal marco temporal é, infelizmente,
ignorar o fato de que muitos grupos indígenas que atualmente pleiteiam seus direitos não
estão ocupando suas terras em virtude de terem sido outrora expulsos, o que não pode, de
forma alguma, retirar-lhes seus direitos constitucionais sobre estas áreas. 71
71
VILLARES, op. cit., p. 117.
26
porquanto naquela a terra deixa de ser mero objeto como é nesta, e passa a ganhar a conotação
de um ente em que os indígenas desenvolvem seus usos, costumes, tradições culturais e
religiosas.72
Por fim, antes de adentrar especificamente no caso da terra indígena Raposa Serra do
Sol, no Voto é examinado o tema que constitui a grande controvérsia nos autos da ação
popular: o modelo de demarcação das terras indígenas, se contínua ou “em ilhas”.
72
MENDES, Gilmar Ferreira. O domínio da União sobre as terras indígenas: o Parque Nacional do Xingu.
Brasília: Ministério Público Federal, 1988, p. 58.
27
Nessa toada, nos termos do §6º do art. 231 da Constituição Federal, declarou nulas as
titulações conferidas pelo INCRA a não-índios nessa área, bem como inválidas a ocupação da
Fazenda Guanabara e a posse dos rizicultores privados que a exploravam, reconhecendo a
prevalência dos direitos originários indígenas sobre todos estes atos.
73
YOKOYA SIMONI, M.. O reconhecimento dos direitos dos povos indígenas sob a perspectiva internacional e
a brasileira. Boletim Meridiano 47, Brasília, Vol. 10, N. 105, ago. 2010, p. 41. Disponível em:
<http://seer.bce.unb.br/index.php/MED/article/view/726>. Acesso em: 05 Nov. 2011.
28
CONCLUSÕES
74
CUNHA, A., op. cit., p. 166.
29
deve submeter-se, porquanto muitas delas, como já visto, representam um grave retrocesso
para a questão indígena no Brasil.
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Requerido: União. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Brasília, DF, 19 de março de 2009. Diário
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<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612760>. Acesso em: 14 maio
de 2012.
31
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