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APRESENTAÇÃO

Carla Conceição da Silva Paiva


Juliano José de Araújo
Rodrigo Ribeiro Barreto

A PRODUÇÃO AUDIOVISUAL CONTEMPORÂNEA é marcada por um conjunto de


obras e práticas que, embora sejam de difícil e desafiadora classificação,
revelam um intenso e instigante processo de transformações estéticas,
autorais e representacionais. Uma das motivações de tais mudanças é a
forte hibridização de gêneros e formatos decorrente da (cada vez mais)
diversificada atuação criativa de realizadores do hodiernamente estendi-
do campo do audiovisual. Nesse contexto, nota-se ainda uma indefinição
das fronteiras entre a arte e o entretenimento que tem trazido para este
último campo uma renovada valorização, inclusive acadêmica. Como se
vê nesta coletânea, além da ampliação de áreas mais tradicionais do cine-
ma ficcional e documental, o interesse dos pesquisadores amplia-se para
formas como o videoclipe, live cinema, créditos iniciais de filmes e gêneros
considerados historicamente como “menores”, a exemplo do horror e da
ficção científica.
Em paralelo a essas modificações estéticas e crescente (re)contex-
tualização analítica, a popularização de novas plataformas de exibição e
de formas de distribuição mais democráticas contribui para a criação e
mapeamento de novos lugares de inserção social e criativa. Demarca-se
assim uma conjuntura do campo audiovisual também sublinhada pela
importância política da emergência de novos atores sociais que reivin-
dicam, ativa e continuamente, espaços de visibilidade para instâncias
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antes marginalizadas, a exemplo das comunidades indígenas, antigos


povos colonizados, mulheres e indivíduos LGBTI. Esse panorama revela
uma espécie de retorno, revisita e ressignificação de questões caras ao
campo da cultura audiovisual, notadamente do cinema documentário,
ficcional e da fotografia, exploradas nos artigos selecionados para com-
por este e-book.
Em termos conceituais, uma primeira questão extensivamente ex-
plorada, nesta compilação, é o caráter altamente complexo, ambíguo e
diversificado do conceito de representação. Essa palavra de origem latina,
oriunda do vocábulo repraesentare, tem o significado de “tornar presente”
ou “apresentar de novo”, uma noção manifesta no audiovisual tanto fic-
cional quanto documental. Desse modo, tal conceito pode vir a designar
o ato ou efeito de tornar presente; significar algo ou alguém ausente; ser a
imagem ou o desenho de algum objeto ou um fato; configurar-se como a
interpretação ou a performance, através da qual a coisa ausente se apresenta
como coisa presente; e funcionar ainda como a caracterização, sempre
parcial, de uma posição ou status social.
Nos estudos audiovisuais, a representação é, normalmente, pensada
de modo semelhante às ideias apresentadas por Jacques Aumont e Michel
Marie,1 quando refletem sobre dois momentos distintos, mas interconec-
tados, da prática representacional. O primeiro deles é a encenação, aná-
loga à representação teatral, que seria a passagem de um texto, escrito ou
não, à sua materialização por ações em ambientes/ambiência definidos
por recursos cênicos; já o segundo momento é a montagem que, por sua
vez, se fundamenta desde a escolha de enquadramentos até a construção
de uma sequência editada de imagens.

1 AUMONT, Jacques e MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas:


Papirus, 2007.
Apresentação 13

Outra maneira de se pensar essa questão no audiovisual é a incidên-


cia da ideia de representações sociais que, para Denise Jodelet,2 com-
põem um sistema de “visões da realidade” definidor do próprio objeto
representado, tanto construindo consensos a respeito de determinados
indivíduos e/ou grupos quanto despertando conflitos sobre as imagens
relativas a eles. De um ou outro modo, tais representações podem guiar
as dinâmicas próprias das trocas humanas cotidianas.
Especificamente no documentário, a abordagem teórica da represen-
tação pode ser pensada, segundo Bill Nichols,3 como a possibilidade de se
estabelecer pontos de vista acerca do mundo a partir de seis principais es-
tilos ou modos de construção da realidade: expositivo, poético, observati-
vo, participativo, reflexivo e performático. É pertinente observar que cada
uma dessas vertentes de realização documental permite estudar o campo
do audiovisual de não ficção tendo em vista as relações entre tradição e
transformação, já que, como nos lembra Nichols, cada um dos estilos ou
modos sempre esteve presente na história do filme documentário e, além
disso, alguns filmes podem, às vezes, mesclar os diversos modos. Como
exemplo, é possível mencionar as produções documentais nas quais se
faz fortemente presente a subjetividade dos cineastas, questão negada no
documentário expositivo e assumida nos estilos participativo, reflexivo e
performático; a encenação, empregada na vertente expositiva quando era
feita por atores nativos, e que ganhou novas feições nas tendências parti-
cipativa e performática; ou ainda o caráter ensaístico dos estilos poético
e reflexivo etc.
Com relação à questão da autoria, os artigos presentes nesta coletânea
representam esforços de pesquisa que, diante de formatos culturais com-
pósitos e/ou de divulgação em massa, buscam fazer jus à determinação

2 JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão. In: JODELET,


Denise (org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001.
3 NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. 3ª ed. Trad. Mônica Saddy Martins.
Campinas: Papirus, 2008, p. 135-177.
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complexa e matizada daquelas figuras e instâncias mais proeminentes e


prontamente responsáveis pela determinação de sentido das obras trata-
das. Desse modo, reafirma-se – de maneira pragmática e entremeada por
outras preocupações analíticas – a relevância atual de abordagens auto-
rais que contemplem não somente as contribuições de profissionais de
diferentes áreas de atuação (artistas musicais e multimídia, VJs, diretores/
as, produtores/as, editores/as, compositores/as, diretores/as de arte e ce-
nografia etc.), mas também a emergência das vozes e do fazer artístico de
grupos identitários histórica e correntemente alijados do campo audiovi-
sual dominante.
Ao enfocarem as especificidades de diferentes contextos culturais e
produtivos, os textos deste livro transitam entre os modelos gerais que
Richard Dyer4 propôs a respeito da natureza colaborativa do cinema: 1)
autoria individual, sublinhando usualmente o papel do diretor; 2) au-
toria múltipla, reconhecendo diferentes aportes autorais (diretor/a,
produtor/a, roteirista, atores/atrizes, profissionais de câmera etc.), que
poderiam ou não estar em harmonia; 3) autoria coletiva, que destacaria
a cumplicidade e autoria de um grupo de profissionais trabalhando em
sintonia e, 4) autoria corporativa, atribuída às estruturas organizacio-
nais (estúdios, Hollywood) ou sociais que geram as obras. Efetivamente,
percebe-se – através da leitura dos artigos selecionados mais diretamente
voltados à questão – uma ampliação e um aprofundamento acerca de tais
categorias, uma vez que eles empreendem as tarefas de identificação dos
tipos de atribuições solicitadas pelo campo produtivo ou de análise do
grau de responsabilidade criativa dos realizadores nas obras estudadas.
A partir desse breve apanhado conceitual, o e-book teve definidas as
suas seções. A primeira delas, intitulada “Identidade, cultura e represen-
tação no audiovisual”, traz um panorama de investigações – em obras de
formatos e gêneros diversificados – de questões relacionadas, socioeco-
nômicas, religiosas, nacionais, histórico-biográficas e genérico-sexuais.
4 DYER, Richard. Stars. Londres: BFI, 2003, p. 151-152.
Apresentação 15

O texto inicial, “Notícias de uma guerra particular: violência no contexto bio-


político do estado de exceção”, escrito por Adriane Bagdonas Henrique,
investiga como o filme Notícias de uma guerra particular (João Moreira Salles
e Kátia Lund, 1999) representa a violência e a opressão simbólica, desta-
cando as tensões estabelecidas nas relações entre policiais, traficantes e
moradores de favelas. No artigo seguinte, Alexsânder Nakaóka Elias, em
“Imagem e memória: por uma reconstrução do Budismo Primordial”, re-
corre à utilização das imagens fotográficas para reconstruir, através de te-
óricos da antropologia visual, a memória da comunidade budista japonesa
Honmon Butsuryu-shu (HBS). Já em “Cinema brasileiro ‘para gringo ver’:
sobre a seleção de filmes nacionais sugeridos nos guias da Lonely Planet”,
Carla Conceição da Silva Paiva analisa os tipos de representação da identi-
dade cultural brasileira traçados a partir dos cinco filmes mais citados nas
edições dos referidos guias. No artigo “Práticas corporais do tango no
cinema mudo argentino (1900-1933): estudo preliminar”, Natacha Muriel
López Gallucci aborda representações do tango nas produções fílmicas
argentinas do período mudo, nos aspectos da especificidade técnica, dra-
matúrgica e gestual desse estilo de dança. Por sua vez, em “Imagens de
Lumumba: fantasmas da colonização no Congo (RDC)”, Emi Koide avalia
a construção da imagem e da representação da história do líder congolês
Patrice Lumumba nos filmes Lumumba – La mort du prophète (Raoul Peck,
1992) e Spectres (Sven Augustjnen, 2011). Em seguida, em “Representações
da cultura brasileira no cinema documentário: relações entre o IEB e a
Caravana Farkas”, Jennifer Jane Serra trata a produção e coprodução de
filmes pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo
investigando suas possíveis influências no pensamento de documentaris-
tas, como Geraldo Sarno e Sérgio Muniz, em filmes do projeto que ficou
conhecido como Caravana Farkas. No próximo artigo, “Deslocamentos
profanos: imagem sonora e humor na construção de dois filmes antina-
zistas”, João Paulo Putini investiga os modos de apropriação de imagens
de arquivo e estratégias de montagem e som nos filmes Germany calling/
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The Lambeth Walk (Charles Ridley, 1941) e Human remains (Jay Rosenblatt,
1998) com o propósito de construir sátiras de Hitler e do regime nazis-
ta. Ainda nessa seção, no texto “Futebol e documentário: uma discussão
a partir dos filmes Subterrâneos do Futebol e Raza Brava”, Marcos Américo
enfoca as representações construídas sobre o futebol nessas duas obras.
Encerrando esse seguimento, em “Mulheres-sujeito e homens-objeto
nos videoclipes: a erotização masculina nos videoclipes como forma de
afirmação feminina e questionamento da heteronormatividade”, Rodrigo
Ribeiro Barreto analisa a objetificação masculina nos videoclipes Cherish
(Herb Ritts/Madonna, 1989) e Slow (Baillie Walsh/Kylie Minogue, 2003),
nos quais identifica uma inclinação progressiva e até contestadora de pa-
drões sexistas e heteronormativos.
A segunda parte do livro, denominada “Tradição e transformação no
cinema documentário”, reúne textos que se dedicam ao estudo de ins-
tâncias realizadoras – individuais ou coletivas –, o impacto da técnica
sobre a produção documental, a influência de vertentes específicas do
gênero ou de condições sociopolíticas. O artigo “Entre o documentário
autobiográfico e o filme-ensaio: os documentários de Ross McElwee”,
de Gabriel Tonelo, apresenta a carreira de McElwee como um processo
autobiográfico contínuo que garantiu a singularidade do estilo do di-
retor. Complementando essa discussão, Viviana Echávez Molina, em
“Filmagem em solitário no cinema direto”, pondera sobre a importân-
cia de elementos técnico-expressivos na constituição de Sherman’s March
(Ross McElwee, 1986), obra realizada por uma “equipe de um homem
só”. Também com enfoque na instância realizadora, Gustavo Soranz, em
“Aproximação a um objeto de estudo ou o que há em Trinh T. Minh-ha
para além de Reassemblage”, traça relações entre o referido filme e o texto
“The totalizing quest of meaning”, evidenciando os princípios do projeto
crítico-cinematográfico dessa cineasta. Em seguida, é contemplada a pro-
dução coletiva no artigo “Cidades, pessoas e sociabilidades em documen-
tários de periferia”, de Gustavo Souza, que se debruça sobre a escolha do
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cotidiano como tema em produtos de oficinas audiovisuais, verificando


o desdobramento discursivo-político materializado nos filmes. Isabel
Anderson Ferreira da Silva, por sua vez, no artigo “Os documentários dos
anos 1950 da DEFA”, dedica-se ao estudo de alguns filmes da única em-
presa de produção audiovisual da República Democrática Alemã, revelan-
do um campo de forças pautado pela propaganda governamental, pelo
temor do Ocidente e pelas influências do cinema russo. Posteriormente,
em “Ética, estética e política no documentário Duas aldeias, uma caminha-
da”, Juliano José de Araújo discute as especificidades éticas, estéticas e
políticas deste trabalho dos cineastas indígenas Ariel Ortega, Germano
Beñites e Jorge Morinico. O próximo artigo, “O autor, a criança e o fato
histórico em Nascidos em bordéis e Promessas de um novo mundo”, de Letizia
Osorio Nicoli, propõe uma comparação entre a concepção dos seus rea-
lizadores com o cinéma-verité e o documentário contemporâneo. Natalia
Christofoletti Barrenha, em “Silêncios históricos e pessoais: memória e
subjetividade no documentário latino-americano contemporâneo”, refle-
te sobre os vínculos entre história, memória e subjetividade em Cuchillo
de palo (Renate Costa, 2010), Sibila (Teresa Arredondo, 2012) e Os dias com
ele (Maria Clara Escobar, 2013). Depois, no artigo “Considerações sobre
o acaso e a contingência em documentários”, Sabrina Rocha Stanford
Thompson aponta a presença do acaso na história do documentário e até
em momentos do cinema ficcional.
A terceira e última seção, denominada “Abordagens estéticas, auto-
rais e críticas na contemporaneidade”, engloba trabalhos acerca da crítica
jornalística de filmes, construção autoral da ficção, gêneros cinemato-
gráficos e o caráter performático/performativo do audiovisual. No artigo
“Contracampo, Cinética e Cinema em Cena: expoentes da crítica cinematográ-
fica na internet”, Álvaro André Zeini Cruz traça um breve panorama da crí-
tica cinematográfica das revistas Contracampo e Cinética e no site Cinema em
Cena. Por sua vez, Cássia Takahashi Hosni, em “Autoria e acaso na obra de
Cao Guimarães”, faz algumas reflexões sobre autoria e acaso na produção
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do referido cineasta. O texto seguinte, “Análise da trilha musical do fil-


me O fabuloso destino de Amélie Poulain”, de Duana Castro Soares, aponta
a função e a relação da música com a ambientação do cenário e a cons-
trução psicológica e sentimental da personagem Amélie. Em “Gêneros
de Cronenberg: horror ou sci-fi?”, Lillian Bento analisa a incidência e o
entrecruzamento dos gêneros horror e ficção científica no cinema do di-
retor canadense David Cronenberg. Já em “Relações audiovisuais nas se-
quências de créditos da franquia 007: estudo sobre os filmes Casino Royale,
Quantum of Solace e Operação Skyfall”, Lilian Reichert Coelho estuda as mo-
dificações radicais introduzidas na abertura dos filmes indicados no título
em relação às produções anteriores da série. Por sua vez, Luciano Ramos,
em “Memória e imaginação no tratamento cinematográfico da história:
estratégias narrativas no cinema de Ugo Giorgetti”, analisa a construção
ficcional no filme Cara ou Coroa (2012) do diretor paulista. Em seguida,
Régis Orlando Rasia, em “Cartografias do audiovisual: velhas histórias
em novas plataformas”, apresenta uma plataforma interativa, estruturada
como linha do tempo e criada com propósito didático. O próximo texto,
intitulado “Cinema em Circuito Fechado: tendências do Live Cinema”, de
Rodrigo Corrêa Gontijo, define uma das tendências do Live Cinema, através
de características textuais, altos níveis de performatividade e uma estética
de captação de imagens, segundo a técnica de camera-specific. Depois, Sara
Martín Rojo, em “O ator como elemento principal da mise en scène”, desta-
ca a importância do ator para a mise en scène particular de Michael Haneke.
Por fim, Thiago Soares, em “O ato performático como gênese do video-
clipe contemporâneo”, debate o estatuto e a formatação performática do
videoclipe no âmbito do mercado musical.
Assim, esta coletânea foi guiada pelo propósito de contemplar diver-
sificadas possibilidades cognitivas de imagens fixas e animadas, as quais
são tão largamente investigadas no campo das artes e das ciências huma-
nas e sociais. Desse modo, resta aqui a expectativa de oferecer um painel
contemporâneo de análises audiovisuais, relações intermidiáticas e novas
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formas de apropriação de imagens que seja capaz de interessar e moti-


var pesquisadores e pesquisadoras do audiovisual, quer estejam voltados
para a fotografia, para o cinema, para o vídeo ou ainda para quaisquer de
suas possíveis interseções. Por fim, é importante destacar o diálogo do
Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Unicamp com pesquisa-
dores das universidades estaduais de São Paulo (USP e Unesp), e federais
da Paraíba (UFPB), Rondônia (UNIR) e São Carlos (UFSCar), cujos artigos
também se fazem aqui presentes.
Campinas, novembro de 2013

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