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Tribunal Regional Federal - 5? Regiao BIBLIOTECA CLAUDIO BRANDAO NELSON SALDANHA RICARDO FREITAS Coordenadores Historia do DIREITO E DO PENSAMENTO JURIDICO em Perspectiva Anténio Pedro Barbas Homem Aurélio Agostinho da Béaviagem Bruna Estima Borba Carlos Eduardo de Abreu Boucault Clarissa Marques Claudio Brandao Claudio Jesus Santagati Edilson Pereira Nobre Junior Francisco Cavalcanti George Browne Rego Graziela Bacchi Hora Joao Mauricio Adeodato Leonardo Siqueira Luiz Edmundo Celso Borba Margarida Cantarelli Nelson Saldanha Ricardo Freitas Rui Cunha Martins Ruth Chitté Gauer Silvia Alves Susan Lewis Teodomiro Noronha Cardozo Thales Cavalcanti Castro SAO PAULO EDITORA ATLAS S.A. ~ 2012 JU CAS DA ADMINISTRACAO PUBLICA BRASILEIRA Francisco Cavalcanti 1. O presente capitulo visa apresentar um esboco da evolucao das ideias e decorren- tes institutos juridicos que representaram a formacao e evolugao do direito administra- tivo no Brasil e que definiram as molduras normativas da Administragao Publica, seus érgios e pessoas e a disciplina juridica de seus atos, negocios juridicos, responsabilidade civil etc. Sem divida a apresentac4o desse conjunto apresenta enormes dificuldades em um capitulo, dai por que se fez uma selec4o de aspectos considerados de grande relevo, embora outros também relevantes aqui nao puderam ser desenvolvidos, por falta abso- luta de espago. Outro aspecto relevante a ser considerado é que o Direito Administrativo, abaixo do direito constitucional, é o que se apresenta mais ao sabor das defini¢ées politico- -ideolégicas do papel do Estado e de suas variacées ao longo do tempo. Imaginar que © sistema juridico seria figurativamente representado como a infantaria das mudancas sociais, desbravadora de novos territérios, é um grande equivoco, embora presente em juristas até de algum relevo. O sistema juridico funciona, basicamente, através de suas varias fontes, como mecanismo de consolida¢ao das mudangas sociais, e tal fato é bem presente no campo do direito cuja evolugao de ideias aqui se examina. Outro aspecto que nao pode deixar de ser referenciado é a multiplicidade de ideias de fontes diversas que formaram o direito publico brasileiro, marcado, a partir do inicio da Republica, pela influéncia do constitucionalismo norte-americano e, na base, por estruturas juridicas oriundas da Europa continental, modelos esses nem sempre compativeis. 2. O Direito Administrativo, como bem lecionava Caio Tacito, tem como marco inicial de seu surgimento como disciplina juridica auténoma o modelo juridico que se desenvolveu na Franga do final do século XVIII. “Até a reforma politica decorrente da revolucdo francesa nao se podia ca- racterizar a independéncia cientifica dos preceitos reguladores da atividade , Histéria das Ideias Juridicas da Administracdo Pablica Brasileira. 303 administrativa do Estado [...] No depoimento de ZANOBINI a certidao de nascimento do direito administrativo terd sido a lei de 28 pluviose do ano VIII(1800) que, pela primeira vez atribuiu 4 administragdo francesa uma organizagao juridicamente garantida e exteriormente obrigatéria.”! Essa origem e modelo marcaram o desenvolvimento desse entao novo campo do estudo juridico. A Franca apresentou-se como modelo de administracao publica, racio- nal, objetiva e tal paradigma espalhou-se Por toda a Europa, sobretudo continental. Em verdade, o século XVIII, as novas ideias, a queda do velho regime, foram marcantes para 0 surgimento de um Estado de Direito, embora ainda embrion: io, € 0 consequente sur- gimento do direito administrativo. Essa é também a licéo de Thomas Wurtenberger, a0 destacar que as constituigdes, a democracia, 0 Estado de direito, a separacio de poderes ea salvaguarda de direitos fundamentais seriam as ideias diretrizes que caracterizam a evolucao das constituigdes na Franca e Alemanha depois do fim do século XVIII.2 oO Pensamento juridico brasileiro, em sede de direito administrativo, tomando como pon- to de partida a independéncia do pais, caracterizou-se, seguindo o padrao da época, pela forte influéncia francesa. Influéncia essa que, ressalte-se, via-se presente em intmeros outros campos do conhecimento cientifico. As duas primeiras obras de direito adminis- trativo, publicadas no Brasil, foram as escritas Pelos catedraticos da faculdade de dire: to de Olinda,? Vicente Pereira do Rego, e a da Faculdade de Direito de Sao Paulo, Veiga Cabral. Sobre esses trabalhos, o Visconde do Uruguay observou, em 1862: “Ja possuimos duas obras sobre 0 direito administrativo, a saber: os Ele- mentos de Direito Administrativo comparado com o Direito administrati- vo francez, segundo o méthodo de Pradier Foderé, pelo Dr. Vicente Pereira do Rego, lente da faculdade de Direito do Recife. Neste trabalho, que nao deixa de ter merecimento, ‘tomou seu autor por modelo (sao suas expres- Ses) 0 direito adimistrativo francez, porque he principalmente nos livros francezes onde se podem por ora colher os principios gerais do nosso, com- pilando a summa das nossas principais leis administrativas’ [...] O Direito Administrativo Brasileiro pelo finado conselheiro Veiga Cabral, 0 qual foi meu lente do Direito Patrio na academia de Sao Paulo. Abstenho-me, por isso de observacies.”* ' TACITO, Caio. Perspectivas do direito administrativo no préximo milénio. Revista de Direito Administrativo, n® 212, Rio de Janeiro: FGY, abr./jun. 1998, p. 1. * WURTENBERGER, Thomas. Distance et rapprochement entre le droit administratif allemand et le droit administrati rangais. Disponivel em: . » Transferida no final do século XIX para a cidade de Recife ¢ instalada na atual sede, desde 1911. * URUGUAY, Visconde. Ensaio sabre odireito administrative. Rio de Janeiro: Typografia ‘Nacional, 1862. t. I, p. XII. 304 Histéria do Direito e do Pensamento Juridico em Perspectiva * Brandao / Saldanha / Freitas Os primeiros trabalhos que aqui publicaram,® sobretudo o de Vicente Pereira do Rego, padeceram de uma importacdo acrftica do modelo francés, inclusive do método, olvidando-se uma lico antiga de um dos primeiros administrativistas franceses acerca das comparacées. Ressalte-se que a comparacio entre institutos, figuras etc., a migracdo para o ordenamento juridico brasileiro de figuras, institutos existentes em outros orde- namentos, nao tem muitas vezes apresentado bons resultados. A experiéncia o demons- tra. Tal foi presente no nascedouro do direito administrativo brasileiro.® 7 Até mesmo recentissimas importagdes como a do modelo das Regulatory agencies norte-americanas, que ocorreu, a partir da segunda metade da década passada, sobretudo na esteira do processo de desestatizacao, com pretensdo de serem instrumentos para uma regulacao independente de setores relevantes da sociedade, como energia, gas, telecomunicag6es, aviac4o, producao de medicamentos e quimica fina em geral, transportes aquaticos e terrestres etc. Esses entes apresentam ainda hoje gravissimos problemas de captura po- litica e econémica que a singela previsdo de autonomia pelos mandatos dos dirigentes e a pretensdo de uma regulacao técnica mais isenta nao resolveu.® 3. O método comparativo, quando utilizado no direito administrativo brasileiro, sobretudo em sua fase inicial, 0 foi muitas vezes, pela comparacao em si, ou pelo espi- tito de imita¢ao, por vezes para aparentar hipotética erudi¢ao e nao voltado para aquele objetivo lembrado por Rivero, qual seja: “melhor compreender nosso proprio direito. Paradoxo? Somente para aquele que desconhece a for¢a do habito. De tanto estudar apenas o Direito Nacio- nal, o jurista acaba se tornando prisioneiro do seu préprio direito. As arvo- res se escondem na floresta. O jurista nao mais enxerga as linhas essenciais que fazem a verdadeira originalidade do Sistema. Que entdo o especifica? Ele sé pode responder por comparagao”.% !0 5 Merece, ainda, referéncia a obra de Antonio Joaquim Ribas, denominada Direito administrativo brasileiro. 6 Afinal, bem lecionam Neville Brown e J. F Garnier: “Comparative method is useful in many branches of-law, but is of particular importance in Administrative Law because the nature of the leading problems, and in particular the questions of how government can be controlled in the interests of both states and citizen, are common to all developed nations of the western world.” 7 French administrative law. London: Butterworth, 1973. p. 1. 5 Merece consulta sobre essa matéria no sitio eletrénico do TCU () excelente relatério sobre as deficiéncias técnico-adminstrativas da atuacao desses entes. ° RIVERO, Jean. Direito administrativo comparado. Trad. de Odete Medaur, Sao Paulo: USP, 1984. p. 23. 10. Nota: Diversa nao é a ligéo de Cappeletti quando, dentre outras finalidades do Direito comparado, destaca: “V'analisi comparativa (0 ‘diritto comparato’) si revela strumento importante per una visione non assolutistica, non dogmatica del diritto per vedere isomana il diritto come fenomeno reale e inquanto tale nom assoluto e immobile, ma como e aspetto fondamentale della cultura - storica e quindi essenzialemente mutavole — delle societa umane, al pari della lingua, dell’arte, e CC.: e non dunque come fenomeno puramente NORMATIVO, autonome, astratto dalla societd e dai suoi multivoli [...], ideali, aspirazioni. Qui il diritto comparato offre dunque una lezione di sano relativismo, o storicismo, contro i vizi della dogmatica tradizione, la quale [...] Histéria das Ideias Juridicas da Administracao Pablica Brasileira 305 Nao se comparou apenas e quando necessdrio para tentar melhor compreender os institutos para o aprimoramento de institutos existentes no Sistema brasileiro, para apontar suas vantagens e fragilidades pois, por mais que se compare, considerando as peculiaridades de cada Estado, sua cultura etc., nao se pode desfazer uma assertiva ja centenaria.'! Padeceu o pensamento juridico administrativo brasileiro, em seu nascedou- ro dessa marcante influéncia francesa, ao exagero. O que, ressalte-se, ocorreu em muitos campos do conhecimento cientifico e das artes. Nao se olvide a marca da arquitetura fran- cesa em tantas construcées publicas brasileiras da época. O gosto por roupas europeias, nao adaptadas ao clima brasileiro, também se fez presente, no direito administrativo. 4. Exemplo tipico dessa influéncia e da importacdo francesa foi o desenvolvimento da chamada justiga administrativa, com adocao do modelo de dualidade de jurisdicao. A assimilacao de modelos, de modo acritico, nao se olvide, 6 bem uma caracteristica mar- cante em sistemas menos desenvolvidos, onde muitas vezes os “pensadores” entendem como evolucao a rapida importacao de novidades, por vezes de dificil adptacao a reali- dade patria. Voltando a figura da Justi¢a Administrativa, a posico francesa sobre esse tema partia do principio de que a Constituicao devia distinguir claramente os trés Poderes separados, © Legislativo, o Executivo e 0 Judiciario.'? O texto constitucional de 1791, daquele Estado, incorporou a tendéncia prevalente jana lei 16-24 de 1790 - art. 13, ao estabelecer no Capitulo V: “Art. 3 - Os tribunais nao podem, nem se imiscuir no exercicio do Poder legislativo, ou suspender a execugo das leis, nem interferir nas funcdes administrativas, ou convocar diante deles os administradores por razdo de suas funcdes.”!4 Fundou-se a vertente francesa em alguns pressupostos considerados basicos: (a) dado 0 principio da soberania do Parlamento, no caberia ao juiz, no exame do caso concreto, afastar a incidéncia da lei ante o argumento da inconstitucionalidade; (b) a funcao de vedere il diritto come pura norma separata dagli altri fenomeni come I’economia, la politica l’etica delle societa” (CAPPELLETI, Mauro. Dimensione della Giustizia nelle societd contemporanea. Bologna: Il Mulino, 1984. p. 25). 1 “Chaque pays a ses institutions, chaque institution ses problémes, et chaque probléme sa solution propre” (CORMENIN, M. de. Droit administratif. 5. ed. Paris: Pagnere, 1840. t. I, p. 1). 12 “La Constitutions devait distinguer nettement trois pouvoirs séparés, le législatif, l'exécutif et le judiciaire.” gu gi Cf. GODECHOT, Jacques. Les constitutions de la France depuis 1789. Paris: GE. Flammarion, 1979. p. 21. 13 “article 13. Les fonctions judiciaires sont distinctes et demeureront toujours séparées des fonctions administratives. Les juges ne pourront a peine de forfaiture, troubler de quelque maniére que ce séit les coopérations des corps administratifs, ni citer devant eux les administrateurs pour raison de leurs fonctions “ No original: “Art. 3. Les Tribunaux ne peuvent, ni s'immiscer dans l'exercice du pouvoir Législatif, ou suspendre l’execution des lois, ni entreprendre sur les fonctions administratives, ou citer devant eux les administrateurs pour raison de leurs fonctions. Nota: Merece leitura sobre a formagao da doutrina francesa sobre a separacéo dos Poderes M. J. C. Vile. Constitutionalism and the separation of power. Oxford: Clarendon, 1967. Caps. VII (doctrine in France], p. 176 ss. 306 Histéria do Direito e do Pensamento Juridico em Perspectiva * Brando / Saldanha / Freitas julgar a Administragao também é considerada como exercicio de funcao administrativa e, portanto, exercitavel por orgaos da propria Administracdo. Tal posicdo seria geradora da dualidade de jurisdicdo e da consolidacéo do Conselho de Estado como érgio de ju- tisdicao'’ e dos Tribunais Administrativos como érgios jurisdicionais, distintos do Poder Judiciario, integrantes da propria Administra¢ao Publica. A existéncia de uma justica administrativa integrante da propria Administra¢ao Publica partia do pressuposto aceito que julgar a Administracao também é administrar. Justificava-a o classico Pradier-Fodéré: “A justica administrativa deve fazer prevalecer a equidade e o interesse do estado, que é 0 interesse de todos, sobre as disposicées inflexiveis e mais estreito da legislacdo positiva, é relevante para o interesse ptiblico que a atuagao da administra¢ao nao seja tolhida em sua marcha, o que pode acon- tecer de acordo com os érgios judiciais, pela caracteristica que é a inde- pendéncia juridica que tende a pér a espada e a balanga sobre a cabega do governo, para citar todos os dias as suas barras, e de romper sua viseira.”"6 Iniciava-se 0 julgamento das questées pertinentes 4 Administracao Publica, como ADMINISTRATION CONTENTIEUSE “(aquela que julga as questdes de interesse pri- vado que se ligam a aco da Administracao Ativa)”.17 A evolucdo do sistema francés consolidou a existéncia dos tribunais administrativos e da “section du contentieux” do “Conseil d’Etat”, como orgaos julgadores formadores de uma Justica administrativa distinta do Poder Judiciario, embora com func&o tipicamente jurisdicional. Observe-se que a Lei n° 87-1127 (21/12/87) estabelece: “OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS SAO, EM PRIMEIRA INSTANCIA E SOB A RESERVA DE APE- LACAO, OS JUIZES DE DIREITO COMUM DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO.” 'S_© Conselho de Estado, em verdade, “remonte aux premiers temps de la monarchie”. Cf. M. de Cormenin, lembrando que ja o “réglement de 28 de junho de 1758 ja atribuia-lhe competéncias “partie judiciaires, partie administratives” ~ Droit administratif. Thorel/Pagnerre, 1840, t. I [obs. interessante o exame do Tomo I p. 9-86, para estudo da atuacao do “Conseil D’ETAT” no periodo da revolucao francesa até 1840]. 6 No original: “La Justice Administrative doit faire prévaloir au besoin l'equité et l'intérét de Etat, qui’ est Vintérét de tous, sur les dispositions inflexibles et plus étroites de la legislation positive, il importe a V'intérét public que I'action administrative ne soit point arrétée dans sa marche, ce qui pourrait arriver si l’on accordait au corps judiciaire, dont le caractére est I'indépendance le droit de tenir le glaive et la balance suspendus sur la téte du gouvernement, de le citer chaque jour & sa barre, et de lui rompre en visiére” (PRADIER-FODERE, M. P Précis de droit administratif. Paris: Guillaumin/Durand et Pédone. Paris, 1872. p. 675). 17 Idem, p. 35. Nota: Apesar de ainda hoje serem encontriveis Autores defendendo a tese da existéncia de dois Poderes sob © argumento de que “le pouvoir juridictionnel constitue une maniére de’exécuter la loi, d’exécuter les régles de droit: il assure I'application des régles de droit génerales et impersonnelles a des cas particuliers. A melhor doutrina francesa se posiciona tanto no tocante & distincdo inclusive teleol6gica entre os Poderes como também do exercicio da fungao jurisdicional quer exercida pelos érgéos do Poder Judicidrio, quer pelos tribunais Administrativos Vide Jacques Cadart. Institutions politiques et droit constitutionnel, econdmica. 3. ed. 1990. t. Il, p. 320 a 639 (com a indicacdo da evolucdo histérica do sistema francés e dados comparativos). Historia das Ideias Juridicas da AdministracZo Piblica Brasileira 307 5. Sem pretender tecer consideracées sobre as bases evolutivas da Justica Adminis- trativa francesa [periodo de “la Révolution”, do “Consulat et Empire”; da “restauration et monarchie de Juillet”; “de Seconde République et Seconde Empire”; depois “La Loi de 24/05/1872”,'8: 8. 20 6 importante ressaltar que a dualidade de jurisdicdo é normalmen- te, até os dias atuais, defendida pela doutrina francesa sob o argumento da existéncia de um Direito especial, que seria o Direito Administrativo; e que os Tribunais Administra- tivos conhecem melhor as necessidades da a¢4o administrativa que os tribunais e juizes da jurisdicao judicial.?! Padeceu o pensamento juridico administrativo brasileiro, em seu nascedouro, dessa marcante influéncia francesa, o que, ressalte-se, ocorreu em muitos campos do conhe- cimento cientifico e das artes. Posteriormente agregar-se-ia a influéncia de trabalhos de relevo de publicistas alemies e italianos. Exemplo tipico dessa influéncia foi o desenvolvimento da chamada justiga adminis- trativa, com adogao do modelo de dualidade de jurisdi¢ao. 6. E relevante ressaltar que o Ordenamento juridico brasileiro teve como sua pri- meira Constituicao a de 1824 (a unica do periodo imperial). Nela eram previstos quatro poderes politicos: “O Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo, o Po- der Judicial. Todos eles so expresses naturaes e necessdrias da soberania nacional.”22 Apresentava esse texto, como principal peculiaridade em termos de estrutura do Estado, a presenca de um Poder Moderador “[que em quasi todas as Constituigdes faz parte do Poder Executivo]”,?3 nao coincidente com o Poder Executivo, como se extrai, da ligao, dentre outros, de Joaquim Rodrigues de Souza, o qual afirmava: “A distingao do Poder Moderador e de Poder Executivo: um composto de atribuicdes altamente soberanas, que constituem o mister essencial da coréa: outro de func¢Ges propriamente executivas. Aquelle privativamente delegado 38 Sobre os fundamentos do sistema francés de dualidade de jurisdi¢ao, vide Jean Marie. Droit public. Econémica. 1985, t. Il, p. 585 ss. Merece, ainda, consulta, pelo seu valor histérico. '9 Saint Girons. Essai sur la séparation des pouvoirs — dans l’ordre politique, administratif et judiciaire. Paris: L. LAROSE, 1881, esp. p. 449-570, com exame, inclusive da questo da “inconstitutionalité de la loi” (p. 555-563). Vide: PEISER, Gustave. Droit administratif. 6. ed. Paris: Dalloz, 1993. p. 161-164. 21 Justifica Jean Rivero a existéncia da Justica Administrativa, argumentando: “A sa justification primitive essentiellement politique — le souci de défendre l’independence de l’exécutif contre I’autorité judiciaire - s'est substituée une justification technique, fondée sur 'idée de division du travail entre les aux ordres de jurisdictions, spécialisés dans l’application de deux droits différents. Les administrés, confiants dans l'indépendance et le liberalisme de leur juge, et 'administration, sire de la connaissance qu’il a de ses nécessités, trouvent également leur compte dans cette, en raison des avantages superieurs qu'ils pensent en retirer” (Droit administratif. 12. ed. Paris: Dalloz, 1987. p. 169. Merecem, também consulta: CHAPPUS, Rene. Droit du contentieux administrati. Paris: Montchrestien, 1984 ¢ DEBBASH, Charles. Procédure administrative contentieuse et procédure civile. Paris: LGDjJ, 1962. 2 PIMENTA BUENO, José Antonio. Direito piblico brasileiro. Analyse da Constituigao do Império. Rio de Janeiro: Villeneuve, 1857. 13 Parte, p. 31. 2 Idem, p. 31. 308 Historia do Direito e do Pensamento Juridico em Perspectiva * Brandao / Saldanha / Freitas ao Impetrador, como chefe supremo da na¢4o e seu primeiro representan- te para que incessantamente vele sobre a manutengao da independéncia, equilibrio e harmonia dos demais poderes politicos. Este delegado ao Im- perador como chefe do mesmo poder para exercité-lo pelos seus Ministros de Estado. Tal divisdo e distin¢ao para efeito real, necessariamente exige que seja o poder moderador resguardado da influéncia ministerial e tenha toda a liberdade de acc¢ao. Necessario, sendo um foco de luzes para acér- to das importantissimas fungdes moderadoras, corre ao Imperador o dever de ouvir o conselho de Estado em todas as occasides em que se proponha exercer qualquer das atribuigées do dito poder.”?4 Adotava-se a doutrina da Divisio de Poderes sobre o argumento de que “para o Po- der nao abusar é preciso que seja dividido e limitado, é preciso que o Poder contenha 0 Poder”.5 Tal, basicamente, nada mais representava de que uma expressao das ideias de Locke e Montesquieu. 7. A Constituicao primeira do Império nao estabeleceu qualquer mecanismo de controle jurisdicional dos atos legislativos exercitavel por érgaos da Estrutura do Esta- do quanto a harmonia desses com as normas e principios Constitucionais. Em verdade, a Carta de 1824 nada trouxe de inovador, em relacZo as Constituig6es Europeias que Ihe serviram de fonte inspiradora. Apenas ao Poder Legislativo, cuja soberania era con- sagrada, cabia o exercicio do autocontrole da producio legislativa fruto de competéncia expressamente prevista naquela Constituicao.”° Sobre o modelo de Estado implantado coma Consiuo de 1824, SPARS E-AIREGG NATED “EE EES EERGOTES TEED enor da paca ea esse copiar servil umas constitui¢es escritas de outras, nao se tendo ainda por guia a ciéncia hoje fundada dos fenémenos sociais. (mas também ressal- v2) QiG6IIED i poder EREGERGWAMInGEIGERGA) pois a esse tempo sabiam eles que nao hd fenomeno que brote ao acaso e sem dependéncia de uma lei natural: sabiam, portanto, que nossa eficiéncia, no terreno politico, como em outro qualquer, é limitada.”27 24 RODRIGUES DE SOUZA, Joaquim. Analyse e comentario da constituigao politica do Império do Brasil — teoria e pratica do governo constitucional brasileiro. S40 Luiz do Maranhao, 1870. v. II, p. 284. 28 PIMENTA BUENO, op. cit., p. 33 2 Constituigao de 1824: “Art. 15. E da attribuicao da Assembiéia Geral. ILA VIL. Fazer leis, interpreté-las, seuspende-las e revoga-lis. IX, Velar na guarda Constituicao, e promover o bem geral da Nagao.” © RELA ASRS rn sans sar Basa Senado, 1! 27. Hist6ria das Ideias Juridicas da Administracao Publica Brasileira 309 8. Quanto ao controle jurisdicional sobre os atos Administrativos, o Estado brasi- leiro encontrava-se fortemente influenciado pelo modelo francés classico. Basta que se examine a producdo doutrinaria brasileira e a legislacao do periodo imperial onde se vis- lumbra, de logo, a presenca inspiradora dos juristas franceses de entao. Adotou-se, nessa trilha, a figura do contencioso administrativo, fundando-se nos argumentos classicos da independéncia dos Poderes, com a existéncia de Tribunais Administrativos integrantes do préprio Executivo, tendo como érgio superior o Conselho de Estado.?8 2% 30 E importante, entretanto, nao se olvidar que nem todos os atos da Administracao Publica estavam excluidos do controle do Poder Judicidrio. Quando 0 Estado agia despro- vido da condigao de Ente Puiblico, nas relacdes em que agia sem as prerrogativas estra- nhas ao regime de Direito privado, as lides decorrentes desse agir, desse contratar, eram apreciadas pelo Poder Judiciario. Nesse sentido decidiu, v. g., o Conselho de Estado, na consulta de 22/12/1866: “Quando o Estado funciona como pessoa civil, contractando com um particular a respeito de um direito individual, sujeita-se como qualquer cidadao lei privada, ao Poder Judiciério.”3! Essa era a posi¢ao defendida pela melhor doutrina brasileira de entao. Nessa senda seguia Pereira do Rego, lecionando: “Abre-se o meio contencioso todas as vezes que o interesse privado é feri- do por uma decisdo procedente d’uma autoridade que estd sob a alcada do Conselho de Estado. Entende-se por interesse privado um interesse material € positivo que a Administracao nao podia ferir arbitrariamente [...] A juris- dicao administrativa é todavia incompetente, quando o interesse puiblico nao se acha envolvido na questo e sé hd colisao entre interesses privados, ainda que estes dimanem de factos ou actos de origem administrativa.”32 28 Bem significativos do pensamento juridico da época eram argumentos como 0 de Ribas: *O executivo seria collocado em posic4o de dependencia e subalternidade em relacéo ao judicial, desde que 05 seus actos estivessem subjeitos a revisdo e a confirmacao deste poder, sempre que approuvesse 4s partes interpor recursos delles 4 pretexto de lesdo de seus direitos. Todo o principio de actividade tende a ampliar-se enquanto nao encontra obices. O poder judicial, independente pois, como é pela nossa organisaco politica, nao deixaria de arrogar-se certa superintendencia sobre 0 executivo desde que Ihe fosse atribuido o julgamento dos recursos administrativos; dest’arte se nulificaria a responsabilidade do poder executivo e se tornaria elle incapaz de preencher a sua alta missao” (p. 131). ‘Oua de Rego Barros: “A separagao do poder judiciario e do poder administrativo, a necessidade de uma instrugo especial para bem aplicar a legislac4o administrativa, s4o os principais motivos que dao lugar a existéncia da JURISDIGAO ADMINISTRATIVA” (p. 132). 2 RIBAS, Antonio Joaquim. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: FL Pinto & Cia. - Livreiros Editores, 1866, p. 163. %® REGO BARROS, Henrique do. Apontamentos sobre o contencioso administrativo e sobre os privlégiose prerrogativas da Administragao nos contratos e transagées que celebra com o Poder Piilico. Rio de Janeiro: Laemmert, 1874, p. 31. 31 REGO BARROS, Henrique. Op. cit. p. 71. PEREIRA DO REGO, Vicente. Elementos de direito administrativo brasileiro. Recife, 1857. t. 1, p. 7. 310 Histéria do Direito e do Pensamento Juridico em Perspectiva * Brando / Saldanha / Freitas 9. O periodo imperial foi o tinico no qual teve aplicacao, no Brasil, o sistema de dualidade de jurisdi¢4o. Em verdade, a estrutura da Justica Administrativa, sobretudo do Conselho de Estado na forma prevista no art. 157, da Constitui¢ao Imperial discipli- nada, basicamente, pela Lei n° 234, de 24.11.1841, nao deu a necessdria independéncia a esses érgaos, para que, de fato, representassem eficiente mecanismo de controle da func4o administrativa do Estado. Era, exatamente, a vincula¢do entre a Administra¢ao e a Justica Administrativa (combatida pela doutrina brasileira a partir da Republica) que era, entao, justificada pela doutrina como o mais adequado e compativel com a Teoria da Separacao dos Poderes. Nesse sentido, justificava o Visconde de Uruguai a existéncia do contencioso admi- nistrativo, utilizando-se dos mesmos argumentos da doutrina francesa de entao: “O Contencioso administrativo nasce da mesma natureza das coisas, uma vez que a Constituicao estabelece e se baseia na divisao de Poderes. Porquan- to 0 contencioso administrativo nasce necessariamente das consequéncias, resultados e interpretagao dos atos administrativos. A Administragao nao deixa de administrar ainda mesmo quando resolve sobre matérias conten- ciosas administrativas. Os atos de jurisdi¢do que entdo exerce, sao 0 com- plemento da acao administrativa [...]. Assim para nao se cair na confusao e na anarquia é indispensavel que os atos administrativos, isto é, que os atos que emanam da autoridade administrativa sobre assuntos administrativos, nao fiquem por modo algum dependentes de outro poder.”*3 Nao se pode, também, olvidar que as condi¢des socioeconémicas do Estado Brasi- leiro, a estrutura da Sociedade brasileira nao era muito favoravel a um efetivo controle juridico sobre o exercicio da fung4o Administrativa. Pimenta Bueno, entretanto, ressalva ser 0 contencioso-administrativo a tinica via efetiva de limitac4o juridica e controle do Estado quando imbufdo de suas prerrogativas, lembrando: “Contra as decisées da administra¢o pura, ou discricionaria, nao h4 senao a via do recurso gracioso, que ella péde attender ou nao, como julgar melhor a bem do interesse colletivo da sociedade. Nessa parte 0 cidadao nao tem a faculdade de contraria-la, de por em litigio sua decisao. Pelo que toca porém a justi¢a administrativa, a obrigagdo que o governo de nao infringir as leis que segurao direitos individuais, de resguardar este em seus actos, 0 caso é diverso. Ent4o o cidadao tem o direito de legitima contradic¢io, de litigar com ella e de requerer a reforma de sua decisao.”** 33 Visconde de Uruguai. Ensaio sobre o direito administrativo. Rio de Janeiro: Ministério da Justica, 1960. p. 78 (Reedicao de 1862). 34 PIMENTA BUENO. Op. cit. p. 298. Obs.: Esse Autor, também apegado a Teoria francesa entdo dominante no Brasil, comungava com a quase unanimidades dos doutrinadores de entao, afastando o controle do judiciario sobre qualquer dos demais Historia das Ideias Juridicas da Administracao Publica Brasileira. 311 10. O modelo de Administrago Publica no periodo imperial caracterizava-se, por ser centralizador, representando as provincias meras unidades administrativas, aspecto esse que, embora criticado por alguns, foi sem diivida responsavel pela preservacao da unidade do Brasil como pais, apesar de algumas revoltas ocorridas, como a Farroupilha, movimentos em Pernambuco, dentre outros. O servico ptblico nao era composto de servidores recrutados por critérios objetivos. Sobre essa centralizacdo manifestar-se-ia, mais adiante, Carlos Maximiliano Pereira dos Santos: “Centralizara-se a administra¢ao, observando a rigor o sistema unitario exa- rado no cédigo de 1824 [havia nas provincias um simulacro de assembleia, com o nome de conselho geral; porém suas deliberacdes eram cumpridas somente quando homologadas pelo Imperador, ou pelo parlamento nacional (Constitui¢ao, arts. 84, 85 e 86). Cabia ao soberano a ultima palavra: podia negar san¢io as leis e até dissolver a Camara hostil, sem que essa apeasse das eminéncias governamentais os ministros detestados]. A Acdo irradiava sempre do Rio de Janeiro; sobranceiro a tudo pairava o Imperador. Quando o Rei dissolve a Camara e nao tombam os gabinetes, o Poder Legislativo é uma sombra e 0 constitucionalismo uma farca. Tremia a magistratura ante a onipoténcia do monarca. Amoviveis os juizes, eram suspensos pelo Im- perador, que ainda podia perdoar e comutar penas.”35 Ja os contemporaneos do periodo imperial normalmente defendiam com énfase o texto. Isso se explica por que, muitas vezes, eram ocupantes de cargos na propria estru- tura do Estado. Nao se olvide que a alocacZo de pessoas nos postos publicos ali, ainda mais que hoje, por mérito, era algo bem teérico e retérico. Sobre a centraliza¢4o, por exemplo, lecionava Veiga Cabral: “A centralizacao € o principio da atividade, e consiste na existéncia de um poder destinado a imprimir a todas as partes de um pais uma dire¢ao uni- forme, assegurar-lhe o gozo das mesmas vantagens e impor-lhes os mesmos encargos. Este centro de atividade, e uniformidade resulta da organiza¢ao social, e da divisdo, equilibrio e harmonia dos Poderes constitucionais, es- pecialmente da vigilancia do Chefe Supremo da Naco, e seu primeiro Re- presentante, a quem incumbe velar incessantemente sobre a independéncia, equilibrio e harmonia dos mais Poderes Politicos; assim se a ago do Poder Poderes argumentando: “Ele nao é autorisado a invadir as raias do Poder Legislativo, nao tem por isso mesmo direito de decretar decisdes por via de disposicao geral, e s6 sim de estabelecé-los em relacao a espécie que Ihe é subordinada, Nao possui jurisdicao para decidir quest6es de ordem administrativa; pois que pertencem a competéncia exclusiva” (idem fs. 36). No mesmo sentido: VEIGA CABRAL, Conselheiro P. G. T. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Laemmert, 1857. v. 1. 35 MAXIMILIANO, Carlos. Comentarios a Constituigao brasileira de 1891. Ed. fac-similar a de 1918. Brasflia: Coleco Histéria Constitucional brasileira, 2005. p. 22. 312 Historia do Direito e do Pensamento Juridico em Perspectiva * Brandao / Saldanha / Freitas executivo, quero dizer, dos ministros ¢ irregular, o Imperador os demite; se os atos do Poder Executivo sao funestos ao pais, o Imperador os demite; se os atos do Poder Legislativos séo funestos ao pais, o Imperador dissolve a Camara dos Deputados, convocando imediatamente outra, que a substitua; se os julgamentos do Poder Judicidrio sao mui gravosos enquanto aplicam As ac6es individuais penas mui graves, o Imperador modera essa a¢ao pelo direito de agraciar; da mesma forma, pelos meios competentes os outros ramos do servico publico obedecem a esse principio, pois que objeto da cen- tralizagdo é imprimir 4 Administracao unidade administrativa para o fim da conservacao e seguranca social.”3° 11. A doutrina administrativista do periodo imperial pouco tinha de espirito critico; caracterizava-se a producdo de trabalhos doutrindrios pelo carater meramente descritivo, em periodo em que a estrutura do Estado tinha um carater ainda muito embrionario do que hodiernamente se entende como democracia. A formagao do legislativo era limita- da a poucos. A capacidade eleitoral ativa era censitdria e, por conseguinte, a produc3o decorrente beneficiava, sobretudo, a um conjunto relativamente singelo da populagao. O corpo de funcionarios publicos era de provimento por critérios de conveniéncias e interesses pessoais, o Estado no respondia pelos danos que os entes ptiblicos cau- sassem a terceiros. A Justica administrativa era dependente do Imperador e ineficiente. E relevante salientar que, apesar do modelo liberal adotado na Constituicao de 1824, o que alids, repetir-se-ia na 12 Carta republicana, havia instrumentos de interven¢ao na 4rea econémica. Observe-se, por exemplo, a cria¢ao da Caixa de Amortizacao, pela lei de 15.11.1827, exclusivamente destinada a pagar capitaes e juros da divida fundada por lei. A caixa de amortizacao é independente do Tesouro e administrada por uma junta com- posta de ministro da Fazenda, de cinco capitalistas nacionais escolhidos pelo Governo e do Inspetor geral da Caixa.2” Relevante, também, lembrar a autorizacao pela Lei n° 683/1853, para criacao do Banco do Brasil, 0 que viria a ocorrer com o Decreto n® 1.223/1853, institui¢ao de crédito que retine em um centro comum 0 interesse do manufator, do comerciante ¢ do banqueiro e que se liga ao interesse governamental pelo socorro que pode prestar ao tesouro Puiblico nos momentos dificeis; estes dois interesses presidiram a cria¢ao e o desenvolvimento do Banco do Brasil.3® Relevante observar que a abertura de bancos dependia de autoriza¢ao estatal, citando-se como exemplo de instituigées financeiras privadas: O Banco Maud, o Banco Comercial do Par4, o Banco Comercial e Agricola, o Banco do Rio Grande do Sul, o Novo Banco de Pernambuco, o Banco da Bahia, o Banco Rural e Hipotecario. Re- 36 VEIGA CABRAL, Conselheiro P. G. T. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Laemmert, 1857. v. 1, p.23. 37 VEIGA CABRAL. Op. cit. p. 358. Nota: relevante observar a participacao da iniciativa privada e a ristica semelhanga com 0 BACEN de hoje. 38 Idem, p. 360. Historia das Ideias Juridicas da Administragao Publica Brasileira 313 levante destacar que também o setor agricola e de comércio e industria recebiam auxilio do Poder Publico, sobretudo através da Associacao Central de Colonizacao (cf. Decreto n° 1.584/1855). Outro aspecto importante é o referente a exploragao de recursos mine- rais, tanto diamantes, como ouro, prata, cobre, ou chumbo, as minas e “veeiros” eram objeto de concessao. J4 havia, por outro lado, uma normatizacao sobre as desapropria- es por necessidade, ou utilidade publica, cujo rol de hipéteses estava previsto na lei de 9 de setembro de 1826, prevendo-se, inclusive, a indeniza¢ao prévia.>? A época, surgiram as primeiras ferrovias no Brasil, como a D. Pedro II, a Estrada de Ferro do Recife, a Estrada de Ferro da provincia de Pernambuco, a Estrada de Ferro da Bahia a vila de Juazeiro, a Estrada de Ferro de Maué, a Estrada de Ferro Santos-Jundiai, dentre outras. A navegacao também dependia de autorizacio, como se verifica do exa- me da Lei n° 586, de 1850, que disciplinava a navega¢ao no rio Amazonas. A exploragdo dos telégrafos também era objeto de concessao estatal, disciplinada pelo aviso Imperial de 17/1/1854. 12. A Reptiblica, em seu nascedouro, representou um momento de rompimento. Rompimento com o modelo de Estado unitério, pretendendo-se ver criada uma federacdo, espelhada no modelo americano, sem a existéncia de um “Poder moderador”; rompimento com a ideia de dualidade de jurisdi¢4o; pretensao de surgimento de uma administragao mais democratica, embora, no inicio, algo mais real que efetivo. Da derrubada do regime imperial e da instituicdo da Republica pelo golpe militar de 15.11.1889 resultaram modificagdes estruturais no Estado brasileiro que implicariam radicais alteraces inclusive no sistema de controle do Poder Judicidrio sobre as demais fung6es do Estado. Com a Replica transformou-se o Estado unitdrio entao existente em Republica Federativa, com a transformacao das antigas provincias em Estados (art. 2° da Constituicéo de 1891); adotou-se governo presidencialista e instituiu-se o sistema de jurisdicao una, privativa do Poder Judiciario, com a extingao dos tribunais administrativos %® “O valor calcula-se no s6 pelo intrinseco da mesma propriedade, mas também da localidade e interesses que dela tira 0 proprietario, e é fixado por drbitros nomeados pelo Procurador da Fazenda e pelo dono da propriedade. Seo proprietério recusa receber o valor da propriedade, é levado ao Depésito Publico, por conhecimento junto ‘0s autos se adquire a propriedade; é livre as partes interpor todos os recursos legais” (idem, p. 404). 314 Historia do Direito e do Pensamento Juridico em Perspectiva * Brandéo / Saldanha / Freitas com fungées jurisdicionais;*: 4): 42.43. surgiu o controle difuso de Constitucionalidade e brotaram novos instrumentos de controle jurisdicional da Administracao Publica. Essa primeira Constituiao, no tocante ao controle judicial sobre atos legislativos (visando perquirir da harmonia destes face 4 Constituic4o), tal competéncia para exercita-lo ou ja se deduzia do modelo constitucional entao adotado foi expressamente prevista na Lei n? 221 (de 20.11.1894) cujo art. 13, § 10, estabeleceu: “Os juizes e tribunais appreciarao a validade das leis regulamentos e deixa- rio de applicar aos casos occurentes as leis manifestamente inconstitucio- nais e os regulamentos manifestamente incompativeis com as leis ou com a constitui¢ao.” Esse novo papel atribuido ao Poder Judicidrio de inspiracao norte-americana*® #® teve como seu principal defensor Ruy Barbosa, cujas ideias foram responsaveis pela es- truturaco juridica dos érgaos e instituigées puiblicas, naquele perfodo. Justificava aquele jurista o controle judicial sobre a constitucionalidade das leis argumentando nao ser 0 Poder Judiciario a anular as leis inconstitucionais; equivalendo a expresso a declarar nulo. E de salientar que o controle de constitucionalidade surge e é aceito na Primeira Repuiblica apenas sob a forma difusa incidental, com efeitos limitados ao caso concre- 4° Mesmo antes da promulgacao da Constituigéo de 1891, no perfodo de transicao entre a queda do Império, esse fato, o Governo Provisério entao instalado por forca do movimento vitorioso, editava o Decreto n® 848/90, instituidor da Justica Federal, ent@o composta de um Supremo Tribunal Federal e por Juizes inferiores intitulados JUIZES DE SECCAO, justificando-se a exposicao de motivos da citada norma do entéo Ministro CAMPOS SALES, a necessidade dessa criagdo, antecedendo até mesmo ao regular funcionamento do Congresso Federal, com o argumento de que s6 com a instituicdo daquela estariam definitivamente constituidos os trés principais, érgios da soberania nacional “e que a magistratura instalada no seria uma mero instrumento cego, ou mero intérprete na execucio dos actos do Poder Legislative. Antes de applicar a lei cabe-Ihe o direito de exame, podendo ou recusar-Ihe sangao se ella Ihe parecer conforme ou contraria lei organica [...] de resto, perante a Justica Federal dirimem-se ndo s6 as contendas que resultam do direito civil, como aquelas que mais possam resultar na elevada esfera do Direito Publico” (p. 138). ‘A doutrina brasileira tem utilizado de modo dispar as express6es unicidade de jurisdigao e dualidades de jurisdigao. Ora referindo-se ao fato de a partir do inicio da Republica nao se ter érgaos jurisdicionais inseridos na estrutura do Poder Executivo. Nesse sentido, p. ex., Moacyr Amaral Santos refere-se a unidade de Jurisdi¢ao (p. 139); ora referindo-se a dualidade no sentido da existéncia de dois conjuntos érgios judiciais nos Estados de Estrutura Federativa, nessa linha a ligdo de Castro Nunes (p. 140) ¢ 0 classico Pedro Lessa [A organizagio constitucional {federativa tem sido sempre inherente a dualidade da Justiga (p. 141)] 41 JUSTICA FEDERAL - Legislacao, Brasilia - CJF, 1993, p. 13. #2 AMARAL SANTOS, Moacir. Primeiras linhas de direito processual civil. 5. ed. Sao Paulo: Saraiva, 1977. v. I, p.77 ss. 43 CASTRO NUNES. Da Fazenda Piiblica em juizo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1950. p. 4. #4 LESSA, Pedro. Do poder judicidrio. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1915. p. 4. 45 © projeto de Constituicao de 1891 foi “baseado nas ConstituigGes norte-americana e argentina, com algumas ideias da Suica”, sendo retocado por Ruy Barbosa. Cf. Octaviano Nogueira, p. 129. 46 NOGUEIRA, Octaviano. A Constituinte Republicana. A Constituigéo de 1891. Brasilia: Fund. P. Portela, s/d. p.3. Histéria das Ideias Juridicas da Administracao Piblica Brasileira. 315 to.47, #8 $6 muito posteriormente, j4 na vigéncia da Constituicdo de 1946, é que ter-se-ia a introducao do controle abstrato de constitucionalidade. 13. Questao de grande importancia nesse periodo foi a pertinente 4 defini¢ao de instrumentos juridicos para defesa de Direitos frente a atos da Administraco. Mister se faz, entao, lembrar o desenvolvimento da chamada “Teoria Brasileira do Habeas Corpus”. Na vigéncia da Constituigéo de 1824 fora editado o Cédigo de Processo Penal de 1832, cujo art. 340 estabelecia: “Todo cidaddo que entender que elle, ou outrem soffre uma prisdo ou constrangimento illegal e sua liberdade tem direito de pedir uma ordem de HABEAS CORPUS“ em seu favor e a lei n° 2033 (20.09.1871) que previa ‘a concessao de HABEAS CORPUS’ aos que estiverem presos ilegalmente, mesmo aos detidos a titulo de recrutamento, e por determinacao de qual- quer autoridade administrativa, bem como da ameaga de constrangimento.*° Essa era a amplitude basica do instituto, ou seja, tutelar a liberdade de lo- comogao. A Constituic¢ao de 1891, entretanto, no entender de parcela significativa da doutrina, deu extensao bem maior ao instituto que aquela anteriormente aceita no Direito brasileiro. Previa em seu art. 72, § 22: “Dar-se-4 0 HA- BEAS CORPUS, sempre que o individuo soffrer, ou se achar em imminente perigo de soffrer violéncia, ou coacdo, por illegalidade, ou abuso de poder.” Em fungo dessa reda¢o defendeu-se o alargamento do instituto, que passou a se reputar como apto a amparar qualquer Direito violado, ou ameacado de violac4o por ato de Autoridade. Expressao maior dessa corrente foi, indubitavelmente, Ruy Barbosa, que, ao comentar 0 dispositivo constitucional anteriormente transcrito, lecionava: “Nao se fala em prisao, nao se fala em constrangimentos corporaes. Fala-se amplamente, interminadamente, absolutamente em coacao e violéncia, ou a coacao, por um desses meios, ahi esta estabelecido o caso constitucional do HABEAS CORPUS. Quais sAo as origens da coa¢o e da violéncia que de- ‘7 Na vigéncia da Constituicao de 1891 a estrutura da Justica Federal era composta apenas de Juizes federais das Sees (correspondentes aos Estados) e em instancia recursal, o Supremo Tribunal Federal. Em 1921, 0 Congreso Nacional, pelo Decreto-Legislativo n® 4.381, de 5.12, autorizou a criacdo de Tribunais Regionais nos moldes adotados nos EUA e na Argentina, mas tal norma ndo chegou a gerar qualquer efecto, pois o S.T. emendou 0 seu Regimento considerando inconstitucional tal previsdo legislativa. (p. 146). Posteriormente jé previsdo da criagdo dos Tribunais Regionais foi inserida na Constituigao de 1891 pela Emenda de 1926. Essa regionalizacao da instancia recursal federal, entretanto, essa modificagdo nao ocorreria na primeira fase da Justica Federal (extinta em 1937) e restaurada em 1966. Sé nessa segunda fase e apés a Constituicao de 1988 € que surgiram os Tribunais Regionais 48 Revista do Supremo Tribunal Federal, v. 24, Rio de Janeiro, 1921, p. 3 ss. LESSA, Pedro. Op. cit. p. 273. 5° Cf: REGO BARROS, Henriques do. Op. cit. p. 601. 316 — Histéria do Direito e do Pensamento Juridico em Perspectiva * Brandao / Saldanha / Freitas vem concorrer para que se estabeleca 0 caso legitimo de HABEAS CORPUS? illegalidade ou abuso de Poder.”5! Afastara-se, sem divida, o Habeas Corpus do seu sentido original* 53 passando a se prestar esse remédio constitucional 4 defesa de quaisquer Direitos e (e nao apenas o de locomogio) frente a atos de Autoridade.5* 5 Essa teoria brasileira do habeas corpus persistiria até a reforma constitucional de 1926, que dentre outros dispositivos alterou o art. 72, § 22,5 da Constitui¢ao de 1891 restringindo o bem jurfdico tutelavel pelo habeas corpus ao de Locomogdo. Tal vazio, deixa- do por essa restri¢ao, é que provocaria o surgimento (conforme ver-se-4 mais adiante) da figura do Mandado de Seguranca, que hoje representa o instrumento mais eficaz para defesa de direitos ameacados, ou violados, por ato de autoridade. Ao lado desse instituto (HABEAS CORPUS), nas primeiras décadas do periodo re- publicano, sobretudo até a entrada em vigor do Codigo Civil de 1917, foram utilizadas para defesa de direitos pessoais acdes possessérias, sobretudo nas lides envolvendo “a posse dos oficios e empregos puiblicos”.>” 14. Na Primeira Republica, intimeras dificuldades foram encontradas para o efetivo exercicio do controle judicial sobre as demais fungdes do Estado. Algumas destas, de natureza juridica, outras de questées faticas que, sem duvida, refletiram na atuag4o do Poder Judicidrio (tais como: ingeréncia politica, inexisténcia de autonomia financeira, 5! BARBOSA, Ruy. Comentarios 4 Constituigao Federal Brasileira (Coligidos por Homero Pires). Sao Paulo: Saraiva, 1934. v. V, p. 505. 52 Representando, p. ex., pelos CASES do Direito inglés que consolidaram a figura, como 0 “Thompson”, 0 “Milddleton”, o “Bagge”, sendo bem representativa do alcance do Instituto, na forma tradicional, os termos do “Writ” no primeiro caso: “VOBIS MANDAMUS FIRMITER INIUNGENTES QUOD SI PREDICTUS TOMAS TORSON E A OCCASIONE ET NON ALIA IN PRISONA DETENTUS EST TUNC IPSUM THOMAM AD LARGAM IRE PERMITTATIS QUOD QUE PREDICTUM THOMAM THOMPSON AD OFFICIUM SUUM... SINE DILACIONE RESTITATIS” (“We order, firmly enjoyining you, that if the aforesaid Thomas Tompson is detainned in prison for this reason and no other, then you shall permit the said Thomas to go at large and that you shall restore the said Thomas to his office Without delay”) (p. 139). 53 HANDERSON, Edith G. Foundation of English administrative law. Cambridge: Harvard U. Press, Mars, 1963. p. 63. 54 Vozes respeitaveis da época se insurgiram contra esse tipo de interpretacéo. Dentre estas poder-se-ia citar Pedro Lessa que a criticava ressaltando: “Manifesto erro! E exclusiva missdo do HABEAS CORPUS garantir a liberdade individual na accep¢do restricta, a liberdade physica, a liberdade de locomogao. O tinico direito em favor do qual se pode invocar o HABEAS CORPUS é a liberdade de lomogio, e de acordo com este conceito tenho sempre julgado” (p. 153) (Era Ministro do S.TF). 58 LESSA, Pedro. Op. cit. p. 289. 56 Art. 72, § 29, da C.R de 1891, com a redaco dada pela reforma de 1926: “Dar-se-ha o HABEAS CORPUS sempre que alguem soffrer ou se achar em emminente perigo de soffer violencia por meio de priso ou constrangimento illegal em sua liberdade de locomogao.” 57 GONDIM NETO, Joaquim Guedes Correia. A posse indireta. Recife: Imprensa Industrial, (1943, p. 191). De acordo com o qual séo bem representativos dessa escola Felicio dos Santos e Ruy Barbosa.

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