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Religião e Ética

Por Alice von Hildebrand

A relação entre religião e moral tem grande importância na vida do homem, mas a história do pensamento
mostra que ela pode ser alvo de sérias confusões. Este artigo tentará esclarecer algumas delas.

Martinho Lutero negava qualquer importância à moral no que tange ao destino eterno do ser humano. É a
conseqüência lógica da sua tese de que sola fide [“apenas pela fé”] o homem chega à salvação: “Assim, a alma
é justificada somente pela fé e não por obra alguma…” O ensinamento de que as ações morais têm
conseqüências na vida terrena do homem, mas não na sua salvação, tende a produzir graves efeitos na sua
religiosidade. Lutero escreve o seguinte: “Portanto, é cega e perigosa a doutrina que ensina que os
mandamentos devem ser cumpridos por meio de obras”. É uma tese tão crucial aos olhos do Reformador que
ele se vê forçado a rejeitar a afirmação de São Tiago de que a fé sem obras é morta (Tg 2, 26). Rejeitar a
Epístola de um dos Apóstolos (ele a considerava uma Epístola de pouco valor) é uma atitude bastante ousada
por parte de Lutero, mas coerente com a convicção de que a sua doutrina não poderia ser julgada por ninguém,
nem mesmo pelos anjos. Tal declaração é praticamente uma autocondenação. Porque é uma glória para o
homem submeter os seus juízos pessoais a Deus e àquelas pessoas a quem Deus concedeu autoridade nesta
terra. Pobre do homem que se autoproclama a autoridade suprema.

Esse divórcio entre a ética e a religião ganhou mais e mais atualidade com o passar do tempo. Há sociedades
contemporâneas que afirmam possuir uma ética sem religião. Há “sociedades ético-culturais” que se orgulham
de ensinar uma bondade moral sem qualquer referência a Deus. O discurso da moda é de que religião e moral
são duas esferas totalmente independentes que devem ser escrupulosamente mantidas separadas. Um
argumento popular a favor disso é o fato de muitos ateus se destacarem pela sua moralidade, ao passo que
muitas pessoas religiosas freqüentemente quebram as leis morais. Esse raciocínio pede uma explicação: é
verdade (como Santo Agostinho menciona na sua Cidade de Deus) que algumas virtudes naturais podem ser
encontradas entre os pagãos e os descrentes. Um pagão pode ser corajoso e justo. Infelizmente, também é
verdade que há muitos cristãos que pecam contra os Dez Mandamentos todos os dias. Obviamente, não pecam
por serem crentes, mas por fraqueza ou rebelião; falham em seguir as leis de Deus, mesmo acreditando na
existência dEle.

Hoje, também está na moda raciocinar da seguinte maneira: injetar religião na ética é abrir a porta a uma série
de conflitos e discordâncias. Todos os homens sensatos concordam com a validade das virtudes naturais, como
a justiça, a coragem, a temperança e a prudência. A religião é algo pessoal e, portanto, essencialmente
subjetivo; a sua validade depende das “necessidades psicológicas” do individuo e ela não pode arrogar para si
consenso e validade universais. Esta visão manifesta-se naquilo que Dietrich von Hildebrand classificava –
no campo religioso – como “ecumenite”: todas as religiões seriam igualmente válidas e cada uma delas
constituiria um dos vários caminhos que o homem pode percorrer para chegar a Deus. Proclamar que
determinada religião é a única verdadeira não seria apenas uma atitude arrogante e triunfalista, mas criaria
inevitavelmente discórdia e desarmonia em qualquer sociedade. Em outras palavras, a verdade não teria nada
a ver com a religião. Por outro lado, o reconhecimento do caráter puramente subjetivo das crenças religiosas
asseguraria a paz universal e a reconciliação. Crenças contrárias seriam igualmente válidas porque a realidade
seria relativa.

As sociedades éticas contemporâneas, porém, ainda não conseguiram provar a existência de um consenso
universal acerca das virtudes naturais. Suponhamos que todos os homens concordem que deve haver justiça e
lealdade no mundo. Isso não significa que eles concordarão sobre o que é justo e leal.

Ao passo que Lutero “vilipendiou” a moral, a vítima de Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant foi a religião.
A posição de Kant está claramente marcada no seu livro A religião dentro dos limites da razão pura. Já o
título é bastante revelador. Kant escreve: “A moral não se fundamenta nem na ideia de um outro Ser acima do
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homem, do qual ele apreenderia o seu dever, nem em qualquer outro incentivo para o cumprimento do dever
que não seja a lei em si”. Trocando em miúdos: podemos conhecer o nosso dever sem a religião, porque a lei
moral pode ser claramente percebida pela razão humana sem o auxilio da revelação. Por conseguinte, a moral
não precisa da religião para nada. Não precisa de nenhum outro fim senão ela própria para demandar a nossa
obediência. Na verdade, segundo Kant, o homem dá-se a si próprio uma lei moral. Esta ideia inspirou um vivo
sarcasmo a Søren Kierkegaard: “Kant dizia que o homem era a sua própria lei, i.e., prendia-se à lei que ele
deu a si próprio. Isso é tão penoso quanto os golpes que Sancho Pança desferia no próprio traseiro”. Todavia,
Kant diz-nos que “objetivamente há uma ligação entre a moral e a religião”. Toda a questão aí está pendente
da definição que Kant fornece de religião. Ele a vê como a base metafísica da moral, mas apressa-se a dizer
que se está referindo à “religião puramente moral da razão”. O seu racionalismo rejeita todas as formas de
revelação. Não é de surpreender que haja uma ligação entre a moral e a religião, pois esta última está
exclusivamente baseada na razão. Kant chega a usar a palavra “fé” e a falar da fé do culto divino, mas
imediatamente nos recorda que só a “fé moral da religião” aprimora a alma. Adoração, oração – qualquer ato
sobrenatural deve ser descartado como insignificante.

Não podemos deixar de ter a impressão de que, no século XVIII, o século do racionalismo, era considerado
“adequado” mencionar a religião, embora essa “religião” estivesse despojada de qualquer o seu conteúdo
propriamente religioso. Pelo mesmo motivo, ateus radicais – tanto na Alemanha como mais tarde no México
– batizavam os seus filhos! Hitler nunca hesitou em mencionar Deus quando julgava necessário. Mais de um
alemão ingênuo foi levado a crer que, no fim das contas, o Führer era um bom cristão, embora a palavra
“Deus” não passasse de uma ferramenta de propaganda na boca do ditador.

Por viver numa sociedade cristã, Kant (oficialmente protestante) estava bem familiarizado com o vocabulário
religioso: é por isso que encontramos sob a sua pena palavras como “fé”, “revelação” e “milagres”. Mas uma
leitura cuidadosa dos seus textos deixa claríssimo que, para ele, os dois assuntos-chave são a moral e a razão.
É a razão que diz ao homem qual é o seu dever, e é a obediência ao dever que o torna religioso. Somente a
religião da razão seria digna da nossa fidelidade, porque seria a única religião que poderia dizer-se universal
e convencer todos os homens, evitando assim discussões inúteis que jamais conduziriam a qualquer certeza.

Em princípio, Lutero e Kant parecem adotar posições contrárias. Para o Reformador, a moralidade do homem
não possui conseqüência na sua salvação. Para Kant, é a única coisa que realmente importa. Contudo, um
exame mais aprofundado da questão leva-nos à conclusão surpreendente de que eles representam duas facetas
de um mesmo erro – um fenômeno que freqüentemente se dá na história da filosofia. Em ambos os casos,
tanto a essência da moral como a da religião estão distorcidas e mal-entendidas.

Nesse contexto, vale a pena referir uma observação feita por Johannes de Silentio (um pseudônimo de
Kierkegaard que, como o filósofo dirá mais tarde, não reflete o seu ponto de vista). Em Temor e Tremor,
discute a passagem bíblica em que Deus ordena a Abraão que sacrifique o seu único filho, Isaac, o filho da
promessa. O autor descreve essa situação dramática admiravelmente. Abraão obedece com o coração partido;
ele “crê”, mas esse ato de obediência crucifica a sua razão, que lhe diz: “Não matarás”. Isaac, sem suspeitar
do destino que o aguarda, pergunta ingenuamente ao pai onde está a vítima que será sacrificada, e o pai diz-
lhe que Deus proverá a vítima. Todos lemos esta história da Bíblia sabendo que ela acaba bem. Mas essa era
precisamente a prova de Abraão. Ele realmente acreditava que ia ter de tirar a vida do seu filho amado.

A proibição do assassinato é um dos mandamentos morais mais elementares e é (ou costumava ser)
universalmente aceito. Ao obedecer a Deus, Abraão não se tornaria nesse caso um assassino, alguém que,
conhecendo a lei moral, a quebra porque assim lhe é pedido? De Silentio descreveu com palavras pungentes
o drama em que se encontrava o pai da fé. Isaac é a sua alegria e ele sabe que o homem está proibido de
assassinar. É um dilema de rasgar o coração. Por um lado, quer obedecer a uma ordem de Deus; por outro,
sabe que o assassinato é um crime abominável. Com o coração despedaçado, Abraão escolhe obedecer. Todos
conhecemos o final feliz da história, mas segundo de Silentio, a experiência foi tão devastadora para Abraão
que desse dia em diante o Patriarca “não soube mais o que era alegria”.
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De Silencio incita-nos a examinar uma questão crucial: há um conflito inevitável entre o caráter absoluto da
lei moral e uma ordem pessoal de Deus a um individuo, isto é, um conflito inevitável entre ética e religião?
Abraão sabe que não deve desobedecer a Deus e sabe que não deve cometer um assassinato. Está dividido
entre dois deveres: uma obrigação ética e outra religiosa. Aqueles que conhecem o pensamento de Kierkegaard
sabem que ele adora desafiar-nos a aprofundar na nossa fé; força-nos a atingir um nível de profundidade
verdadeiramente religioso. A posição sustentada por De Silentio põe-nos a seguinte questão: a obediência a
Deus é uma “suspensão da ética” em favor da religião? Em outras palavras: há uma dicotomia total entre o
ético e o religioso? Não estariam separados por um abismo que pode ser superado unicamente com um “salto
da fé”? O que para a moral constitui um crime tornar-se-ia para a religião um ato heroico de fé?

Romper a relação entre o ético e o religioso é mortal para as duas esferas. Todavia, a tácita questão levantada
por De Silentio é de importância vital, porque nos força a aprofundar na análise daquilo que torna um ato
moralmente mau. De ponto de vista da ética, tirar uma vida inocente é claramente um assassinato. Do ponto
de vista da religião, o homem deve obedecer a Deus. O que podemos aprender da exposição de De Silentio –
embora seja dúbia – é a distinção entre “sacrifício” e “assassinato”. Deus não manda Abraão assassinar o seu
filho; manda Abraão sacrificar o seu filho. Podemos nós aceitar a solução de De Silentio, ou seja, aceitar que
um mandamento religioso suprime a ética? A resposta é não.

Por que o homem está severamente proibido de tirar uma vida inocente? Essa é a lei natural, inscrita no coração
de cada homem e selada pelos Dez Mandamentos dados a Moisés no Sinai. A resposta é óbvia: porque cada
vida humana possui um valor que devo respeitar. Além do mais, essa vida não me pertence, e é claro como
cristal que ao tirá-la cometo um ato imoral.

Acaso esta resposta é uma chave-mestra que possa ser aplicada a todas as ações imorais? A resposta é
claramente não. No seu último livro, Moralia, Dietrich von Hildebrand analisa a questão com maior
profundidade e mostra convincentemente que um ato pode ser imoral por razões muito diferentes entre si.
Praguejar e blasfemar, por exemplo, são ações intrínsecas e essencialmente más, mas não porque destroem
algo que não nos pertence; são más pela sua própria natureza. Assim, o filósofo nos faz recordar que todas as
vidas pertencem a Deus, o Autor da vida. Para usar um termo jurídico (embora inapropriado quando se trata
de Deus), Ele tem o “direito” de tomá-la de volta. Todos os bens pertencem a Ele: é livre de dá-los a quem
Ele quiser e depois tomá-los, como exemplifica a história de Jó: O Senhor deu, o Senhor tirou: bendito seja o
nome do Senhor!(1, 21). É por isso que, ao pedir que Abraão servisse de instrumento para tirar a vida de Isaac,
Deus exercia o seu “direito”. Mas seria inconcebível que Deus pedisse a Abraão que adorasse falsos deuses,
blasfemasse ou praguejasse. Dizer que Deus lhe mandou tornar-se ateu é uma insanidade. Deus é bom por
essência, e todos os seus mandamentos têm a marca da sua bondade. O que Deus faz é inculcar em Abraão o
dever de amar a Deus muito mais do que ao filho da promessa. Encontramos algo similar no Evangelho de
São Lucas (14, 26): Se alguém vem a mim e não odeia seu pai, sua mãe […]. Não é preciso dizer que isto
pode ser mal interpretado e que já foi mal interpretado. É por isso que a livre interpretação da Bíblia (da qual
os protestantes se vangloriam) conduz inevitavelmente a um infinito processo de duplicação das seitas. Apenas
à Igreja Católica foi concedida a incomensurável bênção de possuir um Magistério – aliás, quantos católicos
sabem hoje em dia apreciar esse dom?

Voltando a De Silentio, fica claro agora que a lei moral não foi suspensa quando Abraão se dispôs a cumprir
a ordem de Deus. Embora esse mandamento tenha sido dirigido pessoalmente a Abraão, todos os homens
deveriam estar dispostos a sacrificar aquilo que mais amam se assim Deus lho pedir. O caso de Abraão é
único, mas todos os homens – encontrando-se numa situação idêntica – deveriam responder da mesma
maneira. A história de Abraão é claramente uma figura de Deus que sacrifica o seu Filho para nos salvar.

Há muitos modos de cometer um erro intelectual – alguns muitas vezes “bem intencionados”. Um exemplo
disto são as pessoas que afirmam corretamente haver uma relação entre moral e religião, mas que não atinam
com o tipo de relação que é. Guilherme de Ockham, um frade franciscano que viveu no século XIV, diz que
o bem moral significa simplesmente “ordenado por Deus”, ao passo que seria moralmente mau tudo aquilo
que Deus proíbe. Em outras palavras: a justiça seria moralmente boa porque Deus nos manda ser justos. Mas
a vontade divina não pode sofrer nenhuma limitação, porque Deus é onipotente – uma perfeição à qual
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Ockham dá um lugar de honra entre todos os atributos divinos. Ele poderia muito bem ter-nos mandado ser
injustos, e então a injustiça seria uma obrigação do homem. “Se Deus tivesse ordenado a todos que
fornicassem, isso seria não apenas lícito, mas meritório”. É evidente que semelhante raciocínio está fora dos
eixos. As intenções de Ockham são até “piedosas”: esse franciscano convenceu-se de que, enfatizando a
onipotência de Deus (Deus pode fazer o que quiser), aumenta em nós a admiração por essa perfeição divina.
Na realidade, a ideia não apenas falhou, como acabou por criar a imagem de um Deus déspota e tirano cuja
vontade toma decisões arbitrárias a que o homem deve obedecer cegamente. O aspecto luminoso da lei natural
é secamente negado. Não compreendemos – não podemos compreender – os mandamentos de Deus; temos
somente que lhes obedecer. Ockham parece cego para o fato de que as perfeições morais pertencem à própria
essência de Deus. Deus não é apenas bom, mas é a própria Bondade; não é apenas justo, mas a própria Justiça.
Ockham ignora o fato de que os valores morais estão enraizados na própria natureza de Deus; não são,
portanto, “decisões” do arbítrio divino.

É crucial para a ética fazer distinguir entre valores morais e mandamentos positivos. A própria essência dos
primeiros revela a sua bondade intrínseca; já os segundos são ordens emitidas por uma autoridade legítima.
Assim, qualquer mandamento positivo que contradiga a lei moral não deve ser obedecido. Evidentemente, um
mandamento positivo vindo de Deus jamais estará em conflito com a lei moral arraigada na própria natureza
divina. O problema aparece quando é uma autoridade humana que emite uma ordem que se choca com a lei
moral. É doloroso pensar que um frade católico tenha sido vítima de tamanhas confusões.

Há ainda outras maneiras de compreender erradamente a relação entre religião e ética. Uma delas é afirmar
que a mente humana – obscurecida pelo pecado original – seria incapaz de distinguir entre o bem e o mal
morais se a religião não lhe abrisse os olhos. Como então poderia Sócrates ter afirmado (como escreve Platão
em Górgias) que é melhor para o homem padecer uma injustiça que cometê-la? Esse nobre pagão não gozava
da luz da revelação, mas mesmo assim compreendeu que o mal moral é o pior de todos os males e preferiu
aceitar a morte a comprometer os seus princípios éticos fundamentais. Também São Paulo nos diz que a
existência de Deus pode ser claramente percebida por meio das coisas que Ele criou, o que implica que o
homem é capaz de distinguir o bem do mal, a verdade do erro. A natureza humana foi obscurecida pelo pecado
original, mas obscurecida não significa corrompida como afirmam os calvinistas. Homens de boa vontade
conseguem perceber que algumas coisas são essencialmente más e que devem ser sempre rejeitadas.
Chamamos a isso lei natural, constantemente desafiada na nossa sociedade por um relativismo que rejeita
explicitamente a objetividade da verdade e dos valores morais. O homem moderno é gravemente alérgico a
eles, porque exigem a sua submissão, porque supõem deveres que são vistos como uma limitação do “direito
de escolha”. Mandamentos não são apenas indesejados, mas rejeitados.

Outros dirão que sem a religião a ética estaria necessariamente aleijada, dada a relutância do homem em seguir
a lei moral. O conceito de um legislador divino faz-se necessário por causa da fraqueza humana; caso
contrário, seria improvável que ele seguisse os ditames da lei moral. Platão – esse nobre e ilustre pagão –
escreveu no seu último diálogo, As leis, que o ser humano não está particularmente preocupado em aprimorar-
se moralmente e que prefere a si mesmo à verdade. A tese defendida é que o homem vai inevitavelmente
quebrar os princípios da lei moral se não souber que uma vida imoral conduz ao castigo eterno, se o medo do
castigo não sobrepujar a sua repugnância pelas ações corretas.

As crenças religiosas são indispensáveis para convencer o homem a agir moralmente. Mas agir moralmente
só por medo do castigo com certeza não é uma motivação verdadeiramente ética.

Vamos examinar agora qual é realmente a ligação entre religião e ética. Tanto Kierkegaard e Dietrich von
Hildebrand afirmam enfaticamente que a ética cristã é a única ética verdadeira, válida para todas as pessoas
em todos os tempos, mesmo que, sem culpa da sua parte, essas pessoas nunca a tenham conhecido. Para tornar
mais claro o ponto de vista desses dois pensadores, é necessário fazer uma distinção entre moral natural e
moral sobrenatural. A primeira, perceptível para pagão de boa vontade, como Sócrates, diz ao homem clara e
inequivocamente que ele deve ser justo, por causa da bondade intrínseca dessa virtude; diz que deve respeitar
a vida e os bens alheios. Essa ética (freqüentemente referida como lei natural) é válida e deve ser seguida.
Além do mais, a necessidade de segui-la pode ser percebida sem o auxílio de qualquer revelação religiosa.
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Isto não quer dizer, contudo, que a ética natural não tenha nenhuma conexão com a religião: pois todas as
coisas boas vêm de Deus e estão fundamentadas nEle. Mas bons pagãos – como Sócrates, cujo conhecimento
de Deus era vago – podem perceber os valores morais e levar uma vida moral. Sócrates certamente não negava
a existência de uma conexão entre a ética e a religião, mas não via essa conexão com clareza. É verdade que
alguns ateus respeitam muitos dos valores morais fundamentais: eu tive um aluno, ateu declarado, que
condenava o aborto como um crime abominável. A ética natural, todavia, é uma ética bastante incompleta. Há
toda uma dimensão da moralidade que não pode ser percebida a partir de um plano puramente natural. A
caridade e a humildade, como disse Santo Agostinho, eram virtudes totalmente desconhecidas para os pagãos.
Mesmo um bom pagão não podia conceber a ideia de amar os inimigos e fazer o bem aos que o perseguiam.
Confúcio considerava semelhante mandamento como algo ilógico: amar as pessoas más contraria a razão
humana. Para um cristão, trata-se de um dever, como sublinha Kierkegaard no seu livro Obras de Amor. Não
é somente um conselho, é um mandamento. Cristo não disse: “Amai os vossos inimigos se eles forem
amáveis”, mas: Amai os vossos inimigos (Mt 5, 44).

Como convencer um pagão de que deve amar um homem que matou a sua mulher e filhos, um homem que é
brutal, inclemente e preocupado apenas com satisfazer os seus caprichos? Apenas quando temos acesso à
revelação cristã, e praticamos um ato de fé, é que vemos o próximo como um filho de Deus feito à sua imagem
e semelhança, um ser pelo qual Cristo quis padecer e morrer; só assim esse mandamento “ilógico” revelará a
sua beleza e sublimidade. Além disso, a boa vontade sozinha não basta: o homem precisa da ajuda de Deus,
que se chama graça. Embora um bom pagão seja capaz de possuir a virtude da modéstia – i.e. uma consciência
das suas limitações –, dificilmente será humilde. Isso porque a humildade só pode florescer no coração de
homem que está diante da infinita santidade de Deus e das suas fraquezas e iniqüidades pessoais. É por isso
que, ao falar com Deus, Abraão diz: Não leveis a mal, se ainda ouso falar ao meu Senhor, embora seja eu pó
e cinza (Gen 18, 27). Apenas a revelação judaico-cristã, particularmente o Novo Testamento, abriu
completamente os olhos do homem para a verdade da sua condição metafísica: uma criatura desprotegida, um
pecador cuja alma precisa constantemente ser limpa. A obra-prima de Dietrich von Hildebrand, A nossa
transformação em Cristo, é inteiramente dedicada a estudar as virtudes que só podem florescer na alma
humana sobre o terreno da revelação. É, porém, crucial compreender que essa “nova” moral, a que chamamos
“moral sobrenatural”, de forma alguma revoga a moral natural. Longe disso. A revelação não só lhe dá o seu
fundamento metafísico, como a completa, aperfeiçoa e conduz à sua plena realização. A moral natural não é
apenas um tipo “inferior” de moral, mas uma ética que carrega marcas de imperfeição e incompletude. A
justiça sem a caridade pode ser dura e, em última análise, injusta. No entanto, quando um homem que sofre
de ignorância invencível segue o melhor que pode os ditames da ética natural, sem sequer suspeitar da
existência de uma ética superior baseada na revelação, pode ser considerado uma pessoa moralmente boa num
sentido limitado do termo. Por outro lado, uma ética natural que se proclamasse a ética perfeita e absoluta
seria, de acordo com Santo Agostinho, uma ética que cultiva “vícios brilhantes”. Que diferença entre a atitude
de Sócrates, que estava aberto ao sobrenatural, mesmo sem o conhecer, e as organizações éticas atuais que
protestam orgulhosamente que a ética deve ser separada da religião e que o homem não precisa de Deus para
ser bom!

Um outro exemplo está na ordem do dia. Em As Leis, Platão condena o homossexualismo nos piores termos
possíveis; Aristóteles rejeita-o como um “comportamento bestial”, mas nenhum dos dois estava em condições
de compreender a sublime virtude da pureza –uma resposta reverente a uma esfera que pertence a Deus, uma
esfera em que o homem é convidado a colaborar com Deus na procriação. Deus está necessariamente
envolvido sempre que a palavracriação aparece, porque somente Ele pode criar. Quando a ética natural opta
por rejeitar qualquer ligação com Deus, acaba por deixar à mostra as suas fraquezas e imperfeições.

A moral natural exige um complemento. Quando afirma ser a chave da perfeição moral, estará inevitavelmente
aberta ao farisaísmo, ao risco da autocomplacência (“Cumpri com o meu dever; fiz o que precisava fazer.
Posso orgulhar-me de mim mesmo; ninguém pode censurar-me em nada. Posso andar de cabeça erguida”).
Como essa atitude está distante do que o Evangelho nos ensina: mesmo depois de ter cumprido com os seus
deveres, um homem continua a ser um servo inútil (cfr. Lc 17, 10).
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Aristóteles foi sem dúvida um homem moral. A sua Ética a Nicômaco contém inúmeras intuições valiosas.
Mas qualquer pensador que erija a felicidade como o maior dos bens – por mais profunda que seja essa idéia,
pois percebe que o homem foi criado para a felicidade e que é legítimo desejar ser feliz – inevitavelmente
cairá no mesmo erro cometido pelo Estagirita e assumirá que tudo o que fazemos é, portanto, um meio para
alcançar esse fim.

Que longe está esse raciocínio daquela afirmação do Evangelho: Buscai primeiro o reino de Deus e a sua
justiça e tudo o mais vos será acrescentado (Mt 6, 33).

A metafísica aristotélica exclui qualquer tipo de relação entre Deus e o homem, porque a Causa Primeira não
saberia da nossa existência, e nega, portanto, qualquer relação entre a religião e a ética. Isso coloca-o bem
distante de Santo Agostinho, que escreveu logo no começo das suas Confissões: “Criaste-nos, Senhor, para ti,
e o nosso coração está inquieto enquanto não descansar em ti”. A felicidade tão almejada por Aristóteles, e
que ele erroneamente definiu como o maior dos bens, só pode ser encontrada pelos que amam a Deus e o
seguem antes de qualquer outra coisa. Ele é a nossa felicidade e bem-aventurança. Quando a ética prescinde
de qualquer contato com a religião – como é moda na nossa sociedade decadente –, torna-se um caricatura de
qualquer ética verdadeira. Aliás, quantos são os cristãos que apreciam verdadeiramente o dom da revelação,
que ordena que todos sejam perfeitos como o Pai celestial é perfeito (cfr. Mt 5, 48)? É esta e somente esta a
ética perfeita, que só pode ser alcançada se colaborarmos com a graça. É o que nos diz São Paulo: Tudo posso
naquele que me dá forças (Fil 4, 13).

Fonte: New Oxford Review

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