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Ler a literatura lispectoriana pode parecer, a princípio, conflitante, visto que buscamos
perceber nela as marcas da teatralidade, em fragmentos dos contos de A Via Crucis do Corpo,
sendo a teatralidade aqui, vista como materialidade, fisicalidade, apelo aos sentidos. Para
tanto, tomamos como base a construção literária e o universo ficcional nas narrativas do
referido livro. O conflito dramático é sustentado, especialmente, por considerarmos a escrita
de Lispector árida, e apresentar, incompletude nos enredos e nos diálogos. A sua escrita é um
campo fértil de subjetividade, que por sua vez foi e é bastante explorada pela crítica
especializada. Daí, pode-se dizer que as narrativas escolhidas são oportunas para alcançar o
foco deste estudo.
Aqui a relação entre texto e teatralidade se dá simultaneamente por meio da
dependência e autonomia das ações vividas pelas personagens, pois a força de uma polaridade
entre os elementos cênicos (gestuais) e linguísticos (verbais) e a importância do espaço
ficcional e do imaginário é dada e completada pelo leitor/encenador.
O leitor/encenador apresenta-se como um co-criador, perpassando o texto-referência e
abrindo possibilidades no interior e exterior de cada conto. Assim, o texto-cênico, quando
parte do extrato literário, permite ao leitor-encenador retomar, sempre que possível aos
estágios do texto. Para Maingueneau:
Segundo esse raciocínio, o texto passa a se constituir como uma dupla natureza. A
ideia de conjunto – estrutura textual – divide lugar com a ideia de texto – simulacro – espaço
– figurado. Todo texto dirige-se sempre a um outro, o outro do texto.
Entretanto, mesmo percebendo que sua produção literária renuncia a síntese e subsidia
a pluralidade de modo excessivo, há na obra clariceana uma tensão, concentração capaz de
intensificar os sentidos em jogo por parte do leitor-espectador. Isso é visto desde o seu
primeiro romance, Perto do Coração Selvagem (1944), porque a teatralidade já aparece de
maneira implícita ao tema. Concomitante à “crise da representação” que traz para a escrita
uma diferente forma de preocupação com o ato de escrever, surge o recurso do fingimento
abrindo espaço para a representação do real entremeada pela experiência ficcionalizada. Ou,
mesmo, em algumas situações, assume-se a própria experiência como premissa norteadora da
realidade aparente do mundo e dos acontecimentos.
Assim, podemos salientar que a teatralidade como fisicalidade, é perpassada aqui, pela
mimese e pela diégese, marcando uma discussão no que tange ao parateatral (ato de
mascaramento, de fingimento) da escrita Lispectoriana. Vale dizer que, neste estudo, a
questão é entendida a partir da ideia platônica e aristotélica no que se refere ao modo de
criação e legitimidade do artista/criador. Contudo, em Clarice ocorre sempre uma hibridização
entre os gêneros e as formas.
Nas narrativas de Clarice, percebermos que a identidade das figuras dramáticas
apresenta-se como uma desconstrução do sujeito/personagem, que se encontram situadas em
não-lugares. Por isso, é importante destacar que a teatralidade percebida nas obras da autora
antecede à própria ideia de escrita, demarcando com isso, o seu próprio campo de atuação
cênico-representativa dentro da narrativa-drama. Pode-se dizer que a teatralidade, aqui, se
refere ao mítico, à fisicalidade, à dramaticidade, à memória, ao mnemônico, à representação, à
encenação, sendo esta última parte da criação de uma imagem sempre incompleta do sujeito,
em sua duplicidade.
A noção do desdobramento do sujeito em A via crucis do corpo (1998), se apresenta
relacionada à concepção divina e ao duplo criador/criatura. É como se Deus, consciência
absoluta, criasse o universo para nele se refletir. Além disso, há a crença na vida após a morte,
em que se considera que a alma sobrevive ao aniquilamento do corpo. Esse é o paradigma da
duplicidade, e um dos fundamentos das tradições religiosas. Assim, a morte representa o
desejo de sobrevivência. A partir disso, supomos que a ideia de vida após a morte é um
conhecimento sagrado antigo, a partir do qual, sustenta-se a tese de que a alma está protegida
do aniquilamento do corpo. A alma é o duplo inquebrantável do corpo. O desdobro do sujeito
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é entendido também por meio do paradigma ternário sobre o qual se apoia, principalmente, a
religião cristã. O duplo corpo/alma junta-se ao espírito, que se diferencia da alma. O próprio
Deus seria ternário, Pai, Filho e Espírito Santo. Deus cria o homem para também o ser: pai,
mãe e filho. Formando a família que também é ternária. Contudo, em Clarice a personagem é
sempre encarada do ponto de vista da criatura imperfeita, frágil, vulnerável, longe de sua
semelhança com o criador. Tais figuras se deixam levar pelo corpo como única possibilidade
de redenção e de conhecimento.
Segundo Bravo (1998), a partir do final do século XVI, o duplo começa representando
o heterogêneo. Por volta do século XVIII, no Romantismo, surge a figura do “Doppelganger”,
ou seja, aquele que caminha ao lado. No século XX, a problemática do duplo permanece
ligada ao aspecto do heterogêneo, alcançando seu apogeu no século XIX. Vale lembrar que o
duplo pode simbolizar também um rival, e, na visão psicanalítica, pode representar o
narcisismo, aquele cujo egoísmo é exagerado, – egocêntrico. O Narcisismo pode ser
compreendido, também, como a qualidade de Narciso; aquele que trata seu corpo da mesma
maneira pela qual o corpo de um objeto sexual é tratado. A temática do duplo vem sendo
amplamente trabalhada em diversos campos epistemológicos, inclusive na literatura,
prolongando-se até o final do século XVIII e início do século XX. O mito do duplo se
apropria, através da comédia, das lendas heroicas, dos romances, dos contos e muitos outros
gêneros.
Oscar Wilde explorou o tema do desdobramento na representação do personagem
Dorian Gray e seu retrato, o qual se apresenta como original e duplo de Dorian. Devido a um
desejo do personagem em ficar sempre jovem, Dorian faz um pacto diabólico para que ele não
envelhecesse, mas, sim, o seu retrato é que envelheceria. O seu desejo o caracteriza como um
narcisista introvertido. Nesse caso, o duplo forma-se a partir de um eu original – Dorian – que
procura a sua metade faltante, mas não consegue realizar seus ideais, não obtendo, assim, o
seu desejo narcisista.
Esse tema, recorrente na literatura, manifesta-se por meio de vários símbolos, como o
espelho, o outro, o olhar, o retrato e outros; e se expressa em toda a estrutura narrativa
apresentada, na construção de personagens, do espaço, do ambiente na linguagem, entre
outros. E, em Clarice a problemática do desdobramento do eu é presente. Como exemplar
citamos. A obra Laços de família, visto que suas personagens apresentam um desconforto e
insatisfação, pois se voltam introspectivamente para suas vidas, despertando para sua
condição de sujeito, mostram, então, a identidade esfacelada, duplicada, sufocada pelas
fronteiras do lar. Trazer o conto de Clarice que representa a utilização do duplo.
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Essa incapacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu, por instinto
de…de que? Procure um modo de falar que me leve mais depressa ao
entendimento. Esse modo, esse “estilo” (!), já foi chamado de várias coisas,
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Assim, o estágio primitivo da escritura que lida constantemente com algo que a
ultrapasse, exige por parte do leitor atenção sobre a releitura interna da obra, realizada
paralelamente à consolidação das personagens dos contos da obra referendada, pois sempre
incompletas podem ser teatralizadas pelo leitor através dos recursos linguísticos utilizados
pela escritora. Para Bosi (1975):
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A prosa de Clarice faz-se aos poucos, move-se junto com os seus exercícios
de percepção, e tateia, e não pode nem quer evitar o lacunoso ou o difuso,
pois o seu projeto de base é trazer às coisas a consciência, a consciência a si
mesma. (BOSI, 1975, p. 20).
Com base no discutido acima, vê-se que a narrativa da autora não apresenta eixos
fixos, pois sua estrutura se caracteriza pela condensação dos fatos e seu modo de narrar. Vale
salientar que esse tipo de narrativa apresenta um tratamento estético específico, pois estrutura-
se geralmente na psicologia de seus personagens, desenvolvendo uma dramaticidade, ou
melhor, uma teatralidade na escrita.
A nova perspectiva contribuiu para que a ficção de Lispector se tornasse tão
representativa em nossa literatura. Tal como apresenta Rosenbaum (2002), a autora é
reconhecida internacionalmente como um dos maiores nomes da literatura brasileira do século
XX. E, como a teatralidade vem ganhando destaque na modernidade, importante se faz
discutir sobre esse tema nos seus contos, visto que a autora vem tematizando à dramaticidade
nas suas narrativas; daí a importância de conhecermos como isso se apresenta na construção
das suas personagens.
A especificidade no modo de compor as narrativas literárias, aproximou as produções
estéticas de Lispector, com as de Woolf e Joyce, essa aproximação se deu por intermédio da Commented [DU4]: E nos contos??? Como acontece????
crítica, que por sua vez, foi justificada, inibindo a realização de uma leitura sob via negativa
das obras da autora e, mesmo assim, favoreceu a exploração do lado intimista de sua escrita,
retirando-a às vezes do seu próprio tempo de realização. Pois o tempo que prevalece nas
escritas de Lispector é o psicológico, por isso, o enredo não se esgota na subjetividade da Commented [DU5]: Tempo psicoló
escritora, muito menos no processo epifânico no qual sua obra em sua maioria é refletida.
Vemos que em “Explicação”, de A Via Crucis do Corpo de Clarice, os treze contos
que fazem parte dessa obra são precedidos por uma explicação da autora. Essa explicação é
considerada como parte de nossa análise, visto que já percebe-se indícios da dramaticidade na
linguagem da escritora. O título foi recebido como escandaloso pela crítica que classificou
como "obra menor", "desvio" e até mesmo literatura "lixo", quando comparada às demais
publicações da autora.
Lispector afirma que as histórias foram feitas sob encomenda e, que, contrariando sua
vontade inicial, aceitou a tarefa por puro impulso. É tanto que, tentou assiná-la com o
pseudônimo Cláudio Lemos, mas acabou mesmo que implicitamente apresentando o Commented [DU6]: Assumir a máscara de um outro.
argumento de que deveria ter liberdade para escrever o que quisesse. E foi o que aconteceu.
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Mas registrou: "Se há indecências nas histórias a culpa não é minha. Inútil dizer que não
aconteceram comigo, com minha família e com meus amigos." (LISPECTOR, 1998, p.11).
Ao longo das discussões, vê-se que por meio de processos de simulação e de
dissimulação – bem como, da dramaticidade da linguagem, a escritora se coloca criticamente
perante os editores que encomendaram os textos. “O poeta Álvaro Pacheco, editor na
Artenova, encomendou três histórias que, disse ele, realmente aconteceram. Os fatos eu tinha,
faltava a imaginação.” (LISPECTOR, 1998, p.11). Esse termo “imaginação”, esse
posicionamento de Pacheco remete à ideia de que as personagens de Lispector vivenciam um
drama que perpassa o palco, pois a teatralidade em suas narrativas ação/pensamento aparece
através de um diálogo que, ora pode ser em forma monológica, ora de solilóquio1, pois no
imaginar subtende-se que se utiliza o pensamento. (LISPECTOR, 1998).
Em Clarice, o dialogo aproxima o leitor à história, ampliando a sua busca. Sendo esta
“busca” representativa da transição, entrega absoluta à fisicalização da linguagem. Assim, a
experiência com a palavra surge, dessa forma, a partir de uma organização proposital de
torná-la plástica, ou melhor, visível, sonora, auditiva, olfativa, tátil. Daí, a dificuldade de se
ler as narrativas lispectorianas levando-se em conta apenas os seus aspectos estruturais. O uso
‘da’ e ‘com’ na linguagem evidencia a especificidade de narrar clariceana, que se sustenta na
problematização e conscientização em relação à linguagem: o espetáculo escritural da autora.
A partir do engendramento de um discurso híbrido, Lispector mostra-se não só como
escritora, mas também como um dos atores/personagens que, trilha a via crucis, ou melhor, o
percurso da palavra-corpo, pois ela consegue encenar e se inscrever na escrita.
1 O diálogo monológico, aqui se refere ao discurso em que as personagens conversam consigo mesma. Já o
discurso solilóquio é um discurso ininterrompido, isto é, que não incita nem permite que um interlocutor
participe ou responda. Isto é, trata-se de uma declamação subjetiva de caráter psicológico.·.
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Quando era pequena, com uns sete anos de idade, brincava de marido e
mulher com seu primo Jack, na cama grande da vovó. E ambos faziam de
tudo para ter filhinhos sem conseguir. Nunca mais vira Jack nem queria vê-
lo. Se era culpada, ele também o era. Solteira, é claro, virgem, é claro.
Morava sozinha numa cobertura em Solo. Nesse dia tinha feito suas compras
de comida: legumes e frutas. Porque comer carne ela considerava pecado.
(LISPECTOR, 1998, p.13).
A teatralidade aqui é vista por representar uma cena em que a fisicalidade está
presente, a personagem sentiu o corpo do primo. Além disso, podemos dizer que a narradora
cria papéis marido/mulher, assim como em uma peça de teatro. Daí, mais um indício da
presença da máscara na dramaticidade da protagonista.
A dramaticidade que se apresenta internalizada pela protagonista no dia em que
aconteceu é externalizada, pois vivencia/age a relação sexual de verdade. Dessa forma, a Commented [DU7]: Reescrever.
forma de vento: - Eu sou eu.” ( LISPECTOR,1998, p.16). Miss Algrave prefere o verbo a
Bíblia, pela ação/experiência, pelo contato da carne. Assim, podemos dizer que em A Via
Crucis do Corpo a ligação que assinala a palavra para devolvê-la em protesto é o corpo em
sua realidade visual, sonora e tátil, aspecto advindo não apenas explicitamente da temática,
como um conjunto de referências que permeia toda obra, citemos algumas como exemplar:
“Bruno Giogi”,(p.43), “Valsa Triste de Sibellis”,(p.49), “Os três mosqueiteiros”, (p.22). O
que essas referencias tem a ver??????????
Percebemos, além disso, que a introspecção psicológica serviu para Miss Algrave
descobrir o seu eu, ou melhor, constituir-se enquanto ser social. Para Canaan: “Longe de
arrogância, Clarice parece procurar traduzir com isso a dificuldade e, seu caso, o talento, no
trato da linguagem.” (CANAAN, 2003, p. 19). O drama na literatura da autora se apresenta
em forma da diégese e da mimese, além de ser percebido através de elementos linguísticos
presente no corpo da narrativa. Por isso, é: “Inútil querer me classificar: eu simplesmente
escapulo não deixando, gênero não me pega mais.” (CANAAN, 2003, p. 19). É realmente nos
‘escapulos’ presentes na escrita lispectoriana que se pode verificar que há uma interpelação
entre o dito e o não dito.
O fingimento de Miss Algrave em não gostar de sexo parece ser uma forma de atuar
no mundo, ou mesmo uma possibilidade de encontro consigo mesma. O reconhecimento da
personagem enquanto sujeito, que sente desejo carnal revela a sua teatralidade, pois Clarice
consegue criar uma imagem da protagonista por meio da encenação: “Antes compraria o
vestido vermelho decotado e depois iria ao escritório chegando de propósito. [...] E falaria
assim com o chefe: - chega de datilógrafa! [...].” (LISPECTOR, 1998, p.20). Aqui, cabe
retomar a acepção da palavra “drama” apresentada por Stanislavski:
A vida é ação. Por isso é que a nossa arte vivaz, que brota da vida, é
preponderantemente ativa. Não é sem motivo que nossa palavra ‘drama’ é
derivada da palavra grega, que significa ‘eu faço’. Em grego, isso se refere à
literatura, à dramaturgia, à poesia e não ao ator ou sua arte. Ainda assim
temos muito direito a nos apropriar dela. (STANISLAVSKI, 1999, p.69).
iniciar os contos de A Via Crucis, a autora diz ser inútil que os fatos não aconteceram com ela.
“Inútil dizer que não aconteceram comigo...”. (LISPECTOR, 1998, p.11).
As narrativas de Clarice convoca o leitor a adentrar/atuar como leitores/atores/autores
na via crucis da linguagem. Observamos ao final da narrativa que a escritora mostra Maria
Angélica de modo dual, mesmo a escrita apresentando cuidadosamente os fatos, marcando
pessoa, tempo, e espaço, o desenlace da história não é fechado, mas múltiplo, dependendo do
olhar do leitor. No que se refere ao assunto discutido no teatro escritural desse conto, pode-se
dizer que é focalizado, o relacionamento amoroso, o sexo, os desejos, a velhice, o preconceito
e as convenções sociais. Fechar com alguma característica da teatralidade.
preto sugere tristeza, luto, morte. Há toda uma representação que sai do diegético (narrado)
para o mimético (representado). Pois, percebe-se que há um narrador, bem como uma
imitação do que acontece quando morre alguém querido, consegue-se ultrapassar o plano do
narrado para o cênico, o teatral, o gestual. A teatralidade é vista como repleta do gesto social e
político, citamos como exemplar o fragmento abaixo:
corporal, escritural. No entanto, se o corpo liberta, ele também pode delimitar o campo de
atuação de cada personagem, caracterizando-se como marcação teatral criada pela narradora
como artifício para focalizar e apreender os pormenores dos atos encenados na escrita.
O fragmento acima apresenta a encenação de Maria das Dores para convencer seu
esposo da maternidade concebida por Deus. Aqui, observa-se que a protagonista passa a ser
vista como sendo “mãe do Salvador”, e seu esposo desempenha o papel de São José.
Por meio da voz das personagens, pode-se sugerir que há um entrelaçamento de vozes
na narrativa, isso, por compreendermos que o narrador apresenta-se como um sujeito autoral,
pois seu discurso está imbuído de autoridade, caminhando por esse raciocínio e com base na
dicotomia sagrado X profano, podemos dizer que a personagem Maria das Dores cria uma
máscara para dar significação à maternidade do suposto Messias. “Em casa encontrou o
marido lendo jornal e de chinelos contou-lhe o que acontecia. [...] – então eu sou São João”.
(LISPECTOR, 1998, p. 30). Commented [DU8]: Conferi todas as citações.
variados sentidos, devido à pluralidade que a corporifica. A simbologia da via crucis escritural
torna-se uma alegoria da construção da obra A Via Crucis do Corpo.
Vemos que, o desdobramento da polifonia utilizado pela autora nas falas das
personagens, se ligam através do processo de (dis)simulação. Podemos, aqui fazer uma
analogia com o que Bakhtin (1997) vem chamar de o “grande diálogo”. Vemos que toda essa
narrativa é perpassada pelo discurso polifônico, isso é percebido, como já dito anteriormente,
através do uso da rubrica empregada pela escritora.
Nesse conto vê-se que a polifonia possibilita a problematização do narrar, visto que
além da condição de escritor (a), a autora faz uso da falácia da representação da linguagem.
CONCEITO DE POLIFONIUA. CITAR. Suscita também, o ato de narrar e o jogo narrativo,
apresentando distintos aspectos da enunciação. Esse jogo polifônico ocasiona uma visão
perturbada na narradora. Assim, é posta em questão, no espetáculo narrativo os interesses
autorais da escritora.
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À porta ele beijou minha mão. Acompanhei-o até o elevador, apertei o botão
do térreo e lhe disse: vá com Deus, pelo amor de Deus. O elevador desceu.
Entrei em casa, fui fechando as luzes, avisei minha amiga que logo em
seguida saiu, mudei de roupa, tomei remédio para dormir – e me sentei na
sala escura fumando um cigarro. (LISPECTOR, 1998, p. 39-40).
autobiográfica, e por outro lado, vê-se nele um entrelaçamento de relatos, trazendo o que
podemos denominar “entre-lugar.
O conto “Ele me bebeu,” que faz parte do livro A Via Crucis do Corpo (1998), a
tensão da trama começa quando os personagens Aurélia e Serjoca conhecem Affonso
Carvalho, um industrial da metalúrgica, que desperta interesse sexual de ambos. Aurélia, ao
conhecer o industrial, começa a nutrir grande desejo pelo homem. “– para onde vocês querem
ir? – Não temos propriamente destino, disse Aurélia cada vez mais acesa pela cara mácula de
Affonso”. (LISPECTOR, 1998, p.42).
Uma questão central presente nesse conto é a dualidade entre essência e aparência,
pois o signo da maquiagem é elemento instigador da cisão eu/não eu. Aurélia é enganada pelo
amigo Serjoca, dono do salão de beleza; o que constatamos nessa fala da narradora: “Daí a
pouco ele me tira também o peso, pensou.” É interessante notar que, as imagens visualizadas
pela personagem ao longo de todo o conto “Ele me bebeu” põem em cena sua duplicidade.
(LISPECTOR, 1998, p. 44). Isso, porque quando maquiada a personagem não era mais ela, e
sim, uma outra.
A narradora relata uma história de uma mulher que é enganada por um suposto amigo,
usando a maquiagem como recurso para transfigurá-la. Trata-se de uma teatralidade vivida
por três personagens: Aurélia, Serjoca e Affonso. Este último, só aparece na trama quando os
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dois amigos estão esperando um carro. “Eram quase sete horas. Escurecia. O que fazer? Perto
deles estava Affonso Carvalho. Esperava a sua Mercedes com chofer.” (LISPECTOR, 1998,
p. 41).
Supostamente, a aflição da protagonista era porque iria se atrasar para o seu trabalho,
ou porque os calos da ‘vida dura’ que levava estavam lhe incomodando. Isso pode ser
observado quando, no conto, Affonso pergunta o destino dos dois e Aurélia responde que eles
não têm destino, é como se essa mulher se encontrasse desnorteada, ou melhor, sem rumo. “–
Não temos propriamente destino.” (LISPECTOR, 1998, p. 42). A personagem é descrita nesse
conto como uma mulher bonita, “Aurélia era bonita e, maquilada, ficava deslumbrante.”
(LISPECTOR, 1998, p. 41). No entanto, insatisfeita com o seu aspecto físico, acaba se
transfigurando com próteses. Constatamos na narrativa, que a personagem mostra-se inquieta
sobre o si mesma:
A preocupação de Aurélia em ser uma mulher atraente constitui seu drama, pois, na
busca por uma imagem ideal, experimenta a tirania narcísica da maquiagem e de outros
adereços artificiais, como cílios e seios postiços, bem como o uso de lentes de contato, mas é
a maquiagem o signo do seu teatro. Nessa atitude, a personagem perde a naturalidade
feminina e constrói uma identidade muita próxima da travesti.
Temos aqui, um jogo de aparências, de enganos, simulações e dissimulações que
visam velar o próprio rosto. A sedução pertence à ordem do ritual, o que se percebe no jogo
de sedução que envolve Aurélia, Serjoca e Affonso. O segundo se desprende desses artifícios,
contrariando a lógica da sedução, e por isso levando vantagem. Atrás da imagem de
autossuficiência existe uma dependência da confirmação do outro. Bastava telefonar para o
cabeleireiro que vinha às pressas. “[…] Aurélia telefonou para Serjoca: precisava de
maquilagem urgente. Ele foi a casa dela.” (LISPECTOR, 1998, p. 43). Commented [DU9]: Repetiçào.
se profundamente. Mas ela não era mais nada.” (LISPECTOR, 1998, p.43). O reflexo no
espelho serviu para a protagonista como aviso sobre o que estava acontecendo com ela.
Aurélia tardou para saber que a sua bengala, Serjoca, não era um amigo de verdade,
pois ele estava sempre procurando desnudá-la, ou melhor, desfigurá-la a ponto dessa moça
não saber quem realmente era:
O que fazer para recuperar o que fora seu? A sua individualidade? Saiu da
banheira pensativa. Enxugou-se com uma toalha enorme vermelha.
Sempre meditativa. Pesou-se na balança: estava com bom peso. Daí a
pouco ele me tira também o peso, pensou. Foi ao espelho. Olhou-se
profundamente. Mas ela não era mais nada (LISPECTOR, 1998, p.44).
caminho amoroso dele. “E Serjoca mudo. Estava também aceso por Affonso”. (LISPECTOR,
1998, p. 43).
O silêncio apresenta-se para Serjoca como forma de apresentar a sua sensualidade a
Affonso, e o modo de planejar as armadilhas para separar Aurélia do seu homem desejado. A
personagem, como se percebe, é uma mulher muito bonita, por isso o personagem se sentia
ameaçado; daí seu interesse em transformá-la. Assim, esse maquiador fitava os olhos sobre a
sua presa. Aurélia, tira suas conclusões. Observamos que, em toda a narrativa, o cabeleireiro
se vale desta arma, ou seja, em mascarar a sua suposta amiga. Toda teatralidade nesse conto,
é perpassada pelo palco da escritura.
O medo de perder essa disputa motiva o amor pelo industrial, pois a protagonista, ao
se mascarar numa imagem, pode perder o poder na disputa por Affonso, pois maquiada não
era ela mesma, mas outra. “E maquilada Aurélia Nascimento. Aurélia era bonita e, maquilada,
ficava deslumbrante.” (LISPECTOR, 1998, p. 41). Serjoca queria acabar com a identidade de
Aurélia, pois da mulher bastava um telefone para o amigo, que ele corria para atendê-la.
Percebemos que o suposto amigo exercia certo poder sobre a personagem, visto que ela
dependia de seu favor, maquiá-la.
Um dos fatos que merece destaque nesse conto é que a narradora focaliza o rosto
como sendo necessário para desfigurar a personagem; de fato, entendemos que o rosto do
sujeito mostra o que ele é, e o que está sentindo. Mesmo usando seios postiços e outros
adereços, é a sua face que a narradora coloca como recurso que serve para a transfiguração,
sem contar com as bofetadas que dá em si mesma, como forma de acordar para a sua
transformação. A mudança física de Aurélia pode ter acontecido ao se ver refletida ao
espelho, pois o próprio olhar desencadeia um novo processo de aprendizagem, possibilitando
a essa mulher refletir sobre o seu eu, a partir da imagem refletida.
Quando a narradora compara a boca de Aurélia a um botão de vermelha rosa, suscita
várias reflexões. A qualidade de botão pode sugerir a ideia de quem ainda não desabrochou
tanto para a vida, quanto para a própria condição amorosa.
O vermelho, por sua vez, sugere a ideia de paixão – o vermelho é signo da paixão, mas
também de morte; o vermelho é cor de sangue, mas também remete à vida. Veja que a
narradora diz “vermelha rosa” e não “rosa vermelha”, o que nos permite fazer analogia com o
significado das palavras, de tal modo que a personagem pode ser esta rosa ainda por
desabrochar, mas vermelha, que tanto pode ser de vergonha pela situação posta, uma falsa ou
imagem falsa de mulher que justamente com um homossexual disputam a atenção de um
homem. Um homossexual que é também um falso amigo. Entendemos a antecipação do
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mentira: não ia porque não tinha cara para mostrar.” (LISPECTOR, 1998, p. 44). Aqui está
patente a relação de dependência da máscara. A personagem tinha descoberto que seu amigo
estava lhe anulando, estava sem maquiagem, por isso não podia se apresentar a outros.
Outra questão que merece destaque é a forma como Affonso é apresentado no conto,
possuidor de um carro de luxo, um Mercedes, uma marca que é o signo de ostentação, que
representa status e destaque social. Enquanto veículo de alto padrão pode indicar também
conforto, no sentido de que a protagonista, quando dentro do carro, esquece até os calos.
“Afinal veio o chofer, desceu, abriu a porta do carro. Entraram os três. Ela na frente, ao lado
do chofer, os dois atrás. Tirou discretamente o sapato e suspirou de alívio”. (LISPECTOR,
1998, p. 42).
Aurélia, mesmo angustiada pelo seu esfacelamento, ou melhor, pela sua dualidade, se
encontra à procura de sua verdadeira identidade. “Foi ao espelho. Olhou-se profundamente.
Mas ela não era mais nada.” (LISPECTOR, 1998, p. 44). Essa ideia encontra pertinência nas
palavras da narradora: “E realmente aconteceu. No espelho viu enfim um rosto, humano,
triste, delicado. Ela era Aurélia Nascimento. Acabara de nascer”. (LISPECTOR, 1998, p. 44).
No intuito de tentar sair das trevas em que vive para a situação de alienação de sua
história, Aurélia parte para a autopunição, batendo em sua própria face, no rosto desfigurado;
o detentor de sua beleza e de sua ruína. O processo de busca do verdadeiro eu ocorre somente
quando a personagem acorda para o que é realmente, consciente do liame entre essência e
aparência.
Podemos recorrer ao "mito da caverna”, também conhecido como alegoria da caverna,
ou parábola da caverna, de Platão, por exemplificar como podemos nos libertar da condição
de escuridão que nos aprisiona, através da luz e da verdade. Esse mito é exemplar para
compreendermos o jogo entre essência e aparência vivido pela personagem do conto “Ele me
Bebeu”. A caverna subterrânea é vista como o mundo visível. O fogo que a ilumina é a luz do
sol. O prisioneiro que sai da caverna e contempla as maravilhas do mundo é a alma que
ascende ao mundo inteligível. Em todo caso, Platão escreve: “eu creio que nos mais altos
limites do mundo inteligível está à ideia do bem que dificilmente percebemos, mas que ao
contemplá-la, concluímos que ela é a causa de tudo o que é belo e bom”. (PLATÃO, 1997, p.
518b-d).
Além disso, através da náusea, podemos dizer que Aurélia fica descentrada,
transitando entre o que é, e o que deveria ser sentindo algo desagradável: “Sentiu-se mal-
estar.” (LISPECTOR, 1998, p. 43). É nesse momento nauseante que a protagonista se sente
aliviada, pois procura se desprender do que lhe causa mal, como o fato de ser o que não é.
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Vale lembrar, que é ao se preparar para o segundo jantar com Affonso que a
personagem desperta para o que está acontecendo entre ela e Serjoca – a traição; o que pode
ser observado no trecho a seguir:
A desfiguração de Aurélia parece ser vista pela personagem como uma das
alternativas para Serjoca conseguir de vez a atenção de Affonso, o homem que tanto desejava.
É o olhar alheio no caso desse conto, Serjoca, que leva Aurélia a perder-se de si mesma. Ela é
descrita como uma pessoa de uma cara só, de carne, portanto, uma mulher real.
A narradora inicia apresentando o processo de despersonalização da personagem
feminina, fossilizando uma faceta da consciência da constituição da identidade, que ocorre
por meio de processos metafóricos que emblematizam o eu e o não eu. A narradora
exemplifica o exposto: “Então, enquanto se maquilava, pensou: Serjoca está me tirando o
rosto.” (LISPECTOR, 1998, p.43).
A narradora subsidia o ato de narrar de peculiaridades para evidenciar a individuação
de Aurélia, pois, para assumir sua real identidade, a personagem precisou vivenciar traições,
mascaramentos e refletir sobre si e sobre o outro. “E realmente aconteceu. Ela era Aurélia
Nascimento. Acabara de nascer. Nas-ci-men-to.” (LISPECTOR, 1998, p. 44). Para ela a
descoberta das traições, tanto de seu suposto amigo, quanto de Affonso, apesar de dolorosas,
serviram como reflexão para a personagem refletir sobre sua identidade. Assim sendo,
compreende-se por que a narradora afirmava que Aurélia queria ser apenas um rosto, um rosto
maquiado. Demorou muito, mas ela conseguiu ver que existia um eu, que considerava sem
defeitos, que não era o seu verdadeiro self. Daí o motivo de Aurélia dar tanta importância à
aparência.
No ato contemplativo, Aurélia é consciente de que está sendo esvaziada de sua
identidade: “chegou em casa, tomou um banho de imersão de espuma, ficou pensando: daqui
a pouco ele me tira o corpo também.” ( LISPECTOR, 1998, p. 44). Ao pensar que Serjoca
poderia tirar até o seu corpo, essa moça deixa transparecer que seu suposto amigo pode levá-
la à destruição do seu eu. Em síntese, podemos dizer que o drama de Aurélia é superar o
tormento de viver mascarada, de não ser autêntica. Nesse momento a personagem se percebe
33
como sujeito. Ou como personagem autêntica da teatralidade que foi incumbida para ser
encenada. Esse processo de constituição do seu Eu ocorreu lentamente, assim como foi
apresentado o seu sobrenome. “Nas-ci-men-to.” Transformada e consciente, Aurélia pode ser
ela mesma e não outra.
Mesmo acostumada em ser outra e não ela mesma, a personagem luta para quebrar as
amarras: deu tapa no rosto em frente ao espelho, lavou bem o rosto enxugou bem para tirar o
que não era dela, fingiu-se de cansada, dentre outras ações. E quando sentiu-se desnudada ao
ser maquiada, Aurélia resolve resgatar o seu verdadeiro eu. “No espelho viu enfim um rosto
humano.” (LISPECTOR, 1998, p. 44). Entendemos que essa moça, ao individualizar-se,
percebe que não era um humano, mas apenas uma sombra. Daí, podemos fazer uma anologia
com o que postula Cavalcanti (1992, p. 78): “A sombra é um eu negado, alijado, alienado,
rejeitado pelos padrões da consciência; uma parte da personalidade não aceita e que se
constitui no outro interno, incômodo dentro de cada um.” Foi assim que a protagonista se
sentiu um eu incomodado, alienado. Isso acontece devido à sombra estar relacionada à
persona. Sendo esta, representando aqui, o que o sujeito deseja ser, e a aquela aquilo que ele
o indivíduo quer ser.
A protagonista busca o encontro consigo mesma, e, assim, conquista seu verdadeiro
eu, mesmo à base de tapas na sua própria face. “O que fazer para recuperar o que fora seu? A
sua individualidade? […] E, como se não bastasse, deu mais duas bofetadas na cara. Para
encontrar-se”. (LISPECTOR, 1998, p. 44). O jogo de aparência, de enganos, simulações e
dissimulações visam destacar a dramaticidade dos fatos nesse conto. Esse jogo de sedução
entre Aurélia, Serjoca e Affonso, sugestivamente se desprende dos artifícios utilizados por sua
amiga para contrariar a lógica da sedução.
Que faço? Telefono a mim mesma? Vai dar um triste sinal de ocupado, eu
sei, uma vez já liguei distraída para o meu próprio número. Como acordo
quem está dormindo? Como chamo quem eu quero chama? O que fazer?
Nada: porque é domingo e até Deus descansou. Mas eu trabalhei sozinha o
dia inteiro. Mas agora quem estava dormindo já acordou e vem me ver às
oito horas. São seis e cinco. (LISPECTOR, 1998, p.46).
Mas, se Deus nos fez assim, que sejamos. De mãos abanando. Sem assunto.
[...] Vou convidar Chico Buarque, Tom Jobim e Caetano Veloso e que cada
um traga a sua viola. Quero alegria, a melancolia me mata aos poucos.
Quando a gente começa a se perguntar: para quê. Mas bem sei que é apenas
“Por enquanto”. Ligo ou não ligo a televisão? Mas é que é tão chato ver
televisão sozinha. Mas finalmente resolvi e vou ligar a televisão. A gente
morre ás vezes. (LISPECTOR, 1998, p.45-47).
A diégese aqui está como já dito, perpassada pela mimese, pois a narração é
representada por diversos indivíduos. Além disso, o drama da linguagem de Lispector no
conto “Por enquanto”, diz respeito a ações vividas por pessoas, com identidades específicas.
Podendo, a própria escritora, fazer parte da realidade ficcional construída por ela mesma.
Nunes (1995) apresenta que: “[...] a problematização das narrativas tradicionais em geral e da
posição do próprio narrador, em suas relações com a linguagem e a realidade por meio de um
jogo da identidade da ficcionista consigo mesma e com seus personagens.” (NUNES, 1995, p.
161).
A narradora nesse fragmento cria uma imagem teatralizada através da nostalgia, além
de perceber-se a intertextualidade, pois nesse conto vemos a presença de fragmentos de outras
narrativas de Lispector: “‘Por enquanto’, ‘Dia após dia’, ‘O homem que apareceu’, e
‘Explicação’”. Parece que a narradora personagem procura teatralizar sua escritura de forma
intra e intertextual.
- O senhor se lembra do homem que estava tocando gaita no sábado? Ele era
um grande escritor. (do conto “O Homem que apareceu”). [...]. - já pedi
licença a meu filho, disse-lhe que não lesse meu livro. Eu lhe contei um
pouco às histórias que havia escrito. Ele ouviu e disse: está bem. Contei-lhe
que meu primeiro conto se chamava “Miss Algrave”. Ele disse: “grave” é
túmulo. (de Explicação). Viva a feira livre! Viva Claúdio Brito! (Mudei o
nome, é claro. Qualquer semelhança é mera coincidência). (de “Por
enquanto”). (LISPECTOR, 1998, p. 49-53).
Tem-se, contudo, um palco da escritura que divide espaço com outras narrativas.
Assim, narradora, autora e personagem, convida o leitor para assistir a sua teatralidade. A
construção da subjetividade do telespectador/leitor possibilita uma construção do sentido da
narração, tendo-se um entrelaçamento de fatos representados concomitantemente com o texto
base “Dia após dia”, e as demais narrativas citadas.
É a partir da dissimulação da narradora/personagem que percebemos que sua escrita
teatral desestabiliza as noções de originalidade, bem como de literariedade, pois não se sabe
de que narrativa determinado fato pertence. Por isso, a escritura de Lispector muitas vezes,
mostra-se um palco escritural, ambivalente, isso, por ser esse palco representativo de uma
teatralidade em que não se pode discernir o real do ficcional.
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Pois é. Sei lá se este livro vai acrescentar alguma coisa à minha obra. Minha
obra que se dane. Não sei por que as pessoas dão tanta importância à
literatura. Meu cachorro está coçando a orelha e com tanto gosto que chega
a gemer. Sou mãe dele. Viva eu! Que ainda estou viva.
E agora acabei. (LISPECTOR, 1998, p. 51-53).
O teatro dessa senhora se dá pelo fato de seu corpo não atender ao modelo de mulher
desejada/jovem/bonita. A mulher velha é vista por muitos como alguém que não mais sente
desejo e, se sente, não é vista como sujeito digno de tê-lo satisfeito; esse é um dos paradigmas
da sociedade repleta de preconceitos. Isso posto, por saber que essa sociedade é centrada na
beleza do que é jovem, principalmente, no que diz respeito à mulher; por isso, se vê que há
um forte estigma que desvaloriza a mulher mais velha. Normalmente a vida sexual de uma
mulher mais velha é alvo de chacotas e comentários. Daí, essa senhora continua seu teatro
diante do palco da escritura de Clarice Lispector.
carnal. A protagonista dramatiza as ações, procurando conhecer o seu corpo. Ela conseguiu
libertar-se desse martírio/desejo sexual, através do tocar-se, a sua teatralidade é encenada a
partir da fisicalidade.
Além disso, a personagem precisou passar pela dor da exclusão, para então, resolver
usar o seu corpo na realização do prazer, mesmo de uma mulher velha era seu. Aquele corpo
velho, mas que está vivo. “Pois foi com dona Cândida que o desejo de prazer não passava”.
(LISPECTOR, 1998, p.55). Como se vê a construção da identidade da protagonista se deu de
forma triste como algo tortuoso. “Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha.”
(LISPECTOR, 1998, p. 56).
Essa senhora passa a procurar fazer sua história através da encenação do seu teatro,
utilizando-se do seu corpo, mesmo de maneira solitária. “Nessa mesma noite deu um jeito e
solitária satisfez-se. Dai em diante, usaria o mesmo processo. Sempre triste. [...]. A morte.
Pareceu ouvir ruídos de passos.” (LISPECTOR, 1998, p.56). A morte aparece aqui como uma
fuga, pois essa senhora lembrou do falecido Antenor Raposo, seu esposo. No momento em
que a personagem rememora, a autora está transitando entre os elementos da psicanálise, pois
estes são bastantes frutíferos nas narrativas Lispectorianas.
A representação do seu esposo na sua dramaticidade deve ter facilitado o desfecho da
teatralidade. “Pareceu-lhe ouvir ruídos de passos. Os passos de seu marido Antenor Raposo”.
(LISPECTOR, 1998, p. 56). Por meio da teatralidade da escrita dessa narrativa, observa-se
que dona Cândida conseguiu sentir a libido, não só porque usou do seu corpo, mas também
por incutir a lembrança do seu esposo. Além disso, a autora ao focalizar detalhes das suas
figuras dramáticas, parece querer ironizar os fatos. “– Não adianta de nada. A senhora tem
que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.” ( LISPECTOR,1998, p.56).
Além do aspecto irônico percebido nas narrativas de Clarice, observa-se também que
na teatralidade da sua escrita, as personagens apresentam suas ações de forma embaralhadas,
não se consegue seguir uma trajetória das ações de um personagem sem que haja, digressões.
“Então saiu do consultório. A filha esperava-a embaixo de carro. Um filho Cândida Raposo
perdera na guerra, era um pracinha. Tinha essa tolerável dor no coração: a de sobreviver a um
ser adorado”. (LISPECTOR, 1998, p, 56). As ações de suas figuras dramáticas são percebidas
através do jogo de palavras. Daí, perceber o percalço mental que a escritora experiencia ao
lidar com as palavras. É como se, para Lispector as palavras representassem um ato, pois está
implícito nelas um poder de realizar qualquer tipo de ação, seja ela física, ou mental. Por isso,
a teatralidade nas narrativas de Clarice ser possível.
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Por que dizer que o conto “Antes da ponte Rio-Niterói” de Lispector apresenta uma
teatralidade escritural? Iniciamos apresentando, que por meio do contar e do escrever essa
história, Lispector utiliza de uma escrita teatralizada, visto que ela consegue criar uma
segunda pele, nesse caso a escritora-humilde. “Peço desculpa porque além de contar os fatos
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também adivinho e, o que adivinho aqui escrevo, escrivã que sou por fatalidade.”
(LISPECTOR,1998,p.57).Vemos toda uma encenação da narradora, pois consegue
problematizar os fatos, sem deixar de apresentar sua criticidade e ironia, tanto no que se refere
aos personagens, como a maneira de narrar.
A narradora está sempre usando expressões que demonstram que não sabe mais o que
está contando, que se perdeu ao narrar à história, representa uma teatralidade discursiva da
narradora/escrivã. Assim, por meio do drama entre o contar e o escrever, Lispector cria a fala-
escritura da narradora por fatalidade. “O que fazer dessa história que se passou quando a
ponte Rio-Niterói não passava de um sonho?”. (LISPECTOR, 1998, p.60).
O estilo que a escritora utilizou na construção desse conto, pode-se dizer que são
mecanismos que contribuiu para o leitor perceber como são apresentado/dramatizado as ações
no palco da escrita lispectoriana. “Pois é. (p.57), Bem (p. 68), Como é que sei? Sabendo. (p.
59), Não sei. (p. 60). E é só (p. 60)”. Esses falares parecem se aproximar com os dizeres
cotidianos. Daí, a escritora caracterizar a simplicidade da narradora/ personagem/escrivã. Esse
fragmento leva-nos a entender que a narradora/escrivã mostra-se inquieta ao lidar com os
fatos, e consigo mesma, na consagração da ação do narrar.
Outro fato que marca a teatralidade nesse conto é o modo como às ações são
apresentadas pelas figuras dramáticas, pois parecem que os fatos são encenados, uma vez que
Lispector marca a posição e a voz da narrativa. Essa posição pode ser representada através do
modo intrigante que a autora mostra ser o narrar e o escrever. Mostrando um exemplo como
exemplar: “Mas onde estava eu, que me perdi? Só começando tudo de novo, e em outra linha
e outro parágrafo para melhor começar.” (LISPECTOR, 1998, p.58).
A teatralização nesse conto se associa também, ao caráter irônico que Lispector vem
demonstrando nas narrativas do livro A Via Crucis do Corpo, especificamente, em “Antes da
ponte Rio-Niterói”, pois à medida que a narradora/escrivã apresenta suas ações, bem como,
resolve escrever/assume uma história mesmo não gostando. Isso porque diz que daria de
presente, resolve ir até o fim. Por isso, pode-se dizer que, essa narrativa é encenada, de modo
a mostrar que o seu palco/escrita, seja duvidosa. “Não sei que fim levou essas pessoas, não
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soube mais notícias. Destraçaram-se? Pois é uma história antiga e talvez já tenha havido
morte entre elas, as pessoas”. (LISPECTOR, 1998, p.59).
Vemos que a narradora/personagem está constantemente teatralizando sua fala: “Mas
estou me confundindo toda ou é o caso tão enrolado que se eu puder vou desenrolar.” [...]
Bem. (LISPECTOR, 1998, p.557). O escrever para Lispector é mais que uma arte, pois pode
ser sentida, vivida, pegada, provada. “Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo,
enviando uma seta que finca no ponto tenro e nefrálgico da palavra” (LISPECTOR, 1964,
p.48).
Sob uma perspectiva da encenação da escrita, nesse conto, Clarice Lispector, como já
dito, procura trazer um questionamento sobre a própria escrita/palco. Por isso, o leitor é
convidado a duvidar da veracidade dos fatos narrados. Presenciamos uma dissimulação por
parte da escritora, ou mesmo, da narradora/personagem, da protagonista, por ser ela que se
posiciona diante da execução do narrado.
E daí a três meses- como se cumprisse promessa de não pesar nas débeis
ideias do noivo – daí a três meses morreu, linda, de cabelos soltos,
inconsolável, com saudades do noivo, e assustada com a morte como criança
tem medo do escuro: Ou talvez não. Não sei como ainda não morri, e depois
de morrer nem saberei. Quem sabe se não tão escura. Quem sabe se é um
deslumbramento. A morte, quero dizer. (LISPECTOR, 1998, p. 58).
Ainda que haja nesse trecho uma tensão do narrar e do escrever, a escrita é
ficcionalizada, mas nem por isso, os fatos deixam de apresentarem ares do real. Assim, pode-
se dizer que esse conto, é uma produção teatralizada de Clarice Lispector. Os fatos vividos
por suas figuras dramáticas são apresentados/teatralizados a partir do conflito entre o Eu
narradora/escrivã e o outro/demais personagens.
O Universo criativo da escrita de Clarice, é que possibilita a teatralidade em suas
narrativas, pois a palavra se relaciona com palavra, sentido com sentido, vazio com vazio,
firma com fragilidade, realidade com ficcional, por fim, é a partir do encontro dessa ação
permanente que a escritora produz um organismo de diálogos teatralizados consigo mesma e
com o mundo. “E o que escrevo é uma névoa úmida. As palavras são sons de sombras que se
intercruzam desiguais, estalactites, renda, música transfigurada de órgão”. (LISPECTOR,
1978, p. 21).
A ideia que a narradora demonstra de originalidade dos fatos sustenta paralelamente a
ideia de mimese configurando como preocupação com a representação, sendo esta
hipercodificada pela teatralidade como abertura do ato “imitativo”.
Pode-se dizer que a princípio, a “imitação” em Lispector está para ideia platônica (o
existir é uma ilusão). Mas, a mimesis passa a ser vista como representação da crise de
representação, “[...] enquanto temática, despojando-se aos poucos da ideia de pattern e
aderindo a de ‘desvio’, ‘transgressão’ e ‘distanciamento’”. (BEIGUI, 2006, p.72).
“Praça Mauá” pode ser entendida como um espaço físico, que se efetiva as ações do
dia a dia de Carla, mas também como o espaço em que a figura dramática se apresenta: A
Praça estava às escuras. E Luísa respirou profundamente. A praça vazia. (LISPECTOR,
1998, p. 65). “Moleirão e Carla davam bom dinheiro ao dono do erótica. O ambiente
enfumado e com cheiro de álcool. E a pista de dança. Era duro ser tirado para dançar por
marinheiro bêbado”. (LISPECTOR, 1998, p.61). Nesse fragmento podemos identificar que
Luísa/Carla usa do palco para executar sua teatralidade, ou seja, o cabaré para a personagem é
o espaço da sua dramaticidade, ou melhor, teatralidade, pois entendemos teatralidade como
fisicalidade.
É no palco/cabaré/escrita, que a protagonista atua. “Chegava de noite, na hora se
apresentar em público, começava a bocejar, tinha vontade de estar de camisola na sua cama”.
(LISPECTOR, 1998, p. 61). A mimese e a diégese se faz presente nessa narrativa, visto que
além de ser uma história narrada, é uma ação vivida por um sujeito ficcional representando
um fato que pode ser real. Assim, real e ficção intercruzam-se. Esse fato comprova ainda
mais, a corporificação da narrativa em questão, mas também percebe-se que através da
encenação, a corporificação do texto se desestabiliza. “Carla era linda. Tinha dentes miúdos e
cintura fininha. Era toda frágil. Quase não tinha seios, mas tinha quadris bem torneados.”
(LISPECTOR, 1998, p.61).
Carla não era mulher de falação, talvez por isso, considerava um tédio conversar com
os seus clientes: “Desnudava-se, sim, mas os primeiros momentos de dança e requebro eram
de vergonha. Só ‘esquentava-se’ minutos depois. No samba é que era boa. Mas um Blues bem
romântico também a atiçava”. (LISPECTOR, 1998, p.61). A música pode ser vista como algo
impulsionador do desenvolver da teatralidade de Carla, pois possibilitava a personagem, se
tornar desinibida.
Em “Praça Mauá”, vê-se uma narradora que apresenta a protagonista, como uma
mulher que se mascarava, isso pode ser visto através da maquiagem. “Levava uma hora para
se maquilar: depois parecia uma boneca de louça.” (LISPECTOR, 1998, p. 61). Vê-se que a
personagem vive uma teatralidade ancorada em uma duplicidade do sujeito.
O tema do duplo se apresenta sob várias maneiras através do espelho, do outro, da
maquiagem. Para Lamas (2004): “A literatura no fundo não fala mais do que dela mesma,
sendo ela própria uma enganadora imitação da realidade”. Seguindo esse raciocínio vê-se que
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a literatura tem vocação de por em cena o duplo, o sujeito mascarado, mesmo que sob um
palco da escritura. (LAMAS, 2004, p. 50).
A literatura é, portanto, matéria em que é possível refletir sobre o homem e seu
mundo, uma das variadas formas de tomada de consciência da cisão do eu que a sociedade
moderna ocasiona através das mudanças, as quais emergem constantemente, descentrando-o.
E em Clarice, observamos a tendência das figuras dramáticas transitar entre o ser e o parecer,
caso específico da protagonista de “Praça Mauá”. “Carla era uma Luísa preguiçosa. Chegava
de noite, na hora de se apresentar em público, começava a bocejar, tinha vontade de estar de
camisola na sua camisola na sua cama.” (LISPECTOR, 1998, p.61).
Ao dar foco nas características da protagonista, vê-se que a narradora relaciona o ser
de Carla aos desejos, ao corpo. Mas, no que se refere ao conflito ‘parecer’ e ‘ser’, está
imbuído do fingimento. Mesmo porque Carla é apresentada como uma personagem artificial,
dissimulada. Daí, ser focado no seu parecer. “Por incrível que parecesse, Carla era Luísa
tímida. Desnudava-se, sim, mas os primeiros momentos de dança e requebro eram de
vergonha. Então se desdobrava, requebrava-se, dava tudo de si mesma." (LISPECTOR, 1998,
p.61). Se a dançarina do cabaré é vista como Carla, mulher que se mascarava, não podemos
dizer que Luísa é diferente daquela, ou melhor, de seu duplo. Há, sim, uma ambiguidade,
entre o ‘parecer’/ ‘ser, ‘fingimento’, originalidade que perpassa a teatralidade ficcional nessa
narrativa.
O encadeamento narrativo nas obras de Lispector possibilita ao leitor realizar variadas
interpretações, talvez por ser característico da referida escritora, assumir em suas escrituras a
posição no discurso, podendo representar/encenar, como autora no palco enunciativo, o
espetáculo da escrita, pois ora se apresenta como escritora/personagem, ora como
narradora/personagem, ora como personagem/escritora, ora como autora/personagem.
Para exercer a vida mundana, Carla, usava como em uma peça de teatro convencional
alguns adereços: “Às vezes, só para variar, dançava de blue-jeans e sem sutiã, os seios se
balançando entre os colares faiscantes. Usava uma franjinha e pintava junto dos lábios
delicados um sinal de beleza feito com lápis preto”. (LISPECTOR, 1998, p. 62).
O próprio título do conto “A língua do P,” de Lispector pode ser visto como se
tratando de uma especificidade de ‘língua’, que é encenada por uma narradora, que é
responsável pela teatralidade a narrativa. Usa de expressões que marca o caráter de
responsabilidade pela veracidade dos fatos: “Assim, (p.68), De repente (p.68), Então (p.69)
Pois, (69)”.
A Narradora realiza uma dramaticidade caracterizando a protagonista como uma
pessoa descentrada, pois Cidinha transita entre Maria aparecida- Cidinha (professora) e a
Moça inquieta - “Maria Aparecida – Cidinha, como a chamavam em casa – era professora de
inglês. [...] A moça inquieta. Os homens em alerta.” (LISPECTOR,1998,p. 67). A inquietação
de Cidinha se deu porque ela entendeu a língua do ‘P’. Essa moça lembra da língua que falava
quando criança. “A linguagem era aquela que usava, quando criança, para se defender dos
adultos”. (LISPECTOR, 1998, p.68). Sem dúvida foi dado a Cidinha um papel de uma
personagem duplicada, pois transita entre uma moça prendada e outra dissimulada. “Então
Pensou: se eu fingir de prostituta, eles desistem, não gostam de vagabunda”. (LISPECTOR,
1998, p. 69).
Dissimulada, fingida, vê-se essas características em Cidinha, através do discurso da
narradora: “Em manchete negra estava escrito: “Moça currada e assassinada no trem”.
Tremeu toda. Acontecera, então. E com a moça que a desprezara. Pôs-se a chorar na rua”.
(LISPECTOR, 1998, p. 70).
A narradora também apresenta-se, tanto como dissimulada, como simulada, isso por
perceber-se que a sua fala/discurso aparece como querer narrar as ações como de fato são,
mas também, apresentando-as com certa criticidade: “Morava em Minas Gerais e iria de trem
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para o Rio, onde passaria três dias, e em seguida tomaria o avião para Nova Iorque.[..] Ela
mal se conhecia. Aliás, aí então é que piora.”( LISPECTOR,1998, p.67-68).
A língua do ‘P’ é aqui caracterizada como responsável pela teatralização encenada do
discurso, sendo este o responsável pelo contato das personagens Cidinha, os dois rapazes, a
moça que foi currada, o maquinista, o soldado, o bilheteiro, bem como a narradora:
O contato com o outro nesse fragmento, se dá por meio da língua do ‘P’, vê-se,
portanto, a encenação ‘da’ e ‘com’ a linguagem. A linguagem aqui é responsável, também
pela caracterização das personagens. De Cidinha, da professora de inglês, da narradora, da
Portuguesa, pois é quem narra à cena, e a língua do ‘P’. Sendo que esta, pode tanto
representar uma língua infantilizada, como também um código utilizado por maus feitores.
Aqui representado, pelos dois rapazes.
Além disso, observa-se que por meio da língua do ‘P’, a autora consegue corporificar a
narrativa, daí, poder dizer-se que há uma história encenada, teatralizada. Pois as palavras são
transformadas em recurso artístico. E como a arte, principalmente a literária tenciona a
variadas interpretações, Cidinha usa estratégias similares à língua do ‘P’. Como se tratava de
dois maus feitores pode-se sugerir que eles eram sujeitos que convivem com pessoas da
mesma classe social dos morros: “E ela a se requebrar que nem sambista de morro. Tirou da
bolsa o batom e pintou-se exageradamente. E começou a cantarolar”. (LISPECTOR, 1998,
p.69).
A narradora apesar de apresentar um discurso objetivo, e imparcial, consegue interferir
nos fatos, comprovando ainda mais a encenação da teatralidade nessa narrativa: “[...] afinal
deixaram-na partir. Tomou o próximo trem para o Rio. [...] O que preocupava era o seguinte:
quando os dois haviam falado em currá-la, tinha vontade de ser currada”. (LISPECTOR,
1998, p. 70). As vozes da narradora e personagens apresentam-se de forma conflituosa,
caracterizando a escrita Clariceana. Pois, essa escritora consegue criar uma imagem
teatralizada das suas personagens, através do seu discurso/metalinguagem. Nesse caso, a
língua do ‘P’, “– vopocêpê reperaparoupou napa mopoçapa boponipitapa? [...] Queriam dizer:
você já reparou na moça bonita? Já vi tudo. É linda, está no papo. [...] A linguagem era aquela
que usava, quando criança, para se defender dos adultos”. (LISPECTOR, 1998, p. 68).
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Percebe-se que a escritora constrói todo um percurso discursivo que possibilita ser
apresentado em uma cena de prostituição, focando em Cidinha. E em relação à composição da
obra A Via Crucis do Corpo, de Clarice pode-se dizer que a prostituição, é sua metáfora, que
transita entre o sagrado e o profano, isso por ‘escrever por vocação’ e ‘escrever por
encomenda’.
A teatralidade do discurso nesse conto projeta-se, de forma irônica levando em conta o
erotismo, mas também como algo pornográfico, pois pode-se dizer que Cidinha pretende
vender seu corpo, ao passo que a escritora realiza uma escritura por encomenda, vende,
portanto, a escrita, o palco do seu teatro, o seu corpo/a escritura que aqui é corporificada.
Apesar de Cidinha ser uma moça que gostava de perfeição, planejou sua teatralidade
para se safar dos dois rapazes, assim, por conta de um súbito despudor, salvou a própria vida.
Corpo/fisicalidade/plano, ao lado da escrita Lispectoriana, concretiza a dramaticidade da
protagonista.
estabelecer um conflito entre o corpo profano (moça ardente de desejo sexual) e o sagrado
(Madre Clara). Clara era ‘ Madre Clara’, clara como a hóstia.
O conto “Melhor que arder”, cuja protagonista é apresentada como Madre Clara: uma
mulher que vai para o convento (ser freira), isso por ser uma moça que segue os preceitos do
patriarcalismo, ou melhor, por ser submissa à família. Por se sentir martirizada pelo desejo da
carne, resolve procurar solucionar essa ardência. Para tanto, percebe que, precisa abandonar o
celibato. Resolve seguir o conselho do Padre, de que é “melhor não casar. Mas é melhor casar
do que arder” (LISPECTOR, 1998, p. 72).
A personagem procura a superiora e pede para sair do convento, para ir em busca da
concretização da sua teatralidade. Clara não queria mais permanecer entre o ser e o parecer.
Foi em uma ida a um botequim para comprar uma garrafa de água que é atendido o seu
pedido a Deus. “Foi ao botequim comprar uma garrafa de água Caxambu. [...] Mas voltou no
dia seguindo para comprar cocada. [...] No dia seguinte voltou para tomar um cafezinho. [...]
Foram os dois ver um filme. [...] Casaram-se na igreja e no civil. [...] Tiveram quatro filhos,
todos homens, todos cabeludos.” ( LISPECTOR,1998,p. 73). Seu casamento se deu na igreja
e realizado pelo Padre que lhe dera o conselho. “Na igreja quem os casou foi o padre que lhe
dissera que era melhor casar do que arder”. (LISPECTOR, 1998, p. 73).
O Papel exercido pela figura dramática do referido conto é oposto ao de Santa Clara.
‘Santa Clara’, a católica, entra para a igreja contra a vontade dos pais, a Clara de Clarice o faz
por imposição da família. Enquanto a primeira faz o voto de pobreza e vive um estilo de vida
contemplativo, pois mantem-se enclausurada e sem contato com o povo - Clara de Clarice irá
casar com um homem de posses e ter quatro filhos.
A teatralidade nessa narrativa se refere ao nível físico, corporal. Clara é tão
transparente quanto seu nome. A personagem apresenta sua dramaticidade com transparência,
ela é bem clara com a amiga, com o Padre e com a outra Madre (A Madre Superior),
diferentemente do vigário que também arde por Clara, mas que mostra-se como o simulado.
Segue um fragmento como exemplo:
Escolheu uma amiga como confidente. Disse-lhe que não aguentava mais. A
amiga aconselhou-a: Mortifique o corpo. Passou a dormir na laje fria. E
fustigava-se com silício. De nada adiantava. Pegava gripes, ficava toda
arranhada. Confessou-se ao padre. Ele mandou que continuasse a se
mortificar. Ela continuou. Mas na hora em que o padre lhe tocava a boca
para dar a hóstia tinha que se controlar para não morder a mão do padre. Este
percebia, nada dizia. Havia entre ambos um pacto mudo. Ambos se
mortificavam. (LISPECTOR, 1998, p.71).
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Clarice Lispector (1993), em seu conto “Mais vai chover” (1998) apresenta por meio
de um narrador onisciente, a teatralidade de Maria Angélica de Andrade, uma mulher com
sessenta anos, rica, viúva, independente, até então, morava sozinha. “Convidou-o a percorrer
o bem decorado apartamento deixando-o embasbacado. Levou-o a seu quarto.” (LISPECTOR,
1998, p.76).
No início da narrativa, A protagonista tem as características de uma mulher sujeito.
Pois, era um ser social, independente. A princípio Maria Angélica, não é submissa a
dominação masculina. Mas, sua autonomia acaba quando se relaciona com Alexandre, um
entregador de produtos farmacêuticos de dezenove anos. Esse rapaz, foi presa fácil para essa
senhora, não sendo o provedor financeiro, ela o coloca em uma posição superior. “Deu-lhe
uma gorjeta enorme, desproporcional, que surpreendeu o rapaz. E disse com uma vozinha
cantante e com trejeitos de mocinha romântica”. (LISPECTOR, 1998, p.76). Há toda uma
dramaticidade/teatralidade/fisicalidade em como é caracterizada a protagonista:
[...] ele era a força, a juventude, o sexo há muito tempo abandonado. [...]
Observou que ele tinha umas poucas espinhas no rosto. Mas isso não lhe
alterava a beleza e a masculinidade: os hormônios lá ferviam. [...] Aquele,
sim, era um homem [...] (LISPECTOR, 1993, p.75/76).
O narrar aqui é visto como uma escrita em que a narradora procura apresentar um
teatro baseado em fatos presentes na vida cotidiana do sujeito. Isso por perceber-se que seu
discurso está perpassado de uma suposta objetividade. Essa objetividade é vista é presente no
teatro da escrita, logo no início do teatro escritural:
A narradora cria um diálogo teatralizado das personagens, uma vez que os fatos são
dramatizados com cautela, principalmente no que se refere à caracterização dos personagens e
dramaticidade dos fatos. “E tornaram amantes. [...] E avida corria. [...] Cinco dias depois ele
voltou..., Maria Angélica de Andrade tinha sessenta anos. E um amante, Alexandre, de
dezenove anos. Todos sabiam que o menino se aproveitara da riqueza de Maria Angélica.”
(LISPECTOR, 1998, p. 75).
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A narradora por meio da escrita performática consegue mostrar que na sua encenação
ora se apresenta com papel de narrador que precisa contar os fatos de forma verossímil, ora
ironizando, ocasionando uma tensão na voz narrativa, ora descontando o dito (fatos que são
mentira).
A personagem de Lispector nos revela que a mulher, como todo ser humano, sente
prazer, desejos carnais, podendo ser ao mesmo tempo uma pessoa de fé. A respeito de
Alexandre, sabemos que ele é fruto deste histórico no qual “as mulheres que almejavam
prazer sexual eram definitivamente anormais” (GIDDENS, 1993, p. 33), por isso, ele a
humilha e repugna, chegando ao ponto de fazê-la calar, silenciar: “Estava quieta, muda. Sem
palavra nenhuma a dizer.” Por fim, ele, com seu machismo e poder, silenciou a voz de Maria
Angélica, a voz da mulher. Vemos que Maria Angélica é triplamente marginalizada: primeiro
por ser mulher, segundo por ser velha e terceiro por expor seus desejos carnais. Por tudo isso,
pode-se dizer que o preconceito é teatralizado nessa narrativa de Lispector.
Caminhando por esse raciocínio, pode-se dizer que o texto Lispectoriano seduz o leitor
a atuar/teatralizar/adentrar como leitores/atores/espectadores dos contos de A Via Crucis do
Corpo. Talvez porque a autora preserva a teatralidade da escrita ancorando no conceito de
encenação/cena/encenar. Mesmo, nunca tendo escrito peça teatral, pode-se dizer que suas
obras são uma escrita/teatral.
Os contos de A Via Crucis do Corpo de Lispector abordam diferentes temas incomuns
na escrita da autora, como sexo, crime, apresentando de forma explícita e até mesma,
grotesca. “Todas as histórias deste livro são contundentes. E quem mais sofreu fui eu mesma.”
(LISPECTOR, 1991, p.19).
Lispector parece querer mostrar nas narrativas do livro destacado, o que ela chama de
‘mundo cão’, pois os contos abordam pessoas que geralmente sofrem preconceitos, como
prostitutas, mendigos, travestis, e marginais. Suas narrativas, hipoteticamente trazem o
sentido da vida ou mesmo a falta dele, bem como o limite da palavra, a fragilidade da
existência, o encontro com a verdade, este de maneira casual, a crueldade do ser humano e o
amor inesperado.
Desta feita, a realidade e a linguagem, bem como o viver e o escrever, trilam o mesmo
percurso nas obras lispectorianas, mesmo que as narrativas transitem sobre a dupla natureza
das obras da autora, como as temáticas existenciais, filosófica, metafísica, e também pela
vertente realista e social. A literatura de Clarice, sugere um certo tipo de denúncia social,
aprofundando a reflexão política, estreitando as fronteiras entre o campo social, o estético o
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existencial de maneira diluída, de modo que a sua escrita transita por todos esses campos.
Assim, a ruptura no modo de narrar de Lispector, marca o caminho que a autora se aventura.
Se a existência é teatral para as personagens de Clarice Lispector, isto é, só é possível
de ser apreendida em um instante, ou seja, “aqui e agora” de um ato. Desta feita, o leitor se vê
forçado a conviver com a falta de equilíbrio da existência das figuras dramáticas da escritora,
pois os papéis destinados a elas nunca é inteiro, por isso, dizer-se que as personagens
lispectorianas se encontram bipartidas, esfacelas.
Assim, sugestivamente a realidade encena em A Via Crucis de Corpo é também uma
maneira de convenção encontrada pela autora como forma de abarcar aquilo que a ela escapa.
Desta feita, o texto em si transforma em um caminho, mecanismo de apreensão dos desníveis
do real e da estrutura inconsciente que o embasa.