Você está na página 1de 211

ERN EST M A N D E L

A Formação
do
Pensamento Econômico
de Karl Marx
De 1843 até a redação de O Capital

Tradução de
C arlos H e n r iq u e de E scobar ^
%■
4 ^ ^
-■¡'¿ST

A Z A H A R E D IT O R E S
RIO DE JANEIRO
Título original:

La Formation de la Pensée Economique de Karl Marx


De 1843 jusqu’à la rédaction du “ Capital’ ’

Traduzido da primeira edição, publicada em 1967, por


F r a n ç o i s M a s p e r o , Paris, França

© 1967 by Librairie François Maspero

1968

Direitos para a língua portuguesa adquiridos por


ZAHAR EDITORES
Rua México, 31 — Rio de Janeiro
que se reservam a propriedade desta tradução

Impresso no Brasil
índice

1. Da Crítica da Propriedade Privada à Crítica do


Capitalismo ................................................................ 11
2. Da Condenação do Capitalismo à Justificação
Sócio-Econômica do Comunismo .......................... 29
3. Da Recusa à Aceitação da Teoria do V alor-
Trabalho .................................................................... 42
4. Uma Primeira Análise de Conjunto do M odo de
Produção Capitalista ............................................. 54
5. O Problema das Crises Periódicas ......................... 69
6. O Aperfeiçoamento da Teoria do Valor, da Teoria
da M ais-Valia e da Teoria da M oeda ............... 82
7. Os Grtindrisse ou a Dialética do Tempo de Tra­
balho e do Tempo Livre ...................................... 1'04
8. O “ M odo de Produção Asiático” e as Precondi-
ções Históricas do Impulso do Capital ............... 121
9. O Acabamento da Teoria dos Salários ................. 143
10. Dos Manuscritos de 1844 aos Grundrisse: de
uma Concepção Antropológica a uma Concepção
Histórica da Alienação ......................................... 158
11. Desalienação Progressiva pela Construção da So­
ciedade Socialista, ou então Alienação Inevitável
na “ Sociedade Industrial” ? ...................................... 188
A Gisèle
que me fêz escrever este livro com
'alegria
1

Da Crítica da Propriedade Privada à


Crítica do Capitalismo

Marx e Engels não seguiram o mesmo caminho para


chegar a uma concepção comum. “Êles tinham em comum
0 ponto de partida filosófico: a dialética de Hegel, a cons­
ciência de si de (Bruno) Bauer, o humanismo de Feuerbach;
tinham em seguida aprendido a conhecer o socialismo- inglês
e francês, que se tornou para M arx o meio de se colocar de
acôrdo consigo mesmo a respeito das lutas e das aspirações
da época, enquanto para Engels foi a indústria inglêsa que
desempenhou êste papel.” 1
A diferença provém sem dúvida das diferenças de ca­
ráter e de temperamento, a natureza mais especulativa do
gênio de Marx, mais impetuosa do gênio de Engels. Mas o
acaso e as circunstâncias materiais da vida desempenharam
aí um papel. Enquanto Marx emigra da Alemanha para a
França, Engels é enviado à Inglaterra para ali fazer o apren­
dizado dos negócios. Entra em contato com a realidade da
grande indústria capitalista. O choque provocado por êsse en­
contro com as contradições da sociedade burguesa determina­
rá o curso de seus pensamentos para o resto de seus dias.2

1 Franz Mehring, Aus dem literarischen Nachlass von Karl Marx und
Friedrich Engels 1841 bis 1850, vol. I, 3.a e d ., Dietz Stuttgart, 1920,
p á g . 359.
2 “Em Manchester, eu me choquei com o fato de que as realidades
econômicas, que até então não tinham desempenhado qualquer papel,
12 PENSAM EN TO EC O N Ô M IC O DE KARL M A R X

Se M arx desenvolveu quase sozinho tôda a parte eco­


nômica da teoria marxista, é a Engels que se deve a honra
de primeiro ter levado Marx ao estudo da Economia Políti­
ca e de ter compreendido, num “ esbôço genial” , a importân­
cia central desta ciência para o comunismo.3 Êsse “ Esquisse” ,
redigido em fins de 1843, constitui o primeiro trabalho eco­
nômico dos dois amigos; Rjasanov lhe atribui a justo títu­
lo uma "importância extrema na história do desenvolvimento
(da gênese) do marxismo” .4 É importante sublinhar que foi
igualmente Engels, no entanto dois anos mais jovem que
Marx, que se afirmou primeiro abertamente comunista e con­
siderou com o necessária e inevitável uma revolução racical
que eliminaria a propriedade privada.
Desde o final de 1842 (êle tinha nessa época apenas 22
anos), Engels, um após o outro, conclui um artigo' tratando
da monarquia prussiana pela predição de uma revolução bur­
guesa, e abre um artigo tratando da Inglaterra com o anún­
cio de uma revolução social.5 N o mesmo momento, num ar­
tigo publicado na Rheintsche Zeitung ( “ Der Kommunismus
und die Augsburger Allgemeine Zeitung” ), Marx rejeita ainda
o comunismo, afirmando a necessidade de estudá-lo de ma­
neira aprofundada a fim de poder criticá-lo adequadamente.6
M as os dois fundadores do socialismo científico abordam já
o problema pelo mesmo ângulo: pela crítica da concepção neo-

ou um papel desprezado, na historiografia, representam pelo menos no


mundo moderno uma fôrça histórica decisiva; que elas constituem a
base do nascimento das contradições de classe contemporâneas; e que
essas contradições de classe representam, no país onde elas se desen­
volveram plenamente graças à grande indústria, a saber na Inglaterra,
a base da formação dos partidos políticos, das lutas de partido, e
dêste fato de tôda a história política” (Fr. Engels: “Zur Geschiehte
des Bundes der Kommunisten” , em K . Marx, Enihüllungen über den
Kommunisténprozess zu Kóln, 4.a ed. por Mehring, Berlim, 1914,
Buchhandlung Vorwãrts, pág. 3 5 ).
3 Marx expressa êsse julgamento sôbre “ L ’Esquisse d’une Critique de
l’Economie Politique” no seu “ Préface à la Critique de l’Economie Po­
litique” , em K. Marx e Fr. Engels, Oeuvres choisies en 2 volumes,
Moscou, 1955, E d. du Progrès, I, pág. 378.
4 K. Marx, Fr. Engels, Historisch-kritische Gesamtausgabe ( m e g a ) , I,
2, págs. LX XII e LXXIII.
5 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 2, págs. 346 e 351.
6 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 1, 1, pág. 263.
PROPRIED AD E PRIVAD A E C A PITA LISM O 13

hegeliana do Estado, pela descoberta da existência das clas­


ses sociais, e pela análise dos efeitos desumanos da proprie­
dade privada e da concorrência.
A trajetória do pensamento se deixa, nos dois casos, se­
guir de estágio em estágio: da critica da religião à crítica
da Filosofia; da crítica da Filosofia à crítica do Estado; da
crítica do Estado à crítica da sociedade, isto é, da crítica da
política à crítica da Economia Política, que termina na crítica
da propriedade privada.
Mas, em Marx, o aspecto puramente teórico dominará
durante êsse período e a evolução desemboca na Introdução
à Crítica da Filosofia do Direito de H egel (fins de 1843-
comêço de 1844) . Em Engels, é o aspecto prático, a crítica
da sociedade burguesa inglesa, que toma a frente, tanto nos
Umrisse zu einer Kritik der Nationalökonomie quanto em
D ie Lage Englands, que aparecerão todos os dois nos
Deutsch-Französische Jahbiicher, ao mesmo tempo que o
artigo célebre de M arx.
Admite-se em geral que, por ocasião de seus estudos
universitários, Marx não se interessou quase nada pela E co­
nomia Política. A lista conservada dos livros que êle tinlia
estudado em Berlim não contém nenhum consagrado a essa
disciplina.7 Na sua carta a Franz Mehring de 28 de setem­
bro de 1892, Engels, falando dos anos de estudos universi­
tários de Marx em Bonn e em Berlim, escreve: “ . .. êle não
sabia absolutamente nada de Econom ia. . . ” 8
Pierre Naville tem, no entanto, razão quando se esfor­
ça por atenuar o caráter muito absoluto dessa informação.
Com efeito, o próprio Hegel tinha sido profundamente mar­
cado na sua juventude por estudos econômicos, e principal­
mente pelo de Adam Smith;9 Marx viu o sistema hege-liano

7 D . I . Rosenberg, D ie Entwicklung der ökonomischen Lehre von


Marx und Engels in den Vierziger Jahren des 19. Jahrhunderts, Dietz-
Verlag, Berlim, 1958, pág. 35.
8 K . Marx, Fr. Engels, Ausgewählte Briefe, Dietz-Verlag, Berlim,
1955, pág. 541.
9 É Plekhanov que tem o mérito de primeiro ter sublinhado a impor­
tância de Hegel enquanto precursor do materialismo histórico, conce-
14 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

como uma verdadeira filosofia do trabalho. “ Abordando a


F&nomenologia do Espírito, a Filosofia do Direito e mesmo
a Ciência da Lógica, Marx não descobria pois somente H e­
gel, mas já, através dêle, uma parte da Economia clássica
que aí está assimilada e filosoficamente traduzida, de sorte
que Marx não teria tão bem procedido na sua crítica da so­
ciedade civil e do Estado segundo Hegel se não tivesse en­
contrado já nêle certos elementos que permaneciam vivos,
como a teoria das necessidades, a da apropriação ou a aná­
lise da divisão do1 trabalho.” 10
Da Filosofia à política, Karl Marx já tinha atravessa­
do essa primeira etapa de sua história intelectual quando se
tornou redator da Rheinische Zeitung em 1842. Sua posição
fundamental permanece a da luta por um Estado “ humano” ;
éle se coloca ainda no plano dos "direitos humanos” em geral,
no plano da luta contra os resíduos feudais. Da mesma forma
que Hegel, êle considera que o Estado deveria ser “ a rea­
lização da liberdade” . 11 Mas êle descobre já uma contradi­
ção entre essa concepção ideal do Estado e o fato de que os
“ Stãnde” representados na Dieta provincial da Renânia se es­
forcem por “ degradar o Estado à idéia do interêsse privado” .

dendo ao desenvolvimento econômico um lugar central na explicação


daquilo que há de específico em cada nação ou em cada civilização.
Os artigos em questão de Plekhanov apareceram em 1891 em D ie Neue
Zeit e foram reproduzidos no n.° 22 (abril-junho de 1950) de La Re­
vue Internationale.
Na sua obra magistral D er junge H egel, Georg Lukacs pôde es­
tudar detalhadamente as concepções econômicas do jovem Hegel. Êle
demonstrou principalmente o lugar central que o trabalho ocupa na
Antropologia hegeliana. Hegel escreve em 1803-4: “ Quanto mais o
trabalho se efetua com a ajuda de máquinas, tanto menos êle tem
valor e tanto mais tempo é obrigado a trabalhar dessa maneira.” Esta
frase constitui uma antecipação genial daquilo que Marx e Engels es­
creverão quarenta anos mais tarde (G eorg Lukacs: D er junge Hegel,
Europa—Verlag, Zurique—Viena, 1948, págs. 421, 423, 440 e tc . ) . Não
se deve esquecer tampouco que na Lógica, de Hegel, o trabalho é a
forma original da praxis. Voltaremos ao problema das concepções eco­
nômicas de Hegel no penúltimo capítulo dêste estudo.
10 Pierre Naville, D e l’Aliénation à la Jouissance, Librairie Marcel Ri­
vière, Paris, 1957, pág. 11, reeditado em 1967, éditions Anthropos.
11 Paul Kàgi, Genesis des historischen Materialismus, Europa-Verlag,
Viena—Frankfurt—Zurique, 1965, pág. 120.
PROPRIED AD E PRIVAD A E C A P IT A L ISM O 15

Isto é, que desde que êle aborda um problema político coe­


rente, a nova legislação sôbre o roubo da madeira, êle se
choca com o problema das classes sociais: o Estado, que de­
veria ser a encarnação do '‘interêsse geral” , parece agir no
interesse somente da propriedade privada, e, para assim fa­
zer, viola não somente a lógica do direito, mas ainda prin­
cípios humanos evidentes.12
Marx aprende já que a propriedade privada, em defesa
da qual o Estado parece querer votar-se exclusivamente, re­
sulta de uma apropriação privada, monopolizadora, de um
bem comum. 13 É êle pressente numa disposição penal, que
atribui ao proprietário o trabalho do ladrão para compensar
suas perdas, a chave principal de sua futura teoria da mais-
valia: é o trabalho forçado não-retribuído que é a fonte das
"porcentagens” , isto é, do interêsse, isto é, do lucro.14
Desde essa entrada na matéria, a crítica política condu­
ziu pois o jovem M arx ao limiar de uma crítica da “ socieda­
de civil” , da crítica da Economia Política.15 Mas antes de
atravessar êsse limiar e de mergulhar no assunto que cons­
tituirá a preocupação principal de sua vida de sábio, é como
se êle devesse constantemente olhar para trás, voltar sôbre
seus passos, assegurar-se de que não tinha negligenciado ne­
nhuma solução de reserva, dar uma sorte definitiva a tôdas
as ideologias que vinha de superar. Entre outubro de 1842,
o início de seus artigos concernentes aos Debatten über das
Holdzdiebstahlgesetz, e o início de seus estudos de Econo­
mia Política em Paris se intercalam dois anos, durante os

12 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I , 1, 1, págs. 281-2.


13 Ibid., págs. 274-6.
14 Ibid., págs. 289, 297.
15 O próprio Marx escreveu a êsse respeito: “ Em 1842-1843, na minha
qualidade de redator da Rheinische Xeitung, eu me encontrava pela
primeira vez na obrigação embaraçante de dar minha opinião sôbre o
que se chama de interesses materiais. As deliberações do Landtag re-
nano sôbre os roubos de madeira e a fragmentação da propriedade
fundiária, a polêmica oficial que M. von Schaper, então Oberprãsident
da província renana, travou com a Rheinische Zeitung sôbre a situação
dos camponeses do Mosela, enfim os debates sôbre a livre troca e o
protecionismo, me forneceram as primeiras razões para me ocupar de
questões econômicas” (K . Marx, Préface à la Critique de l’Economie
politique, em K . Marx e Fr. Engels, Oeuvres Choisies en 2 volumes,
Moscou, Editions du Progrès, 1955, I, pág. 37 6).
16 PENSAM EN TO EC O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

quais o jovem M arx fará o balanço de dois movimentos ■—■


a Filosofia hegeliana e o socialismo utópico — que êle tinha
que superar para formular sua doutrina sob uma forma de­
finitiva. O têrmo “ superar” deve ser tomado aqui no seu sen­
tido hegeliano, dialético, que implica que tudo o que é váli­
do nas posições superadas é conservado nas posições novas.
Para compreender a evolução das idéias econômicas do
jovem Marx, é interessante seguir a gênese do interesse de
M arx pela questão social. Tendo-a descoberto através da mi­
séria dos vinhateiros do Mosela e dos debates concernentes
aos ladrões de madeira, êle começa a se chocar com ela a
cada passo, quando empreende uma crítica detalhada da Fi­
losofia de Hegel. Descobre que “ o estado do trabalho ime­
diato” (D er Stand der unmittelbaren A rbeit), isto é, a massa
dos que nada possuem, constitui na realidade a precondição
para a existência da sociedade burguesa.16 E opõe a esta
“ pobreza artificialmente provocada” a fruição enquanto fi­
nalidade verdadeira da humanidade. Escrevendo ao editor
dos Deutsch-Französische Jahrbücher, Ruge, êle afirma que
"dêste conflito do Estado político com êle mesmo, pode-se
em tôda parte deduzir a verdade social” .17 M as se procla­
mando já adversário da propriedade privada — que qualifi­
cou, na crítica da teoria e da prática do Direito, como fonte
de tôda injustiça — êle recusa ainda se afirmar comunista.
O estudo dos problemas da filosofia do Estado desem­
boca no estudo de Rousseau, de Montesquieu, de Maquia-
vel, e sobretudo de diversos historiadores da Revolução Fran­
cesa, que o influenciam profundamente e o levam ao estudo
do socialismo francês, nascido das correntes que esta Revo­
lução tinha liberado.
Sua última recusa do comunismo data da carta citada
a Ruge, isto é, de setembro de 1843; sua primeira profissão
de fé comunista data de março de 1844. Foi entre essas duas

16 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 1, 1, pág. 498. Günther Hillmann afir­


ma que êsse primeiro encontro de Marx com o problema da propriedade
privada foi ao mesmo tempo um encontro pessoal. Quando redator da
Rheinische Zeitung êle teria entrado em conflito com tentativas de um
grupo de acionistas de salvar o jornal de uma interdição da censura por
meio de concessões políticas ( “Zum Verständnis der Texte” , em K. Marx,
Texte zu M ethode und Praxis, Rowohlt-Verlag, II, p. 205).
17 Ibid., pág. 574.
P ROPRIED AD E PRIVAD A E C A P IT A L ISM O 17

datas que se completou uma evolução política que será de­


terminante para o resto de sua vida.18
Qual foi o fator decisivo para precipitar essa evolução?
É difícil isolar um só elemento num conjunto de influências.
Mas por mais importante que tenha sido a leitura de auto­
res como Moses Hess •—- cuja influência é incontestável —■
ou o estudo da Revolução Francesa, foi o clima global da
sociedade francesa sob Luís Felipe, a efervescência de idéias
progressistas, a atividade das diversas seitas socialistas, o
primeiro contato vivido com a classe operária e com a con­
dição proletária que permitiram cristalizar essas influências
literárias.19
N o seu primeiro artigo sôbre a questão judaica, Marx
já se coloca como finalidade examinar as relações entre a
emancipação política e a emancipação humana simplesmente,
conclusão lógica de sua crítica das teorias políticas consti­
tucionais. D e passagem, êle junta o dinheiro à propriedade
privada como fonte da alienação humana.20 Mas êle desco­
bre ao mesmo tempo o trabalho, o trabalhador, o proletário,
enquanto encarnação dessa humanidade alienada que se trata
de emancipar. E na sua Introdução à Crítica da Filosofia do
Direito, êle fará dêsse proletariado o autor de sua auto-eman-
cipação, que se torna pelo fato mesmo a emancipação da hu­
manidade inteira.
É que êle se tornou consciente de que “ a relação da in­
dústria, e do mundo da riqueza em geral, com o mundo polí­
tico, é um problema maior da época moderna” . M as essa re­
lação, apreendida e criticada pelo pensamento teórico, não

18 Paul Kági, op. cit., págs. 140-147. Na sua pesquisa engenhosa do


momento preciso em que Marx passou ao socialismo, Kági aliás esque­
ceu de ir a uma fonte capital: a notícia biográfica “ Karl Marx’’ que
Engels redigiu para o Handioõrterhuch der Staatswissenschaften (vol.
V I). Êle precisa aí que é depois de sua chegada a Paris que Marx se
torna socialista, graças ao estudo da Economia Política, dos socialistas
franceses e da história da França (pág. 487 da 4.a edição).
19 Auguste Com u ( Karl Marx und Friedrich Engels, vol. II, passim)
coloca a justo título a ênfase sôbre o meio sócio-histórico como fator
determinante da evolução de Marx, enquanto Thier ( Das Menschenbild
des jungen Marx) exagera principalmente a influência de Moses Hess.
20 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 1, 1, págs. 583-4, 603.
18 PENSAM EN TO EC O N Ô M IC O DE KARL M A R X

pode ser modificada senão pela prática. 21 Ora, se “ a arma da


crítica não pode substituir a crítica das armas” , "a teoria se
torna ela própria uma fôrça material desde que se apodera das
massas” . 22 E essas massas são as massas proletárias cuja
aparição cria a possibilidade de uma revolução alemã. Essa
revolução não pode ser senão uma revolução radical; não
pode limitar-se à esfera política (burguesa) . “ A possibilida­
de positiva da emancipação alemã” depende precisamente da
formação de uma classe "com cadeias radicais” que, queren­
do romper essas cadeias, romperá tôdas as cadeias sociais su­
primindo a propriedade privada; “ Reclamando a negação da
propriedade privada, o proletariado eleva ao nível de princí­
pio da sociedade aquilo que a sociedade lhe impôs como prin­
cípio, aquilo que já está encarnado nêle, apesar dêle, como re­
sultado negativo da sociedade.” 23
Certamente, essa descoberta do papel revolucionário do
proletariado enquanto negador da propriedade privada se co­
loca ainda em limites filosóficos não-desligados de um certo
humanismo sentimental: o princípio antropológico de Feuer-
bach, Engels dirá mais tarde que o humanismo de Feuerbach
parte de um homem abstrato, a-histórico, visto que não se
trata nunca do mundo (das condições sociais concretas) no
qual vive êsse homem.24 A condição proletária é condenada
como “ injusta", como fundada sôbre a injustiça, como imoral.
Segundo Feuerbach, Marx proclama ainda que, se o prole­
tariado é o coração da emancipação, a Filosofia é sua cabe­
ça. Êle não aprende ainda a posição do proletariado no pro­
cesso de produção como fundamento de sua capacidade eman-
cipadora. Êle não reconhece ainda senão um certo grau de de­
senvolvimento das fôrças produtivas, que a realização de cer­
tas condições materiais são indispensáveis para a realização

21 Esta idéia provém incontestàvelmente de Hess, cuja “ Philosophie der


Tat’’ (Filosofia da A ção) tinha aparecido em outubro de 1843, na cole­
ção de Georg Herwegh Einundzwanzig Bogen aus der Schweiz (Paul
Kägi, op. cit., pág. 200).
22 K. Marx, Fr. Engels, m e g a I, 1, 1, pág. 611.
23 Ibid., pág. 620.
24 Fr. Engels: “ Ludwig Feuerbach und der Ausgang der klassischen
deutschen Philosophie” , em Karl Marx und Friedrich Engels, Ausge-
wàhlte Schriften in zwei Bänden, II, pág. 355, Verlag für fremdsprachige
Literatur, Moskau, 1950.
I’ H01'1UK0ADE PKIVADA E C Â P IT A L ISM O 19

ilo comunismo. Seu comunismo é ainda um comunismo essen­


cialmente filosófico.
Entretanto, a ligação entre êsse comunismo filosófico e
o proletariado está de agora em diante solidamente estabele­
cida. Daí a estudar o “ movimento de emancipação real”
dêsse proletariado — o socialismo e o comunismo francês,
inglês e alemão — não há senão um passo a dar, que Marx
dará desde o comêço de seu exílio parisiense. A transição
do comunismo filosófico ao comunismo proletário se efetua­
rá sem obstáculos maiores.
Engels veio antes de Marx ao comunismo, dissemos
nós. M as para êle também o comunismo é de início de essên­
cia nitidamente filosófica. É mesmo um comunismo que se
dirige em primeiro lugar à burguesia esclarecida e aos in­
telectuais, assim como parece pelos vários artigos sôbre o
movimento comunista continental que Engels redigiu de fins
de 1843 ao comêço de 1844 para o hebdomadário The N ew
M om l W orld. “ N ós (isto é, os comunistas alemães) não po­
demos recrutar nossos membros senão nessas classes que go­
zaram de uma educação muito boa” , afirma êle. E êle aí opõe
o comunismo filosófico ao comunismo das massas trabalhado­
ras, encarnado pelo movimento comunista de W eitlin g .25
Mas Engels compreende que o comunismo é o produto
necessário das condições sociais criadas pela civilização mo­
derna.26 Eis por que êle descreve o paralelismo do movimen­
to comunista na Inglaterra, na França e na Alemanha (in­
clusive na Suíça alem ã): “ Assim três grandes países civili­
zados da Europa, a Inglaterra, a França e a Alemanha, todos
os três, chegaram à conclusão de que uma revolução pro­
funda do sistema social, baseada na propriedade coletiva, se
tornou agora uma necessidade urgente e inevitável. . . Os in-
glêses chegaram a essa conclusão na prática, pelo crescimen­
to rápido da miséria, da desmoralização e do pauperismo no
seu país; os franceses aí chegaram politicamente, reclamando
de início a liberdade e a igualdade política. Descobrindo que
é insuficiente, êles acrescentaram a liberdade social e a igual­
dade social às suas reivindicações políticas. E os alemães tor­

25 K. Marx, Fr. Engels, m f .c a , I, 1, 2, págs. 444-6, 449.


26 Rjasanov, em K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 2, pág. LXXV.
20 PE N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE KABL M A H X

naram-se comunistas de um ponto de vista filosófico, racio­


cinando sôbre os princípios primordiais” . 27
É preciso sublinhar a quase-simultaneidade com a qual
M arx e Engels formularam o programa de base da revolução
social proletária: a supressão da propriedade privada (M arx
na Einleitung zur Kritik der Hegelscheri Rechtphilosophie,
Engels nos seus artigos do N ew M oral World.) em escritos
datando de novembro de 1843 a janeiro de 1844, sem dúvi­
da independentemente um do outro. É preciso colocar tam­
bém em relêvo a intuição genial do jovem Engels que, em
uma só frase, resume a abordagem específica que as três
grandes nações da Europa farão do movimento mundial do
século X IX . A Inglaterra lhe traz o sucesso pragmático das
primeiras organizações de massa (cartismo e sindicalismo);
a França, a luta revolucionária pela conquista do poder po­
lítico (luta que parte da tradição estabelecida pela Grande
Revolução Francesa 'e que chega, através do babovismo, o
blanquismo e junho de 1848, à Comuna de Paris, a primei­
ra conquista efetiva do poder pelo proletariado); e a A le­
manha, o acabamento teórico do primeiro programa socialis­
ta científico. Sem dúvida, escrevendo essa frase, ignorava êle
ainda o papel decisivo que êle próprio via desempenhar na
elaboração dessa abordagem teórica alemã do movimento pro­
letário, por seus trabalhos preparatórios e sua contribuição na
redação do M anifesto Comunista.
Nós já dissemos: foi o choque que provocou seu confron­
to na Grã-Bretanha com o proletariado real, produto da gran­
de indústria, com sua miséria, sua desmoralização e seu formi­
dável poder coletivo e capacidade de organização (Engels
nota, cheio de admiração, que os cartistas podem reunir um
milhão de pence por semana),28 com sua combatividade e sua
capacidade de se elevar espiritual e moralmente acima da mi­
séria material desde que êles se organizem, que permitiu a
Engels passar do comunismo filosófico ao comunismo prole­
tário. Rjasanov lembra muito a propósito que o encontro com
os primeiros comunistas proletários verdadeiros — os alemães
Schapper, Bauer e Moll, emigrados em Londres — fêz uma
grande impressão sôbre Engels, que aliás êle próprio descre-

27 New Moral World, 4 de novembro de 1843, em m eca , I, 2, pág. 436.


28 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 2, pág. 369.
IMIOl'RIEDADE PR IVAD A E C A PITA LISM O 21

vcu na sua introdução às Révélations sur le procès des Com o-


ministes de Cologne ,29 E sentimos o efeito dessa experiência
prática nas três obras que marcaram essa transição: Umrisse
zu einer Kritic der Nationalökonomie (fim de 1843), Die
Lage Englands (janeiro de 1844), La Situation de la classc
luborieuse en Angleterre (fim de 1844-comêço de 1845).
O primeiro dêsses três trabalhos, Esbôço de urna Crítica
da Economia Política, constitui então a primeira obra econô­
mica propriamente dita dos dois amigos. Engels não diz nela
nada de substancialmente nôvo. Êle critica o liberalismo eco­
nômico, a doutrina de Adam Smith, de Ricardo e de M cCul-
loch, confrontando-a com a realidade econômica e social da
Inglaterra industrial. Esta crítica é amplamente ampliada em
outros socialistas como Owen, Fourier e Poudhon. Mas ela
supera êsses autores por uma aplicação fértil da dialética he-
geliana à realidade social.30 E se ela permanece prisioneira de
muitas concepções moralizadoras e idealistas, se condena o
comércio como “provocando a desconfiança geral" e como
"utilizando meios imorais para atingir uma finalidade imo­
ral” ,81 ela se distingue no entanto por algumas intuições no­
táveis que encontrarão mais tarde ecos em Marx, no M anifes­
to Comunista e mesmo nos Grundrisse: assim a concepção da
economia capitalista como um progresso necessário “ para que
tôdas as considerações mesquinhas, locais e nacionais passem
para o último plano e que a luta de nossa época possa tor­
nar-se uma luta geral, humana” .32
O ponto de partida dos Umriss\e é uma crítica do comér­
cio, da doutrina mercantilista e da teoria da livre troca. “ Par­
tindo de um ponto de vista humano geral” , Engels chega à
conclusão correta de que é preciso criticar ao mesmo tempo
ns duas doutrinas. Êle desmascara sobretudo a hipocrisia da
doutrina liberal antimonopolista. Esta finge ignorar que a li­
vre troca está ela própria fundada sôbre um monopólio, a sa­
ber, o monopólio da propriedade privada entre as mãos de

Página 31 na edição de Mehring. É preciso aproximar dessa impres­


são aquela que fêz sôbre Marx a freqüência aos círculos operários fran­
ceses que êle descreve com admiração nos Manuscrits de 1844, pág. 149,
«'in Kleine ökonomische Schriften.
110 Rjnsanov, em K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 2, pág. LXXII.
!I1 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 2, pág. 383.
,ia Ibid., pág. 381.
22 P E N S A M E N T O EC O N O M IC O DE KARL M A R X

uma classe minoritária da sociedade, e que a livre concorrên­


cia conduz inevitàvelmente ao monopólio.
A segunda parte do artigo trata do valor, e é sua parte
mais fraca, aquela que indica que Engels não compreendeu
nem aprofundou Ricardo no momento de redigir êsse traba­
lho. Êle trata do valor partindo da distinção entre “ valor in­
trínseco ou valor real” , de um lado, e valor de troca, de ou­
tro lado. Depois êle examina as duas escolas, que reduzem,
uma o “ valor intrínseco” aos “ custos de produção” , a outra
“ o valor intrínseco” de uma mercadoria “ inclui os dois fato­
res” , tanto os “ custos de produção” quanto a utilidade".
Numa passagem pouco clara, é verdade, êle parece colocar
em dúvida a própria existência do v a lo r.83 Êle se aproxima
mais de uma visão correta criticando o jôg o da “ lei da oferta
e da procura” , “ que age como uma lei da natureza” 34 e de­
duz a aparição das crises de superprodução precisamente do
jôgo desta lei, isto é, da concorrência.
O artigo termina com uma polêmica feroz contra a “ lei de
população” de Malthus85 e por uma descrição das conseqüên­
cias desastrosas da grande indústria para uma parte importan­
te da população. É a parte mais impressionante do artigo,
aquela que retoma e aprofunda a crítica do capitalismo de
Fourier, e que será por sua vez ampliada e apoiada numa do­
cumentação notável no seu primeiro livro: A Situação da Clas­
se Operária na Inglaterra.
Certamente, nesta parte, encontramos ainda alguns
erros, como a concepção do salário operário reduzido aos sim­
ples meios de subsistência.86 M as a crítica de Malthus é lú­
cida e revela o argumento essencial que permanece válido até
hoje na polêmica com o neomalthusianismo: isto é, que é er­
rôneo comparar o crescimento da população com o crescimen­
to da produção natural do solo; é preciso compará-lo antes
com o crescimento potencial da produtividade agrícola que re­
sultaria da aplicação eficaz da ciência e da técnica modernas à
agricultura. A análise das crises de superprodução enquanto
expressão fundamental das contradições do capitalismo é sur-

ss íbid., págs. 387-8.


S4 Ibid., pág. 394.
35 Ele chama uma “ concepção vergonhosa e infame’’, uma “ ignóbil
blasfêmia contra a natureza e a humanidade” ( m e g a , I, 2, pág. 398).
36 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 2, pág. 401.
PROPRIED AD E PRIVAD A E C A PITA LISM O 23

preendente na sua brevidade e na capacidade do jovem autor


de ir ao fundo das coisas. Ela chega à descoberta de uma si­
tuação insensata, absurda: as pessoas morrem de fome no
meio da abundância.
E sobretudo: neste artigo, Engels opera a junção da crí­
tica da propriedade privada, que ocupou os dois futuros ami­
gos durante dois anos, e a crítica do capitalismo que os ocupa­
rá o resto dos seus dias, afirmando que a divisão entre o Ca­
pital e o Trabalho resulta inevitàvelmente da propriedade pri­
vada, e que essa divisão conduz à divisão da sociedade bur­
guesa em classes antagonistas, à divisão da humanidade em
capitalistas e em operários.37
A s conseqüências imorais e desumanas do capitalismo, da
grande indústria — a maneira pela qual ela destrói a comu­
nidade familiar, pela qual ela provoca o crescimento da cri­
minalidade — que se encontram esboçadas em algumas frases
cortantes nos Umrisse, e das quais o M anifesto Comunista
retomará a descrição num sombrio afresco inesquecível, Engels
desenvolve a análise numa obra que permanece até hoje o qua­
dro mais surpreendente das conseqüências sociais da revolu­
ção industrial.38 A Situação da Classe Operária na Inglaterra
não se coloca ainda no terreno do materialismo histórico pro­
priamente dito. É ainda a indignação moral mais do que a
compreensão do processo histórico que anima o jovem crítico
social. Mas essa indignação moral já é revolucionária, ela já
está ligada a um devotamento sem fim pela classe explorada
e esmagada pelo Capital, que no entanto criou tôdas as ri­
quezas das quais êste se reserva o usufruto.39 E sobretudo:
ela chega já à compreensão de que a luta real do proletariado
constitui o único veículo possível do socialismo. Nesse sentido,
ela marca a ruptura definitiva de Engels com o socialismo
utópico e constitui ao mesmo tempo uma arma essencial con­
tra êste.

3" Ibid., págs. 391-396.


38 D. I. Rosenberg sublinha que numa obra de iuventude, redigida
com a idade de 19 anos, Briefe aus dem Wuppertal, Engels já foi to­
cado pelas condições de trabalho desumanas dos operários, “ que devem
tirar-lhes tôda a alegria de viver” (D . I. Rosenberg, D ie Entwicklung
der ökonomischen Lehre von Marx und Engels in den vierziger Jahren
des 19. Jahrhunderts, pág. 5 1 ).
39 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 4, págs. 24-5.
24 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

Essa concepção foi submetida a um exame crítico, no curso


dos últimos anos, em função do retardamento histórico mani­
festo de uma vitória socialista nos países ocidentais, indus­
trialmente desenvolvidos. Uma parte das críticas — explicita­
mente, como fêz Franz Fanon, ou implicitamente, como fazem
os teóricos do Partido Comunista Chinês —- se esforça por de­
monstrar que o potencial revolucionário dos povos do terceiro
mundo supera aquêle proletariado ocidental. N o seio dêsses
povos do terceiro mundo, êles atribuem aliás o papel revolu­
cionário principal ao campesinato e à intelligentsia revolucio­
nária, e consideram que o proletariado industrial é de alguma
maneira uma classe social privilegiada em relação aos campo­
neses sem terra.40
Outros críticos colocam em questão não a capacidade re­
volucionária do proletariado ocidental em relação àquela dos
povos do terceiro mundo, mas esta capacidade simplesmente.
Êles o consideram como pràticamente integrado na socieda­
de capitalista, sobretudo através de sua atomização (na in­
dústria semi-automatizada), da expansão de seu consumo e da
possibilidade de manipular sua ideologia e suas necessida­
des.41 Êles não contestam que a massa daqueles que são obri­
gados a vender sua fôrça de trabalho continua a aumentar em
número absoluto e em relação ao conjunto da população ativa.
Contestam que êsse crescimento numérico reforce, diretamen­
te ou indiretamente, o desafio lançado ao capitalismo ociden­
tal, isto é, as probabilidades de o ver derrubado pelo proleta­
riado ocidental.
Uns e outros tendem aliás a se referir mais às obras de
juventude de M arx e de Engels que definem o papel revolu­
cionário do proletariado do que às obras de maturidade. N es­
sas obras de juventude — e principalmente na Introdução à

40 C f. principalmente Franz Fanon, Les Damnés de la terre, págs.


45-47, 84-90 e segs., François Maspero, Paris, 1961.
41 Cf. principalmente Herbert Marcuse, “ Les perspectives du socialisme
dans la société industrielle développée” , em Revue Internationale du
Socialisme, ano 2, n.° 8; Paul Baran e Paul M. Sweezy, Monopoli/ Ca­
pital, Monthly Review Press, Nova York, 1966, págs. 363-4; C. Wright
Mills, The Marxists, págs. 113-5 na ed. de Dell Publishing Co., Nova
York, 1962, etc. (N . do E.: Êstes dois últimos publicados sob os títu­
los, respectivamente, de Capitalismo Monopolista e Os Marxistas, por
Zahar Editores.)
PROPRIEDADE PR IVAD A E CAPITALISM O 25

Crítica da Filosofia do Direito —• êste papel revolucionário é


essencialmente deduzido das características negativas do pro­
letariado no seio da sociedade burguesa. Êle se apresenta
como O' ponto de chegada de uma tríade hegeliana como uma
verdadeira “ negação da negação” . É porque as cadeias do
proletariado são radicais que êle não pode desfazer delas se­
não por uma revolução radical. O que leva os críticos con­
temporâneos a concluir que, visto que as cadeias se tornaram
muito menos radicais hoje, a esperança de uma revolução ra­
dical por parte dessa classe torna-se amplamente utópica.
Uma análise mais crítica das obras de juventude de M arx
e de Engels — sobretudo da gênese de suas idéias no que
concerne à revolução social — demonstra no entanto que por
trás do estilo deslumbrante havia, nessa época, ainda uma
insuficiência de conhecimentos empíricos. À frase célebre sô-
bre as "cadeias radicais” se aplica a nota que Engels formu­
lará 40 anos mais tarde a propósito da Ideologia A lem ã: “ A
parte acabada consiste numa exposição da concepção mate­
rialista da história, que demonstra somente como nossos co­
nhecimentos em matéria de história econômica eram ainda in­
completos nessa época.” '42 D e fato, o proletariado moderno
não é a classe social que teve as cadeias mais pesadas da his­
tória mundial. Semelhante definição se aplica antes à classe
dos escravos romanos, do século I antes da nossa era ao sé­
culo III depois de Cristo. A história demonstrou que não é
suficiente que uma classe social não tenha mais nada a perder
e não disponha de propriedade privada, para que seja capaz
de realizar uma revolução social que possa abolir tõda a pro­
priedade privada.
Precisando mais tarde seu diagnóstico, Marx e Engels
atribuíram ao proletariado o papel-chave no advento do so­
cialismo, menos por causa da miséria que êle sofre do que em
função do lugar que êle ocupa no processo de produção e na
capacidade que possui de adquirir por êste fato um talento de
organização e uma coesão na ação sem medida comum com
tôdas as classes do passado.

42 Fr. Engels: “ Ludwig Feuerbach und der Ausgang der klassischen


deutschen Philosophie” , Vorbemerkung (Prefácio), pág. 334, em Kar]
Marx e Fr. Engels, Ausgewählte Schriften in zw ei Bänden, II, Moscou,
1950.
26 PE N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE KARL M A R X

N ão há como contestar a capacidade revolucionária do


campesinato sem terra dos países do terceiro mundo nem co­
locar em dúvida o fato de que ela ofereceu o maior número
de participantes na luta revolucionária, em escala mundial, no
curso dos últimos anos. Mas duas notas devem completar essa
constatação para que ela não se transforme em uma imagem
falsa da realidade global. Primeiro, que êsse campesinato,
como os marxistas o previram, é nêle mesmo incapaz de con­
quistar o poder e de fundar novos Estados; é-lhe necessário,
para êsse fim, uma direção de origem, de composição e de ins­
piração proletárias.43 Em seguida, que êsse campesinato po­
bre é incapaz por êle mesmo de construir uma sociedade so­
cialista no sentido em que a entendia Marx, isto é, uma so­
ciedade que assegura um desabrochar pleno e completo de
tôdas as possibilidades humanas.
É precisamente porque a infra-estrutura de tal sociedade
não pode ser senão o produto da grande indústria moderna,
levada a seu desenvolvimento mais elevado, que a revolução
socialista, concebida enquanto processo mundial,44 pode co­
meçar em países subdesenvolvidos, mas não pode completar-se,
isto é, adquirir seu pleno desenvolvimento, senão quando en­
globar os países industrialmente mais avançados.
Para o resto, quando diversos sociólogos ou economistas
colocam em dúvida o papel do proletariado enquanto veículo
da transformação socialista no Ocidente, êles cometem geral­
mente dois erros: seja que êles pressupõem, em Marx, um de­
terminismo automático entre o grau de desenvolvimento indus­

43 Cf. Léon Trotsky, D ie russische Revolution 1905, 2.a edição, Viva,


1923, págs. 44-5. Lênin: “Estes fatôres essenciais fazem que essa fôrça
não possa agir por ela mesma; e eis por que as tentativas empreendidas
nesse sentido no curso de tôdas as revoluções sempre fracassaram. Quan­
do o proletariado não consegue tomar a direção da revolução, essa fôr­
ça se coloca sempre sob a direção da burguesia” (19 21 ), em Oeuvres
Choisies en 2 volumes, II, pág. 839. Cf. também: a Segunda Declaração
de Havana.
44 K. Marx: “ O comunismo não é possível empiricamente senão en­
quanto ação dos povos dominantes “ em uma só vez” ou simultaneamen­
te, o que pressupõe o desenvolvimento universal da fôrça produtiva e
da circulação mundial ligada a ela’ ’ ( Die Deutsche Ideologie, pág. 32,
Dietz Verlag, Berlim, 1953).
PROPRIED AD E PRIVAD A E C A PITA LISM O 27

trial e o grau de consciência de classe,*5 seja que êles consi­


deram o desenvolvimento dessa consciência de classe (e em
geral das condições subjetivas necessárias para a derrubada
do capitalismo ) de maneira retilínea.
!É evidente que M arx e Engels, chegados à idade de ma­
turidade, aprenderam claramente as relações dialéticas entre
o grau de desenvolvimento das fôrças produtivas e o grau de
desenvolvimento da consciência de classe.46 O que Engels es­
crevia a propósito do proletariado britânico do século X I X
se aplica, muíatis mutandis, ao proletariado americano do sé­
culo X X . Para demonstrar que êste não poderá preencher
sua missão revolucionária, não basta descrever os mecanis­
mos atoa/s de integração, de manipulação ideológica etc. É
preciso ainda demonstrar que os fatores que, a longo prazo,
jogam em sentido inverso—■a concorrência internacional cres­
cente que submete à erosão o monopólio americano de produ­
tividade e as vantagens de salários dos quais usufruem os
trabalhadores americanos em função dêste monopólio — não
modificarão o comportamento do proletariado. É preciso sobre­
tudo demonstrar que a automação, que não é senão a forma
mais radical da tendência histórica do Capital de fazer o tra­
balho morto substituir o trabalho vivo,47 poderá a longo prazo
coincidir com o pleno emprêgo e não chegará a retiradas que
uma inflação crescente acabará por não mais poder conter.
Essa demonstração nunca foi feita.
Quanto à esperança de ver a missão' emancipadora do
proletariado realizada por "minorias não-integradas” (mino­
rias radicais, estudantes, infraproletariado, ou seja, elementos
decididamente associais), ela se choca com o mesmo obstá­
culo ao qual se chocaram as insurreições de escravos em Roma.
Essas camadas são capazes, no limite, de revoltas desespera­
das. Mas não dispõem nem do poder social objetivo (da pos­

45 Cf.: “Êle (M arx) parece acreditar que a consciência de classe é uma


conseqüência psicológica necessária do desenvolvimento econômico obje­
tivo, que inclui a polarização em proprietários e trabalhadores” (C .
Wright Mills, The Marxists, pág. 114).
46 Cf. o Prefácio que Fr. Engels redigiu em 1892 para “ A Situação da
Classe Operária na Inglaterra” , págs. 390-393, em K. Marx, Fr. Engels,
Ausgewühlte W erke, vol. 2, Moscou, 1950.
47 Baran e Sweezy indicam que entre 1950 e 1962 o número de ope­
rários não-qualificados se reduziu nos Estados Unidos de 13 para 4 mi­
lhões como conseqüência da automação ( M onopoly Capital, pág. 267).
28 PENSAM EN TO EC O N Ô M IC O DE KARL M A R X

sibilidade de assegurar ou de paralisar a produção no seu


conjunto) nem da capacidade durável de organização neces­
sários para transformar a sociedade contemporânea.
Veremos mais adiante que Marx e Engels adquiriram rá­
pidamente a convicção de que as condições objetivas e subjeti­
vas favoráveis à derrubada do capitalismo não se desenvolvem
de maneira retilínea, mas seguem uma curva nitidamente in­
fluenciada pelas flutuações do ciclo industrial (ao mesmo tem­
po o ciclo setenal e ciclo de longa duração).48 O que é essen­
cial não é saber se a classe operária de um pais ou de um grupo
de países está temporàriamente passiva ou não.49 O que é es­
sencial é saber se as condições objetivas e subjetivas de sua
existência a impulsionam periódicamente para o caminho de
uma contestação de conjunto do regime capitalista.
A s condições objetivas de tal contestação são aquelas que
resultam do funcionamento mesmo do regime (principalmente
da regulação dos salários por meio do exército de reserva in­
dustrial; da insegurança de existência que daí resulta; da in­
suficiência do salário em relação às necessidades socialmente
suscitadas; do caráter alienante do trabalho etc). As condições
subjetivas são, em última análise, aquelas que fazem que o tra­
balhador considere sua condição como inferior e insatisfatória.
Uma massa de literatura recente demonstra que é assim, na
sociedade dita "de consumo” , como foi o caso no século pas­
sado.50

48 Ver capítulo 5.
49 Cf. Fr. Engels, Introduction à K. Marx, Les Luttes de Classes en
France ( 1848-1850), em Oeuvres Choisies en deux volumes, I, Moscou,
Ed. du Progrès, 1955.
50 Ver principalmente: A. Andrieux e J. Lignon, L’Ouvrier d’aujourd’
hui, Paris, Rivière, 1960; Hans-Paul Bahrdt, Walter Dirks u.a., Gibt es
noch ein Proletariat?, Frankfurt, Europäische Verlagsanstalt, 1962 etc.
Um exemplo divertido que diz respeito à Grã-Bretanha foi recentemente
revelado por Robin Blackburn ( “ Inequality and Exploitation’’, em New
Left Review, n.° 42, março-abril de 1967). Um sociólogo tinha dedica­
do um estudo à atitude dos trabalhadores da fábrica de Vauxhall, em
Luton, por respeito à direção de sua caixa: 77% daqueles que trabalha­
vam no departamento de montagem teriam manifestado uma “atitude
positiva’’. Apenas um mês depois da publicação dêsse estudo, houve uma
verdadeira revolta nessa mesma fábrica, dirigida precisamente contra
aquêles que fazem parte dessa direção.
2

Da Condenação do Capitalismo à Justificação


Sócio-Econômica do Comunismo

Foi no curso de seu exílio parisiense que Marx se lançou


àvidamente ao estudo da Economia Política, estudo que êle
prosseguiu durante seu exílio em Bruxelas, interrompeu na
sua volta à Alemanha, para terminar no Briíish Maseum du­
rante seu exílio londrino. “ A leitura do Esquisse de Engels
lhe tinha revelado que a crítica da filosofia política de Hegel
não era suficiente para elaborar, a partir de uma simples ne­
gação do Estado, essa teoria radical da sociedade, capaz de
“ tomar” as massas operárias e de as tornar conscientes do im­
perativo de uma revolução social que desse fim à sua aliena­
ção. . . Foi pois com a idéia de encontrar uma resposta para
essas questões que M arx se pôs a estudar a “ anatomia da so­
ciedade burguesa", tal como era possível descobri-la nos gran­
des e con om ista s...” 1 Podemos seguir a amplitude e a diver­
sidade dêsses estudos nas notas de leitura copiosas que êle nos
deixou e que foram em parte publicadas.2 N ão sabemos aliás
se todos os cadernos de notas de leitura de Marx foram efeti­
vamente encontrados.

1 Maximilien Rubel, Karl Marx, Essai de biographie intellectuelle, Pa­


ris, Rivière, págs. 117-8.
2 As “ notas de leitura parisienses” apareceram em grande parte em K.
Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 3, págs. 411-583; as notas de leitura feitas
em Bruxelas e por ocasião de uma viagem de seis semanas à Inglaterra,
no verão de 1845 (ef. Fr. Engels, prefácio a K. Marx, Das Elend der
Philosophie, Dietz, Stuttgart, 1920, pág. V II), não foram publicadas in
30 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE K ÂBL M A B X

Êsse estudo da Economia Política, assim como a colabora­


ção cada vez mais íntima com Friedrich Engels que data de se­
tembro de 1844, levarão Marx a clarificar suas idéias por res­
peito a seus mestres em Filosofia e velhos amigos: Hegel,
Feuerbach e os jovens pós-hegelianos da escola de Bauer.
Três obras resultam dessa polêmica que é ao mesmo tempo
uma espécie de monólogo interior e uma tentativa dos dois
novos amigos de tomar consciência de sua própria evolução:
os Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844, A Santa Fa­
mília e A Ideologi'a Alemã. Destas três obras, é a primeira que
marca uma etapa na evolução do pensamento econômico de
M a r x .3
Redigidos depois da leitura de uma série de economistas
de primeiro plano e consistindo aliás parcialmente em longas
citações extraídas de Adam Smith, de Pecqueur, de Loudon,
de Buret, de Sismondi, de James Mill e de Michel Chevalier,4
êsses três manuscritos económico-filosóficos representam o pri­
meiro trabalho econômico propriamente dito do futuro autor
do Capital. Uma crítica da Filosofia de Hegel constitui a quar­
ta parte. Êles tratam sucessivamente do salário, do lucro, da
renda fundiária, do trabalho alienado em relação com a pro­
priedade privada, da propriedade privada em relação com o
trabalho e com o comunismo, das necessidades, da produção e
da divisão do trabalho, assim como do dinheiro.
O conceito filosófico de alienação — que Marx tomou em­
prestado de Hegel, de Schelling e de Feuerbach5 — recebe pela
primeira vez nos seus M anuscritos de 1844 um conteúdo só-

extenso, mas se encontram resumidas em K . Marx, Fr. Engels, m e g a ,


I, 6, págs. 597-618; as notas de leitura feitas em Londres em 1850-1851
se encontram publicadas no tomo II de Karl Marx: Gmndrisse der Kritik
der politischen Oekonomie, Berlim, Dietz-Verlag, 1953.
3 Retomamos no penúltimo capítulo dêste estudo o exame das contro­
vérsias levantadas pelos Manuscritos de 1844, principalmente a respeito
do “ trabalho alienado” , e das relações entre as obras de juventude e as
obras ditas de “maturidade” de Marx.
4 A êsse propósito, D . I . Rosenberg sublinha que a idéia mestra que
liga todos os comentários críticos que contêm essas notas de leitura é
uma idéia emprestada do Esboço de uma Crítica da Economia Política,
de Engels: a Economia Política se apóia sôbre uma base falsa, a saber, a
pretensa inviolabilidade da propriedade privada (op. cit., pág. 8 7 ).
5 Jürgen Habermas constata aliás que Schelling fala já de “ o ser estra­
nho ao qual pertence o trabalho e o fruto do trabalho” , e que a supera-
C A P IT A L ISM O E C O M U N ISM O 31

cio-econômico aprofundado. Desde a sua Introdução à Crítica


da Filosofia do Direito de H egel, êsse conceito tinha aliás per­
dido seu caráter inteiramente filosófico. "M arx tinha retoma­
do de Feuerbach a concepção de um homem desumanizado, ou
alienado, ou mutilado. . . Mas Marx emprega agora a mesma
expressão num sentido nôvo. Nas relações políticas, êle iden­
tifica . . . o homem desumanizado com o homem desprezado e
desprezível, e coloca como glória da Revolução Francesa que
ela reconstituiu o homem, isto é, que ela o elevou ao nível de
cidadão livre.
“ Mas, assim fazendo, deslizamos para um contexto total­
mente nôvo, isto é, para uma problemática política ou ao menos
social. O homem alienado não é mais o indivíduo referido a
um universo de sonho religioso ou especulativo, mas o membro
de uma sociedade imperfeita que não está de posse de tôda a
sua dignidade humana. O homem num mundo desumanizado é
agora o homem numa sociedade desumanizada. . . ” 6
N os Manuscritos de 1844, o segrêdo dessa sociedade de­
sumanizada é revelado. A sociedade é desumana, porque o tra­
balho nela é um trabalho alienado. Trazer a sociedade e o ho­
mem social ao trabalho, Marx podia fazê-lo tanto mais facil­
mente quanto Hegel já tinha caracterizado o trabalho como a
natureza essencial da praxis humana. Ora, estudando os eco­
nomistas clássicos, M arx descobre que êstes fazem do trabalho
a fonte última do valor. A síntese se fêz em um clarão, as
duas noções foram combinadas, e se crê verdadeiramente assis­
tir a essa descoberta examinando as notas de leitura de Marx,
sobretudo o célebre comentário das notas de leitura de James
M ill,7 onde Marx parte do caráter da moeda, meio de troca,

ção materialista da dialética do trabalho foi pressentida por Schelling


( Theorie und Praxis, págs. 154-6).
6 Paul Kãgi, ibid., págs. 194-5.
7 m e g a , I, 3, pág. 531. Eis outra passagem das mesmas notas sôbre
James Mill: “ Uma vez admitida a existência da relação de troca, o tra­
balho torna-se trabalho diretamente consagrado à subsistência (unmittel-
bare Erwerbsarbeit). . . tanto quanto mais a produção se toma multifor­
me, tanto mais multiformes aparecem então de um lado as necessidades,
e tanto mais uniforme se tomam por outro lado as realizações do produtor,
tanto mais seu trabalho cai na categoria do trabalho de subsistência, até
que não tenha mais essa significação e que se torne totalmente aciden­
tal e sem importância saber se o produtor tem uma relação de usufruto
32 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE KARL M A R X

instrumento de alienação, para chegar às relações de alienação


que substituem as relações humanas.
A o mesmo tempo, o comunismo filosófico torna-se um co­
munismo sociológico, isto é, fundado na análise da evolução
das sociedades e de sua lógica. É verdade que em Zur Kritik
der NationalÖkonomie, M arx se declara sempre partidario da
“ crítica positiva, humanista e naturalista de Feuerbach” .8 M as
ésse humanismo recebe agora, êle também, um conteúdo socio­
económico preciso: é identificado com o comunismo que supe­
ra positivamente a propriedade privada, a divisão do trabalho
e o trabalho alienado.9
N o lugar da oposição entre "comunismo das massas ope­
rárias” e “ comunismo filosófico” , que Engels tinha introduzi­
do nos seus artigos sôbre o comunismo para The N ew Moral
W orld, Marx distingue em Z u r Kritik der Nationalökonomie
o “ comunismo primitivo” e o “ comunismo enquanto superação
positiva da propriedade privada” .10 O primeiro, nascido da in­
veja grosseira, não chega senão à generalização do trabalho
alienado, a um "nivelamento partindo do mínimo” . O segundo,
por outro lado, constitui “ a superação positiva de tôda aliena­
ção, a volta do homem, da religião, da família, do Estado etc.
para o seu ser humano, isto é, social” .11 E Marx precisa já
que isso pressupõe, por um lado, a socialização dos meios de
produção, a supressão da propriedade privada e, por outro
lado, um grau de desenvolvimento elevado das fôrças produ­
tivas. Essa idéia constitui um progresso em relação a todos os
escritos comunistas anteriores a Marx e a Engels, assim como
os escritos dos socialistas utópicos. Ela será desenvolvida mais
ainda na Ideologia A lem ã }2
imediato e de necessidade pessoal com seu produto, e se a atividade, a
ação do trabalho, é para êle auto-usufruto de sua personalidade, reali­
zação de seu talento natural e finalidade espiritual’' (ibid., pág. 539).
8 K. Marx: “ Zur Kritik der Nationalökonomie, Oekonomisch-philoso-
phische Manuskripte” , em K. Marx, Fr. Engels, Kleine ökonomische
Schriften, Berlim, Dietz-Verlag, 1955, pág. 42.
9 Ibid., págs. 127-29. A experiência da revolta dos tecelões da Silesia,
que se produziu enquanto Marx redigia os Manuscritos de 1844, certa­
mente influenciou essa tomada de consciência.
10 Ibid., págs. 124-6 e 127-9.
11 Ibid., pág. 128.
12 É preciso lembrar que o economista suíço Schulz já tinha elaborado
idéias análogas antes de Marx, e que êste se apoiou no trabalho de Schulz
(Auguste Cornu, Karl Marx und F. Engels, v ol. 2, pág. 123).
C A P IT A L ISM O E C O M U N ISM O 33

Seguindo a lógica de urna crítica da propriedade privada


do capitalismo •— e não aquela de uma exposição de conjunto
das leis de desenvolvimento do modo de produção capitalista
—•Z u r Kritik der Nationalökonomie começa por uma análise
da pobreza provocada pela propriedade privada, antes que por
uma análise da riqueza criada pela produção das mercadorias
(ponto de partida de todos os trabalhos clássicos de Economia
Política, que o próprio Marx retomará no Capital). A pobreza
produzida pela propriedade privada se encontra contida intei­
ramente no salário e suas .leis de evolução. A análise do salá­
rio se efetua nos Manuscritas Económico-Filosóficos sôbre a
base da teoria clássica de Adam Smith e Ricardo, influenciada
por Malthus. Sob o efeito da concorrência entre os operários, o
salário tende a cair para o nível de subsistência mais baixo.
Mas ao contrário de Malthus e de Ricardo, Marx precisa que
êste não é um feito fatal de qualquer “ lei do crescimento da
população” , mas o efeito da separação dos operários de seus
meios de produ ção.13
N o entanto, Marx matiza já essa "lei” dos salários dis­
tinguindo três movimentos divergentes dos salários no curso
de três fases sucessivas do ciclo econômico: a fase da depres­
são; a fase do “boom ” , e a fase na qual a acumulação dos ca­
pitais atingiu sua expansão máxima.
Na primeira fase, os salários baixam sob o efeito do de-
semprêgo, e uma parte da classe operária cai na degradação e
na miséria mais negra. Na terceira fase, os salários permane­
cem estacionários a um nível relativamente baixo (M arx reto­
ma aqui textualmente uma tese de R icard o). É pois a. segunda
fase que é a mais favorável para os operários, visto que a pro­
cura de mão-de-obra supera a oferta, a concorrência entre os
capitalistas se acentua e os salários podem aumentar.
Ora, que se passa em período de “ boom” ? A expansão
acentua a acumulação e a concentração dos capitais. O número
de capitalistas decresce-, enquanto o número de operários au­
menta rápidamente. O maqumismo se estende degradando o
operário ao estado de uma máquina “ animada” ; esta entra por
isso em concorrência direta com êle. Por outro lado, o “ boom”
produz invariàvelmente a superprodução, que conduz por sua

13 K. Marx, Fr. Engels, Kleine ökonomische Schriften, pág. 46 ( Zur


Kritik der Nationalkönomie).
34 PENSAM EN TO EC O N O M IC O DE K ARL M A R X

vez ao desemprêgo e à baixa dos salários.14 Vê-se, nesse es­


quema inicial do funcionamento do regime capitalista, que au­
mentos de salários não podem intervir senão provisoriamente
e estão condenados a ser impiedosamente apagados pela lógi­
ca do sistema. M arx não modificará êsse esquema senão dez
anos mais tarde.
Êle pressentiu no entanto a teoria da “ pauperização re­
lativa” afirmando que, mesmo em períodos de alta conjuntura,
'‘o aumento dos salários é mais do que compensado, para o
capitalista, pela redução da quantidade do tempo de traba­
lho.” 15 A expressão é ainda obscura e desajeitada. O que
Marx exprime aqui por intuição mais. do que por compreen­
são é o fato de que as mercadorias das quais o salário deve
realizar o valor podem conhecer uma baixa de valor rápida,
em seguida ao aumento da produtividade, ou, o que dá no
mesmo, que o contravalor pode ser produzido numa fração
cada vez mais reduzida da jornada de trabalho. Marx cita
aliás uma passagem do livro de um economista suíço hoje
esquecido, W ilhelm Schulz (D ie Bewegung der Produktion) ,
no qual êste formula notàvelmente a lei da “ pauperização
relativa” . 10
Da mesma forma, Marx não distingue ainda corretamen­
te o capital constante do capital variável, como o fará nos seus
escritos econômicos clássicos, mas se limita a distinguir com
Adam Smith, entre o “ capital fixo” e o “ capital circulante".17
N o domínio da renda fundiária, êle segue a teoria de Ricardo
insistindo sôbre o fato de que o capital acaba por incorporar
a propriedade imobiliária, por transformar o proprietário fun­
diário em capitalista.
Numa passagem marcante, onde Marx se move na fron­
teira da Filosofia e da Economia Política, êle afirma que era
necessário que a propriedade fundiária fôsse totalmente arras­
tada no “ movimento da propriedade privada” ; que na agricul­
tura igualmente a relação entre senhor e operário se reduza à
simples relação entre explorador e explorado; que tôda relação
pessoal entre o proprietário (fundiário) e sua propriedade
deixe de existir, para que a luta contra a propriedade privada
C A P IT A L ISM O E C O M U N ISM O 35

enquanto tal possa ser conduzida com eficácia. 18 Aqui também,


a Ideologia Alemã marcará um importante passo adiante do
raciocínio, que se destaca completamente dos seus antecedentes
lilosófico-moralizadores.
A parte mais célebre dos Manuscritos Econômico-Filosó-
ficos é a análise das raízes sócio-econômicas da alienação. É
ao mesmo tempo sob a influência de Engels e de Moses Hess
que êle levanta um paralelo entre o trabalho alienado no capi­
talismo e o homem alienado pela religião. Quanto mais o ope­
rário trabalha, tanto mais cria um mundo de objetos que lhe
são hostis e que o esmagam.19 Mas, contràriamente ao que êle
tinha escrito antes, quando havia identificado alienação e pro­
priedade privada, M arx se esforça agora por cavar mais pro­
fundamente e descobre as raízes últimas da alienação humana
no trabalho alienado, isto é, na divisão do trabalho e na pro­
dução mercantil. Entre produção mercantil, divisão do traba­
lho e propriedade privada há uma interação constante na pro­
dução da alienação, mas é a divisão do trabalho que é seu
ponto de partida histórico.20
Marx demonstra que a alienação não se limita à aliena­
ção do produto do trabalho e dos meios de produção, que se
tornam fôrças exteriores hostis, esmagando o produtor. Êle
efetua principalmente uma análise lúcida dos efeitos que a pro­
dução de mercadorias, em regime de concorrência, provoca em
matéria de alienação das necessidades. Essa passagem é uma
antecipação grandiosa. A maior parte das tendências que Marx
destacou há cento e vinte anos não foram senão embrionárias
no século X IX e não se realizaram em grande escala senão na
nossa época. Eis uma passagem que parece ser um comentário
imediato de Vance Packard ou de Dichter: “ Cada homem es­
pecula para criar uma nova necessidade para o outro, e para o
abrigar a novos sacrifícios, para lhe impor uma nova relação
de dependência, e para o seduzir para um nôvo modo de usu­
fruto, e por êsse fato para a ruína econômica.
" . . . Com a massa dos objetos se desenvolve também o
império dos sêres estranhos aos quais o homem é submetido, e

18 Ibid., págs. 92-3.


19 Auguste Comu, Karl Marx, l’homme et l’oeuvre, Paris, 1934, Li-
brairie Felix Alcan, págs. 332-4.
20 K. Marx, “Zur Kritik der Nationalökonomie” , em K. Marx, Fr. En­
gels, Kleine ökonomische Schriften, págs. 108-9, 128.
36 PENSAM EN TO EC O N Ô M IC O DE KARL M A R X

cada nôvo produto é um nôvo elemento potencial de engano


recíproco e de pilhagem mútua. O homem torna-se tanto mais
pobre enquanto homem, tem necessidade de mais dinheiro a
fim de se apropriar dêsses sêres estranhos, e o poder de seu
dinheiro cai em proporção inversa da massa da produção, isto
é, seu estado de necessidade aumenta na mesma medida em
que o poder do dinheiro aumenta. . . Subjetivamente, isso se
apresenta em parte de maneira tal que a expansão dos produ­
tos e das necessidades21 se torna o escravo dotado de poder de
invenção e sempre calculador de desejos desumanos, refinados,
contra a natureza e imaginários. . . ” 22
Um desenvolvimento rápido do aspecto desumano da di­
visão do trabalho,23 que encontra aliás um eco célebre na Ideo­
logia Alemã ( . . . enquanto na sociedade comunista, onde
cada um não tem um círculo exclusivo de atividade, mas
onde cada um pode qualificar-se em cada ramo desejado, a so­
ciedade regula a produção geral e me torna assim capaz de
fazer hoje isso, amanhã aquilo, de caçoar de manhã, de pescar
à tarde, de fazer a crítica depois do jantar, como me agrada,
sem jamais tornar-me [totalmente] caçador, pescador, pastor
ou crítico” ) ;24 retoma a idéia inicial de que é na divisão do
trabalho que o trabalhador alienado possui sua verdadeira
origem.
Certamente, os Manuscritos d e 1844 não constituem uma
obra econômica de maturidade. É fragmentariamente que Marx
apreende os problemas de uma crítica global da Economia Po­
lítica. Essa crítica encalha ainda num escolho fundamental:
Marx não resolveu ainda o problema do valor e da mais-valia.

21 Num pequeno romance intitulado muito a propósito Les Choses,


Georges Perec descreveu magistralmente o homem contemporâneo, es­
cravo de um amontoado cada vez mais incontrolável de objetos de con­
sumo.
22 K. Marx, Zur kritik der nationalókonomie, págs. 140-141. Um exem­
plo extremo dessas necessidades “ desumanas, refinadas, contra a natu­
reza e imaginárias” suscitadas pela produção capitalista é oferecido pela
indústria americana das pompas fúnebres que inclui “ camas Beautyra-
ma” , acolchoados incluídos nos caixões para que os corpos aí repousem
mais suavemente (Jessica Vitford, The American W a y of Death, pág.

23 Ibid., págs. 157-160.


24 K. Marx, Fr. Engels, Die Deutsche Ideologie, Berlim, Dietz-Verlag,
1953, pág. 30. Ver também ibid., págs. 464-5.
C A P IT A L ISM O E C O M U N ISM O 37

Ele não apreendeu ainda o que havia de racional na teoria


clássica, sobretudo na de Ricardo. Suas análises econômicas se
ressentem disso inevitavelmente. Mas, ao mesmo tempo, per­
manece-se sempre enfeitiçado pelo impulso que toma o espírito
crítico, pela audácia da visão histórica, pela implacável lógica
que vai ao fundo das coisas. E ganha-se rapidamente a con­
vicção de que, desde o momento em que êle redigiu seus M a ­
nuscritos, Marx já havia construído um dos fundamentos de
sua teoria sócio-econômica.
A Santa Família não responde, propriamente falando, a
preocupações econômicas. Também sua contribuição para a
evolução do pensamento econômico de M arx e de Engels
é antes secundária. Os dois autores aí permanecem agarra­
dos a uma concepção1 eclética do valor que Engels já. tinha
exposto em Umrisse zu einer Kritik der Nationalökonomie. 25
Com o o fêz no artigo que acabamos de citar, Engels continua
a afirmar que seria utópico da parte dos operárias querer
realizar uma redução da jornada de trabalho em regime
capitalista.26
Por outro lado, as passagens de A Santa Família con­
cernentes a Proudhon são particularmente interessantes à luz
da polêmica que se seguirá dois anos mais tarde, e que per­
mitirá a Marx expor pela primeira vez uma análise de con­
junto do modo de produção capitalista. Em A Santa Família,
Marx afirma, é verdade, que “ Proudhon permanece ainda
prisioneiro das hipóteses de base ( Voraussetzungen) da E co­
nomia Política que êle combate” . 27 M as êle celebra a crítica
da propriedade privada efetuada por Proudhon como sendo

25 Dois exemplos: na pág. 128 da edição de Mehring, Marx afirma


em A Santa Família: “ O valor é no com eço aparentemente determinado
de maneira racional pelos custos da produção de uma coisa e por sua
utilidade social. Depois, verifica-se que o valor é uma determinação pu­
ramente acidental, que não tem necessariamente relações nem com os
custos de produção nem com a utilidade social.”
Na pág. 147 da mesma obra, Marx escreve: “ Que o tempo de
trabalho que custou a produção de um objeto faça parte (sic) de seus
custos de produção. . . eis um ponto de vista que mesmo a crítica deve
ter-se apropriado.”
26 Cf. Fr. Mehring, Einleitung, Aus dem literarischen Nachlass von
Karl Marx und Friedrich Engels 1841-1850, II, págs. 76-7. A passagem
criticada de Fr. Engels se encontra ibid., pág. 109.
27 Ibid., pág. 127.
38 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE K ARL M A R X

"o primeiro exame crítico, e éste o primeiro exame resoluto,


sem escrúpulos e ao mesmo tempo científico. Éste é o grande
progresso científico que êle efetuou, um progresso que cons­
titui uma revolução da Economia Política e que somente tor­
nou possível uma verdadeira ciência da Economia Política.
A obra de Proudhon Q u ’est-ce que la propriété? tem a mesma
significação para a Economia Política moderna que a obra de
Sieyès Q u ’est~<\et que le tiers Etat? tem para a política mo­
derna” . 28
Uma boa parte de A Santa Família é aliás uma defesa
de Proudhon contra ideólogos alemães “ críticos” , que não o
leram senão de maneira negligente e que se mostraram mes­
mo incapazes de o traduzir corretamente.
N o caminho, M arx supera o ponto de vista ainda errô­
neo defendido por Engels em Umrisse no que concerne às
relações entre salários e lucros, e nota corretamente (pág. 128)
que essas duas rendas se relacionam de maneira “ hostil” uma
em comparação com a outra. A “ liberdade contratual” entre
operário e capitalista, na determinação do salário, vela uma
relação que obriga o operário a aceitar o salário que lhe é
oferecido.
Se os Manuscritos Económico-Filosóficos constituem um
primeiro esforço de Marx para criticar os dados clássicos da
Economia Política à luz da realidade da sociedade burguesa,
A Ideologia Alemã, a obra filosófica principal que Marx e
Engels terminam em Bruxelas em 1846, funda a teoria do ma­
terialismo histórico sôbre uma superação sistemática da Fi­
losofia pós-hegeliana alemã. Pela primeira vez, “ Marx e En­
gels passam de uma análise que se poderia chamar de “ fe-

28 Ibid., pág. 127. É interessante comparar essa opinião com aquela


que Marx formulou vinte anos mais tarde a respeito da mesma obra.
“ Sua primeira obra, Qu’est-ce que la propriété?, é incontestavelmente
sua melhor. Ela marca época, senão por seu conteúdo, em todo caso pe­
la maneira nova e impertinente de tudo exprimir. Evidentemente, nas
obras dos socialistas e comunistas franceses que êle conhecia, a “ pro­
priedade” não somente tinha sido amplamente criticada, mas ainda utó­
picamente “ suprimida” . Proudhon ocupa nessa obra uma posição por
respeito a Saint-Simon e Fourier mais ou menos equivalente àquela que
Feuerbach ocupa por respeito a H e g e l.. . Numa história severamente
científica da Economia Política, a obra mereceria apenas ser mencionada”
(Karl Marx: Carta ao “ Sozialdemokrat” , de 24 de janeiro de 1865, págs.
XXV e XXVI e Das Elend der Philosophie, 8.a ed., Dietz, Stuttgart, 1920).
C A P IT A L ISM O E C O M U N ISM O 39

nomenológica” do desenvolvimento histórico-social para uma


análise “ genética” . 29 A s passagens propriamente econômicas
não são abundantes. Em geral, elas retomam o que M arx já
havia desenvolvido em Zur Kritik der Nationalökonomie, mas
algumas vêzes com precisões e esclarecimentos preciosos.
Assim a passagem bem conhecida da Ideologia Alemã
onde se lembra o caráter universal do comunismo, a necessi­
dade de o fundar sôbre o desenvolvimento mundial das fôrças
produtivas e das necessidades, sem o que não se generaliza­
ria senão a indigência, “ e com a necessidade recomeçaria a
luta para os necessitados, e tôda a velha m . . . se reproduzi­
ria” . 30 Assim todo o desenvolvimento da idéia de que a divi­
são do trabalho é a fonte da alienação humana, que acaba­
mos de citar numa passagem mais acima. Assim a afirmação
cortante segundo a qual “ o comunismo não é um ideal sôbre
o qual a realidade se deve remodelar. Chamamos comunismo
o movimento real que supera a situação atual” . Assim a defi­
nição surpreendente das fôrças produtivas que se tornam fôr­
ças de destruição, sob o pêso das contradições capitalistas.
Assim uma primeira definição do materialismo histórico, por
certos lados mesmo mais curta e mais rica ao mesmo tempo
que a definição célebre, contida na Introdução à Crítica da
Economia Política. 31
N o entanto, três contribuições reais para o progresso do
pensamento econômico de M arx e de Engels podem ser des­
tacadas na Ideologia Alem ã. A primeira refere-se a uma
visão mais dialética do capitalismo e do comércio mundial,
cujos primeiros sinais — não-elaborados ■ —- já podiam ser
percebidos em Zur Kritik der Nationalökonomie. A generali­
zação das relações mercantis não é somente a mutilação ge­
neralizada dos indivíduos e a venalidade generalizada da
v id a .32 Ela é também seu enriquecimento potencial, pelo fato
de que ela quebra o quadro estreito de sua existência local,
onde seus desejos, suas possibilidades estão estreitamente li­
mitados pela ignorância do que é possível ao homem em

29 Emílio Agazzi: “ La formazione delia metodologia di Marx” , em


Rivista Storíca dei Socialismo, n.° 23 ( setembro-dezembro de 1964), pág.
461.
30 K. Marx, Fr. Engels, D ie Deutsche Ideologie, pág. 31.
31 Ibid., págs. 29-32, 69, 44.
32 Cf. K. Marx, Das Elend der Philosophie, pág. 5.
40 PENSAM EN TO EC O N O M IC O DE KAKL M A R X

outras regiões e so,b outros céus. “ A riqueza espiritual real


do indivíduo depende da riqueza de suas relações reais.” E é
somente graças ao mercado mundial que êles adquirem "a
capacidade de usufruir essa produção universal de tôda ter­
ra” . 33 M arx voltará a essa idéia nos Gmndrisse, falando “ do
grande aspecto histórico do C apital.” 34
A segunda refere-se ao desenvolvimento universal das
necessidades humanas, que a grande indústria moderna já pre­
parou e que o comunismo deve realizar.35 Êle está aliás es­
treitamente ligado ao problema do comércio mundial. Marx e
Engels aprofundam aqui sua crítica da relação do homem com
as coisas, matizando-a de maneira dialética. Enquanto nos
Manuscritos de 1844 a multiplicação das coisas era ainda
vista como fenômeno essencialmente negativo, na Ideologia
Alemão êles sublinham que um desenvolvimento de tôdas as
possibilidades humanas implica o desenvolvimento universal
de suas fruições ( “ . . . adquirir a possibilidade de usufruir
dessa produção universal de tôda terra” ).36 Essa idéia será,
ela também, amplamente desenvolvida nos Gmndrisse,
A terceira refere-se ao modo de distribuição da socie­
dade futura: “ . . . a regra falsa, fundada sôbre nossas con­
dições existentes, "a cada um segundo suas capacidades” , na
medida em que ela se relaciona à fruição no sentido mais es­
treito, deve ser transformada na regra: "a cada um segundo
suas necessidades” . . .; em outras palavras, a diferença de
atividade, de trabalhos, não justifica a desigualdade, os pri­
vilégios de propriedade ou de fruição” . 37 Será necessário es­
perar a Crítica do Programa de Gota para reencontrar essa
advertência que quase não se cita corretamente na literatura
de propaganda dita marxista. . .
Há evidentemente uma relação entre êsses três elementos
novos do pensamento econômico de Marx e de Engels que se
destacam da Ideologia Alemã., A universalidade das necessi­
dades concedida como parte integrante da universalidade do

33 K. Marx, Fr. Engels, Die Deutsche ldeólogie, pág. 34; ver tam­
bém pág. 59.
34 K. Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Oekonomie, pág. 231.
35 Ihid., pág. 34.
36 Ibid., pág. 585.
37 K. Marx, Fr. Engels, Die deutsche Ideologie, págs. 34-5, 68-9, 456-7
etc.
CA PITALISM O E COM UM ISN O 41

desenvolvimento humano é criada pelo comércio mundial e a


grande indústria. E a rejeição de tôda “ distribuição segundo
o trabalho” ou "segundo as capacidades” na sociedade comu­
nista se funda precisamente sôbre a necessidade de assegurar
êsse desenvolvimento universal para todos os homens.
A partir da Ideologia Alemã, M arx e Engels estabelecem
claramente os laços que unem a abolição da produção mer­
cantil e o advento de uma sociedade comunista.38 Êles não
modificarão mais essa opinião até o fim da vida dêles. Con­
cepções que admitem a sobrevivência da produção mercantil
mesmo em sociedade comunista39 são em todo caso estranhas
à teoria marxista.

38 Ibid., pág. 32.


39 Branko Horvat, Towards a Theory of Planned Economy, págs. 131-
133, Yugoslav Institute of Economic Research, Belgrado, 1964.
3

Da Recusa à Aceitação da Teoria do


V alor-T rabalho

Para verdadeiramente compreender, vale mais começar


por não compreender. !Êste velho adágio popular se reflete
na atitude que o jovem M arx adotará por respeito à teoria
do valor-trabalho, elaborada pela escola clássica inglêsa de
Economia Política, e que êle será levado a perfazer mais tarde.
Nas notas críticas que acompanham seu primeiro estudo
sistemático da Economia Política,1 M arx rejeita explicita­
mente o valor-trabalho. Na Miséria da Filosofia, Marx o
aceita não menos explicitamente.2 Entre êsses dois escritos
se passam três anos: do comêço de 1844 ao comêço de 1847,
Como o pensamento econômico de Marx evoluiu durante êsse
período? É possível precisar além disso, se não o momento
exato, ao menos o período aproximado, no qual Marx aceitou
a teoria do valor-trabalho? Eis as duas questões às quais nos
esforçaremos por responder.
O ponto de partida dessa análise é constituído pelas
notas de leitura de Marx durante seu exílio em Paris, notas
que se dividem num ano inteiro (com êço de 1844-comêço de
1845) . A hipótese de trabalho segundo a qual essas notas se
apresentam numa ordem cronológica é mais do que verossí-

1 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 3, págs. 409-583.


2 K. Marx, Das Elend der Philosophie, edição Bernstein-Kautsky, 8.a
ed., Dietz-Verlag, Stuttgart, 1920.
TE O R IA DO VA LO R -TR A B A LH O 43

mil; foi aceita por todos os comentadores por nós conhecidos.3


Nesse sentido, um exame atento dessas notas nos permite já
destacar uma certa evolução da atitude de Marx por respeito
à teoria do valor-trabalho.
Os economistas que êle comenta se apresentam princi­
palmente na seguinte ordem; Jean-Baptiste Say, Adam Smith,
Ricardo (na edição francesa, acompanhada de notas críticas
de Jean-Baptiste S a y ), James Mill, M cCulloch e Boisguille-
,bert. Ê em Adam Smith que Marx encontra pela primeira vez
a definição clássica do valor. Êle copia a seguinte passagem

S
da Riqueza das N ações: "N ão é com o ouro ou com o dinhei­
ro, é com o trabalho que tôdas as riquezas do mundo foram
O • compradas originàriamente, e seu valor para aqueles que as
co oj possuem e que procuram trocá-las por novos produtos é pre-
3 ^ cisamente igual à quantidade de trabalho que elas colocam
uj em situação de comprar ou de encomendar” .4 Mas êle não
° acrescenta comentários, reservando sua crítica a outra passa­
gem de Adam Smith, onde êste havia deduzido a divisão do
^ J trabalho de uma exigência de troca, a existência da troca de-
<£ pendendo por sua vez da existência prévia da divisão do tra-
^ jS balho.5 É abordando Ricardo que êle formulará sua polêmica
c £3 contra a teoria do valor-trabalho.
^ § Êle o faz seguindo passo a passo a polêmica que Engels
já havia desenvolvido sôbre o mesmo assunto nos seus Umrisse
Q zu einer Kritik der Natíonalõkonomie. O valor das mercado­
rias é ainda concebido como idêntico aos preços. Êle é com­
posto da contribuição do trabalho e daquela dos materiais
sôbre os quais opera o trabalho. M arx aprova a nota de
Proudhon, segundo a qual a renda e o lucro são “ superacres-
centados” e constituem pois um fator de reencarecimento dos
preços.6 Marx aceita a censura de Say por respeito a Ricardo,
segundo a qual êste faz abstração da procura na determinação
do valor. Êle reduz a lei da oferta e da procura a dois fenô-
NUi menos de concorrência: a concorrência entre fabricantes, que
determina a oferta; a concorrência entre consumidores, que
determina a procura. M as esta última, conclui Marx critican-
ò0
3 Ver principalmente D. I. Rosenberg, ibid., pág. 95.
4 Adam Smith, La Richesse des Nations, I, págs. 60-1 da edição cita-
(Vf\ da por Marx, em M e g a , I, 3, pág. 458.

%
\ 51 6 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 3, pág. 458.
6 Ibid., pág. 501.

d\
44 P E N S A M E N T O EC O N O M IC O DE KARL M A R X

do J. - B . Say, se dissolve na prática em considerações sôbre


a moda, os caprichos e o a ca so.7 E êle não aceita a “ lei das
saídas” que postula uma identidade última entre oferta e pro­
cura, tornando incompreensível o fenômeno das crises perió­
dicas.
M as a censura fundamental que Marx faz por respeito
à teoria do valor-trabalho é que a Economia Política é obri­
gada a fazer abstração da concorrência. Ora, a concorrência
é a realidade. Para dar maior coesão a suas próprias leis, a
Economia Política é pois obrigada a considerar a realidade
como acidental e a abstração somente como real.8
Essa objeção ê tanto mais válida aos olhos de Marx que
êle censura precisamente a Economia Política de xrelar uma
relação de exploração, contida na instituição da propriedade
privada, por trás de considerações jurídicas abstratas. Se neste
último caso é preciso descer de princípios abstratos para a
realidade tangível a fim de compreender a natureza da “ so­
ciedade civil” , por que o esforço mesmo não seria válido no
domínio do valor, onde é preciso pois abandonar igualmente
o universo das concepções abstratas em favor da “ realidade
fenomenológica” , isto é, do mundo dos preços?9
Marx liga a essa crítica da teoria do valor-trabalho uma
nota muito perspicaz que diz respeito ao "valor do trabalho”
na teoria ricardiana. “ N o comêço dêste capítulo, o filantropo
Ricardo apresenta os meios de subsistência enquanto preço
natural do operário, igualmente pois como finalidade única
de seu trabalho, visto que êle trabalha por seu salário. Onde
permanecem então as faculdades intelectuais? Mas Ricardo
não quer senão (confirmar) as distinções das diferentes clas­
ses. É o círculo habitual da Economia Política. A finalidade
é a liberdade espiritual. Então é preciso (impor) a servidão
espiritual à maioria. A s necessidades físicas não são a única
finalidade (da vida). Elas se tornam pois a única finalidade
para a maioria.” 10
E, ,no mesmo contexto, êle se investe mais adiante con­
tra Ricardo, quando êste afirma que somente a renda líqui­
da (representada como a soma do lucro e das rendas) de

7 Ibid., pág. 493.


8 Ibid., pág. 502.
9 Ver também D. I. Rosenberg, ibid., págs. 92-3.
10 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 3, pág. 504.
TE O R IA DO VA LO R-TR AH ALH O 45

um país importa, e não a renda bruta. “ Pelo fato de que a


Economia Política contesta tôda importância à renda bruta,
isto é, à quantidade da produção e do consumo, abstração
feita ao supérfluo, de que ela contesta pois tôda importância
da própria vida, sua abstração atingiu o cume da infâmia.
Aqui reconhece-se: 1) que não se trata para ela de maneira
alguma do interesse nacional, do homem, mas somente de
uma renda líquida, do lucro, da renda, que aí está a finali­
dade última da nação; 2) que a vida de um homem não tem
em si nenhum valor; 3) que mais especialmente o valor da
classe operária se reduz aos custos de produção essenciais, e
que êles não estão aí senão para (produzir) o lucro dos ca­
pitalistas e a renda dos proprietários fundiários.”11
Mas examinando a crítica de J . - B . Say e de Sismondi
a respeito dessa tese de Ricardo, M arx já dá um passo à
frente. O que êsses dois economistas contestam, diz êle, é a
expressão cínica de uma verdade econômica.12 Para combater
as conseqüências desumanas da Economia Política, Say e Sis­
mondi devem sair de seus limites. Isso demonstra pois que o
humanismo se encontra fora desta ciência, que se trata de
uma ciência desumana.
Apesar do vigor da expressão polêmica, Marx começa
aqui a defender Ricardo contra suas críticas, a apreender
que o que aparece como cinismo é na realidade um reconheci­
mento franco da realidade do modo de produção capitalista,
que outros autores se esforçam por velar.
Quando comenta os escritos de James Mill, Marx reto­
ma a censura dirigida a "Ricardo e sua escola” . Ela faz abs­
tração da realidade, que mostra uma discordância entre custos
de produção e valor de troca, e não se átém senão a uma
"lei abstrata” . M as êsses comentários marcam já um segundo
passo à frente. :Êle não mais rejeita inteiramente a “ lei abstra­
ta” ; êle a considera somente como “ um momento do movi­
mento real” . Quando a oferta e a procura se equilibram, são
efetivamente os custos de produção que determinam os pre­

11 Ibid., pág. 514.


12 Êle empregará a mesma fórmula no que concerne ao “ cínico Ricar­
do” num artigío publicado no Vorwärts de 7 e 10 de agôsto de 1844:
“ Glosas críticas relativas ao artigo: “ O rei da Prússia e a reforma social” ,
em Aus dem literarischen Nachlass von Karl Marx und Friedrich Engels,
vol. 2, pág. 45.
46 PENSAM EN TO EC O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

ços. Mas a oferta e a procura não se equilibram senão ex­


cepcionalmente, em conseqüência de suas oscilações e de seu
desequilíbrio. A Economia Política deveria pois explicar o
movimento real, que representa uma unidade dialética de cor­
respondência e de não-correspondência entre os custos de
produção e o valor de troca.13
Os comentários dos economistas clássicos nas notas de
leitura do exílio em Paris determinam a atitude de Marx por
respeito à teoria do valor nos seus escritos de 1844 e de
1845, principalmente nos Manuscritos Econômico-Filosóficos
e em A Santa Família. Valor-trabalho e preço continuam a
ser separados um do outro; o primeiro continua a ser decla­
rado “ abstrato” , o segundo somente “ concreto” . Por outro
lado, como assinalamos, em A Santa Família, o tempo de
trabalho que custou a produção de uma mercadoria é consi­
derado como “ fazendo parte” de seus "custos de produção” ;
êstes não são reduzidos àqueles.
M as no momento em que acaba a redação de A Santa
F'amilia, Marx já elaborou o plano de outra obra que consti­
tuiria uma “ Crítica da Política e da Economia Política” . A
1- de fevereiro de 1845, êle concluiu um contrato com o editor
C . W . Leske para lhe fornecer êste livro, para o qual os
Manuscritos Econôm ico-Filosóficos cie 1844 foram sem dú­
vida um primeiro esbôço. E desde 20 de janeiro de 1845,
Engels o apressa para acabar seu livro concernente à Eco­
nomia Política,!14 o que prova pois que Marx já tinha seme­
lhante obra em elaboração. O manuscrito desta obra parece
ter-se perdido;15 êle existia ainda em 1847, visto que, na sua
carta a Annenkov de 28 de dezembro de 1846, M arx escre­
ve; "Eu gostaria de enviar, junto com êste livro (Miséria da
Filosofia, E. M .), meu trabalho sôbre Economia Política, mas
até agora não me foi possível fazer publicar êste livro. . . ” 16
Para redigi-lo, Marx empreendeu de seu exílio em Bru­
xelas uma viagem de seis semanas à Grã-Bretanha, em com­
panhia de Engels, e estudou principalmente todos os livros

13 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I , 3, págs. 530-31.


14 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , III, 1, pág. 10.
15 D. I. Rosenberg, págs. 279-280.
16 K. Marx, Fr. Engels, Briefe über “ Das Kapital’’, Dietz-Verlag, Ber­
lim, 1954, pág. 40.
TE O R IA DO VA LO R -TR A B A LH O 47

concernentes à Economia Política que pôde descobrir em M an-


chester,17 tanto na casa de seu amigo como em bibliotecas pú­
blicas e privadas. E foi no curso dêsse segundo encontro sis­
temático com a Economia Política que êle descobriu o uso
social-revolucionário que escritores socialistas ingleses tinham
podido fazer da teoria do valor-trabalho, e das contradições
que ela enfeixa em Ricardo. Entre os escritores que êle estu­
da em Manchester em julho e agõsto de 1845 se colocam
T . R . Edmonds e W illiam Thompson18 que tinham precisa­
mente empregado os teoremas ricardianos dentro dêsse espí­
rito. (Êle estudará depois de agõsto John Bray, que faz parte
da mesma categoria de autores.) Mais tarde, Marx criticará
a análise do valor-trabalho como criando um “ direito do ope­
rário a todo produto de seu trabalho” . Mas é mais que pro­
vável que o estudo dêsses autores lhe fêz aparecer as razões
apologéticas pelas quais a Economia Política burguesa se tinha
desviado de Ricardo na Grã-Bretanha.
N ão há prova de que Marx tenha lido desde essa época
Hodgsikin e Ravestone, os dois melhores discípulos proletá­
rios de Ricardo. Mas Engels, que tinha estudado com deta­
lhes a agitação operária na Grã-Bretanha para redigir sua
Situação da Classe Operária na Inglaterra, conhecia ao
menos o efeito que êsses escritores tinham tido sôbre a classe
operária e sôbre a classe burguesa.
Ronald L. Meék escreve a êsse respeito: “ Thomas
Hodgskin era um nome com o qual se amedrontavam as
crianças na época que se seguiu à revogação das Leis sôbre
a Coalizão em 1824. Era provàvelmente inevitável, por essa
razão, que numerosos economistas mais conservadores chegas­
sem a considerar a teoria do valor de Ricardo não somente
como logicamente incorreta, mas ainda como socialmente pe­
rigosa. “ Que o trabalho seja a única fonte de riqueza, escre­
ve John Cazenove em 1832, eis o que parece ser uma doutri­
na tão perigosa quanto falsa, visto que fornece infelizmente
uma alavanca àqueles que procuram representar tôda pro­
priedade como pertencendo à classe operária, e a parte rece­
bida pelas outras como roubo ou fraude por respeito aos ope-

17 Mehring, Aus dem litemrischen Nachlass von Karl Marx und Frie-
drich Engels, vol. II, pág. 332.
18 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 6, págs. 597-622.
48 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE KAHL M A R X

rários.” 19 Marx, que- havia começado por considerar Ricardo


como ‘cínico” , não podia deixar de ser tocado pelo abando­
no também cínico dessa teoria do valor com fins de conser­
vação social. Estamos convencidos de que êle voltou de M an­
chester a Bruxelas com visões muito mais favoráveis a res­
peito da teoria do valor-trabalho.
Uma breve nota acrescentada por Marx a notas de lei­
tura do economista Babbage, nota datando de junho ou do
comêço de julho de 1845, na véspera de sua partida para
Manchester, revela ainda certa neutralidade a respeito dessa
teoria. 20 Mas a Ideologia Alemã, redigida na primavera de
1846, contém duas passagens precisas que marcam a aceita­
ção da teoria do valor-trabalho. Lemos aí por um lado: “Êle
(Stirner) nem mesmo aprendeu com base na concorrência
que. . . no quadro da concorrência o preço do pão é determi­
nado pelos custos de produção e não pelo querer dos padei­
ros" (grifo nosso, E . M . ) .21 E, por outro lado, Marx e Engels
escrevem ainda mais claramente: “ E mesmo no que concerne
à moeda metálica, ela é determinada puramente pelos custos
d e produção, isto é, pelo trabalho” ( grifo nosso, E . M . ) . 22
A conclusão parece pois se impor: foi depois de julho de
1845, e antes de acabar a redação da Ideologia Alemã, na
primavera de 1846, que Marx e Engels foram definitivamen­
te tomados pela teoria do valor-trabalho.
Seria evidentemente cometer uma injustiça por respeito
aos dois amigos suspeitar de que êles mudaram de posição
a respeito da teoria ricardiana sob o efeito somente do valor
de agitação desta teoria, que a estada de M arx em Manches­
ter lhe tinha revelado. Se êles puderam, no espaço de meio
ano. progredir da concepção eclética que tinha sido a de
Engels nos Umrisse zu einer Kritik der Nationalökonomie a
uma concepção mais nitida da teoria do valor-trabalho — de
fato uma concepção que começa já a corrigir certas fraque­
zas intrínsecas da teoria ricardiana — isso resulta antes de
tudo do aprofundamento dos estudos econômicos de Marx e

19 Ronald L. Meek, Studies in the Labour Theory o f Valué, Londres,


1956, Lawrence and Wishart, pág. 124.
20 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 6, pág. 601.
21 K. Marx, Fr. Engels, Die deutsche Ideologie, Dietz-Verlag, Berlim,
1953, pág. 388.
T E O R IA DO VA LO R -TR A B A LH O 49

de uma superação analítica das contradições que êle tinha


antes acreditado descobrir na teoria do valor-trabalho.
Essa superação pode ser fácilmente apreendida nos ter­
mos seguintes. O que havia chocado Marx, por ocasião de
seu primeiro encontro com Ricardo e tôda a escola clássica,
era a oposição aparente entre os efeitos da concorrência — as
flutuações dos preços resultantes do jóg o da lei da oferta e
da procura — e a estabilidade relativa do “ valor de troca” ,
determinada pela quantidade de trabalho necessário à pro­
dução. Mas, ;na reflexão, seu espírito solidamente educado na
dialética devia colocar-se a questão de que se o que era apa­
rente era verdadeiramente a expressão mais direta da reali­
dade — e se “ a abstração” não podia enfeixar uma verdade
em definitivo muito mais “ concreta” que a aparência.
O s preços de mercado variam constantemente. Mas se
se atém a essas flutuações, arrisca-se dissolver rápidamente
todos os movimentos econômicos no acaso.23 Ora, um momen­
to de reflexão, assim como o exame empírico da realidade
econômica, revelam que essas flutuações não se efetuam de
maneira alguma ao acaso, mas em tôrno de um eixo determi­
nado. Se o preço de venda de um produto cai abaixo dos
custos de produção, seu fabricante é eliminado da concorrên­
cia. Se o preço de venda do mesmo produto se eleva muito
acima dos custos de produção, o fabricante tem um superlu-
cro que atrai para êsse ramo concorrentes suplementares e
provoca uma superprodução temporária que faz assim abai­
xar os preços. Os custos de produção se verificam empirica­
mente ser o eixo das flutuações dos preços. Conduzindo lado
a lado seus estudos econômicos (preparatórios para a Críti-
tica da Política e da Economia Política perdida) e seus es­
tudos histórico-filosóficos (preparatórios para a Ideologia
A lem ã), M arx formulou na mesma época sua teoria do ma­
terialismo histórico, que é essencialmente um determinismo
sócio-econômico.24 A história da humanidade deve sempre

23 Cf. K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 3, pág. 531: “ A verdadeira lei da


Economia Política é o acaso, do movimento do qual nós, os sábios, fixa­
mos arbitrariamente alguns momentos sob forma de leis.”
24 Paul Kàgi, ihid., págs. 311-327, estuda com detalhes as origens da
doutrina do determinismo econômico e a da ideologia, que constituem
segundo êle os dois elementos essenciais da teoria do materialismo his­
tórico.
50 PE N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE KAKL M A R X

ser estudada em relação com a história da indústria e da troca.


A humanidade começa a se diferenciar do reino animal pro­
duzindo seus víveres. O que são os homens depende em últi­
ma análise das condições materiais de sua produção. Esta
pressupõe relações sociais entre êles. O grau de desenvolvi­
mento das fôrças produtivas se reflete da maneira mais ma­
nifesta pelo desenvolvimento da divisão do trabalho . 23
Em outras palavras: a conclusão de seus estudos his-
tórico-filosóficos trouxe M arx e Engels exatamente ao ponto
de partida da teoria clássica do valor-trabalho, que M arx re­
formulará de uma maneira tôda particular: o trabalho (abs­
trato) é a essência do valor de troca porque, numa sociedade
fundada sôbre a divisão do trabalho, êle constitui o único te­
cido conjuntivo que permite comparar mutuamente e tornar
comensuráveis os produtos do trabalho de indivíduos sepa­
rados uns dos outros. Há um paralelo marcante entre a ma­
neira pela qual M arx vai dos “ preços de mercado” flutuan­
tes a uma redescoberta do valor de troca, e a maneira pela
qual um economista contemporâneo, Piero Sraffa, evoluiu do
marginalismo para uma teoria que reduz em última instância
todos os “ inputs” da produção a “ quantidades datadas de
trabalho” (dated quantities of labour) ,2B T od os dois efetuam
êsse esfôrço fazendo abstração das flutuações menores a curto
prazo, que constituem precisamente o ponto de partida do
marginalismo.
Quando redige a Miséria da Filosofia, Marx já se tor­
nou “ ricardiano” a ponto de citar Ricardo imediatamente após
ter formulado a determinação do valor de uma mercadoria
pela quantidade de trabalho necessária a sua produção. Êle o
cita precisamente na parte mais fraca de sua teoria, aquela
concernente à determinação do “ valor” , ou do "preço natu­
ral” , do “ trabalho” pelos “ gastos de manutenção dos ho­
mens” .27
Mas, no mesmo momento, Marx se separa já de Ricardo
em um ponto essencial. Escrevendo a Annenkov a 28 de de­
zembro de 1846, êle fala do “ êrro dos economistas burgueses,

25 K. Marx, Fr. Engels, Die deutsche IdeoloPie, pág. 17.


28 Piero Sraffa, Production of Comrrwdities by Means of Commodities,
Cambridge University Press, 1960, págs. V-VI, 34-40, 93-95 etc.
27 K. Marx, Das Elend der Philosophie, págs. 23-4.
TE O R IA DO VA LO R -TR A B A LH O 51

que vêem nessas categorias econômicas leis eternas e não


leis históricas, que não são leis senão para um certo desen­
volvimento histórico, para um desenvolvimento determinado
das fôrças produtivas” .28 A elaboração de sua teoria do ma­
terialismo histórico lhe havia ao mesmo tempo permitido apre­
ender o “ núcleo racional” da teoria do valor-trabalho, e seu
caráter históricamente limitado. E essa concepção da nature­
za historicamente limitada das leis econômicas torna-se uma
parte tão integrante da teoria econômica marxista29 quanto a
teoria do valor-trabalho.
Êsse caráter historicamente limitado e preciso se aplica
segundo Marx a tôdas as “ categorias econômicas” ; êle não
vê aí em última análise senão uma certa relação social. Isso
é esclarecido no que concerne à categoria "valor de troca”
da Ideologia Alemã e Miséria da Filosofia. Nas obras poste­
riores, Marx não faz senão voltar ainda e sempre a êsse
mesmo principio.30 N ão se pode pois admitir a tentativa re­
centemente empreendida por Milentije Popovic de declarar
válidos para o conjunto da história humana, até a desapari­
ção total do trabalho vivo, as relações mercantis e o fenôme­
no do trabalho abstrato, que representa segundo Marx o se-
grêdo último do valor de troca.31
O próprio Marx aliás se pronunciou com grande clareza
a êsse respeito. Êle se recusou categóricamente a identificar a
necessidade de uma compatibilidade em tempo de trabalho
(que se aplica a tôda sociedade humana, salvo talvez à so­
ciedade comunista mais avançada) e a expressão indireta
dessa contabilidade sob forma de valor de troca.32 E êle afir-

28 K. Marx, Fr. Engels, Briefe über “ Das Kapital” , pág. 22.


29 O Professor Emile James vê aí aliás uma contribuição durável e
válida de Marx para a ciência econômica (Em ile James, Histoire sommai-
re de la pensée economique, 2.a edição, revista e aumentada, Editions
Montchrestien, Paris, 1959, págs. 168-177).
30 “ Os objetos úteis ( Gebrauchsgegenstãnde) não se tornam aliás
mercadorias senão porque são os produtos de trabalhos privados, efetua­
dos independentemente uns dos outros” (K . Marx, Das Kapital, I,
pág. 3 9 ).
31 Milentije Popovic: “ Por uma revalorização da doutrina de Marx so­
bre a produção e as relações de produção” , em Questions actuelles du
socialisme, n.° 78, julho-setembro de 1965.
32 Cf. a carta de Marx a Kugelmann de 11 de julho de 1868: “A forma
sob a qual essa divisão proporcional do trabalho se impõe numa situa­
ção social na qual a interconexão do trabalho social se exprime pela
52 PE N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE KAHL M A R X

mou explicitamente que quando a propriedade privada dos


meios de produção fôr substituída pela dos produtores asso­
ciados, a produção mercantil cessará, para dar lugar a uma
contabilidade direta em horas de trabalho.33
Pode-se considerar que êle tem razão. Pode-se tentar
demonstrar que êle errou. M as não se lhe pode atribuir a
paternidade de concepções opostas às suas. N ão se pode
afirmar que para M arx todo trabalho social vivo tomaria ne-
cessàriamente a forma de trabalho abstrato criando valor,34

troca privada dos produtos de trabalho individual é precisamente o va­


lor de troca dêsses produtos” (K . Marx, Briefe an Kugelmann, págs. 52-3,
Dietz, Berlim. Cf. igualmente Das Kapital, I, capítulo 1, 4 (a famosa
passagem sôbre o caráter fetichista do valor), onde Marx afirma expli­
citamente que o tempo de trabalho será o critério da divisão dos pro­
dutos numa sociedade socialista, ao contrário da divisão pela troca fun­
dada sôbre o trabalho privado e a propriedade privada (pág. 45).
33 “ No seio de uma sociedade cooperativa, fundada sôbre a proprieda­
de coletiva dos meios de produção, os produtores não trocam seus pro­
dutos; o trabalho despendido por êsses produtos não aparece tampouco
como valor dêsses produtos, como uma qualidade objetiva que lhes per­
tence, visto que, contràriamente à sociedade capitalista, os trabalhos in­
dividuais não existem mais somente por um desvio, mas diretamente en­
quanto partes do trabalho global” (K . Marx: “ Kritik des Gothaer Pro­
gramms” , pág. 15, em K. Marx e Friedrich Engels, Ausgewählte Schrif­
ten in zw ei Bänden, II, pág. 1 5 ).
34 Milentije Popovic: “ Os homens produzem sua existência trabalhando
e produzindo bens, valores de uso. Produzindo, êles incorporam seu tra­
balho ao produto: por seu trabalho concreto, êles produzem — criam o
valor” (ibid., pág. 8 6 ). Aqui e nas páginas seguintes, o autor sugere que,
para Marx, “relações de produção” e “ produção da vida material” im­
plicariam sempre produção de valor de troca, independentemente das
condições sociais, das relações sociais: “ É nesse sentido que se pode di­
zer que, na sociedade (sie), os homens “produzem sua existência” não
somente porque produzem bens, mas porque produzem ao mesmo tempo
o valor” (op. cit., pág. 9 1 ). “ Por outro lado, essas relações (d e produ­
ção) não dependem da vontade dos homens, porque êles se estabele­
cem “por trás das costas dos produtores” , fora da atividade consciente
dos produtores ou dos produtores associados’’ (grifo nosso) (op. cit.,
pág. 101). “Assim começa igualmente a se modificar a natureza mesma
do trabalho enquanto trabalho abstrato, criador do valor, e por isso mes­
mo a natureza do trabalho vivo. O trabalho criador de valor não é mais
simples ( ! ) dispêndio da fôrça física do produ tor.. . O trabalho que cria
o valor começa a se revestir para o homem de um sentido mais humano.
Em poucas palavras, êle se humaniza” (ibid., pág. 113) etc. Não é aqui
que é preciso analisar o conteúdo dessas teses (qu e nos parecem das
mais contestáveis) . Mas é manifestamente abusivo atribuí-las a M arx.
TE O R IA DO VA LO R -TR A B A LH O 53

e que o socialismo seria não a supressão da produção mercan­


til, mas sua “ humanização” . Essas concepções de Popovic
são contrárias a tôda a doutrina marxista.35

“ Se se parte do fato de que as relações (? ) do custo da produção


são objetivamente exprimidas nas nossas relações de autogestão, chega-
se à conclusão de que os preços do mercado são, êles também, objetiva­
mente ( sic) exprimidos nas nossas condições sócio-econômicas” (op. cit.,
pág. 119). Cf. a passagem citada de La Critique du Programme de Go-
tha, onde Marx contesta explicitamente que os produtos conservam um
“ valor objetivo’’ depois da derrubada do capitalismo.
35 Eis uma passagem particularmente nítida de Marx a propósito de
Proudhon, mas que se aplica maravilhosamente a Milentije Popovic:
“A determinação do valor pelo tempo de trabalho, isto é, a fórmula que
Proudhon nos apresenta como aquela que deveria regenerar o futuro,
não é senão a expressão científica das relações econômicas da sociedade
a t u a l...” (K. Marx, Das Elend der Philosophie, pág. 4 4 ).
4

Uma Primeira Análise de Conjunto do Modo


de Produção Capitalista

Entre o fim do ano de 1846 e o comêço do ano de 1848


— isto é, essencialmente, no curso do ano de 1847 — Marx
e Engels redigiram quatro obras, que contêm uma primeira
análise critica de conjunto do modo de produção capitalista.
O estudo dos grandes economistas dos séculos X V III e X IX
lhes deu agora uma visão do funcionamento da economia ca­
pitalista que tinha faltado nas suas obras de juventude. Em
Miséria da Filosofia (de Marx) , nos Grundsätze des Kom ­
munismus (de Engels), no Trabalho Assalariado e Capital
(de M arx) e no M anifesto Comunista (de Marx e de Engels),
não se trata mais de uma visão parcial da sociedade burgue­
sa, com eixo principalmente ou exclusivamente sôbre a misé­
ria do proletariado. Trata-se de uma visão grandiosa, que
examina as leis que fizeram nascer o capitalismo, que anali­
sa seus méritos históricos (principalmente aquêle de ter tor­
nado possível a supressão de tôdas as classes, graças a um
impulso prodigioso das fôrças produtivas) e que assenta o
movimento operário e o movimento comunista sôbre a base
de uma análise que se quer rigorosamente científica, à base do
materialismo histórico.
A s visões desenvolvidas nessas quatro obras são prati­
camente idênticas, ao menos no que concerne às questões eco­
nômicas. Pode-se pois tratá-las como um conjunto.
M O D O DE PRODU ÇÃO C A P IT A L IST A 55

N ão é indicado analisar aqui as relações entre Marx


e Proudhon que deram lugar a uma literatura abundante.
Parece-nos incontestável que essas relações passaram por três
estágios. De início uma admiração sincera de Marx pelo so­
cialista francês, operário autodidata já célebre, cujo estilo
ousado devia seduzi-lo (M arx fala das noites inteiras que
passaram juntos discutindo) e ao qual êle tomou emprestada
em 1843 e em 1844 a implacável crítica da propriedade pri­
vada. Em seguida a uma decepção profunda pelo fato de que
Proudhon não tenha podido seguir M arx nos traços de uma
apropriação crítica séria da Economia Política clássica, e que
êle se tenha deixado levar pela utopia insípida e estéril dos
labor bazars (ver as cartas de Engels de 16 a 18 de setem­
bro de 1846),1 decepção combinada com uma indignação real
diante da confusão e dos erros2 que abundam na Filosofia da
Miséria. Finalmente, com vinte anos de recuo um julgamento
mais sereno, mas que mantém, em geral, a crítica cientifica­
mente correta das teses errôneas de Proudhon.
A Miséria da Filosofia constitui o protótipo de literatu­
ra polêmica implacável, que freqüentemente inspirou discípu­
los de Marx (nem sempre com conhecimento de causa). Para
a história do marxismo, êle representa “ a primeira exposição
correta e global da concepção materialista da história, que
não tinha até então sido desenvolvida senão de maneira es­
porádica, por alusões, de passagem por esboços” .3 Ela re­
presenta também “ a primeira obra econômica que Marx sem­
pre considerou como parte integrante de sua obra científica
de maturidade” .4 D o ponto de vista da evolução das idéias
econômicas de Marx, trata-se da primeira obra que dá uma
visão de conjunto das origens, do desenvolvimento, das con­
tradições e da queda futura do regime capitalista, marcando
com êsse ponto de vista um progresso considerável sôbre os

1 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , III, 1, págs. 34-5 e 41-2.


2 Ver principalmente Misère de la Philosophie, págs. 34-8, onde Marx
demonstra que Proudhon se engana ao estabelecer, no absoluto, um laço
entre a intensidade da necessidade física e o aumento da produtividade
do trabalho que fabrica as mercadorias devendo satisfazer essa necessi­
dade.
3 Otto Ruhle, Karl Marx, Leben und W erk, Avalun-Verlag, Dresden,
1928, págs. 131-2.
4 Pierre Naville, D e l’aliénation à la jouissance, pág. 291.
56 P E N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE KARL M A R X

Manuscritos Econômico-Filosóficos. É significativo que o que


ressalta de sua crítica das concepções econômicas de Prou-
dhon, é que ela permanece na linhagem de todo trabalho cri­
tico que êle empreendeu a partir da crítica da Filosofia do
Direito de H egel: combater a mistificação que consiste em
criar categorias imutáveis, por meio de abstrações, o que tem
por conseqüência proclamar eterno o estado das coisas dado,
e conservar pois tôda a sua miséria fundamental.5
Trabalho Assalariado e Capital retoma e amplia as mes­
mas idéias, sobretudo no que concerne à determinação do sa­
lário. Esta séria de artigos, aparecida na N eue Rheinische
Z eitung em 1849, não é senão uma reprodução de conferên­
cias que M arx havia feito em 1847 para a associação operá­
ria de Bruxelas (ver carta de M arx a Engels de 3 de junho
de 1 8 6 4 ) ,6
Um manuscrito Salário Operário não-publicado foi des­
coberto num caderno intitulado “ Bruxelas 1847” e mostra de­
senvolvimentos que vão mais longe que o texto de Trabalho
Assalariado e Capital, Trata-se sem dúvida do esquema de
uma (ou várias) conferências(s) que devia(m ) desenvol­
ver as de Trabalho Assalariado e Capital.7 Êsse manuscrito
contém igualmente as notas de leitura das obras de uma de­
zena de economistas.
!É em Trabalho Assalariado e Capital que M arx pres­
sentiu pela primeira vez o essencial de sua teoria da mais-
valia, sem utilizar êsse têrmo e sem exprimir-se de maneira
precisa. “ O c a p ita l... se conserva e aumenta por sua troca
com o trabalho imediato, v i v o . . . O operário recebe meios
de subsistência em troca de seu trabalho, mas o capitalista,
em troca de seus meios de subsistência, recebe trabalho; a
atividade produtiva do operário não somente destitui o que
êle consome, mas dá ao trabalho acumulado um valor maior
do que aquêle que êle possuía an tes.” 8

5 Emilio Agazzi, La formazione delia metodologia di Marx, pág. 481.


6 D er Briefwechsel zwischen Friedrich Engels und Karl Marx 1844
bis 1883, hrsg. von A. Bebel u. Ed. Bernstein, Dietz-Verlag, Stuttgart,
1921, vol. III, pág. 210.
7 Arbeitslohn, K. Marx, Fr. Engels, Kleine ökonomische Schriften,
págs. 223-249.
8 K. Marx: “ Travail salarié et capital” , págs. 85-6, em Oeuvres Choi-
sies en deux volumes, Editions du Progrès, Moscou, 1955.
M O D O DE PROD U ÇÃO C A PIT A L IST A 57

Quanto aos Grundsätze des Kommunismus e ao Manifes­


to Comunista, êles constituem os dois projetos de “ profissão
de fé” comunista, escritos o primeiro por Engels para a seção
parisiense da Associação dos Justos entre 23 e 27 de outubro
de 1847, o segundo por Marx e Engels em seguida ao con­
gresso de novembro de 1847 da Associação em Londres, e
acabado em janeiro de 1848 pelos dois amigos. Êles retomam
as idéias das duas obras precedentes sob uma forma mais
sucinta tornada clássica.
A origem do modo de produção capitalista é agora retra-
çada em têrmos que não variarão mais fundamentalmente
mesmo por ocasião da redação do Capital. Uma de suas con­
dições de existência é a acumulação dos capitais, facilitada
pela descoberta da América e pela importação pela Europa de
seus metais preciosos. Disso resultou uma queda geral dos
salários e das rendas fundiárias feudais e uma alta conside­
rável dos lucros. Simultáneamente, o desenvolvimento do co­
mércio marítimo e colonial amplia as saídas e aumenta o v o­
lume da produção das mercadorias. Uma massa de mercado­
rias se transforma de produtos de luxo em produtos de con­
sumo mais corrente.
Por outro lado, a queda da renda fundiária feudal obri­
ga a nobreza a devolver uma boa parte por sua vez. Uma
massa de vagabundos aparece nos séculos X V I e X V II, que
as manufaturas colocarão no trabalho.9 Essas manufaturas
não são uma criação dos mestres artesãos, mas uma criação
dos comerciantes. Êstes reúnem de início sob o mesmo teto
um certo número de produtores e de instrumentos de traba­
lho, não realizando como economias senão aquelas que resul­
tam de um melhor controle e de uma melhor proteção dos ca­
pitalistas contra o roubo. Em seguida, a divisão do trabalho
cria um aumento da produtividade no interior da manufatura,
até que o emprêgo da fôrça do vapor e a revolução industrial
produzem a grande fábrica moderna.10

9 Cf. esta nota de Hegel escrita em lena em 1805: “As fábricas, as ma­
nufaturas fundam a sua existência precisamente na miséria de uma clas­
se” (citado em Georg Lukacs: D er junge Hegel, pág. 423).
10 K. Marx, Das Elend der Philosophie, págs. 121-4; K. Marx, Fr. En­
gels: Das Kommunistische Manifest, Berlim, 1918, Verlag Buchandlung
Vorwärts, págs. 26-27.
58 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE KABL M A R X

O modo de produção assim nascido representa antes de


tudo novas relações de produção sociais.11 "Ser capitalista
não significa somente ocupar uma posição pessoal, mas ainda
uma posição social ,na posição. O capital é um produto co­
mum, e não pode ser colocado em movimento senão pela ati­
vidade comum de muitos dos membros, em última análise pela
atividade comum de todos os membros da sociedade.” 12
O nascimento do modo de produção capitalista implica
um impulso prodigioso das fôrças produtivas, que não teriam
podido nascer sem êle.13 M arx e Engels apreenderam a na­
tureza profundamente revolucionária dêste modo de produ­
ção muito mais nitidamente e muito mais lucidamente do que
os outros economistas de sua época, portanto para a maior
parte dos apologistas do Capital.14 ,Êles cantaram um verda­
deiro hino em sua glória no M'ani[esto Comunista que deve
tocar os sinos para êles: " A burguesia não pode existir sem
subverter constantemente de maneira revolucionária os ins­
trumentos de trabalho, as relações de produção, tôdas as re­
lações sociais. . . A subversão constando da produção, o abalo
ininterrupto de tôdas as condições sociais, a insegurança e os
movimentos eternos caracterizam a época burguesa em opo­
sição a tôdas as outras épocas históricas. . . A necessidade de
um escoamento cada vez mais amplo de seus produtos leva a
burguesia a percorrer todo o globo terrestre. Em tôda parte,
ela se deve infiltrar, em tôda parte começar a construir, em
tôda parte fazer ligações.
“ Por sua exploração do mercado mundial, a burguesia
remodelou de maneira cosmopolita a produção e o consumo
de todos os países. Para grande pena dos reacionários, ela
tirou o solo nacional de debaixo dos pés da indústria... Pelo
melhoramento rápido de todos os instrumentos de produção,
pelas comunicações infinitamente facilitadas, a burguesia ar­
rasta tôdas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a civi­
lização. O s bons preços de suas mercadorias são a artilha­
ria pesada, com a qual ela faz desmoronar muralhas da China,
com a qual ela leva à capitulação a xenofobia mais tenaz dos

11 K. Marx,Das Elend der Philosophie, pág. 117.


12 K. Marx, Fr. Engels, Das Kommunistische Manifest, pág. 39.
13 K. Marx, Das Elend der Philosophie, pág. 81.
14 Marx vê mesmo aí “ o lado positivo do salário” no seumanuscrito
Salaire ouvrier, op. cit., pág. 248.
M O D O DE PRODUÇÃO C A PITA LIST A 59

bárbaros. Ela obriga tôdas as nações a se apropriar do modo


de produção da burguesia, sob pena de desaparecer; ela as
obriga a introduzir no meio delas a falada civilização, isto é,
a se tornarem burguesas. . , 15 “ A burguesia submeteu o cam­
po à dominação da cidade. Ela criou cidades enormes, au­
mentou em grande medida o número da população urbana
comparado àquele da população aldeã, e tirou assim uma
parte considerável da população da estupidez da vida rural. . .
A burguesia suprime cada vez mais o desmembramento dos
meios de produção, da propriedade e da população. Ela aglo­
merou a população, centralizou a produção e concentrou a
propriedade em poucas m ãos. . . N o curso de sua dominação
de classe ape,nas secular, a burguesia criou fôrças produtivas
mais maciças e mais colossais que tôdas as gerações preceden­
tes. Submeter as fôrças da natureza; criar o maquinismo; apli­
car a química à indústria e à agricultura; organizar a nave­
gação a vapor; construir estradas de ferro e o telégrafo elétri­
co; abrir continentes inteiros à cultura; tornar os rios nave­
gáveis; reunir populações inteiras como que saídas da terra:
que século passado teria podido prever que tais fôrças pro­
dutivas dormiam no seio do trabalho social.” 16
Mas essa descrição ditirâmbica das realizações do modo
de produção capitalista não seria senão para sublinhar de
maneira ainda mais gritante as contradições que êle produz
ao mesmo tempo. Porque o capital não pode crescer sem de­
senvolver ao mesmo tempo o proletariado. A concentração
da riqueza social entre as mãos de uma classe social implica
uma concentração de miséria no estado de outra classe.social.17
Para explicá-lo, é preciso partir da análise do elemento
de base dessa riqueza, a mercadoria.

15 Ver sôbre o papel civilizador do capital também Grundsätze des


Kommunismus, pág. 206. Nos Grundrisse der Kritik der politischen O e-
konomie, Marx retoma essa idéia do papel civilizador do modo de pro­
dução capitalista, o primeiro modo de produção desde a origem da so­
ciedade humana que deve manifestar a tendência a se estender no mun­
do inteiro, ou mais precisamente a englobar o mundo inteiro no seu
domínio (págs. 311-3).
18 K. Marx, Fr. Engels, Das Kommunistische Manifest, págs. 28-30
(grifo nosso).
17 Fr. Engels: “ Grundsätze des Kommunismus” , em K. Marx, Fr. En­
gels, Kleine ökonomische Schriften, pág. 208.
60 PENSAM EN TO EC O N O M IC O DE KABL M A R X

O valor da mercadoria é determinado pelo tempo de tra­


balho necessário à sua produção.18 Ora, o Capital transfor­
mou o próprio trabalho em mercadoria, visto que os proletá­
rios não possuem nada que não1 essa fôrça de trabalho, que
êles devem vender para obter os meios de subsistência que
estão todos nas mãos dos capitalistas. Essa fôrça de traba­
lho será pois, ela também, tratada como uma mercadoria, e
da mesma forma que tôda mercadoria, seu valor (M arx uti­
liza ainda correntemente em 1847 o têrmo ricardiano, seu
“ preço natural” ) será determinado pela quantidade de traba­
lho necessário à produção, isto é, à produção dos meios de
subsistência necessários para conservar a fôrça de trabalho
e deixar subsistir as crianças que manterão em vida “ a espé­
cie proletária” .19
Êsse salário é mantido essencialmente nesse nível míni­
mo como conseqüência da concorrência \éntre os operários.
Conservando as conclusões da teoria ricardiana dos salários,
M arx e Engels a superam amplamente na análise. Fazem de­
pender o nível dos salários do ritmo de acumulação dos ca­
pitais.20 E êles emendam aliás as conclusões rigorosas da teo­
ria ricardiana precisando que os salários não permanecem es­
táveis, mas que êles flutuam, e que o “ mínimo vital” (o pre­
ço dos meios de subsistência necessários à reprodução da
fôrça de trabalho) resulta de uma elevação temporária dos
salários acima dêste mínimo, durante os períodos de alta con­
juntura, e de uma queda temporária dos salários abaixo dêsse

18 Nos escritos de 1846-8, Marx e Engels não distinguem ainda o tem­


po de trabalho socialmente necessário do tempo de trabalho simplesmen­
te. Eles não distinguem tampouco a fôrça de trabalho e o trabalho, fa­
lando da “ venda de trabalho” , do “preço do trabalho” e tc., fórmula
que Marx corrigirá no fim dos anos 1850, sobretudo nos Grundrisse e
nas Theorien über den Mehrwert. Engels sublinha essa correção nos pre­
fácios que escreveu trinta anos mais tarde para Das Elend der Philoso­
phie (1884, pág. X X II) e para Lohnarbeit und Kapital ( Oeuvres choisies,
vol. I, págs. 63 e seg.).
19 K. Marx, Das Elend der Philosophie, págs. 24-5; Fr. Engels, "Grun­
dsätze des Kommunismus” , em K. Marx, Fr. Engels, Kleine ökonomische
Schriften, págs. 201 e 203; K. Marx: “ Arbeitslohn” , em K. Marx, Fr.
Engels, Kleine ökonomische Schriften, pág. 223; K. Marx: “ Travail, sa-
laire et capital” , em K. Marx, Fr. Engels, Oeuvres choisies, I, pág. 82;
K . Marx, Fr. Engels: Das Kommunistische Manifest, pág. 32.
20 K. Marx: “ Arbeitslohn” , em Karl Marx, Fr. Engels, Kleine Ökonomis­
che Schriften, págs. 231-2.
M O D O DE PRODUÇÃO C A PIT A L IST A 61

mínimo, durante os períodos de crise e de desemprego ma­


ciço.21
N o entanto, se M arx e Engels admitem que os salários
podem elevar-se acima do mínimo vital, durante os períodos
de alta conjuntura, e que é somente graças a essa condição
que os operários podem, embora seja pouco, participar dos
progressos da civilização, éles descobrem no entanto uma ten­
dência ao abaixamento dêste mínimo de salário, dêsse preço
da fôrça de trabalho, e isso no sentido absoluto do têrmo:
“ Visto que se encontram sempre meios para alimentar o tra­
balho com objetos mais baratos e cada vez mais miseráveis,
o mínimo dos salários diminui sem cessar.” 22 Essa mesma
idéia é ilustrada na Miséria, da Filosofia pelo exemplo do al­
godão (substituindo o linho), das batatas (substituindo o
pão) e da aguardente (substituindo o vin ho).23 Mais tarde,
M arx citará de bom grado o papel desempenhado a êsse pro­
pósito pela introdução do chá, na alimentação da classe ope­
rária britânica.
Em poucas palavras, Marx e Engels admitem nessa épo­
ca ainda uma lei geral da baixa dos salários a longo prazo —
posição que êles corrigirão mais tarde — e Marx a define
em Arbeitslohn e Trabalho Assalariado e Capital pelos traços
seguintes: o salário mínimo dos diferentes países é diferente,
mas êle tende a se igualar, e isso no nível mais baixo. Quan­
do os salários caem e sobem em seguida (na fase de alta con­
juntura seguindo àquela de depressão), êles não atingem nun­
ca o nível precedentemente abandonado. A concorrência entre
os operários aumenta constantemente e tende a abaixar o mí­
nimo dos salários; os impostos e as trapaças dos comerciantes
jogam no mesmo sentido. Em poucas palavras, "no curso da
evolução, o salário operário num duplo sentido: primeiramen­
te, num sentido relativo, em relação com o desenvolvimento
da riqueza geral; em segundo lugar, num sentido absoluto,

21 Ibid., pág. 235, Fr. Engels: “ Grundsätze des Kommunismus” , em


K. Marx, Fr. Engels: Kleine ökonomische Schriften, pág. 204; K. Marx,
“ Rede über die frage des Freihandels” , em Das Elend der Philosophie,
pág. 184.
22 K. Marx: “ Rede über die Frage des Freihandels” , em Das Elend der
Philosophie, pág. 185.
23 K. Marx, Das Elend der Philosophie, pág. 37.
62 P E N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

nesse sentido de que a quantidade de mercadorias que o ope­


rário recebe em troca se- torna cada vez mais reduzida” .24
A o mesmo tempo, retomando uma idéia que o economis­
ta John Barton tinha formulado primeiro,25 Marx elabora
uma lei da acumulação do capital que está destinada a de­
sempenhar um papel particularmente fértil na sua obra pos­
terior: “ É pois uma lei geral que decorre necessariamente da
natureza das relações do Capital e do Trabalho, que no cur­
so do crescimento das fôrças produtivas a parte do capital
produtivo, que é transformada em máquinas e matérias-pri-
mas, isto é, o capital enquanto tal, cresce em uma proporção
maior que a parte (do capital) que é destinada aos salários,
isto é, em outras palavras: os operários devem partilhar, em
relação ao capital produtivo no seu conjunto, uma parte cada
vez menor dêste. Sua concorrência torna-se cada vez mais
violenta. ” 26
O que encontramos aqui não é nada além de um primei­
ro esbôço da lei do aumento da composição orgânica do ca­
pital, da qual decorre a lei da queda tendencial da taxa mé­
dia de produção capitalista que Marx descobrirá alguns anos
mais tarde. Notemos de passagem que a última frase da ci­
tação que acabamos de reproduzir contém um êrro de racio­
cínio. O fato de que os salários (o capital variável) consti­
tuem uma fração “ sem cessar mais reduzida” do capital pro­
dutivo no seu conjunto não implica necessàriamente que a
parte dessa massa salarial que volta a cada operário diminua
em valor absoluto. Isso depende com efeito de tôda uma sé­
rie de variáveis independentes: o ritmo de aumento do capi­
tal produtivo geral comparado ao ritmo de aumento da com­
posição orgânica do capital (se o capital produtivo total au­
menta, por exemplo, em 20% todos os anos, enquanto o ca­
pital variável vê sua parte relativa reduzida em 10% duran-

24 K. Marx, “ Arbeitslohn” , em K. Marx, Fr. Engels, Kleine ökono­


mische Schriften, págs. 233-4. É essa passagem que permite falar, no
jovem Marx, de uma teoria da pauperização ao mesmo tempo absoluta
e relativa. Veremos mais adiante o que se torna essa teoria no curso da
preparação do Capital.
25 K. Marx, Theorien über den Mehrwert, nova edição completa, Ber­
lim, Dietz-Verlag, 1956, vol. II, págs. 575-6 e seg.
26 K. Marx, “ Arbeitslohn” , em K. Marx, Fr. Engels, Kleine Ökonomische
Schriften, pág. 242.
M O D O DE PRODU ÇÃO C A P IT A L IST A 63

te êsse mesmo ano, êle aumenta em valor absoluto em lugar


de diminuir; o ritmo de crescimento absoluto do capital va­
riável comparado ao ritmo de crescimento da mão-de-obra
assalariada (se o capital variável aumenta em têrmos abso­
lutos de 10% por ano, enquanto a mão-de-obra assalariada
não aumenta senão em 5 % , a parte que cabe em média a
cada assalariado pode aumentar); o ritmo de evolução da
taxa da mais-valia comparado ao ritmo de evolução do ca­
pital produtivo etc.
O fato de que a evolução do capitalismo implica uma
concentração simultânea de riqueza e de miséria nos dois pó­
los da sociedade já é sentido por M arx e Engels como uma
das causas das crises periódicas de superprodução: “ A so­
ciedade se encontra bruscamente levada a uma situação de
barbárie momentânea; uma fome, uma guerra de extermínio
geral, parecem ter-lhe cortado todos os meios de subsistência;
a indústria, o comércio, parecem destruídos, e por quê? Por­
que a sociedade possui muitos meios de subsistência, muita
indústria, muito com ércio.” 27
“ O empregador não pode empregar os operários porque
não pode vender seus produtos. N ão pode vender seus pro­
dutos porque não tem clientes. Não tem clientes porque os
operários não têm para trocar senão o seu trabalho e justa­
mente não podem trocar seu trabalho (nesse m om ento).” 28
Por outro lado, êles apresentam igualmente essas crises
periódicas de superprodução, e a marcha cíclica que a pro­
dução capitalista adota geralmente, como resultados da anar­
quia da produção e da livre concorrência: “ A proporção exa­
ta entre oferta e procura. . . não foi possível senão na épo­
ca em que os meios de produção eram limitados, em que a
troca se efetuou em limites extremamente estreitos.29 Com o

27 K. Marx, Fr. Engels, Das Kommunistische Manifest, pág. 31.


28 K. Marx, “Arbeitslohn” , em Kleine ökonomische Schriften, pág. 232.
29 Foi o que Proudhon não compreendeu, que sonha com um restabele­
cimento da concorrência depois da abolição do capitalismo. “ A concorrên­
cia e a associação se apóiam uma na outra” , escrevia êle na Philosophie
de la Misère (edição de 1867, I, pág. 208). Marx lhe predisse que, se êle
quisesse restabelecer o reino da concorrência numa sociedade socialista,
arriscaria reproduzir todo o cortejo de miséria e de anarquia que a troca
individual e a concorrência produzem no seio da sociedade capitalista.
Se se deseja o progresso sem essa anarquia é preciso manter as fôrças pro­
dutivas suprimindo a troca (K . Marx, Das Elend der Philosophie, pág. 4 4 ).
64 P E N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE KAHL M A R X

nascimento da grande indústria, essas proporções exatas de­


viam desaparecer, e com necessidade inelutável a produção
deve passar pela alternância constante da prosperidade e da
depressão, crise, depressão, nova prosperidade e tc .” 30
Da mesma maneira nos Grundsätze des Kommunismus:
“ A livre concorrência que decorre necessariamente da grande
indústria tomou logo um caráter particularmente violento, de­
vido à facilidade (de empreender) essa produção; uma mas­
sa de capitalistas se lançou sôbre essa indústria, e rápida­
mente produziu-se mais do que se pôde utilizar. Seguiu-se
que as mercadorias fabricadas não puderam ser vendidas, e
que uma crise chamada comercial se produziu.” 31
Deve-se notar que as conseqüências da concorrência ca­
pitalista no que concerne à distribuição eqüitativa da taxa de
lucro não são ainda indicadas senão de passagem.32
A s crises de superprodução demonstram que as relações
de propriedade e de produção capitalistas por sua vez se tor­
naram freios do desenvolvimento das fôrças produtivas. Os
capitalistas tentam sair-se desvalorizando ou destruindo uma
massa de fôrças produtivas, procurando novos mercados. Mas,
assim fazendo, preparam futuras crises ainda mais graves.33
A partir dêsse momento, as armas que a burguesia ha­
via forjado contra o feudalismo se voltam contra ela mesma.
N o seio da sociedade burguesa, o Capital criou uma classe
social, o proletariado, que é revolucionária, não fôsse senão
porque suas condições de existência se tornam cada vez mais
insuportáveis.34 Ora, êsse proletariado, concentrado em gran­
des emprêsas, onde êle começa por se dilacerar numa con­
corrência mútua entre todos os proletários, toma consciência
da necessidade de se organizar para defender seu salário.
Assim, a coalizão operária persegue a dupla finalidade de
suprimir a concorrência entre operários a fim de poder con-

Daniel Guérin, que tenta reabilitar Prouclhon como “ pai da autoges­


tão” , é obrigado a reconhecer em geral o fundamento dessa crítica mar­
xista (Daniel Guérin, L ’anarchisme, Editions Gallimard, 1965, pág. 65 ).
30 K. Marx, Das Elend, der Philosophie, pág. 43.
31 Fr. Engels, “ Grundsätze des Kommunismus” , em K . Marx, Fr. En­
gels: Kleine ökonomische Schriften, págs. 208-9.
32 K . Marx, Das Elend der Philosophie, pág. 145.
33 K . Marx, Fr. Engels, Das Kommunistische Manifest, pág. 31.
34 Fr. Engels: “ Grundsätze des Kommunismus” , em K . Marx, Fr. En­
gels, Kleine Ökonomische Schriften, pág. 208.
M O D O DE PROD U ÇÃO C A P IT A L IST A 65

duzir uma concorrência tanto mais tenaz contra os capitalis­


tas. Nessa luta de classes, a massa proletária se constitui en­
quanto classe para ela mesma.35
E sua luta para defender seus salários se transforma lo­
go em uma luta política que visa à abolição do assalariado, a
criação de uma nova sociedade, fundada na apropriação co­
letiva dos meios de produção e na associação livre de todos
os produtores. Essa sociedade não poderá ver o dia senão
num alto nível de desenvolvimento das fôrças produtivas, e
ela conhecerá um nôvo impulso com êsse desenvolvimento que
permitirá a satisfação de tôdas as necessidades dos produto­
res, e o desenvolvimento universal de todos os indivíduos.30
Vim os que as quatro obras analisadas neste capítulo
constituem uma primeira crítica de conjunto do modo de pro­
dução capitalista, uma primeira aplicação concreta do méto­
do geral do materialismo histórico a uma sociedade parti­
cular: a sociedade burguesa. A síntese da Sociologia e da
Ciência Econômica que se esforçou por realizar destaca sua
enorme superioridade do fato de que ela é fundada sôbre uma
síntese do método lógico (dialética) e histórico.37 Nenhuma
teoria social conseguiu até agora uma síntese que se aproxi­
me, mesmo de longe, do sucesso operatorio do método mar­
xista .
Recentemente o sociólogo americano Talcott Parsons se
esforçou por efetuar uma síntese análoga. N o quadro de uma
Sociologia altamente formalizada, e de uma teoria geral da
ação, êle trata a economia como um caso especial de um “ sis­
tema social” , especializado crescimento da “ adaptabilida­
de” do sistema mais am plo.38 Pode-se considerar que essa
tentativa de síntese fracassou por três razões fundamentais:

35 K . Marx, Das Elend der Philosophie, págs. 161-2.


36 Fr. Engels, “ Grundsätze des Kommunismus” , em K . Marx, Fr. En­
gels, Kleine ökonomische Schriften, págs. 216-7.
37 Ver a êsse propósito: Otto Morf, Das Verhältnis von Wirtschaftstheorie
und Wirtschaftsgeschichte bei Karl Marx, A. Francke Verlag, Bema,
1951, e Peter Bollhagen: Soziologie und Geschichte, v e b Deutscher Ver­
lag der Wissenschaften, Berlim, 1966.
38 Talcott Parsons e Neil J. Smelser, Economy and Society, Londres,
1957, Routledge and Kegan Paul, págs. 6-7, 21 etc.
66 PE N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

seu caráter amplamente a-histórico; sua incapacidade de com­


preender a natureza fundamentalmente contraditória de todo
“ sistema social" (e de tõda realidade); sua tendência muito
nitidamente apologética em relação à realidade do capitalismo
contemporâneo (o capitalismo dos monopólios se tendo es­
treitamente integrado ao Estado, ou o neocapitalismo) .
Talcott Parsons afirma, é verdade, que sua análise se
aplica a “ tôda sociedade” e a “ todo” sistema social.39 Mas
essa afirmação ambiciosa não resiste a uma crítica histórica.
Quando Parsons declara que “ o estado. da procura e as con­
dições de produção” mudam continuamente em tôdas as so­
ciedades —■ com exceção de economias primitivas “ alta­
mente tradicionais” 40 — êle subverte os ensinamentos da histó­
ria econômica. De fato, essas mudanças “ contínuas” da pro­
cura e das condições de produção não são senão o produto
da economia mercantil generalizada — que não ocupa senão
uma fração ínfima do conjunto da era do homo sapiens, Par­
sons descobre a origem do “ capital” (definido de maneira
apologética como o conjunto dos recursos “ fluidos” da socie­
dade: como se o estoque de sementes de uma aldeia primiti­
va, ou o rebanho de uma tribo nômade vivendo no quadro do
comunismo de clã, fôsse um “ capital” ! Como se o capital não
fôsse uma relação social!) nos laços entre a economia e a co­
letividade política por generalização do papel que o crédito
desempenha na época do declínio do capitalismo dos mono­
pólios. M as como pois explicar a acumulação “ normal” do
capital na grande indústria na aurora do laissez faire britâ­
nico, quando o papel do crédito era manifestamente secundá­
rio, e que êle era por outro lado amplamente privado?
O caráter a-histórico dos esquemas funcionalistas de
Talcott Parsons aparece claramente quando se dá conta
de que a maior parte de suas definições, no dominio econô­
mico, não são senão generalizações (tornadas apenas um
pouco menos abstratas) de traços essenciais de uma econo­
mia capitalista, e mesmo de uma economia capitalista numa
fase particular de seu desenvolvimento. Assim sua definição
da economia como procurando atingir a “ finalidade” de um
máximo de produção no quadro do sistema de valores insti­
M O D O DE PRODU ÇÃO C A P IT A L IST A 67

tucionalizados41 (com o se não tivesse havido uma série de


modos de produção cujos “ valores institucionalizados” impli­
cavam precisamente a recusa deliberada de "maximizar a
produção” !) . Da mesma forma sua definição do “ contrato”
como a instituição econômica central (com o se o contrato não
tivesse nascido da produção mercantil) .42
A incapacidade de apreender o caráter contraditório dos
"sistemas sociais” , e a fortiori dos “ sistemas econômicos” , é
a mais importante das três fraquezas do esquema de Talcott
Parsons. Eliminando os conflitos entre os grupos sociais do
fundamento de sua análise: considerando os "sistemas” como
tendendo à “ integração” , à “ redução das tensões” ; velando
o fato de que os “ valores” dominantes de um sistema não
correspondem de maneira alguma aos interêsses de todos os
seus membros, mas. somente aos da minoria dominante, T a l­
cott Parsons não pode explicar nem o motor da evolução his­
tórica que passa de um sistema sócio-econômico ao outro (o
conflito periódico entre o grau de desenvolvimento das for­
ças produtivas e as relações de produção), nem a forma con­
creta que êste toma (a luta entre classes e fôrças sociais an­
tagonistas) . Enquanto o sistema marxista permite explicar
ao mesmo tempo a origem do modo de- produção asiático, o
declínio do Império Romano, o nascimento das cidades da
Idade Média, o advento da grande indústria, a eliminação da
livre concorrência, a irrupção e a derrota do fascismo, pro-
curar-se-iam em vão nas fórmulas de Talcott Parsons os ele­
mentos suficientes para compreender êsses diferentes fenôme­
nos. A s raras notas concernentes a contradições sociais pré-
capitalistas que se encontram na obra de Parsons e Smelser
fazem prova de uma incompreensão algumas vêzes quase
grotesca.4,3

41 Ibid., pág. 22.


42 Ibid., págs. 104 e seg.
43 C f. a maneira pela qual Talcott Parsons trata da escravidão. Os
escravos são comprados e vendidos no mercado “ independentemente dos
serviços que êles rendem” (pág. 12). Mas como êles são apesar de tudo
humanos, os donos de escravos fizeram sempre prova de um mínimo
de consideração pela vida familiar dêles (pág. 137). Uma breve discussão
com um especialista da história econômica da Roma antiga, ou uma
breve análise do sistema econômico dos campos de extermínio SS, lhe
teriam evitado escrever tais enormidades.
68 P E N S A M E N T O EC O N O M IC O DE K ARL M A R X

A tese fundamental de Talcott Parsons se choca alias


contra essa incompreensão dos conflitos sociais e de sua raiz
económica. T o d o “ sistema econômico” chegado a um certo
ponto de desenvolvimento não aumenta, mas reduz fortemen­
te, a adaptabilidade de seu “ sistema social mais ampio” . A
Evolução do Império Romano a partir dos séculos II e III de
nossa era, ou a evolução da China nos séculos X V III e X IX ,
oferecem exemplos marcantes dessa refutação do esquema
de Parsons.
Quanto à natureza apologética da teoria de Talcott Par­
sons, ela se destaca sobretudo da maneira pela qual ele trata
o quadro institucional da sociedade capitalista. A mão-de-
obra toma a decisão — no seio das casas! —- de oferecer seus
“ serviços” às “ organizações” , em troca e em função de “ re­
munerações” e de outras “ satisfações” . Essa decisão é to­
mada de início (!) sôbre a base de uma "motivação socializa­
da geral” . 44 Etc. O fato de que uma classe social não tem
nem recursos próprios nem acesso aos bens de subsistência,
e de que ela sofre por isso uma coação econômica prévia a. to­
da “ motivação socializada", a tôda “ aceitação do fato de tra­
balho” — a única solução em contrário sendo a morte por in­
digência absoluta! — não tem lugar nessa análise “ institucio­
nal” de Parsons. Da mesma forma procurar-se-ia em vão a
menor explicação do fato de que a renda fundiária feudal re­
presenta com tôda evidência o produto de trabalho não-pago
pela nobreza, que esta se apropria, nem a menor tentativa de
refutar a analogia aparente entre o superproduto social pré-
capitalista e a mais-valia produzida no seio do modo de pro­
dução capitalista. . .

44 Talcott Parsons e Neil Smelser, Economy and Society, págs. 114-5,


121 - 2 .
5

O Problema das Crises Periódicas

Entre o M anifestó Comunista e a N eue Rheinische "Zei­


tung — Politisch-ökonomische Revue, na qual Marx e Engels
formulam suas opiniões detalhadas sôbre a marcha cíclica da
produção capitalista e sôbre as crises de superprodução que
abalam periódicamente ésse modo de produção, se interca­
lam apenas dois anos. M as que anos! Revolução de feverei­
ro de 1848 na França; revolução de março de 1848 em Ber­
lim; volta de Marx e de Engels à Alemanha; publicação de
um diário, o N eu e Rheinische Zeitung de Colónia, dirigido
pelos dois amigos; primeira insurreição proletária em junho
de 1848 em Paris; primeira interdição do N eue Rheinische
Zeitung; explosão e derrota da revolução na Itália e na Hun­
gria; explosão e derrota da revolução em Viena (onde Marx
tinha estado durante dois meses para preparar os trabalha­
dores vienenses para o que ia acontecer);1 vitória da contra-
revolução em Berlim; dissolução da Assembléia Nacional ale­
mã; interdição definitiva do N eue Rheinische Zeitung; ex ­
pulsão de Marx da Alemanha; participação de Engels na
campanha militar conduzida pela democracia pequeno-bur-
guesa na Alemanha meridional contra as tropas contra-revo-
lucionárias; novo exilio dos dois amigos, desta vez na Ingla­
terra .

1 Fr. Mehring, Karl Marx, Geschichte seines Lebens, Leipzig, 1920,


Leipziger Buchdruckerei, pág. 182.
70 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE KAHL M A R X

Depois de ter forjado e aperfeiçoado a doutrina comu­


nista enquanto doutrina da revolução proletária, eis que os
dois jovens pensadores se encontravam mergulhados no co­
ração da ação revolucionária ela mesma, criticando as hesita­
ções, as fraquezas, a falta de lógica e de audácia da demo­
cracia pequeno-burguesa, esforçando-se por insuflar ao má­
ximo energia e intrepidez aos proletários, pela primeira vez
em luta aberta com seus inimigos de classe, na metade da
E uropa.2 Como todos os revolucionários, M arx e Engels
acreditavam apaixonadamente na revolução. Como todos os
revolucionários, êles tinham tendência a gritar: “ A revolução
morreu? V iva a revolução que logo renascerá de suas cinzas!”
Mas êles eram espíritos muito rigorosos, muito científicos,
muito dirigidos para a crítica impiedosa de todo pensamen­
to, inclusive de seu próprio pensamento, para permanecer ví­
timas de ilusões.
Em março de 1850, M arx escreve ainda no enderêço
enviado do Comitê Central à Associação dos Comunistas na
Alemanha que se deve esperar logo uma nova revolução, seja
em conseqüência de uma volta da revolução na França, seja
em conseqüência de uma guerra de “ Santa Aliança” condu­
zida por tôda reação contra essa França revolucionária.3
Sete meses mais tarde, a l .? de novembro de 1850, na “ Re­
vue des événements de mai à octobre 1850” que apareceu no
número de maio-outubro de 1850 da N eue Rheinische Lei­
tung — Politisch-ökanomiische Revue, M arx e Engels escre-

2 Num estudo apaixonante. Roman Rosdolsky demonstrou que a con­


cepção errônea de Engels sôbre os “ novos sem história” ( geschichtslose
Völker, isto é, as pequenas nacionalidades eslavas 1. que se traduz em
tôda N eue Rheinische Zeitunp e em numerosos artigos escritos no curso
dos anos 50, em conseqüência do panei desemnenhado nelos tchecos,
os croatas, os rutênios e tc., no curso da revolução de 1848. resulta de­
finitivamente de uma incompreensão das raízes sócio-econômicas dêsse
papel, isto é, de uma incompreensão dos problemas da luta de classes
entre camponeses tchecos, eslovacos, croatas, rutênios. de um lado, e
proprietários fundiários, revolucionários poloneses e húngaros, de outro
lado ( “ Friedrich Engels und das Problem der “ geschichtslosen Völker’’ ,
em Archiv für Sozialpeschichte, vol. 4, 1964, págs. 87-282, Verlag für
Literatur und Zeitgeschichte, H an över).
3 K. Marx: Ansprache der Zentralbehörde an den Bund, em “Enthü­
llungen über den Kommunistenprozess zu Köln” , pág. 128.
CRISES PERIÓDICAS 71

vem ao contrário: “ Diante dessa prosperidade geral, na qual


as fôrças produtivas se desenvolvem de maneira tão exube­
rante quanto podem fazer no quadro das relações burguesas,
não se pode falar de uma revolução verdadeira. Tal revolu­
ção não é possível senão nos períodos nos quais êstes dois
fatores, as fôrças produtivas modernas e as formas de produ­
ção burguesas, entram em contradição uns com os outros. . .
Uma nova revolução não é possível senão em seguida a uma
nova crise. Ela é tão certa quanto esta” .4
Um estudo aprofundado da marcha cíclica da produção
capitalista levou-os a essa conclusão, que conserva seu valor
ao menos para tôda a fase ascendente do capitalismo inter­
nacional. Êsse estudo se estende sobretudo sôbre a crise de
1847 e a fase de prosperidade que a sucedeu (e cujos resul­
tados são consignados antes de tudo no N eue Rheinische
"Zeitung, diário, depois revista trimestral), e sôbre a crise de
1857, cuja análise foi feita na correspondência Marx-Engels
e nos artigos escritos para o N ew York Daily Tribüne.
Já precedentemente — principalmente na Situação da
Classe Operária na Inglaterra, de Engels, na Miséria da Fi­
losofia, de Marx, e no M anifesto Comunista — Marx e
Engels haviam tratado brevemente do problema das crises
periódicas. Desde as Notas de Leitura e os Manuscritos
Económico-Filosóficos de 1844, vemos M arx censurar Ri­
cardo e J. - B . Say pela incompreensão dêles da contradição
entre a tendência do Capital ao desenvolvimento ilimitado
das fôrças produtivas e os limites estreitos impostos por êsse
mesmo Capital ao consumo das massas operárias. Êle dis­
tingue desde essa época corretamente a démanda física e a
demanda solváuel,5
Na Ideologia Alemã, vemos M arx e Engels retomar essa
mesma distinção, analisar brevemente as razões pelas quais
crises monetárias podem produzir-se, e precisar que a crise
de superprodução não tem por causa uma superprodução físi­
ca, mas perturbações do valor de troca .6

4 K. Marx, Fr. Engels: “ Revue — Mai bis Oktober” , em Neue Rheinis­


che Zeitung — Politisch-Ökonomische Revue, Füftes bis sechsts Heft,
mai-oktober, 1850, pág. 317.
5 m e g a , I, 3, págs. 576-7.
6 K. Marx, Fr. Engels, D ie deutsche Ideologie, págs. 417-8, 557.
72 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

Por outro lado, com o estudo do ciclo econômico, Marx


se tinha aplicado a um estudo mais detalhado das relações
entre os interesses econômicos imediatos e as tendências po­
líticas. .Êsse estudo, A s Lutas de Classe na França 1848-1850,
apareceu igualmente na N eu e Rheinische Zeitung — Politisch­
ökonomische R e vue, É importante para a historia da forma­
ção do pensamento' econômico de Marx, porque êste formu­
lou aqui pela primeira vez explicitamente a idéia de apropria­
ção. coletiva dos meios de produção. 7
Êsse estudo levou-o a se ocupar de fenômenos aos
quais êle não tinha dado grande atenção antes. A evolução
da atitude política do campesinato francês era incompreensí­
vel, senão em função do pêso que a dívida hipotecária e o
imposto representavam para ela. A s diversas frações da bur­
guesia se opunham e se combatiam em função da forma prin­
cipal que tomou seu capital: propriedade fundiária, proprie­
dade bancária, propriedade industrial ou comercial. O estu­
do econômico se afastava desde então das abstrações e das
generalidades, para se tornar freqüentemente minucioso.8 As
flutuações quase quotidianas da Bôlsa ou os detalhes da po­
lítica financeira do Govêrno foram integrados na análise. Pa­
rece evidente que essa familiaridade maior com os problemas
do crédito e com os fenômenos monetários preparava nossos
dois amigos para compreensão melhor do “ ciclo industrial” .
Marx e Engels não se tinham no entanto aplicado ainda
a um estudo sistemático dessa marcha cíclica da produção ca­
pitalista, da sucessão das fases de retomada econômica, de
alta conjuntura, de prosperidade, de “ boom” (superaqueci­
mento econôm ico), de ruína financeira, de crise e de depres­
são. Mas eis que na N eue Rheinische Zeitung — Politisch-
ökonomische Revue, os dois amigos publicam periodicamente
uma revisão dos acontecimentos políticos e econômicos cor­
rentes, que se torna progressivamente um verdadeiro estudo
de conjuntura. N o segundo fascículo dessa revista mensal,
que não conheceu senão cinco números (janeiro de 1850, fe-

7 Fr. Engels: “ Introduction, Les Luttes de Classes en France (1848-


1850)” , em K . Marx, Fr. Engels, Oeuvres Choisies en deux volumes,
vol. I, pág. 117.
8 Ver principalmente a análise das medidas fiscais e da atitude do Ban­
co em seguida à revolução de fevereiro de 1848 (K . Marx, Les Luttes de
Classes en France (1848-1850), págs. 151-2).
CRISES PERIÓDICAS 73

vereiro de 1850, março de 1850, abril de 1850, maio-outubro


de 1850), Marx e Engels insistem sôbre o fato de que a ex­
plosão da revolução de fevereiro de 1848 na França teve um
efeito benéfico sôbre a conjuntura econômica na Grã-Breta­
nha, golpeada pela depressão desde 1845. “ Uma massa de
mercadorias deprimindo os mercados de além-mar tinha nesse
meio tempo progressivamente encontrado saídas. A revolução
de fevereiro eliminou por outro lado, precisamente nesses mer­
cados, a concorrência da indústria continental, enquanto a in­
dústria inglêsa não perdeu mais pelo fato do mercado conti­
nental abalado do que ela teria perdido de qualquer manei­
ra em conseqüência do desenrolar ulterior da crise.” 9 Por
êsse fato, a indústria inglêsa pôde atravessar a crise mais ra­
pidamente do que o previsto, e entrou desde 1849 numa nova
fase de prosperidade que, segundo os industriais, supera tôda
prosperidade precedente.
Nessa revisão da conjuntura econômica, Marx e Engels
sublinham antes de tudo a importância das “ grandes saídas
de além-mar” para a situação econômica da Grã-Bretanha (e
da indústria européia em geral) . Depois de ter mencionado a
êsse propósito a influência das revoluções européias sôbre o
comércio internacional, êles colocam em relêvo a importância
historicamente decisiva — “ fato mais importante ainda que a
revolução de fevereiro” ■ —- da descoberta de ouro na Califór­
nia. A passagem que se segue é de uma cisão profética ex­
traordinária, visto que Marx e Engels prevêem a abertura
do canal de Panamá, o deslocamento do centro do comércio
mundial para o oceano Pacífico (que não permanece senão
tendencial até nossos dias), a superioridade industrial e co­
mercial dos Estados Unidos sôbre a Europa (que só se tor­
nará fato mais de meio século mais tarde), e até a revolução
chinesa. 10
Se no fascículo n- 4 Marx e Engels tendem antes a
anunciar uma nova crise cie superprodução,11 êles se tornam

9 K. Marx, Fr. Engels: “ Revue” , em Neue Rheinische Zeitung — Po­


litisch-ökonomische Revue, Zweites Heft, fevereiro de 1850, pág. 119.
10 Ibid., págs. 120-121. A revolução chinesa dita dos Ta'i-Ping estourou
de fato a 11 de janeiro de 1851, menos de um ano depois que Marx e
Engels a tinham previsto.
11 K. Marx, Fr. Engels: “ Revue”, em N eue Rheinische Zeitung — Poli­
tisch-Ökonomische Revue, Viertes Heft, abril de 1850, págs. 213-5.
74 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE KARL M A R X

mais prudentes no fascículo n° 5-6, cuja “ Revue” constitui


de fato uma análise detalhada de tôda conjuntura econômica
do mundo capitalista de 1836 a 1850. Essa análise já é fun­
ção ao mesmo tempo de um estudo aprofundado dos fatos e
de uma concepção1de conjunto do ciclo que reconhece o pa­
pel estratégico de certos fatores.
Assim, os autores insistem sôbre o fato de que na Grã-
Bretanha o investimento de capitais superabundantes na
construção ferroviária deu impulso à prosperidade de 1843-
45; a expansão da navegação a vapor, em direção à costa do
Pacífico dos Estados Unidos, em direção ao oceano Pacífico,
em direção à Austrália, desempenhou um papel no mesmo
sentido. Essa onda de investimentos provocou a criação de
numerosas novas empresas, que por sua vez chegaram à su­
perprodução. M as como a prosperidade é acompanhada de
uma especulação cada vez mais desenfreada, é a especulação
e não a superprodução que parece ser a causa da crise. Marx
e Engels retificam a êsse propósito uma impressão superficial
e insistem sôbre o fato de- que a crise é sempre em última aná­
lise crise de superprodução.12
A crise internacional de 1847, começada no plano fer­
roviário, se estende em seguida ao plano monetário e comer­
cial, onde é agravada pelas séries de más colheitas das bata­
tas na Irlanda, na França, nos Países Baixos e na Bélgica em
1845 e 1846, que provocou um aumento considerável dos pre­
ços do trigo . M arx e Engels dão assim uma importância pro­
nunciada à interação entre a indústria e a agricultura no me­
canismo do ciclo da produção capitalista.
Êles dão uma importância também pronunciada aos fe­
nômenos puramente monetários e ao papel-chave que desem­
penham na gênese da crise. Um primeiro pânico em abril de
1847, causado^ por um brusco aumento da taxa de desconto
do Banco da Inglaterra e a publicação de um balanço hebdo­
madário dêsse Banco mostrando que suas reservas de ouro
tinham caído a 2,5 milhões de libras, não traz o abalo de
grandes casas bancárias ou comerciais. Êste vai produzir-se
em agôsto de 1847, após a bancarrota de uma série de casas

12 K. Marx, Fr. Engels: “ Revue — Mai bis Oktober” , em N eue Rhei­


nische Zeitung — Politisch-ökonomische Revue, Fünftes Heft, maio-ou-
tubro de 1850, pág. 304.
CRISES PERIÓDICAS 75

especializadas no comércio do trigo e dos produtos coloniais,


seguida de uma série de bancarrotas espetaculares de bancos
e de corretores m outubro do mesmo ano.
Uma vez mais, M arx e Engels insistem sôbre o papel de­
sempenhado pela superprodução real no mecanismo da crise:
expansão excessiva de construção ferroviária, de um lado, im­
portação (e exportação) excessiva de uma série de produtos
coloniais, de outro lado. Êles sublinham o mesmo mecanismo
analisando a prosperidade de 1848-1850 na indústria britâni­
ca, marcada muito menos pela especulação do que pela ex­
pansão real da produção, antes de tudo da indústria algo­
doeira e das exportações, principalmente para os países do
Extremo Oriente (nossos autores falam a esse propósito do
mercado1 das índias holandesas orientais “ aberto” ao comér­
cio britânico) e para o oceano Pacífico (marcado pelo desen>
volvimento febril da Califórnia) .
Marx e Engels exprimem a opinião de que as flutuações
irregulares do preço do algodão tornam cada vez mais irritan­
te para a burguesia britânica sua dependência com respeito
à cultura do algodão' nos estados do! Sul dos Estados Uni­
dos. Êles formulam a opinião de que a Grã-Bretanha pro­
curará desenvolver a cultura de algodão fora (foi o que efe­
tivamente se produziu, sobretudo na índia e no E gito), e que
é essa concorrência de trabalhadores livres que dará um gol­
pe mortal na escravidão dos negros dos estados do Sul13
(previsão que igualmente se verificou) .
,Êles sublinham da mesma forma o papel motor desem­
penhado pela Grã-Bretanha no desenrolar do ciclo para o
conjunto do mundo capitalista. É na Grã-Bretanha que co­
meça o movimento cíclico; é lá que se produz o movimento
original. N o continente europeu, as fases sucessivas do ciclo,
que a produção capitalista atravessa cada vez de nôvo, não
aparecem senão sob forma de fenômenos derivados.14 É que
a Grã-Bretanha é o mercado principal para todos os países
do continente, e que as flutuações da conjuntura britânica
provocam — com um inevitável atraso — flutuações análo­
gas das exportações, e pois da conjuntura, nesses países con-
76 P E N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE KARL M A R X

tinentais. É que a conjuntura nos países de além-mar, para


os quais a indústria britânica exporta bem mais do que a in­
dústria dos países continentais., exerce seus efeitos sôbre a
Grã-Bretanha, bem antes de os exercer sôbre os países do
continente europeu.
Essa análise que é muito sutil, e que supera tudo o que
a ciencia académica da época tinha podido apreender, não*
deixa de sofrer de várias fraquezas. A distinção entre crises
monetárias, que não são senão o reflexo de crises de super­
produção, e crises monetárias “ autônomas” , que podem apa­
recer mesmo em momentos de prosperidade, sobretudo no
quadro dos “ mecanismos automáticos” regidos pelo padrão-
ouro, não está suficientemente estabelecida. A duração do
ciclo é apreendida de maneira puramente empírica e não em
relação com a duração' de reprodução do capital fixo.
Essas duas deficiências levarão Marx e Engels a predi­
zer várias vêzes erradamente a explosão de uma nova crise,
principalmente em 1852,15 e em 185316 e em 1855.17 É somente
em 1857 que essa crise explodirá finalmente, a duração mé­
dia do ciclo sob o capitalismo clássico se verificando ser não
de seis ou sete anos, como os dois amigos tinham de início
acreditado,18 mas de sete a dez anos, como Marx desenvol­
veu amplamente mais tarde nos Grundrisse e no Capital.
Êsses dois fatores desempenharam um papel determinan­
te nos erros de previsão econômica dos anos 1852-1855. N o
15 K. Marx, Fr. Engels: “ Revue” , em Neue Rheinische Zeitung — Po­
litisch-ökonomische Revue, Fünftes bis sechstes Heft, pág. 312. Ver
também a carta de Marx a Engels de 19 de agosto de 1852 ( Brief W e ­
chsel zwischen Friedrich Engels und Karl Marx 1844-1883, vol. I, pág.
334).
16 “Pauperismo e livre troca. A ameaça de uma nova crise comercial” ,
artigo enviado a 15 de outubro de 1852 ao New York Daily Tribüne, em
Gesammelte Schriften 1852-1862, herausgegeben von N . Rjasanov, Stutt­
gart, Dietz, 1920, vol. I, pág. 33.
17 Série de artigos publicados sob o título: “A Crise Comercial da Grã-
Bretanha” , no N eue Oder-Zeitung, de 11 a 22 de janeiro de 1855, e no
New York Daily Tribüne, de 20 de janeiro de 1855.
18 “ Em princípio, em Economia Política, não se deve nunca agrupar
os algarismos de um só ano, para daí tirar leis gerais. Deve-se sempre
tomar o têrmo médio de seis a sete anos, lapso de tempo durante o qual
a industria moderna passa pelas diferentes fases de prosperidade, de su­
perprodução, de estagnação, de crise e completa seu ciclo” (K. Marx,
“ Rede über den Freihandel” , em Kleine ökonomische Schriften, pá­
gina 5 1 5 ).
CRISES PERIÓDICAS 77

Politisch-ökonomische Revue, é a analogia com a duração do


ciclo precedente (1843-1847) que leva Marx e Engels a pre­
dizer uma nova crise para o ano de 1852. N os artigos envia­
dos ao N ew York Daily Tribüne, são os problemas monetá­
rios que desempenham um papel principal no diagnóstico er­
rôneo .
Durante todo êsse período, a descoberta e a exploração
febril das minas de ouro da Califórnia e da Austrália dese­
quilibraram fortemente o mercado monetário. Assim como
Rjasanov o indica nos seus comentários dos artigos de 1852,10
M arx mais tarde, no terceiro volume do Capital,20 corrigiu a
impressão que tinha tido nessa época de que da acumula­
ção de ouro no Banco da Inglaterra não1podiam resultar se­
não flutuações do balanço comercial, estreitamente ligadas à
conjuntura econômica britânica e internacional. Essa acumu­
lação podia também resultar de bruscos aumentos da produ­
ção de ouro, expedida na Grã-Bretanha, e exercendo assim
uma influência autônoma sôbre a conjuntura. Tocamos aqui
um dos aspectos do caráter duplo do ouro ao mesmo tempo
equivalente geral de tôdas as mercadorias (função que êle
parece exercer independentemente do seu valor intrínseco), e
êle próprio mercadoria, metal produto do trabalho humano,
cujo valor flutua com a evolução da produtividade na indús­
tria aurífera. Alguns anos mais tarde, redigindo os primei­
ros capítulos da Crítica da Economia Política, Marx subli­
nhará êsse fenômeno contraditório.
Em 1852, Marx tinha ainda raciocinado por pura ana­
logia: visto que a história das crises nos ensina que a acumu­
lação de um excesso de capitais nos bancos leva a especula­
ção até o paroxismo, e que êsse “ superaquecimento” da con­
juntura precede de pouco a crise,121 o excesso de capitais que
existe em 1852 deve necessàriamente assinalar uma crise pró­
xima. Alguns meses mais tarde, em janeiro de 1853, êle já
é levado a corrigir essa impressão.22 Apesar dessa previsão
errônea, a análise da conjuntura econômica de 1852 contém
elementos válidos, principalmente essa nota pertinente que

19 N. Rjasanov, em K. Marx, Fr. Engels, Gesammelte Schriften 1852-


1862, I, pág. 453.
20 K. Marx: Das Kapital, III, 2, pág. 40.
21 K. Marx, Fr. Engels, Gesammelte Schriften 1852-1862, I, pág. 33.
22 Ibid., págs. 65-71.
78 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE KAHL M A R X

conservou o seu valor até a época contemporânea: “ Não


houve jamais um período de prosperidade, no curso do qual
êles, “ os otimistas burgueses” , não tenham tomado a ocasião
de demonstrar que desta, vez o destino implacável seria ven­
cido. Mas no dia em que a crise explodiu, êles simulavam a
inocência e atacavam o comércio e a indústria com uma indig­
nação moralizadora, e censuras banais, porque êles não ti­
nham dado prova de suficiente prudência e previsão.” 23
Quanto à "crise” de 1854-5,. o êrro de Marx foi mais
perdoável porque êle não decorreu simplesmente de raciocí­
nios por analogias ou de deduções abstratas. Houve efetiva­
mente uma crise de superprodução da indústria algodoeira,
causada principalmente por uma baixa das exportações para
a Austrália (onde houve especulação excessiva no curso dos
dois anos precedentes, em conseqüência do “ boom” do ouro).
Houve igualmente flutuações graves no mercado monetário,
causadas por uma brusca queda da cota de ouro americano e
australiano. Numerosas falências nos países de além-mar ori­
ginaram falências de importantes casas britânicas. N o en­
tanto, assim como Rjasanov precisa nos seus comentários dos
artigos de Marx de janeiro de 1855j24, não se tratava de uma
crise geral, mas de uma crise parcial no curso da qual o pa­
pel autônomo do fator monetário uma vez mais se revelou.
Nos seus artigos de janeiro de 1855, M arx sublinha a
importância colossal dos mercados americanos e australianos
para a expansão da produção industrial e das exportações bri­
tânicas. Essas exportações haviam mais do que dobrado en­
tre 1842 e 1853. M as sôbre os 100 milhões de libras expor­
tados pela Grã-Bretanha em. 1853, 40% iam para êsses dois
países (25 milhões de libras para os Estados Unidos, 15 mi­
lhões para a Austrália) . Ora, sôbre as 45 milhões de libras
de mercadorias britânicas exportadas em 1842, a Austrália só
absorvia um milhão, os Estados Unidos só absorviam 3,5
milhões (seja para os dois países tomados globalmente, 10%
das exportações britânicas) . O aumento das exportações bri­
tânicas, que foi de mais de 50 milhões de libras durante êsses
decênios, foi absorvido em quase 80% por êsses dois “ novos”

23 Ibid., pág. 34.


24 Ibid., pág. 500.
CRISES PERIÓDICAS 79

mercados de além-mar. Visto que êsse “ boom” das expor­


tações parecia agora parado, não era o conjunto da prospe­
ridade que se encontraria golpeado de morte? Vê-se, nesse
momento, que o êrro de previsão de M arx tinha fundamento
mais sólido que o de 1853.
O que o autor do Capital tinha desta vez subestimado
era o efeito- estimulante da guerra da Criméia sôbre a con­
juntura econômica. A experiência histórica fornece aqui um
exemplo daquilo que Rosa Luxemburgo chamará mais tarde
o papel de “ saída de substituição” que os comandos de Esta­
do podiam desempenhar em relação às saídas exteriores.25
O s fornecimentos ao exército e o desenvolvimento da indús­
tria de guerra compensaram amplamente o recuo das expor­
tações para a Austrália. Marx aliás reconheceu isso mais tar­
de visto que classifica os anos de 1854 e 1855 entre os anos
de prosperidade, no volume III do Capital.
M as no ano seguinte, a análise do “ superaquecimento”
feita de início por Engels (carta a M arx de 14 de abril de
1856), depois por Marx (carta de 28 de setembro de 1856 a
Engels) se verifica correta.26 Um “ magnífico crash” (E n­
gels a Marx, 29 de outubro de 1857)27 lhe sucede e abre am­
plamente as comportas da crise. Desta vez, os dois amigos
estavam equipados dos conhecimentos e de posse dos dados
empíricos necessários para seguir passo a passo o desenvol­
vimento da crise. A crise de 1857-58 era aliás mais geral que
as crises precedentes: ela se estendia geográficamente a uma
área mais ampla e tocava todos os ramos da indústria.
É no curso do estudo da crise de 1857-58 que Marx des­
cobre pela primeira vez as relações entre a duração do ciclo
e a duração de reprodução do capital fixo. Êle coloca uma
questão a êsse propósito a Engels na sua carta de 2 de mar­
ço de 1858 e seu amigo lhe responde longamente dois dias
dep ois.28 Assim o círculo está fechado, e M arx e Engels cor­

25 Rosa Luxemburgo, D ie Akkumulation des Kapitals, Vereinigung in­


ternationaler Verlagsanstalten, Rerlim, 1923, págs. 371-4, édit. François
Maspero, 1967.
26 Briefwechsel zwischen Friedrich Engels und K. Marx 1844-83, vol.
II, págs. 105-6, 127.
80 P E N S A M E N T O EC O N O M IC O DE KARL M A R X

rigem agora no sentido do ciclo decenal a suposição errônea


de um ciclo sexenal adiantado sete anos mais cedo.
N ão é mais que a China que aparece a M arx como saí­
da suplementar possível no curso do ciclo que sucederá à cri­
se de 1857-58;29 e êle prevê corretamente que não será fácil
quebrar a resistência que a agricultura chinesa arcaica e par­
celar opõe à penetração do Grande Capital.30 Mas êsses oito
anos de estudos dos problemas conjunturais terão' fornecido
a Marx os instrumentos conceptuais com os quais êle nos
oferecerá no Capital senão uma teoria completa do ciclo ca­
pitalista — êle não teve tempo de redigir esta —■ pelo menos
os principais materiais para a construção de tal teoria.
Bstes aliás inspiraram amplamente os economistas que
a partir de Tougan-Baranowsíky — êle próprio um "marxis­
ta legal” — desenvolveram no século X X as diversas teorias
chamadas das crises periódicas. 31 Alvin Hansen afirma que
"o Professor Aftalion, da mesma forma que Cassei e Spie-
thoff, deve muito a M arx e às idéias derivadas de Marx e
de outros. . . Seus escritos estão cheios de sugestões que in­
fluenciaram muito o pensamento não-marxista a respeito dos
ciclos, apesar do fato de que autores não-ortodoxos não re­
conheceram sempre a amplitude de sua dívida por respeito a
Marx, ou nem mesmo se deram conta dela” . 32
Essa observação se aplica particularmente àqueles que,
como os autores citados, construíram sua teoria das crises so­
bre a duração do ciclo de reconstituição do capital fixo, ou,
se se quiser, sôbre a atividade de investimento (de acumula»

29 Ihid., págs. 292-3.


30 Ver seu artigo “ O Comércio com a China” , que apareceu no New
York Daily Tribune, de 3 de dezembro de 1859, em Marx-Engels-Werke,
vol. 13, págs. 540-4, Dietz-Verlag, Berlim, 1961.
31 Michael Tugan-Baranowsky, Studien zur Theorie und Geschichte
der Handelskrisen in England, G . Fischer-Verlag, Iena, 1901. O livro
de Tugan-Baranowsky foi analisado de maneira crítica principalmente
por Rosa Luxemburgo: D ie Akkumulation des Kapitals, págs. 239-244,
v i v a , Berlim, 1923.

32 Alvin H. Hansen, pág. 129, em Alvin H. Hansen e Richard V. Cle-


mence, Business Cycles and National Income, Readings in N. W . Nor­
ton and C o ., Nova York, 1953. Cf. também Prof. Wassily Leontieff:
“ The Significance of Marxian Economics for Present Day Economic
Theory” , em American Economic Review, v ol. 28, n.° 1, suplemento de
março de 1938, pág. 3.
CRISES PERIÓDICAS 81

ção do capital) como motor principal do ciclo. Mas ela se


aplica igualmente àqueles que acreditaram poder descobrir
no subconsumo das massas a causa principal das crises cícli­
cas . De fato, as duas idéias estão presentes ,na obra de Marx,
pela simples razão que para êle a causa das crises reside ao
mesmo tempo na concorrência capitalista — o caráter irregu­
lar dos investimentos capitalistas — e no atraso que a “ pro­
cura solvável” das massas deve necessariamente tomar sôbre
a capacidade de produção global da sociedade.23

33 Examinamos êsse problema de maneira mais detalhada no Traité


d’économie marxiste, volume I, págs. 449-467.
6

O Aperfeiçoamento da Teoria do Valor, da


Teoria da Mais-Valia e da Teoria da Moeda

A crise de 1857 tinha reduzido os recursos já muito ma­


gros de M arx: o N ew York Daily Tribune limitou suas con­
tribuições a dois artigos por semana. M as ela não estimulou
menos seu ardor e sua alegria pelo trabalho, a ponto dêle es­
crever em 18 de dezembro de 1857 a Engels: “ Trabalho
(atualmente) de maneira colossal, na maioria das vêzes até
quatro horas da manhã.” 1 Êsses trabalhos se concentraram
sôbre dois pontos: o registro minucioso dos “ fatos e gestos”
da crise; a elaboração dos “ traços fundamentais” da análise
económica.2 Dêsses últimos trabalhos nascerão a Contribuição
a Critica da Economia Política, os Gnindrisse e as Teorias sô-
bre a Mais-Valia, que constituem o conjunto dos trabalhos
diretamente preparatórios para a elaboração do Capital.
Desde muito tempo Marx tinha alimentado a esperança
de redigir de maneira sistemática uma crítica da Economia
Política burguesa, assim como a exposição de suas próprias
concepções em matéria econômica. Êle tinha feito alusão des-

1 D er Briefwechsel zwischen Friedrich Engels und Karl Marx, vol. II,


pág. 219.
2 Cf. sua carta a Lassalle de 21 de dezembro de 1857: “A atual crise
comercial me incitou a me dedicar agora minuciosamente à elaboração
dos traços fundamentais da economia e também a preparar alguma coisa
sôbre a presente crise’’ (Ferdinand Lassalle, Nachgelassene Briefe und
Schriften, herausgegeben von Gustav Mayer, vol. 3, Deutsche Verlag-
Anstalt, Stuttgart, 1922, pág. 111).
TEORIAS DO VA LO R, DA M A IS -V A L IA E D A M OEDA 83

de 1851, escrevendo a 2 de abril déste ano a Engels,3 que em


seis semanas fceria terminado com todo o amontoado confuso
económico na biblioteca (d o Bvitish M useum ) e que elabo­
raria em seguida “ a economia” em casa. M as a necessidade
de um trabalho jornalístico para sobreviver a suas necessida­
des a partir de 1852, as dificuldades familiares e uma saúde
deficiente retardaram de quatro anos a execução dêsse pla­
no. A redação dos Gt'unclrisse foi começada em setembro de
1857.4 E M . Rubel nota que, de agosto de 1852 até o fim
de 1856, Marx foi obrigado a renunciar a seus estudos eco­
nômicos . 5
O fato de que Lassalle tenha podido encontrar um edi­
tor para publicar a obra económica de M arx em fascículos es­
timulou a redação final; esta no entanto não foi concluída
para o primeiro fascículo ("Contribuição a uma Crítica da
Economia Política” ) senão a 21 de janeiro de 1859, e, ao
anunciar a Engels, M arx não pode deixar de suspirar: "N ão
creio que se tenha jamais escrito a respeito do dinheiro so­
frendo1 de tal falta de dinheiro” , assim como Franz Mehring
lembra oportunamente na sua biografia de Marx.®
É entre essas duas datas de 18 de dezembro de 1857 e
de 21 de janeiro de 1859, ou mais exatamente entre novem­
bro de 1857 '£ o fim de junho de 1858, que se situam verda­
deiramente as contribuições mais válidas que M arx fez ao
desenvolvimento da ciencia econômica. Êle as anunciou a
Engels numa carta de 29 de março de 1858 que contém ao
mesmo tempo a noticia de que o editor Duncker tinha aceitado
a publicação do seu manuscrito económico. Êle as esboçou
três dias mais tarde, e resumiu seu sentido a 22 de julho de
1859: tentar demonstrar o caráter especificamente social e
de maneira alguma absoluto do modo de produção capitalis­
ta a partir do seu fenómeno mais simples: a mercadoria.7

3 Ibid., vol. I, pág. 14.


4 Prefácio do Instituto Marx-Engels-Lênin a K. Marx: Grundrisse der
Kritik der Politischen Oekonomie, pág. IX, Dietz-Verlag, Berlim, 1953.
5 M . Rubel, K. Marx, Essai de Biographie intellectuelle, pág. 297.
6 Franz Mehring, Karl Marx, Geschichte seines Lebens, pág. 263.
7 Briefwechsel zwisclien F. Engels und K. Marx, vol. II, págs. 265-9 e
341.
84 P E N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE KARL M A R X

A Contribuição à Crítica da Economia Política é sobre­


tudo conhecida pelo seu prefácio, que resume a teoria do ma­
terialismo histórico em palavras escolhidas pelo seu autor, e
sôbre a qual não nos devemos estender aqui. A própria obra
encontrou menos ressonância, por ocasião de sua publicação,
e até nossos dias, pelo fato de seu caráter abstrato; Engels
aliás se tinha queixado desde que Marx lhe havia esboçado
as grandes linhas do trabalho.8 N o entanto, êsse livro con­
tém a maior parte das contribuições específicas de Marx ao
desenjvolvimento da teoria econômica, que êle elaborou deta­
lhadamente nos Grundrisse, obra que permaneceu desconhe­
cida do público até depois da Segunda Guerra Mundial.
Ela se apresenta antes de tudo como um aperfeiçoamen­
to da teoria do valor-trabalho, elaborada pelos representan­
tes da escola clássica: William Petty, Adam Smith e Ricar­
do. Mas ela constitui ao mesmo tempo um aperfeiçoamento
das teorias econômicas que o próprio Marx tinha elaborado
até seu nôvo exílio inglês.
N o Trabalho Assalariado e Capital, como em tôdas as
obras precedentes de Marx, a distinção entre “ trabalho” e
“ fôrça de trabalho” não está ainda estabelecida. Por êsse
fato, M arx não pode dar uma análise científica da mais-valia
que resulta precisamente da descoberta de um valor de uso
específico da fôrça de trabalho. Ou melhor, nem a Miséria da
Filosofia, nem o M anifesto Comunista, nem Trabalho A s-
salariado e Capital, contêm ainda a noção de mais-valia. Da
mesma maneira, em tôdas essas obras, Marx não tinha ainda
elucidado definitivamente o segrêdo do valor de troca das
mercadorias. Tendo sido levado à teoria do valor-trabalho
desde seu exílio em Bruxelas,, êle não tinha ainda aprendido
a distinguir o valor de troca dos preços de produção, nem
êstes dos preços de mercado.
Assim, na Miséria da Filosofia, Marx não distingue o
valor de troca dos preços; êstes desapareceram completa­
mente da análise. Em Trabalho Assalariado e Capital, o
têrmo “ valor de troca” desaparece, por sua vez, para dar lu­
gar aos preços. M as aquilo que os economistas tinham an-

8 Ibid., págs. 269-270.


TEORIAS DO VALOR, D A M A IS -V A L IA E D A M OE DA 85

tes considerado como uma contribuição inaceitável3 é agora


compreendido como uma realidade de .natureza eminentemen­
te dialética: “ São essas oscilações (dos preços) sozinhas que,
à medida que elas se produzem, determinam o preço pelos
custos de produção. É o conjunto do movimento dessa de­
sordem que é sua própria ordem.” 10
É na sua Contribuição à Crítica da Economia Política
que M arx aperfeiçoará sua teoria do valor, e ao mesmo tem­
po a teoria do valor-trabalho em geral, formulando sua teo­
ria do trabalho abstrato, criador de valor de troca.11 Êle dis­
tingue as duas formas de trabalho, o "trabalho concreto” que
cria o valor de uso, e o “ trabalho abstrato” , isto' é, a fração
do tempo de trabalho social globalmente disponível numa so­
ciedade de produtores de mercadorias, separados uns dos ou­
tros pela divisão social do trabalho, que é produtor do valor
de troca. As duas formas do valor — • valor de uso e valor
de troca — se fundem sôbre essas duas formas do trabalho.
Marx considera essa análise da mercadoria como a finaliza­
ção de mais de um século e meio de evolução da Economia
Política clássica.12 E, depois de ter desenvolvido sua própria
análise de maneira detalhada, êle se esforça por representar
a marcha histórica concreta pela qual a ciência econômica
chegou a uma concepção correta da natureza do valor de tro­
ca, dando o que é devido a cada um dos grandes pensadores
do século X V III e do comêço do século X lX , mas não dei-

9 E êle próprio, nas Notas de leitura e nos Manuscritos Económico-Fi­


losóficos de 1844.
10 “ Travail salarié et capital” , pág. 81, em Oeuvres Choisies en deux
volumes, vol. I, Moscou, Edições do Progresso, 1955. (Grifo nosso. )
11 Na “Introdução” , Marx descreve o método dialético que lhe permi­
tiu descobrir a categoria do trabalho abstrato (Prefácio, págs. XXXIX-
X LI da edição de Kautsky. Dietz, Stuttgart, 1920). Naville insiste a
justo título sôbre o fato de que se encontra essa categoria já em potên­
cia em outros autores, principalmente em Hegel e em Adam Smith (D e
VAliénation à la Jouissance, pág. 399). Marx indica êle próprio que Ben­
jamín Franklin havia progredido amplamente no caminho de descobrir
essa categoria do trabalho abstrato (Zur Kritik der politischen Oekono-
mie, pág. 38 ). Rosdolsky sublinha que, em Ricardo, o caráter específico
do trabalho abstrato criador de valor, distinto do trabalho concreto pro­
dutor de valores de uso, não está analisado ( R. Rodolsky, Ein neomarxis-
tisches Lehrbuch der politischen Oekncmie, Kyklos, vol. XVI, 1963, fas­
cículo 4, p á g . 6 4 2 ).
12 K. Marx, Zur Kritik der politischen Oekonomie, pág. 33.
86 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE K ARL M A R X

xando tampouco de sublinhar as deficiências de que sofrem as


análises em cada um dêles. O pequeno subcapítulo da Con­
tribuição à Crítica da Economia Política intitulado "Dados
Históricos que Concernem à Análise da Mercadoria” se apre­
senta assim como um resumo de uma obra consagrada às
“ Teorias sôbre o V alor” , servindo de prefácio às “ Teorias
sôbre a M ais-Valia” . 13
A s duas páginas que resumem as críticas feitas em geral
contra a teoria do valor de Ricardo14 constituem ao mesmo
tempo o resumo das contribuições particulares de Marx ao
desenvolvimento da teoria econômica. Êle a chama de teo­
ria do trabalho assalariado (a recíproca da teoria da mais-
valia); a teoria do capital; a teoria da concorrência; e a teo­
ria da renda fundiária. E formula respostas convincentes a
essas quatro críticas.
Se o trabalho constitui a essência do valor de troca, qual
é então o valor de troca do trabalho? N ão é cair num círculo
vicioso fazer do valor de troca a medida do valor de troca?
Essa objeção se dissolve no problema seguinte: Dado o
tempo de trabalho enquanto critério do valor de troca, como
se pode determinar o salário?15 Com o se efetua a troca entre
o Capital e o Trabalho, na base objetiva de uma troca igual?
Marx responde: “ Se fôsse necessária uma jornada de
trabalho para manter em vida um operário durante um dia,
o capital não poderia existir, porque a jornada de trabalho
seria trocada pelo seu próprio produto, e o capital não se
poderia valorizar enquanto capital, e não poderia pois subsis­
tir. . . Mas se somente uma meia jornada de trabalho é su­
ficiente para manter em vida um operário durante todo um
dia de trabalho, então a mais-valia resulta dêle mesmo. . . ” 16
N ão é a troca que cria a mais-valia, mas um processo
graças ao qual o capitalista obtém sem troca, sem equivalen­
te, gratuitamente, o tempo de trabalho cristalizado em valor.
13 Não analisaremos neste estudo as Theorien über den Mehrwert, con­
sideradas como volume IV do Capital, se bem que sua redação preceda
a do volume I.
14 K. Marx, Zur Kritik der politischen Oekonomie, págs. 44-46.
15 Ibid., págs. 44-45.
16 K. Marx, Grundrisse der Kritik der Politischen Oekonomie, pág. 230.
Redigimos êsse estudo antes que aparecesse nas ed. Antrophos, Paris,
a tradução francesa dêsse livro. As passagens citadas aqui foram pois tra­
duzidas por nós mesmos (E. M .).
TEORIAS DO VALOR, D A M A IS -V A L IA E D A M O E D A 87

E êsse processo não é nada além do gozo pelo capitalista do


valor de uso da fõrça de trabalho, que tem a qualidade de
poder produzir valor bem além do equivalente de seu pró­
prio valor de troca, de seus próprios gastos de manutenção,
uma vez dado o nivel determinado de produtividade do tra­
balho, sem o qual o modo de produção capitalista seria in­
concebível .
É pois essa distinção sutil entre o valor de troca e o va­
lor de uso da fôrça de trabalho que aparece como o funda­
mento da teoria marxista da mais-valia, a contribuição prin­
cipal que Marx fêz ao desenvolvimento da ciencia econó­
mica.17
"V alor de uso para o capital, o trabalho não é senão
valor de troca para o operário, (único) valor de troca dispo­
nível. . . O valor de uso de uma coisa não concerne a seu
vendedor enquanto tal, mas não concerne senão a seu com­
prador. A qualidade do salitre de poder ser usado para fa­
bricar a pólvora não determina o preço do salitre; êsse preço
depende dos custos de produção do próprio salitre, da quan­
tidade de trabalho que está cristalizada nêle. N a circulação,
na qual os valores de uso entram enquanto preço, seu valor
de troca não resulta dessa circulação, se bem que êle se rea­
lize nela; êle já é predeterminado e não faz senão se reali­
zar na troca com o dinheiro. Da mesma maneira o trabalho18
que o operário vende ao capitalista enquanto valor de uso.
17 O próprio Marx considerou que sua análise da mais-valia em geral,
além de suas formas específicas de lucro, de juro, de renda fundiária
etc., constitui o seu principal mérito (carta a Engels de 24 de agòsto
de 1867, em Briefwechsel zwischen Fr. Engels und K. Marx, vol. III,
pág. 395).
18 Essa passagem parece dar razão a Pierre Naville, que afirmou que,
nos Grundrisse, Marx não distingue ainda “ trabalho” e “ fôrça de traba­
lho” (D e VAliênation à la Jouissance, pág. 4 3 2 ). Na realidade, se se
encontram nos Grundrisse — da mesma forma aliás que em Theorien
über den Mehrwert — algumas passagens onde essa distinção não é efe­
tivamente feita, há um grande número de passagens onde Marx distin­
gue muito bem trabalho e “capacidade de trabalho’ ’ ( Arbeitsvermögen),
o que é sinônimo de “ fôrça de trabalho” . Ver principalmente nos Grun­
drisse, págs. 200 e segs., 491, 497, 502-503, 565-6 etc. A passagem da
pág. 566 é particularmente típica. Êle fala da “ capacidade de traba­
lho” , do valor de uso dessa “ capacidade de trabalho” que permite pre­
cisamente a valorização do capital: “ Pelo fato de que o capital trocou
a capacidade de trabalho na base da equivalência, êle trocou ( obteve) . . .
tempo de trabalho sem equivalente.”
88 P E N S A M E N T O EC O N O M IC O DE KAHL M A R X

Êle é para o operario um valor de troca que êle deseja reali­


zar, mas que já está predeterminado antes do ato de troca. . .
O valor de troca do trabalho. . . é pois também predetermi­
nado. . . Êle não depende do valor de uso do trabalho. Para
o operário, êle não tem valor de uso senão na medida em que
constitui um valor de troca, e não na medida em que produz
valores de troca. Mas, para o capital, êle não tem valor de
troca senão na medida em que tem valor de uso. . . Que o
operário não possa enriqueecr nessa troca, na medida em
que êle. . . aliena sua capacidade de trabalho enquanto fôrça
criadora, isso é evidente. . . Êle aliena o trabalho enquanto
fôrça capaz de produzir a riqueza; e é o capital que se apro­
pria dessa fôrça. A separação do trabalho e da propriedade do
produto do trabalho, do trabalho e da riqueza, já está pois
colocada no próprio ato de tro ca .” 19
Se o valor de troca de um produto é igual ao trabalho
que êle contém, medido pelo tempo de trabalho, como o va­
lor de troca numa jornada de trabalho pode ser diferente do
produto dessa jornada de trabalho, como o produto de uma
jornada de trabalho pode ser superior ao salário ganho pelo
operário por essa jornada de trabalho? Essa objeção, diz
Marx, se dissolve no problema seguinte: “ Com o a produção,
baseada no valor de troca determinado pelo tempo de traba­
lho puro, pode conduzir ao resultado em que o valor de tro­
ca da fôrça de trabalho é mais reduzido que o valor de troca
dos produtos dessa fôrça de trabalho?”
A dificuldade é resolvida pela análise do capital que
obtém a mais-valia. Isto é, ela se reduz, ela também, ao pro­
blema da determinação do valor da fôrça de trabalho numa
sociedade onde essa fôrça de trabalho tornou-se uma merca­
doria, pela criação de uma classe social separada de seus
meios de trabalho, o que pressupõe a concentração desses
mesmos meios de produção como propriedade privada de ou­
tra classe social.
É essa justaposição de duas classes sociais, uma obriga­
da a vender a sua fôrça de trabalho a outra, que transforma
a fôrça de trabalho em mercadoria e os meios de produção
em capital. E essa transformação basta para explicar ao mes­
mo tempo o valor de troca dessa fôrça de trabalho e a dife-

19 K. Marx, Grundrisse, págs. 213-4.


TEORIAS DO VA LO R, DA M A IS -V A L IA E DA M OEDA 89

rença necessária entre o valor produzido pela fôrça de tra­


balho e seu valor próprio, diferença que constitui a mais-va-
lia. Sem a existência dessa diferença, o proprietário do ca­
pital não teria interêsse em comprar a fôrça de trabalho, e
esta não teria a possibilidade de ser vendida.
Teoricamente, o problema se refere pois à distinção do
valor de troca da fôrça de trabalho (o salário, o valor de tô-
das as mercadorias necessárias para a reconstituição da fôr­
ça de trabalho) e de seu valor de uso (que é precisamente
de fornecer para seu comprador trabalho gratuito além do
ponto em que êle produziu o equivalente do seu próprio valor
de troca, de seus próprios gastos de manutenção). Historiea-
mente, o problema se refere à análise da formação do prole­
tariado moderno, da criação de um exército de reserva indus­
trial, da separação dos artesãos e dos camponeses de seus
meios de trabalho, da transformação de todo solo em proprie­
dade privada ( supressão das comunas e tc. ), isto é, da cria­
ção de uma classe social obrigada por seu estado de despo-
jamento e sua insegurança de existência a aceitar a venda de
sua fôrça de trabalho “ ao preço de mercado” , determinado
pela lei do v a lor.20
Para que o dinheiro se torne capital e o trabalho se tor­
ne trabalho assalariado, trabalho produzindo capital, é ne­
cessário: “ 1) de um lado, a existência da capacidade do tra­
balho vivo. como existência puramente subjetiva, separada dos
momentos de sua realidade objetiva; isto é, separada tanto
das condições do trabalho vivo quanto dos meios de existên­
cia, dos meios de vida (dos víveres), dos meios de subsistên­
cia da capacidade de trabalho v iv o . . .; 2) o valor ou o tra­
balho cristalizado, por outro lado, deve consistir em uma

20 No “ Prefácio” aos Grundrisse — que tinha sido publicado em 1903


em D ie Neue Z eit por Kautslcy — Marx precisa que a noção de “ traba­
lho abstrato” não pode ser desenvolvida senão a partir do momento em
que a indústria moderna se tivesse desenvolvido ao ponto em que a mão-
de-obra “ dos operários de fábrica“ pudesse de fato ser transferida fa­
cilmente de um ramo industrial para outro: “A indiferença com res­
peito à forma determinada do trabalho corresponde a uma forma de so­
ciedade na qual os indivíduos podem fàcilmente passar de um trabalho
ao outro e na qual uma forma determinada de trabalho lhes é acidental
e então indiferente. . . Semelhante situação é a mais avançada na forma
de existência mais moderna das sociedades burguesas — nos Estados
Unidos” (pág. 25).
90 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE KARL M A R X

acumulação de valores de uso suficiente, para criar as condi­


ções materiais não somente da produção de produtos ou de
valqres necessários para a reprodução ou a manutenção da
capacidade de trabalho vivo, mas ainda para absorver o su-
pertrabalho. . .; 3) uma relação de troca livre — a circula­
ção monetária — entre as duas partes; relações entre os dois
extremos fundadas sôbre valores de troca e não sõbre rela­
ções de dominação e de servidão; isto é, uma produção que
não fornece imediatamente víveres aos produtores, mas que
deve passar pelo intermediário da troca. . . Enquanto os dois
lados não trocam mutuamente seu trabalho senão enquanto
trabalho cristalizado, sua relação é impossível; ela o é igual­
mente se a capacidade do trabalho vivo aparece como a pro­
priedade do outro la d o .. . ” 21
É essa análise do caráter historicamente determinado da
mais-valia, do capital e do trabalho assalariado — separado
de tôdas as formas anteriores de exploração de classe -— que
dá aliás aos Grundrisse sua significação no processo de ela­
boração da teoria econômica marxista.
M as se o valor de troca das mercadorias é determinado
pelo trabalho que elas contêm, como conciliar essa definição
com o fato empiricamente constatado de que os preços de
mercado dessas mesmas mercadorias são determinados pela
"lei da oferta e da procura” ? Essa objeção, diz Marx, vem a
ser a seguinte: como os preços de mercado diferentes dos valo­
res de troca das mercadorias podem formar-se, ou, melhor
ainda, como a lei do valor não pode realizar-se na prática
senão através de sua própria negação?
,Êsse problema é resolvido pela teoria da concorrência
dos capitais, que M arx desenvolve a fundo desde a redação
dos Grundrisse, elaborando a teoria da distribuição eqüitati-
va da taxa de lucro, e da formação dos preços de produção,
na base da concorrência entre os capitais. A famosa “ contra­
dição” , que tantos críticos acreditaram poder descobrir entre
o volume I e o volume III do Capital, não é senão um eco
vulgar dessa objeção velha à teoria ricardiana que opõe os
preços de mercado ao valor de troca .22 A publicação dos

21 K. Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Oékonomie, págs.


367-8.
22 Uma das mais célebres dessas críticas concernentes à “ contradição”
entre o volume I e o volume III do Capital é a que Eugen von Bõhm-
TE OR IAS DO VA LO R, D A M A IS -V A L IA E D A M O E D A 91

Grundrlsse lhes tirou a última suspeita de validade, visto que


ela demonstra que M arx já havia elaborado a "solução” do
volume III, antes mesmo de redigir o volume I do Capi­
t a l . . . 23 Resta finalmente a quarta e última objeção funda­
mental à teoria ricardiana, que o próprio Marx chama "a ob­
jeção aparentemente a mais tocante” : se o valor de troca não
é senão o tempo de trabalho contido nas mercadorias, como
mercadorias que não contêm tempo de trabalho podem no en­
tanto ter um valor de troca? Ou mais simplesmente: de onde
provém o valor de troca das simples fôrças da natureza?24 A
resposta a essa objeção é fornecida pela teoria da renda fun­
diária .
Seja dito de passagem, para M arx a solução do proble­
ma da distribuição eqüitativa da taxa de lucro e a solução
do problema da renda fundiária25 são simultâneas e pràtica-
mente idênticas, como êle indica na sua carta a Engels de 18
de junho de 1862.26

Bawerk formulou em Z um Abschluss des Marxschen Systems desde 1896


( E . v . Bõhm-Bawerk: Karl Marx and the Close of his System, págs. 30
e seg., Augustus M . Kelly E d ., Nova York, 1 9 49 ). Ela foi desde então
repetida inúmeras vêzes, principalmente por Pareto, no volume II de
Systèmes socialistes (págs. 354-5, 358-9) (W . Pareto, Les Systèmes
socialistes, Mareei Giard Editeur, Paris, 19 26 ).
23 Na sua carta a Lassalle de 11 de março de 1858, Marx havia subli­
nhado a contradição entre a teoria do valor de Ricardo e sua teoria do
lucro (K. Marx-Fr. Engels, Briefe über das Kapital, pág. 87 ). A teoria
marxista da distribuição eqüitativa da taxa de lucro permite evitar uma
contradição análoga.
24 K. Marx, Zur Kritik der politischen Oekonomie, pág. 46.
25 Marx elaborou sua teoria da renda fundiária sob forma de uma crí­
tica das teorias de Rodbertus e de Ricardo. Êle descobre que, contrària-
mente ao que pensava Ricardo, não há somente uma renda diferencial
(superlucro obtido por capitais investidos nos terrenos mais férteis do
que aqueles que trazem o lucro m édio), mas ainda uma renda absoluta,
que provém do fato de que a composição orgânica do capital investido
na agricultura é mais baixa que aquela do capital investido na indústria;
que o capital investido na agricultura obtém pois uma mais-valia que
não participa da distribuição eqüitativa da taxa de lucro, porque a pro­
priedade fundiária impede a livre entrada dos capitais neste setor, e que
todos os capitais investidos na agricultura trazem assim um superlucro
(em relação ao lucro médio obtido nos outros ramos da economia), su­
perlucro de que se apropriam os proprietários fundiários.
26 Briefwechsel zwischen Friedrich Engels und Karl Marx, vol. III,
págs. 77-82.
92 PENSAM EN TO E C O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

Mas apenas o manuscrito da Contribuição à Crítica da


Economia Política era enviado ao editor e uma tarefa urgen­
te desviou M arx da redação “ nítida” de tôdas as descober­
tas econômicas que êle acabava de fazer no curso do ano de
1858. Tratava-se da necessidade de responder às calúnias
que Karl V o g t tinha espalhado contra êle no seu panfleto
M ein Prozess gsgcn die Allgem eine Zeitung. Uma destas,
acusando M arx de se proporcionar fundos escrevendo “ cen­
tenas de cartas de chantagem” a personalidades alemãs que
êle teria tentado prèviamente implicar em atividades revolu­
cionárias, provocou tal eco nos meios da burguesia liberal
alemã que a resposta se tornou indispensável.27 M arx redi­
giu pois sua brochura H\err V ogt, que o ocupou durante
todo o ano de 1860. Havia ainda escrito a 3 de fevereiro de
1860 a Engels que prosseguia seus trabalhos para o Capital
e que esperava (ainda uma vez!) acabá-los “ em seis sema­
nas” ,28 em seguida não se encontra mais alusão a êsses tra­
balhos econômicos na sua correspondência com seu melhor
amigo antes da carta já citada de 18 de junho de 1862.
Antes de passar a uma análise mais aprofundada dessa
obra decisiva para a elaboração da teoria econômica marxista
que é os Grundrisse, devemos no entanto sublinhar uma últi­
ma descoberta fundamental de M arx do período que vai do
outono de 1857 ao comêço de 1859: o aperfeiçoamento da
teoria da moeda, graças a uma crítica sistemática da teoria
da moeda de Ricardo. Ela está amplamente contida no se­
gundo capítulo, o mais longo, da Contribuição à Crítica da
Economia Política.
O aperfeiçoamento da teoria monetária por M arx não é
senão uma aplicação lógica da teoria do valor-trabalho à
moeda. Se o valor de troca de tôdas as mercadorias não
apresenta senão quantidades de trabalho socialmente neces­
sárias, mensuráveis pelo tempo de trabalho, então é evidente
que a moeda fundada nos metais preciosos não é puro inter­
mediário, simples meio de circulação, como Ricardo pensava
fundamentalmente.29 Porque o próprio ouro é uma merca-

27 Fr. Mehring, Karl Marx, Geschichte seines Lebens, págs. 294-5.


28 Briefwechsel zwischen Friedrich Engels und Karl Marx, vol. II, pág.
377.
29 K. Marx, Theorien über den Mehrwert, vol. II, pág. 500.
TE O R IAS DO VALO R, D A M A IS -V A L IA E D A M OE DA 93

doria e possui então seu próprio valor de troca, que é deter­


minado pelas condições materiais de sua própria produção.30
Segue-se disso que a teoria quantitativa da moeda de­
senvolvida por Montesquieu e Hume, e retomada por Ricar­
do,31 que faz depender a alta e a baixa dos preços de um
aumento ou de uma redução da massa monetária em circu­
lação, não pode ser válida quando se trata de moedas fun­
dadas em metais preciosos. Essa moeda tendo um valor in­
trínseco não pode absolutamente modificar poir seus próprios
movimentos as flutuações dos preços das outras mercadorias.
Essas flutuações devem ser consideradas como os movimen­
tos primários, a alta ou a baixa da quantidade de moeda em
circulação como o movimento derivado: “ Os preços não são
pois altos ou baixos porque há mais ou menos moeda em
circulação: mas há ao contrário mais ou menos moeda em
circulação porque os preços são a.ltos ou baixos” . 32 Uma
baixa geral dos preços provoca um refluxo da massa monetá­
ria para o entesouramento, a estocagem etc.; uma alta geral
dos preços traz as massas suplementares de metais preciosos
para a circulação.
É sobretudo o estudo de um grande trabalho' de Tooke
sôbre a história dos preços que fornece a Marx os materiais
com vista a uma crítica da teoria ricardiana da moeda. Eis
por que M arx considera que a descoberta dessa lei da deter­
minação da massa monetária em circulação pelas flutuações
dos preços constitui “ talvez o único mérito” da escola pós-ri-
cardiana da Economia Política.33
Mas M arx distingue claramente as leis que governam a
circulação da moeda metálica daquelas que governam a cir­
culação do papel-moeda, que êle chama os “ signos monetá­
rios” . "Enquanto a quantidade do ouro em circulação de­
pende dos preços das mercadorias, o valor dos bilhetes de pa­
pel em circulação depende ao contrário de sua própria quan­
tidade.’’34 Aqui ainda, permanecemos no terreno de uma apli­
cação lógica da teoria do valor-trabalho. O papel-moeda, a

30 K. Marx, Zur Kritik der politischen Oekonomie, pág. 50.


31 O próprio Marx se apóia ainda nessa mesma teoria na Miséria da
Filosofia, págs. 66-69.
82 K. Marx, Zur Kritik der politischen Oekonomie, pág. 97.
33 Ibid., pág. 97.
94 P E N S A M E N T O EC O N O M IC O DE K ARL M A R X

nota de banco, não é senão um intermediário, “ signo de subs­


tituição” de uma massa de ouro que tem seu valor próprio.
E se êsse valor se reparte em dez vêzes mais notas, é eviden­
te que cada nota não representará senão um décimo da quan­
tidade de ouro representada nominalmente, e que conseqüen­
temente os preços expressos nesse papel-moeda aumentarão,
êles também, dez vêzes, para conservar a equivalência com
uma quantidade de ouro determinada.
Mas, numa economia monetária generalizada, a moeda
não é somente meio de circulação geral para tôdas as merca­
dorias; ela é ainda meio d e pagamento geral. Quanto mais se
desenvolve o modo de produção capitalista, tanto mais au­
menta o crédito, e tanto mais a função da moeda enquanto
meio de pagamento se amplia às custas de sua função en­
quanto meio de circulação.35 M arx sublinha que a moeda es­
criturai se desenvolve precisamente partindo dessa função de
meio de pagamento da moeda, e êle deduz daí uma lei geral do
volume monetário necessário para efetuar ao mesmo tempo
as duas funções de meio de circulação e de meio de pagamen­
to tendo em conta a rapidez de circulação da moeda nessas
duas funções. Essa análise dos papéis da moeda se fecha por
um estudo do. papel dos metais preciosos enquanto meios de
pagamento internacionais.
É interessante examinar algumas das objeções que foram
formuladas no curso dos últimos decênios por respeito à teo­
ria do valor-trabalho aperfeiçoada por M arx.36 Trataremos a
êsse propósito das considerações do Professor Frank H .
Knight, de Schumpeter, de Oskar Lange e de Joan Robinson.
Segundo o Professor Frank H . Knight,37 uma teoria do
valor-trabalho, não se justificaria senão com a condição de
que o trabalho fôsse um “ fator de produção" rígido e não-
transferível. Mas a mobilidade do "trabalho” , associada à mo­
bilidade dos “ outros agentes de produção” , chega a uma si­
tuação na qual diversas combinações dêsses “ agentes” são
possíveis, o que leva à determinação do seu valor por sua
“ produtividade marginal” .

35 Ibid., pág. 144.


36 Examinamos as críticas tradicionais com respeito à teoria do valor-
trabalho no Trnité d’Economie Marxiste, vol. II, págs. 404-411.
37 Frank H. Knight, “ Value” , em Encyclopedia of Social Sciences, vol.
XV, págs. 218-9, Nova York, 1935.
TEORIAS DO VALOR, D A M A IS -V A L IA E D A M OEDA 95

Somente eis que: o valor das máquinas — digamos seu


custo de produção — é perfeitamente conhecido.38 Êle é abso­
lutamente independente do número ou do valor das merca­
dorias que essas máquinas podem produzir. Nenhum indus­
trial compra uma peça de equipamento calculando o “ exce­
dente de valor” que esta peça lhe traz. O que êle calcula são
as economias que ela lhe permite efetuar nos gastos de pro­
dução (ou, se se quer, no seu preço de custo unitário). E, se
se interrogarem os industriais, êles dirão espontáneamente,
nove em dez, que são as “ economias de trabalho” que os in­
teressam (nos Estados Unidos, aliás por muito tempo, desig­
naram-se as máquinas com o nome de "labor saving devices” ,
“ dispositivos para economizar trabalho” ) .
Cada industrial sabe igualmente que as máquinas que
permanecem na sua fábrica sem rodar não produzem nenhu­
ma parcela de valor; para que elas sirvam a semelhante pro­
dução é preciso que sejam colocadas em movimento pelo tra­
balho v iv o .39 É êle, e somente êle, que incorpora à mer.cado-
ria um valor nôvo; quanto ao valor das máquinas e outros
"agentes” , êle é simplesmente conservado pelo trabalho vivo,
que aí transfere o contravalor (em todo ou em parte) nas
mercadorias que produz. Isso, também, os industriais e os es­
tatísticos não ignoram, visto que falam de um “ valor acrescen­
tado” que se reparte entre os capitalistas e os trabalhado­
res, e que se acrescenta ao “ valor conservado” ( matéria-pri-
mas e máquinas) . É preciso pois analisar o segrêdo dêsse
“ valor acrescentado” no trabalho. E M arx o descobriu ao
formular sua lei da mais-valia. O argumento de Schumpeter
contra a teoria de valor-trabalho, e em favor da teoria cha-

38 Para simplificar o raciocínio, deixamos de lado o “ fator terra” . Mas


podemos reintegrá-la facilmente na argumentação sem modificá-la.
39 Como explicar então que as “fábricas que s e movimentam sozinhas”
tenham um lucro que deve vir da mais-valia? Tanto quanto essas fá­
bricas são a exceção e não a regra, elas têm um lucro sem que se pro­
duza a mais-valia entre suas paredes, isto é, elas se apropriam simples­
mente de uma parte da mais-valia produzida pelos trabalhadores das
outras emprêsas através do jôgo da concorrência dos capitais. A partir
do momento em que o fenômeno da automação integral se generaliza
em tôdas as emprêsas, os lucros e a mais-valia devem necessàriamente
perecer; de fato, não há mais lugar para uma “ economia de mercado”
em condições de abundância manifesta criada pela automação genera­
lizada.
96 P E N S A M E N T O EC O N O M IC O DE KAHL M A R X

mada “ dos fatores de produção” , é da mesma ordem. Êle cen­


sura aos partidários da teoria do valor-trabalho se inspira­
rem em “ doutrinas políticas e filosofias éticas” que não têm
relação com a realidade econômica enquanto tal. “ Em outras
palavras, êles não vêem que tudo o que importa a êsse res­
peito é o simples fato de que para produzir uma firma não
tem somente necessidade de trabalho, mas também de tôdas
as coisas que estão incluídas na terra e no capital; ¡eis tudo o
que implica o estabelecimento dos três fatores (de produ­
ç ã o ) ” .40
N a verdade, se se quer colocar a êste nível de lugares-
comuns seria necessário acrescentar que, para produzir, uma
“ firma” não tem somente necessidade de trabalho, de terra,
de edifícios, de máquinas, de matérias-primas e de dinheiro,
mas ainda de uma sociedade organizada, de uma proteção da
polícia, de um sistema estatal que comporte vias de comuni­
cação, uma infra-estrutura etc., e muitas coisas mais. Por que
arbitrariamente isolar “ três fatores de produção” entre êstes?
Por que não falar dos cinco “ fatores de produção” : o traba­
lho, a terra, as máquinas, as reservas de dinheiro líquido, e a
organização do Estado, e descobrir desde logo cinco "rendas”
dêsses “ fatores” : os salários, a renda fundiária, o lucro, o
beneficio e o impôsto?
A isto, os capitalistas e seus ideólogos opõem uma forte
objeção: não há “ contribuição real” do Estado ou da socie­
dade organizada para o valor nôvo criado no seio da emprêsa;
trata-se simplesmente de “ economias externas” , de um quadro
geral indispensável. M as a partir dêsse momento se justifica
igualmente a questão de saber se “ a terra” ou “ as máquinas”
(sem falar do “ dinheiro líquido” ) fazem, elas mesmas, uma
“ contribuição real” para a criação do valor nôvo no seio da
emprêsa. Porque se reconhece desde logo implicitamente que
tudo o que é “ fatores indispensáveis à produção” não é por
essa razão “ fonte de valor nôvo” . E somos assim levados ao

40 Joseph Schumpeter, History of Economic Analysis, Nova York, Ox­


ford University Press, 1954, págs. 558-9.
TEORIAS DO VALOR, D A M A lS -V A L IA E D A M OEDA 97

problema da origem última do “ valor acrescentado” na pro­


dução, que não pode provir senão do trabalho v iv o .41
Mais séria e mais sofisticada é a objeção contra a teoria
do valor-trabalho feita por Oskar Lange num escrito de ju­
ventude.42 A argumentação de Lange poderia ser resumida
da seguinte maneira: se bem que a teoria marxista tenha sido
capaz de predizer corretamente as leis de desenvolvimento do
capitalismo, ela não pode fornecer uma teoria adequada dos
preços (sobretudo dos preços de m onopólios), nem uma teo­
ria adequada de emprego máximo dos recursos numa socie­
dade socialista, nem sobretudo uma teoria das crises, porque
se trata no fundo de uma “ teoria estática de equilíbrio eco­
nômico generalizado” . 43 Por outro lado, a teoria do valor-
trabalho seria incapaz de explicar a natureza dos salários e a
sobrevivência do lucro; estas seriam determinadas pelo pro­
gresso técnico inerente ao regime capitalista. Mas êsse ele­
mento “ dinâmico” não resultaria de tal maneira da lógica in­
terna da teoria do valor-trabalho senão do quadro institucio­
nal do capitalismo revelado por Marx. E seria a análise dêsse
quadro institucional, antes que a teoria do valor-trabalho, que
seria a fonte da superioridade analítica do marxismo quanto
à descoberta das leis de desenvolvimento do capitalismo. Pa­
rece-nos que Lange comete um êrro desde o seu ponto de
partida. É impossível considerar a teoria do valor-trabalho
como uma “ teoria estática do equilíbrio econômico generali­
zado” .44 A teoria do valor-trabalho corrigida e aperfeiçoada
por Marx está indissolúvelmente ligada à teoria da mais-valia.

41 É significativo que quando os economistas querem medir o verda­


deiro progresso econômico são obrigados a voltar ao progresso da pro­
dutividade do trabalho vivo (cf. Jean Fourastié: L e Grand Espoir du
X X Siècle, Paris, 1952, PUF, págs. 7-31) e não a qualquer “ produtivi­
dade do capital” ou “ produtividade da terra” , que são incapazes de cal­
cular coeficientes de aumento como índices do progresso econômico.
42 Oskar Lange, “ Marxian Economics and Modern Economic Theory” ,
em The Review of Economic Studies, junho de 1935, págs. 189-201.
43 Ibid., pág. 194.
44 Uma das razões que levam a êsse gênero de mal-entendido é a in­
compreensão dos esquemas de reprodução contidos no volume II do
Capital. Êsses esquemas não tendem de maneira alguma a explicar “ o
equilibrio estático’’ do modo de produção capitalista. Êles tentam ao
contrário explicar como êsse modo de produção pode subsistir apesar da
interrupção constante do equilíbrio e da interrupção periódica da repro­
dução ampliada.
98 PE N S A M E N T O EC O N O M IC O DE K ARL M A R X

As duas teorias tomadas como um todo, longe de constituir


uma ‘‘teoria estática” , formam por definição uma “ teoria di­
nâmica” . Elas representam com efeito uma síntese de dois
contrários, uma concepção da troca igual ligada a uma con­
cepção da troca desigual. É antes de tudo a troca entre o
Trabalho e o Capital que tem esta dupla qualidade.
Desde então, o "modêlo marxista” é por natureza dinâ­
mico, visto que chega à conclusão de que a produção de valor
nôvo, o aumento de valor, a expansão econômica, o crescimen­
to econômico são inerentes ao modo de produção capitalista.
O mesmo modêlo marxista não é uma “ teoria de equilíbrio ge­
neralizado” , mas ainda uma vez uma síntese de dois contrá­
rios, a demonstração do fato de que o equilíbrio permanente;
(e evidente) da vida econômica capitalista se funda sôbre
um equilíbrio mais profundo, equilíbrio que produz por sua
vez desequilíbrios necessários e inevitáveis (crises periódicas,
queda tendenciosa da taxa média de lucro, concentração ca­
pitalista, acentuação da luta de classes) que terminam por
solapar o sistema.
A idéia de Lange segundo a qual o elemento dinâmico
(a evolução econômica) resultaria do quadro institucional
antes que da lógica interna da teoria do valor-trabalho é da
mesma forma fundada num êrro. Segundo Lange, o “ progres­
so técnico” seria indispensável para compreender por que “ os
salários não ameaçam fazer desaparecer os lucros dos empre­
sários” ;45 o lucro capitalista não poderia subsistir senão no
quadro dêsse progresso técnico. Lange esquece que mesmo
sem progresso técnico os salários ,não podem fazer desapare­
cer os lucros porque os capitalistas cessam de contratar a
mão-de-obra muito antes que êsse ponto seja atingido. Êles
preferem nesse caso fechar suas fábricas e recriar de um mes­
mo golpe um exército de reserva industrial ■ —■ mesmo sem
"progresso técnico” . É de fato o que acontece em todos os
recessos neocapitalistas mais ou menos “ pré-fabricados” . Os
capitalistas podem esperar, enquanto os trabalhadores não
podem porque não possuem nem meios de produção nem
meios de subsistência.
Por outro lado, não é somente a concorrência entre o
Capital e o Trabalho, mas também a concorrência entre os

45 Ibid., págs. 198-9.


T K O niA S DO VA LO R, DA M A IS -V A L IA E D A M OEDA 99

capitalistas, que explica o progresso técnico segundo o mo­


delo marxista. Os dois são função da dupla necessidade de
acumular capital e de realizar mais-valia em condições eco­
nômicas onde a quantidade de trabalho socialmente necessá­
ria para produzir uma mercadoria se revela somente a pos­
teriori e é a priori desconhecida. São essas duas razões —
que se referem à natureza fundamental do modo de produ­
ção capitalista, isto é, de um sistema de economia mercantil
generalizada — que são a raiz última do elemento "dinâmico”
na teoria econômica marxista. Elas derivam, tôdas as duas,
da natureza mesma da teoria do valor-trabalho.
Mencionemos finalmente a crítica da teoria do valor-tra­
balho que a Sr.- Joan Robinson formulou logo depois da Se­
gunda Guerra Mundial.46 Segundo ela, M arx se enganou
procurando um “ valor intrínseco” das mercadorias que seria
"análogo ao pêso ou à côr” dessas mercadorias, como em
Ricardo. Da mesma forma que Adam Smith, êle teria pro­
curado uma “ medida introcável” dêsse valor, que teria des­
coberto do trabalho. A teoria do valor-trabalho erigida sôbre
êsses fundamentos teóricos seria inútil, e M arx teria podido
explicar numa linguagem muito menos complicada tôdas as
leis de desenvolvimento que descobriu sem apelar para a teoria
do valor-trabalho.
Assim como Roman Rosdolsky desenvolveu de maneira
excelente com detalhes,47 êsses argumentos refletem uma in­
compreensão surpreendente das concepções de Marx, no en­
tanto claramente enunciadas por êste. M arx contestou expli­
citamente que o valor de troca das mercadorias seja uma
"qualidade intrínseca” das mercadorias ,no sentido físico do
têrmo; êle ao contrário precisou que a “ qualidade” comum
que torna as mercadorias comensuráveis não é de natureza
física, mas de natureza social. Aquilo que a Sr.* Robinson
não aprendeu é a diferença entre o trabalho concreto, cria­
dor de valores de uso e das qualidades físicas dos produtos,
e o trabalho abstrato, criador do valor de troca. Da mesma
forma Marx jamais teve a intenção de descobrir uma “me-

46 Joan Robinson, An Essay on Marxian Economics, 1949, Londres,


MacMillan; Joan Robinson, “ The Labour Theory o f Value: A Discussion” ,
em Science and Society, 1954.
47 Roman Rosdolsky, “ Joan Robinsons Marx-Kritik” , em Arheit und
Wirtschaft, 1958, págs. 178 e seg.
100 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE KARL M A R X

dida introcável do valor", Êle ao contrário demonstrou que a


medida do valor de troca deve ser mercadoria, isto é, deve
ser trocável. É justamente porque o valor de troca pressupõe
uma qualidade comum entre tôdas as mercadorias —• o fato
de que elas sejam tôdas produtos do trabalho abstrato, de
uma fração do potencial de trabalho global de que dispõe a
sociedade — que ela é ao mesmo tempo social e trocável, e
não física e imutável.
O que todos êsses críticos têm em comum é de fato sua
incapacidade de apreender o nível d e abstração ao qual Marx
se elevou para descobrir os problemas sócio-econômicos sub­
jacentes ao do valor de troca. A questão à qual êle procura
responder é a seguinte: Sendo dado o fato de que o modo de
produção capitalista opera através das leis “ naturais” , “ au­
tomáticas” , independentes da vontade dos, homens48 como
acontece que milhares de operações de troca, em tudo cegas,
não produzam constantemente crises e paradas de atividade
econômica, mas se desenrolem ao contrário no quadro de uma
continuidade necessariamente interrompida periodicamente pela
descontinuidade? Que fôrça assegura essa continuidade? Que
fôrça distribui a mão-de-obra e os capitais entre os diferen­
tes ramos industriais?
Afirmando que o valor de troca é constituído por tra­
balho humano abstrato, M arx não “ escolheu uma teoria” para
tentar “ demonstrar a exploração dos operários pejo capital” .48
Êle ofereceu uma resposta a esta questão. Formulando as
objeções dêles à sua teoria, seus críticos não1 somente deixa­
ram de opor uma resposta coerente a sua. Êles em geral nem
mesmo apreenderam a questão. . .
Roman Rosdolsky49 se opõe pois justamente à afirmação
da Sr.* Joan Robinson, segundo a qual a teoria do valor-tra-
balho criada por M arx se aplicaria plena e inteiramente so­
mente. . . na sociedade capitalista. Quando o trabalho indi­
vidual é reconhecido como o trabalho social — e é bem uma
das características fundamentais de uma sociedade socialis­
ta! — fazer a volta para “ redescobrir” a qualidade social
dêsse trabalho é evidentemente absurdo. Eis por que não há
lugar para a produção mercantil, e a fortlori para o “valor

48 Como Lange afirma erroneamente, op. cit., pág. 195.


49 Roman Rosdolsky, Joan Robinsons Marx-Kritik, págs. 182-3.
TEORIAS DO VA LO R, D A iW ílIS-V A L IA E D A M OE DA 101

mercantil” ou para a “ lei do valor” numa sociedade socia­


lista.
É surpreendente que um autor como Maurice Godelier,
que conhece bem as obras de Marx e se esforçou por apro­
fundar o estudo do método e da doutrina marxistas, tenha po­
dido escrever nestas condições: “ Se o sistema capitalista re­
pousa sôbre uma estrutura particular da apropriação do su-
perproduto, pode-se construir idealmente, por uma hipótese
diferente sôbre a estrutura da apropriação, o funcionamento
de uma economia socialista. Chegamos a um modêlo diferen­
te, mas que repousa igualmente sôbre a teoria do valor. A
teoria do valor permite pois a constituição de um modêlo de
desenvolvimento socialista. . . ” 50
Isso não é em absoluto conforme com a concepção que
Marx tinha da teoria do valor. Para Marx, a economia do
tempo de trabalho, que é geral a tôdas as sociedades, não é
idêntica à economia regida pela lei do valor; esta é somente
uma forma particular daquela.51 A teoria do valor não se apli­
ca senão a uma sociedade onde proprietários individuais tro­
cam produtos de trabalho e onde, por essa razão, êstes tomam
a forma de mercadorias (onde a quantidade de trabalho so­
cialmente necessário para produzir as mercadorias não é es­
tabelecida a priori pelos produtores associados, mas somen­
te a posteriori pelas leis do mercado. Afirmar que a teoria
do valor permanece válida no socialismo é se enganar sôbre
a natureza mesma das mercadorias, e é o que acontece efe­
tivamente com Maurice Godelier.52
Da mesma maneira que êle parte de uma caracterização
incompleta da mercadoria, dá uma definição inadmissível do

50 Maurice Godelier, Rationalité et Irrationalité en Economie, Paris,


Maspero, 1966, pág. 148.
51 Ver a citação dos Grundrisse, págs. 89-90, que reproduzimos no ca­
pítulo seguinte.
52 Ver a sua definição da mercadoria ( Rationalité et Irrationalité en
Economie, págs. 212-3): “ Para Marx, uma mercadoria é um objeto ( ! )
caracterizado por duas propriedades: a) é útil e, por isso, a mercadoria
tem um valor de uso. . . b ) êle é trocado numa certa proporção com
bens de utilidades diferentes. Êle tem um valor de troca e não tem êsse
valor de troca senão porque tem de início um valor de uso para o ou­
tro.” Cf. o que Marx precisa, na famosa passagem do capítulo I do Ca­
pital (vol. I) sôbre o caráter fetichista da mercadoria: “ O que é válido
para essa forma particular de produção, a produção mercantil, isto é, o
102 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE K ARL M A R X

capitalismo: “ Mostramos que a teoria do capital não come­


ça verdadeiramente senão no momento em que a formação da
mais-valia é explicada. M as essa não determina diretamente
e por ela mesma a relação capitalista de produção. O que é
específico do capitalismo é a apropriação dessa mais-valia
pelo indivíduo possuidor dos meios de produção, isto é, a
apropriação privada do superproduto. . . ” 53 Isso se parece de-
ploràvelmente com a caricatura estreita que os apologistas do
stalinismo fizeram do marxismo.
Para Marx, o capitalismo não se define de maneira al­
guma somente pela apropriação privada da mais-valia; Engels
concebe mesmo o caso em que o Estado se apropriaria da
mais-valia para a classe burguesa tomada coletivamente, sem
que isso abolisse o capitalismo.54 A teoria marxista do capi­
tal define o capitalismo pela transformação dos meios de pro­
dução em capital e da fôrça de trabalho em mercadoria, isto
é, pela generalização da produção mercantil. Um “ socialismo”
onde os meios de produção permaneceriam mercadoria (isto
é, poderiam ser comprados ou vendidos num mercado, o que
implica decisões de investimentos descentralizadas, o que im­
plica a possibilidade de crises periódicas de superprodução e
de desemprego) e onde a fôrça de trabalho permaneceria mer­
cadoria não seria senão um capitalismo de Estado, mesmo se
a propriedade privada dos meios de produção estivesse su­
primida. A s relações de produção capitalista, para as quais
a apropriação privada da mais-valia não é senão um dos as­
pectos, e que se definem entre outras por relações hierárqui­
cas nos locais de trabalho, e a impossibilidade para a massa
dos produtores de dispor dos produtos de seu trabalho (o que

fato de que o caráter especificamente social de trabalhos privados inde­


pendentes uns dos outros consiste em sua identidade enquanto trabalho
humano. . . aparece àqueles que são tomados pelo preconceito em favor
das condições da produção mercantil com o. . . definitivo” (pág. 41. Grifo
nosso). Estas palavras parecem redigidas para todos aqueles que querem
conservar a “ forma mercantil” e o Valor” dos produtos do trabalho no
socialismo.
83 Maurice Godelier, ibid., págs. 147-8.
54 Cf. Engels, Herrn Eugen Duhrings Umwälzung der Wissenschaft,
Verlagsgenossenschaft Ausländischer Arbeiter in der UdSSR, Moscou-
Leningrado, 1934, págs. 262-4.
TEORIAS DO VA LO R, D A M A IS -V A L IA E D A M O E D A 103

implica a natureza dêste trabalho como trabalho a.lienado),


subsistiria integralmente.
O que é exato é que a produção mercantil, que é ante­
rior ao modo de produção capitalista, lhe é igualmente pos­
terior, e sobrevive durante tôda a fase de transição do capi­
talismo ao socialismo. M as ela aí sobrevive enquanto sobre­
vivência capitalista, enquanto escória da antiga sociedade
ainda não inteiramente superada, em conflito com a natureza
planificada da economia socializada. O processo de construção
de uma sociedade socialista é justamente o processo de pe­
recimento da produção mercantil. Querer formular, sôbre a
base da teoria do valor, um modêlo de economia socialista é
tão absurdo quanto querer formular um modêlo de direito
socialista fundado sôbre o direito burguês para retomar a
fórmula célebre de M arx na Crítica do Programa de Gota.
7

Os Grundrisse ou a Dialética do Tempo de


Trabalho e do Tempo Livre

Os Grundrisse, que constituem junto com a Contribuição


à Critica da Economia, Política o ponto culminante da obra
económica de Marx antes do Capital, representam uma soma
enorme de análises econômicas. Concebidas como os traba­
lhos preparatorios do Capital, ou mais exatamente como um
desenvolvimento da análise do capitalismo em todos os seus
aspectos, de onde a obra-prima de Marx ia nascer, elas con­
têm ao mesmo tempo os materiais de construção de tudo o
que Marx ia desenvolver em seguida e um amontoado de ele­
mentos que não serviram mais tarde de fermento a novas
obras.
Essa distinção tem provavelmente duas causas.
Em primeiro lugar, é conhecido que Marx não pôde aca­
bar o seu trabalho de análise de conjunto de todos os ele­
mentos do modo de produção capitalista. N o seu plano ini­
cial, que data da redação dos Grundrisse, a análise do capital
devia ser seguida pela da propriedade fundiária, do trabalho
assalariado, do Estado, do comércio exterior e do mercado
mundial. N o quadro dêsse plano de origem, não disporíamos
hoje senão de um sexto do conjunto da obra, cujo volume IV
do Capital ( “ A s Teorias sôbre a M ais-Valia” ) não faria
senão acabar a primeira parte. O s especialistas poderão dis­
cutir infinitamente para saber por que razões Marx final­
mente abandonou êsse plano em 1866 em favor de um trata­
mento do Capital só, em quatro partes: processos de produ-
T E M P O DE TRABALH O E T E M P O LIVRE 105

ção do capital; processos de circulação do capital; unidade


dos dois ou capital e lucro, e história crítica das doutrinas
econômicas.1 N ão deixa de ser verdade que nos Grundrisse se
encontra uma série de notas da maior importância concernen­
tes à propriedade fundiária, ao trabalho assalariado, ao co­
mércio exterior, ao mercado mundial, que não se encontra em
nenhum dos quatro volumes do Capital. São germes que não
puderam eclodir, cuja riqueza não deixa de constituir uma
fonte de estimulação constante do pensamento dos marxistas
contemporâneos e futuros.
Em segundo lugar, o método de exposição dos Grundris­
se é mais “ abstrato” , mais dedutivo que o do Capital, e, se
há muito menos materiais de ilustração, há por outro lado
um amontoado de digressões, sobretudo de natureza histó­
rica ou abrindo as janelas sôbre o futuro, que foram supri­
midas pela redação final do Capital, mas que são algumas
vêzes de uma riqueza incomparável, autênticas contribuições
suplementares à teoria sócio-econômica marxista. R. Ros-
dolsky indica a êsse propósito que a publicação dos Grundrisse
constitui uma verdadeira revelação e que essa obra “ por as­
sim dizer nos introduziu no laboratório econômico de Marx,
e revelou tôdas as finezas, todos os caminhos de sua metodo­
logia” .2 Êste autor, que é um dos melhores conhecedores de
Marx, anuncia a publicação de um livro Z u r Entstehungsge­
schichte des M arxscren Kapital nas edições Europäische V er-
lagsaustalt, em Frankfurt.

1 O primeiro a ter tratado êsse problema de maneira séria foi Henrik


Grossmann ( “Die Änderung des Aufbauplans des Marxschen Kapitals,
und ihre Ursachen” , em Archiv für die Geschichte des Sozialismus,
1929). Êle atribui a mudança do plano do Capital à decisão de Marx de
tratar a mais-valia no seu conjunto, independentemente de suas formas
de aparição: lucro, renda, benefício etc. É verdade que o próprio Marx,
numa carta a Engels de 15 de agôsto de 1863, fala da “necessidade” na
qual êle se encontrou de modificar o todo até o fundo ( Briefwechsel
zwischen Marx und Engels, vol. 3, pág. 143). Permanece que Marx já
tinha plenamente desenvolvido a categoria da mais-valia separada­
mente de suas formas de aparição dos Grundrisse. No seu artigo
“ Das Kapital im Allgemeinen” und die “ Vielen Kapitalien” , Roman
Rosdolsky distingue treze variantes do plano do Capital esboçadas por
Marx entre setembro de 1857 e abril de 1868.
2 R. Rosdolsky, Ein neomarxistisches Lehrbuch der politischen Oekono-
mie, pág. 651.
106 P E N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE KARL M A R X

Já assinalamos as contribuições essenciais para a elabo­


ração da teoria econômica marxista que se encontram nos
Gmndrisse: o aperfeiçoamento da teoria do valor, da teoria
da mais-valia e da teoria da moeda. Devemos acrescentar o
aperfeiçoamento dos instrumentos analíticos que Marx tinha
herdado da escola clássica de Economia Política. É assim
que aparecem pela primeira vez nos Gmndrisse: a distinção
exata do capital constante (cu jo valor é conservado pela
fôrça de trabalho) e do capital variável (cujo valor é aumen­
tado) (pág. 289); a representação do valor de uma mercado­
ria como a soma de três elementos: capital constante, capital
variável, e mais-valia (c + v + m v ) (principalmente págs. 219-
243); o aumento da massa anual da mais-valia peía diminui­
ção do ciclo de circulação do capital (págs. 417-8); a divisão
da mais-valia em mais-valia absoluta e mais-valia relativa
(págs. 311-2) e mesmo sob forma de supertrabalho absoluto
e supertrabalho relativo (págs. 264-5); tôda a teoria da dis­
tribuição eqüitativa da taxa de lucro (págs. 217-362) etc.
D e fato, não há senão a teoria da queda tendenciosa da
taxa média de lucro que não parece encontrar-se maduramen­
te elaborada nos Gmndrisse (se bem que M arx já a conhe­
cesse e a analisasse — mas de maneira bastante trabalhosa
— nas págs. 283-289) assim como o problema da reprodução.8
São sobretudo as partes dos Grundrisse que não foram
retomadas no Gapital que merecem um estudo particular. A
êsse propósito, deve-se referir uma passagem da carta de
Marx a Engels de 14 de janeiro de 1858 — redigida em
plena metade da redação dos Gmndrisse — passagem na qual
o fundador do socialismo científico afirma: “ Quanto ao mé­
todo de elaboração, o fato de que, por pura sorte, eu de nôvo
percorri a Lógica, de Hegel — Freiligrath encontrou alguns
volumes de Hegel, que pertenciam na origem a Bakunin, e
mos enviou como presente — me prestou um grande servi­
ço ” . 4 N ão nos parece contestável que a extraordinária riqueza
da análise e da exposição de uma série de “ pares dialéticos”
como “ mercadoria-dinheiro” , “ valor de uso-valor de troca” ,

8 Marx resolveu pela primeira vez o problema da reprodução numa


carta a Engels de 6 de julho de 1863 ( Briefwechsel zwischen Engels
und Marx, vol. 3, págs. 138-142).
4 Ibid., vol. II, pág. 235.
T E M P O DE TRABALH O E T E M P O LIV RE 107

“ capita.l-trabalho assalariado” , “ tempo de trabalho-lazer” ,


"trabalho-riqueza” , cuja aparição nos, Grundrisse é abundan­
te, foi, se não provocada, ao menos estimulada por ésse se­
gundo encontro com seu velho mestre de pensamento.
Como aliás não estabelecer o paralelo que se impõe com
o segundo encontro de Lênin com Hegel ( setembro-dezembro
de 1914, depois 1915), que precede de perto o período mais
rico do pensamento teórico de Lênin, aquêle que devia chegar
à redação de O Imperialismo e de O 1Estado e a Revolução?
Como o próprio Marx afirmou, e assim como Lênin assi­
nalou em várias ocasiões, é efetivamente a aplicação do mé­
todo de pesquisas dialéticas aos problemas econômicos, que
M arx inaugurou, que lhe permitiu efetuar suas principais des­
cobertas econômicas. É graças a êsse método que êle coloca
os fenômenos econômicos num contexto global (o modo de
produção, as relações de produção), movido por suas contra­
dições internas. É graças ao mesmo método que êle pode ni­
tidamente apreender o caráter históricamente determinado, e
limitado somente a um período da história humana, dos fe­
nômenos da economia mercantil e das “ categorias” que são
seu reflexo ,4 bis
É difícil estabelecer uma escala de valor entre a impor­
tância dessas passagens analíticas ofuscantes, das quais al­
gumas são de uma fôrça profética genial, e as passagens his­
tóricas que representam um complemento válido das partes
históricas do Capital.
Já dissemos: M arx distingue nos Grundrisse a catego­
ria geral de “ mais-valia” de suas formas de aparição parti­
culares. Êle distingue também da mesma forma a mais-valia
aparecida acidentalmente no seio do processo de circulação,
como conseqüência da troca desigual, da mais-valia produzida
no curso do processo de produção. A primeira precede a apa­
rição do modo de produção capitalista; a segunda não se pode
desenvolver senão no seio dêsse modo1 de produção. Marx
fala cruamente da “ fraude na troca” que explica a origem do
lucro do capital mercantil nas sociedades pré-capitalistas.5 E

4bis Gino Longo, II método delVeconomia política, págs. 120-125, ci­


tando a carta de Marx a Lachâtre de 18 de março de 1872, assim como
um texto de Lênin que apareceu no volume 38 das Oeuvres Complètes.
5 K. Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Oekonomie, págs.
742-3.
108 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

êle não deixa de assinalar que a troca não-equivalente pode


aliás reaparecer no seio do modo de produção capitalista, não
somente na troca entre capital e trabalho, mas igualmente na
troca entre diferentes nações, no comércio internacional. E
daí essa nota pertinente de Marx, que esclarece ao mesmo
tempo sua concepção da causa das crises, fundamentalmente
diferente da de Rosa Luxemburgo,6 e sua concepção do co­
mércio mundial capitalista enquanto instrumento de exploração
dos povos menos desenvolvidos: “ N ão somente os capitalis­
tas individuais, mas as nações, podem continuamente trocar
entre si, podem continuamente renovar essa troca numa es­
cala sem cessar ampliada, sem que devam por isso aproveitar
igualmente. Uma dessas nações pode-se apropriar continua­
mente de uma parte do supertrabalho da outra, para a qual
ela não dá nada em troca, mas somente não na mesma me­
dida em que a troca capitalista e operária.” 7
Algumas das passagens mais tocantes dos Grundrisse se
relacionam, como já dissemos, à dialética "tempo disponível/
tempo de trabalho/tempo livre” . “T ô d a economia se dissolve
em última análise numa economia do tempo” , escreve Marx,
e êle precisa que essa regra se aplica tanto às sociedades de
classe quanto a uma sociedade que já regulou coletivamente
sua produção: “ Uma vez dada a produção coletiva, a deter­
minação do tempo permanece evidentemente essencial. Quan­
to menos a sociedade tem necessidade de tempo para produ­
zir trigo, gado etc., tanto mais ganha tempo1para outras pro­
duções materiais ou espirituais. Da mesma forma que num in­
divíduo, a universalidade de seu desenvolvimento, de seu
gõzo e de sua atividade depende da economia do fiempo (Z e i-
tersparnis). . . A sociedade deve dividir de maneira eficaz
seu tempo a fim de obter uma produção adequada às suas
necessidades de conjunto, da mesma maneira que o indivíduo
deve partilhar corretamente seu tempo a fim de adquirir co­
nhecimentos nas proporções adequadas, ou para satisfazer
as diferentes exigências de sua atividade. Economia do tempo,

6 Ver igualmente a êsse propósito as passagens que concernem à ne­


cessidade para o capital de ampliar o círculo de sua circulação, mas de
maneira nenhuma em direção aos meios não-capitalistas: “ A mais-valia
criada em um ponto exige a criação da mais-valia em outro ponto, con­
tra o qual ela se troca” ( Grundrisse, pág. 311).
7 K. Marx, Grundrisse der Kritik der politiscíien Oekonomie, pág. 755.
T E M P O DE TRABALHO E T E M P O LIV BE 109

da mesma forma que repartição planificada do tempo de tra­


balho entre diferentes ramos da produção, eis o que perma­
nece a primeira lei econômica sobre a base da produção co­
letiva . ” s ( Grifo n osso.)
E Marx prossegue: “ Ela (essa economia do tempo) tor­
na-se lei numa medida muito maior. M as isso é fundamental­
mente diferente da medida dos valores d e troca (trabalhos
ou produtos do trabalho) pelo tempo do trabalho. O s traba­
lhos dos indivíduos no mesmo ramo de trabalho, e os dife­
rentes gêneros de trabalhos, não são somente quantitativa­
mente, mas qualitativamente, diferentes uns dos outros. Ora,
que implica a diferença somente quantitativa das coisas? A
identidade de sua qualidade. A medida quantitativa dos tra­
balhos (pressupõe) pois a equivalência, a identidade de sua
qualidade.” 9 (G rifo nosso.)
Mais adiante, M arx volta ao problema fundamental da
economia de tempo de trabalho, introduzindo as noções-cha-
ves de “ tempo de trabalho necessário” e de “ tempo de tra­
balho excedente, supérfluo, disponível” : "T od o o desenvolvi­
mento da riqueza se fundamenta na cfiação do tempo dispo­
nível. A relação do tempo de trabalho necessário e do tempo
de trabalho supérfluo (é assim que êle aparece logo no co-
mêço do ponto de vista do trabalho necessário) se modifica
nos diferentes níveis de desenvolvimento das fôrças produ­
tivas. N os níveis mais produtivos da troca, os homens não
trocam nada a não ser seu tempo de trabalho supérfluo; êle
é a medida de sua troca, que não se estende aliás senão aos
produtos supérfluos. Na produção fundada sôbre o capital, a
existência do tempo de trabalho necessário é condicionada
pela criação do tempo de trabalho supérfluo."10
Marx desenvolve êsse pensamento nas páginas que se­
guem imediatamente esta passagem dos Grundrisse, expli­
cando que o capitalismo procura efetivamente aumentar a
população operária — o número de indivíduos aos quais é
garantido o tempo de trabalho necessário — , na medida so­
mente em que ela produz ao mesmo tempo supertrabalho,
“ trabalho supérfluo” de seu próprio ponto de vista. Daí a
110 PE N S A M E N T O EC O N O M IC O DE K ARL M A R X

tendência do capital a desenvolver ao mesmo tempo a massa


total da população e a massa da “população supérflua" (o
exército de reserva industrial), essa população supérflua de­
vendo garantir o capital que a população operária fornece do
“ trabalho supérfluo” : o exército de reserva industrial faz bai­
xar os salários, e aumenta por êsse fato a mais-valia que não
é senão “ trabalho supérfluo” do ponto de vista do traba­
lhador.
Êste não é evidentemente senão um aspecto do problema.
M arx assinala também o outro aspecto do “ trabalho supér­
fluo” , isto é, o fato de que êle é fonte de gôzo e de riqueza
do ponto de vista do desenvolvimento dos indivíduos. Mas
não o é de início senão para uma parte da sociedade, e isso
com a condição de que êle se torne trabalho forçado para
outra parte da sociedade: “ N ão é propriamente a marcha de
evolução da sociedade que um indivíduo crie a abundân­
cia para si mesmo, a partir do ponto em que satisfaz suas
necessidades fundamentais. M as é porque um indivíduo ou
uma classe de indivíduos é obrigado a trabalhar cada vez
mais que é necessário para satisfazer suas necessidades fun­
damentais — porque o supertrabalho aparece de um lado —
que o não-tra,balho e a riqueza suplementar aparecem do outro.
Segundo a realidade, o desenvolvimento da riqueza não exis­
te senão nessas contradições: mas, segundo as possibilidades,
é justamente seu desenvolvimento que cria a possibilidade de
suprimir essas contradições.” 11
Vem os assim se expandir progressivamente a dialética
“ tempo de trabalho necessário/tempo de supertrabalho/tempo
livre” , no desenvolvimento e na superação sucessivos de tõdas
as contradições internas. Porque o desenvolvimento do su­
pertrabalho implica também, ao menos no modo de produção
capitalista, um enorme desenvolvimento das fôrças produti­
vas — e eis a sua "missão civilizadora” indispensável. É so­
mente nessa base que uma sociedade coletiva poderá reduzir
ao mínimo a jornada de trabalho simplesmente, sem dever ao
mesmo tempo recalcar ou mutilar o desenvolvimento univer­
sal das possibilidades de cada indivíduo.
O desenvolvimento do supertrabalho na classe operária
implica já no seio do modo de produção capitalista o desen-

11 Ibid., pág. 305.


T E M P O DE TRABALH O E T E M P O LIV RE 111

volvimento do tempo livre para o capitalista: "O fato de que


o operário deva trabalhar durante um excedente de tempo é
idêntico ao fato de que o capitalista não deve trabalhar, e
de que seu tempo é então concebido como uma negação do
tempo de trabalho; que êle não deva mesmo fornecer o traba­
lho necessário. O operário deve trabalhar durante o tempo do
supertrabalho, para ter a permissão de objetivar, de valori­
zar o tempo de trabalho necessário à sua reprodução. Por
outro lado, mesmo o tempo d e trabalho necessário do capi­
talista é assim tempo livre, isto é, tempo que não deve ser
consagrado à subsistência imediata. Com o todo tempo livte
é tempo para o desenvolvimento livre, o capitalista usurpa o
tempo livre que os trabalhadores produziram para a socieda­
de, para a civilização.” 12
O desenvolvimento do capital fixo, que parece ser a
"missão histórica” do modo de produção capitalista, é, êle
próprio, indício e reflexo do grau de riqueza social. “ O obje­
to da produção voltada imediatamente para o valor de uso
e da mesma forma imediatamente para o valor de troca é o
próprio produto, destinado ao consumo. A parte da produção
voltada para a produção do capital fixo não produz objetos
imediatos de gôzo, nem valores de troca imediata; pelo menos
não os valores de troca imediatamente realizáveis. Depende
pois do grau já atingido pela produtividade —• isto é, do
fato de que uma parte do tempo de produção basta para a
produção imediata — que outra parte sem cessar crescente
dêste (mesmo) tempo possa ser utilizada para a produção
de meios de produção. Isso implica que a sociedade possa
esperar;13 que ela possa subtrair uma grande parte da rique­
za já criada tanto ao gôzo imediato quanto à produção des­
tinada ao gôzo imediato, a fim de empregá-la num trabalho
que não é imediatamente produtivo (no seio do processo de
produção material).
Isso exige um alto nível de produtividade já atingido, e
uma abundância relativa e mais exatamente tal nível direta­
mente em relação com a transformação de capital circulante
em capital fixo. D a mesma maneira que a amplitude do su­
pertrabalho relativo depende da produtividade do trabalho ne­

12 Ibid., pág. 527.


13 É um eco espantoso da teoria do capital de Bõhm-Bawerk.
112 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE KARL M A R X

cessário assim também a amplitude do tempo de trabalho uti­


lizado para a produção do capital fixo. . . depende da produ­
tividade do tempo de trabalho destinado à produção direta
do produto.34
Mas na medida em que o capitalismo desenvolve de ma­
neira sempre mais rica e mais complexa êsse capital fixo, essa
tecnologia científica, a produção torna-se cada vez mais in­
dependente do trabalho humano propriamente dito. Marx tem
aqui o pressentimento do que será a automação cada vez mais
avançada e da rica promessa que ela contém para uma
humanidade socialista: “ Na medida em que a grande indús­
tria se desenvolve, a criação da verdadeira riqueza depende
menos do tempo de trabalho e da quantidade de trabalhe
(vivo) aplicado do que da potência dos agentes que são co­
locados em movimento no curso do tempo de trabalho, e que
ela própria — da qual a eficácia poderosa — é sem relação
com o tempo de trabalho imediato que custou sua produção,
mas depende antes do nível geral da ciência e dos progressos
da tecnologia, ou da aplicação dessa ciência à produção. A
verdadeira riqueza se manifesta antes — e é isso o que reve­
la a grande indústria — como uma desproporção enorme entre
o tempo de trabalho aplicado e seu produto. . . O trabalho
não aparece mais de tal maneira incluído no processo de pro­
dução, mas o homem se comporta antes como fiscal e regu­
lador do processo de produção.” 15
N o seio do modo de produção capitalista, êsse enorme
progresso aparece sob a forma de uma enorme contradição:
quanto mais a produção imediata da riqueza humana se eman­
cipa do tempo de trabalho humano, tanto mais sua criação
efetiva é subordinada à apropriação privada do supertrabalho
humano, sem a qual a valorização do capital, e tôda a pro­
dução capitalista, se tornam impossíveis. Mas essa contradi­
ção não faz senão anunciar o desmoronamento da produ­
ção capitalista, da produção mercantil, e de tôda produção que
não seja orientada diretamente para a satisfação das necessi­
dades humanas, para o desenvolvimento universal dos in­
divíduos :
T E M P O DE TR ABALH O E T E M P O LIV RE 113

“ N ão é mais o trabalho imediato fornecido pelo homem,


nem o tempo durante o qual êle trabalha, mas é a compreen­
são da natureza e sua dominação graças à existência (do
homem) enquanto corpo social — em uma palavra é o de­
senvolvimento do indivíduo social que aparece como o gran­
de pilar fundamental da produção e riqueza. O roubo do
tempo d e trabalho do outro, sôbre o qual se funda a riqueza
de hoje, parece uma base miserável em comparação com essa
base desenvolvida de maneira nova, criada pela grande in­
dústria. A partir do momento em que o trabalho sob sua
forma imediata deixa de ser a grande fonte da riqueza, o tem­
po de trabalho deixa de ser sua medida, e deve deixar de
sê-lo, e, pelo mesmo fato, o valor de troca deve cessar de ser
medida do valor de uso. O supertrábalho da massa deixou
de ser a condição d o desenvolvimento da riqueza geral, da
mesma forma, que o não-trabalho d e uma pequena minoria
deixou d e ser a. condição do desenvolvimento das fôrças g e­
rais da cabeça humana. Por êsse fato se desmorona a produ­
ção fundada sôbre o valor de troca. . . O desenvolvimento
livre das individualidades (é agora a finalidade), e pelo mes­
mo fato não a redução do tempo de trabalho necessário com
vista a criar sup\ertrabalho, mas de maneira geral a redução
ao mínimo do trabalho necessário da sociedade, ao qual cor­
responde então a formação artística, científica etc. dos indi­
víduos graças >ao tempo tornado livre para todos e aos meios
agora disponíveis para todos.’"16 (G rifo nosso.)
A s contradições do capitalismo se exprimem principal­
mente em que êle procura reduzir ao máximo o tempo de
trabalho necessário à produção de cada mercadoria, enquanto
por outro lado êle coloca o tempo de trabalho como única
medida e fonte da riqueza. Daí decorre que êle procura limi­
tar ao máximo o tempo de trabalho necessário e ampliar ao
máximo a duração do supertrabalho, do “ trabalho su­
pérfluo” . O conflito entre o desenvolvimento social das fôr­
ças produtivas e as condições privadas da apropriação capi­
talista, entre o desenvolvimento das fôrças, produtivas e as
relações de produção capitalistas, aparecem assim como um

16 Ibid., pág. 593.


114 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE K ABL M A R X

conflito entre a criação de riqueza, que se emancipa cada


vez mais do trabalho humano imediato, e o esforço constante
de canalizar essas fôrças imensas para a valorização do valor
existente, pela apropriação do supertrabalho humano. Marx
daí deduz o caráter ao mesmo tempo imensamente produti­
vo e imensamente destruidor, imensamente criador e imensa­
mente desperdiçador, do modo de produção capitalista.
Noutra passagem, M arx precisa que, na sua sêde insa­
ciável de lucro, o capital leva o trabalho a ultrapassar cons­
tantemente os limites de suas necessidades naturais e cria
assim os elementos materiais de uma rica individualidade,
que é também universal na sua produção tanto quanto no
seu consumo, e “ cujo trabalho não aparece mais como traba­
lho, mas como desenvolvimento pleno e integral da ativida­
de.” 17 Êle volta aqui a uma idéia fundamental da Ideologia
Alemã, contràriamente à opinião de certos “ marxólogos” , que
consideram as idéias dessa obra de juventude de Marx como
um pouco “ românticas” e “ idealistas” , superadas na obra do
sábio mais maduro.
Êsse aspecto “ historicamente necessário" do capital e do
capitalismo é aliás um dos temas ao qual M arx volta constan­
temente nos Grundrisse. A criação do mercado mundial; o
desenvolvimento universal das necessidades, dos gostos, dos
conhecimentos, dos gozos do homem; a ruptura radical e bru­
tal com todos os limites que a história e um meio estreito
tinham impôsto previamente à sua visão da natureza e de
suas próprias possibilidades; o desenvolvimento tumultuado
das fôrças produtivas: eis a “ missão civilizadora” do capital.
Mas contràriamente a muitos daqueles que se chamam
seus discípulos, para Marx não há nenhuma contradição entre
o fato de reconhecer e de assinalar essa “ missão historica­
mente necessária” do capitalismo e o fato de colocar constan­
temente no pelourinho tudo o que é explorador, desumano,
opressor nesse modo de produção. Marx tem constantemente
em vista os dois aspectos contraditórios da realidade históri­
ca que êle viveu, e êle se defende constantemente do duplo
escolho do subjetivismo e do objetivismo.18

17 Ibid., pág. 231.


18 É o que parece não compreender Kostas Axelos, que opõe o “posi­
tivismo” de Marx que admira os efeitos da industrialização a seu “ro-
T E M P O DE TRABALH O E T E M P O LIVRE 115

Ele não opõe à realidade existente uma realidade ideal,


para a qual as, condições não existem ainda, mas devem pre­
cisamente ser criadas pelo desenvolvimento do capitalismo;
mas êle não idealiza tampouco essa realidade existente. Êle
não nega que a miséria seja miserável, porque ela é produ­
to de uma fase de evolução historicamente inevitável. Esse
caráter duplo da concepção marxista da “necessidade histó­
rica” é nitidamente visível nos Grundrisáp, onde se encontram
algumas das condenações mais brutais ao capitalismo, ao lado
das páginas que reconhecem francamente seus méritos do
ponto de vista do progresso geral das sociedades humanas.
Há muitos outros problemas “ modernos” , "contemporâ­
neos” , que são levantados nos Grundrisse: o do desenvolvi­
mento dos serviços e o da aplicação da ciência e do maqumis­
mo à agricultura, por exemplo. O dos limites colocados à con­
centração do capital é interessante enquanto refutação “ pré­
via” da teoria do capitalismo de Estado:19 “ O capital não
existe e não pode existir senão sob a forma de numerosos ca­
pitais, e sua autodeterminação aparece assim como a intera­
ção dêsse numerosos capitais uns com os outros” , diz M arx.20
E êle precisa: "A produção de capitalistas e de trabalhado-
res assalariados é o principal produto do processo de valori­
zação do capital. A economia vulgar, que não olha senão as
coisas produtivas, esquece isso completamente.” 21 O problema
do capital que deve ao mesmo tempo limitar e estimular o
consumo dos trabalhadores tem da mesma forma uma resso­
nância moderna. M as êle levanta tôda a questão da teoria
marxista dos salários, que representa a última grande contri­
buição para a elaboração da teoria econômica de Marx, antes
da redação definitiva do Capital.
As discussões correntes levantam dois aspectos essen­
ciais dessa dialética dos Grundrisse que acabamos de esbo-

mantismo” que deploraria êsses mesmos efeitos (Marx, penseur de la


technique, pág. 81). Na realidade, o julgamento de Marx reúne os dois
aspectos contraditórios da indústria e do crescimento econômico sob o
capitalismo.
19 Salvo evidentemente sob a forma de um regime que assegure a so­
brevivência de uma parte importante da classe burguesa como capitalis­
tas de Estado, forma prevista por Engels, no Anti-Dühring.
20 Ibid., pág. 317.
116 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE KARL M A R X

çar: o problema da relação “ tempo de trabalho/tempo livre”


no seio da sociedade capitalista; e o problema do desenvolvi­
mento das fôrças produtivas considerado como condição ne­
cessária — suficiente ou insuficiente — para a abolição da
produção capitalista e da produção mercantil simplesmente.
à redução da duração do tempo de trabalho nos países
capitalistas mais industrializados é um fato, um fato do qual
o próprio M arx celebrou o alcance progressista na ocasião
da introdução da jornada de dez horas na Grã-Bretanha. É
verdade que a tendência à redução da jornada de trabalho
estriou no curso dos últimos decênios e que houve mesma
recaídas ( como na je rança). A extensão progressiva da dis­
tancia ao domicílio do trabalhador para seu lugar de traba-
ino compensa aiiás em parte a redução do tempo de trabalho.
A íauiga nervosa aumentada, ao mesmo tempo pelo fato da
técnica contemporânea, do barulho invasor, da poluição do
ar, da tensão cada vez mais grave subjacente a todas as re-
laçoes sociais, deve também ser .levada em conta. N o entanto,
se e excessivo talar de uma “ civilização do lazer” , é certo
4ue importantes setores da massa dos assalariados gozam
noje evidentemente de bem mais "tempo livre” do que na
época de Marx.
Jüizemos: gozam evidentemente. Porque o que deveria
acontecer nessa sociedade fundada sobre a economía mercan­
til generalizada que é a sociedade capitalista aconteceu real­
mente. O s lazeres foram em grande parte comercializados. A
equação: lucros aumentados + lazeres mais estendidos = mais
liberdade se revelou ilusoria. O proletário não podia ganhar
outra vez na esfera de um “ consumo de lazer” o que tinha
perdido na esfera da produção.22 Uma imensa literatura ana­
lisa e sublinha o “ habito industrial dos espíritos” , o embrute­
cimento provocado pelos meios de difusão maciça,23 o tédio
aberto que prolonga a fadiga e acaba por se combinar com

22 Cf. principalmente Heinz Theo Risse e Walter Dirks: Gibt es noch


ein Proletariat, págs. 88-89, 92.
23 Principalmente Hans Magnus Enzensberger, Culture ou mise en
condition, Paris, Julliard, 1965, págs. 9-18, e Edgar Morin, L’Esprit du
temps, Paris, Grasset, 1962, como fontes entre muitas outras.
T E M P O DE TRABALH O E T E M P O LIVRE 117

ela, tanto no trabalho quanto no “ tempo livre” .24 Não podia


ser diferente no seio de uma sociedade em que tôda vida eco­
nômica permanece voltada para a realização do lucro privado,
em que tôda atividade tende a se tornar uma finalidade em
si, em que tudo adquire nôvo risco de se tornar uma fonte
nova de mutilação do homem alienado.
Quer dizer que a extensão dos lazeres seja um mal e que
é preciso antes se orientar para uma "humanização do tra­
balho” , através do trabalho comunitário pregado por Erich
Fromm, ou a autogestão.25 O Marx dos Grundrisse responde
no mesmo sentido que o Marx do volume III do Capital: é
uma ilusão acreditar que o trabalho industrial, que o traba­
lho da grande fábrica possa algum dia se tornar trabalho
“ livre” . O reino da liberdade não começa senão além do reino
da produção material, isto é, do trabalho mecânico, se não
se quer trazer esta ao nível da produção artesanal. A verda­
deira solução reside pois em uma redução tão radical do tem­
po de trabalho (d o “ tempo necessário” ) que as relações entre
“ trabalho” e “ lazeres” se encontram totalmente subvertidas. A
abolição do capitalismo não é somente uma condição disso
porque ela estimula o crescimento das fôrças produtivas, e
permite assim acelerar essa redução da duração do trabalho.
Ela é igualmente o seu motor porque permite reduzir muito o
supertrabalho —- hoje tão nitidamente desperdiçado — e re­
partir o trabalho necessário por um número muito mais ele­
vado de indivíduos.26
A transformação da relação quantitativa tempo de tra­
balho/lazer (digamos 1/1 a 1 /2 ou a 1 /3 , o que implica a
semana de 32 ou de 24 horas, ou, mais precisamente, a meia
jornada de trabalho27) provoca uma revolução qualitativa, com
24 C f. Sweezy e Baran, M onopoly Capital, págs. 346-9, que dão ênfase
ao vazio completo — “ nada fazer” , “doing nothing” — que caracteriza os
lazeres de uma boa parte das massas americanas.
25 Erich Fromm, The Sane Society, Routledge and Kegan, Londres,
1959, págs. 321 e seg. (N . do E.: Traduzido para o português e pu­
blicado sob o título Psicanálise da Sociedade Contemporânea, por Zahar
Editores, Rio, 5.a e d ., 1 9 6 7 .)
26 Jean Fallot o lembra oportunamente em Marx et le machinisme,
Editions Cujas, Paris, 1966, págs. 183-8. A planificação permite também
economizar o supertrabalho.
27 Mesmo um autor tão conformista como George Soule ( The Shape
of To-Morrow, Signet Key Book, 1958, pág. 121) admite a possibilidade
de uma semana de 24 horas desde 1990, senão no comêço do século XXI.
118 PENSAM EN TO EC O N Ô M IC O DE KARL M A R X

a condição de ser integrada num processo de desalienação


progressiva do trabalho, do consumo e do homem, pelo en­
fraquecimento progressivo da produção mercantil, das classes,
do Estado e da divisão social do trabalho.
Os lazeres deixam de ser comercializados quando o “ co­
mércio” se enfraquece. Os meios de difusão maciça deixam
de ser instrumentos de embrutecimento quando o ensino su­
perior se generaliza e a opinião se diferencia e se cultiva pela
abolição de todo monopólio sôbre a imprensa, o rádio e a te­
levisão, o cinema. O “ tempo livre” deixa de ser fonte de tédio
e de opressão quando seus “ consumidores” se transformam
de espectadores passivos em participantes ativos.
Mas essas transformações radicais devem primeiro se rea­
lizar na esfera da produção e da vida política, antes de poder
manifestar-se na esfera dos lazeres: eis o germe de verdade
que contém a conclusão falsa de Fromm. O “ tempo livre” não
pode tornar-se um “ tempo de liberdade” , uma fonte de apro­
priação pelo homem de tôdas as suas possibilidades, senão na
medida em que conquistou de início as condições materiais
dessa liberdade por sua libertação de tôda exploração econô­
mica, de tôda coação política e de tôda sujeição às necessi­
dades elementares.
O desenvolvimento do maquinismo, da automação, das
fôrças produtivas da ciência e da tecnologia são condições
necessárias e suficientes para tornar possível essa liberdade
humana? Necessários certamente: o julgamento de Marx, da
Ideologia Alemã aos Grundrisse, não variou a êsse propósito;
e a experiência prática nos ensinou desde então a impossibi­
lidade de uma organização econômica verdadeiramente socia­
lista — implicando principalmente a desaparição da produção
mercantil — na ausência de uma aquisição técnica suficiente.
M as pode-se seguir Kostas Axelos quando afirma que
“ a esperança de Marx na técnica é inabalável” , que para êle
"a técnica produtiva "desencadeada” (está) . . . encarregada
de resolver pràticamente tôdas as questões e todos os enigmas
no seu devir” ?28 É subestimar singularmente a natureza dia­
lética do pensamento marxista, que repetiu numerosas vêzes,

28 Kostas Axelos, Marx, penseur de la technique, Les Editions de Mi-


nuit, 1961, Paris, págs. 265, 268.
T E M P O DE TRABALH O E T E M P O LIV RE 119

desde suas obras de juventude até os Grundrisse, que as for­


ças produtivas se arriscam a transformar-se em forças des­
trutivas se as relações de produção capitalista não forem
derrubadas. E com a mudança das relações de produção —
uma vez dado um nível de desenvolvimento determinado das
fôrças produtivas -—- as revoluções tecnológicas posteriores
serão guiadas por verdadeiras opções da humanidade socia­
lista, onde a vontade de assegurar um desenvolvimento mul­
tilateral do homem levará certamente vantagem sôbre a vã
tentação de querer acumular sem cessar uma quantidade su­
perior de coisas.
Nesse sentido aceitamos o julgamento de Jean Fallot:
“ O marxismo não é uma filosofia da dominação da natureza
pela técnica, mas da transformação das relações sociais de
produção pela luta de classes” ,20 se bem que uma técnica ele­
vada pareça sem dúvida alguma a Marx como precondição de
tal transformação.
N o mesmo sentido deve-se incluir na tendência à apro­
priação pelo homem (por todos os homens) de tôdas as suas
relações sociais — que é de fato o processo de sua individua­
lização, de sua humanização progressiva em sociedade socia­
lista —- uma tendência ao desenvolvimento universal das apti­
dões científicas, o que faz cair um dos últimos argumentos
opostos ao caráter liberador do socialismo por sociólogos con­
temporâneos pessimistas como Touraine ou Hannah Arendt:
a impossibilidade na qual se encontraria o homem contempo­
râneo, confrontado por uma técnica desencadeada que já se
libera de seus entraves terrestres, de conservar sua capacida­
de de agir eficazmente: esta seria reduzida somente aos sábios
ou “ quadros superiores” .30 Na realidade, nada se opõe hoje
à possibilidade de transformar progressivamente todos os ho-

29 Jean Fallot, Marx et le machinisme, pág. 40.


30 Principalmente H . Arendt ( Condition de l’homme moderne, Cal-
mann-Lévy, 1961, pág. 365), no que concerne aos sábios; Alain Touraine,
págs. 420 e seg. do Tratte de Sociologie, de Friedmann e Naville (v ol.
I, Paris, 1961, Librairie Armand C olin), no que concerne aos engenhei­
ros e aos quadros superiores; Günther Hillmann ( “ Zum Verständnis der
Texte” , em K. Marx: Texte zu Methode und Praxis, II, Rowohlt-Verlag,
pág. 20 3), no que concerne a uns e outros.
120 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE KARL M A R X

mens em sábios,31 isto é, a essa dissolução progresssiva do


trabalho produtivo em trabalho científico que Marx prevê na
passagem já citada dos Grundrisse, com a condição de que
a sociedade humana se reorganize de maneira tal que possa
cercar cada criança dos mesmos cuidados infinitos com os
quais ela prepara hoje submarinos ou foguetes interplane­
tários.32

31 C f. J. N . Dawydow ( Freiheit und Entfremdung, v e b Deutscher


Verlag der Wissenschaften, Berlim, 1964, pág. 1 1 ): “ A perspectiva de
desenvolvimento da sociedade comunista é a perspectiva de criar uma
sociedade de sábios.”
32 Ver no capítulo 11 desta obra um exame mais aprofundado das
relações entre o progresso técnico e a sociedade de classes.
8

O “Modo de Produção Asiático” e as


Precondições Históricas do Impulso do Capital

É a 10 de junho que Marx trata pela primeira vez pú­


blicamente do modo de produção asiático; êle acabava de
trocar suas idéias a êsse respeito com Engels numa carta en­
viada a 2 de junho, à qual Engels responde a 10 de junho.1
N os meses e anos que se seguem, êle voltará a isso em várias
ocasiões, principalmente nos artigos enviados ao N ew York
Daily Tribune e na Contribuição a uma Crítica da Economia
Política. Mas foi nos Grundrisse que essa idéia encontrou seu
desenvolvimento mais extenso sob o título de Formas que Pre­
cedem a Produção Capitalista.2 A difusão dêsse texto na Eu­
ropa depois de 1953, coincidindo com o comêço da desestalini-
zação, permitiu relançar uma discussão que se tinha mais ou
menos enredado, se não enterrado, no curso dos anos pre­
cedentes.
Parece bem estabelecido que M arx se tinha atido à idéia
de um “ modo de produção' asiático” até o fim dos seus dias.3

1 As duas cartas, assim como a resposta de Marx de 14 de julho de


1853 a Engels, acham-se em K. Marx, Fr. Engels, m e g a , III, 1, págs.
474-7, 478-82, 483-7. O artigo de 10 de junho de 1853 apareceu no
New York Daily Tribune de 25 de junho de 1853.
2 Grundrisse, págs. 375-413.
3 Maurice Godelier estabeleceu uma bibliografia provisória dos escritos
de Marx e Engels sôbre o “ modo de produção asiático” , bibliografia
que não retoma as Theorien über den Mehrwert, assim como outras pas­
sagens dos Grundrisse além do capítulo “ Formas que Precedem a Pro­
dução Capitalista” (L a Pensée, n.° 114, abril de 1964, págs. 56-66).
122 P E N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE KARL M A R X

M as Engels a eliminou da sucessão dos “ estágüos” que a hu­


manidade teria atravessado, sucessão que êle tinha traçado
em Æs Origens da Família, da Propriedade Privada e do E s­
tado apoiando-se estreitamente em Morgan. Foi o que acen­
deu a controvérsia entre marxistas.
Na Europa ocidental, a noção foi pouco ou nada utili­
zada. Na Rússia, Lênin a retomou sob uma forma conside-
ràvelmente modificada de “ asiatismo” , não designando mais
uma formação sócio-econômica particular.4 Plekhanov acabou
por repelir sua aplicação à Rússia, isto é, à história simples­
m ente.5 Lênin a menciona, no entanto, ainda explicitamente
em 1914
entre as quatro formações sócio-econômicas maiores.6
Em seguida à revolução russa e ao renascimento dos es­
tudos marxistas que essa havia incontestavelmente estimula­
do, Rjasanov chamou de nôvo> a atenção para a importância do
“ modo de produção asiático” numa introdução à publicação
de três artigos de Marx sôbre a China e a índia na revista
Sous le Drapeau du M arxism e. 7 N o mesmo ano, Eugène
V arga consagrou um estudo ao mesmo assunto, enquanto
Madyar fêz aparecer em 1928
um livro volumoso sôbre a eco­
nomia camponesa chinesa, no qual a idéia do “ modo de pro­
dução asiático" era discutida.
A China estava evidentemente na moda nessa época que
viu o apogeu e a derrota da segunda revolução chinesa. Mas

4 Ver a êsse respeito Karl A. Wittfogel, L e despotisme oriental, Edi­


tions de Minuit, Paris, 1964, que publica um levantamento bastante
completo das passagens de Lênin relativas a êsse “ asiatismo’ ’ nas pági­
nas 494-5 de sua obra.
5 Ver principalmente George Plekhanov, Introduction à l’Histoire so­
ciale de la Russie, Paris, 1926, Editions Bossard, pág. 4: “ Sabemos agora
não somente que a Rússia — assim como a Europa ocidental — atra­
vessou a fase do feudalismo, mas também que essa mesma fase existiu
no Egito, na Caldéia, na Síria, na Pérsia, no Japão, na China, em uma
palavra, em todos ou quase todos os países civilizados do Oriente.” No
entanto, o autor fala na mesma página igualmente dos “ grandes despo-
tados do Oriente” . Êle tinha conservado o conceito de um modo de
produção asiático em Les Questions fondamentales du marxisme (pág.
53, Paris, Editions Sociales, 1947), sublinhando a justo título que êsse
modo de produção não podia ser considerado como anterior ao modo
de produção antigo ( escravista ) .
6 V . I . Lênin, Oeuvres Complètes, vol. 21, pág. 40.
7 Ano I, n.° 2, págs. 370-378. — Lucien Goldmann nos fêz notar que
o “levantamento” do conceito de produção asiático não é de Rjasanov,
“m odo de produção a s iá t ic o ” 123

a discussão dos problemas estratégicos e táticos que essa re­


volução tinha levantado, e sua interferência com a luta de
fração no seio do P . C . U . S ., foi fatal para a discussão cien­
tífica em tôrno dêsse “ modo de produção” . A noção foi con­
denada por ocasião da famosa “ discussão de Leningrado” em
1931.8 Durante dois decênios, ela viria conhecer, na URSS,
de início, nos países das democracias populares em seguida,
uma sorte cada vez mais obscura, para desaparecer finalmen­
te dos manuais.9
N o entanto, no Ocidente, um comunista alemão, Karl
August W ittfogel, tinha neste tempo consagrado ao "modo
de produção asiático” uma obra monumental, que acabou por
influenciar de maneira duradoura o pensamento dos sociólo­
gos.10 Foi também no Ocidente que o debate sôbre o “ modo
de produção asiático” reapareceu primeiro, principalmente na
Grã-Bretanha e na França. Nas democracias populares, desde
o comêço da desestalinização, o conceito foi de nôvo utilizado
para libertar da ganga mecanicista e antimarxista das “ quatro
fases” que tôda humanidade teria obrigatoriamente atraves­
sado: comunismo primitivo, sociedade escravista, feudalismo
e capitalismo. Essa ganga havia principalmente obrigado os
autores que reivindicam o marxismo, mas que desejam fazer-se
reconhecer como "ortodoxos” pelos PCs, a reunir sob a eti-
quêta “ sociedade feudal” a mistura mais heteróclita de forma­
ções sócio-econômicas.11
mas dos comunistas húngaros, que editam a revista Comunismo desde
1920.
8 Ver K. Wittfogel, op. cit.
9 Dois exemplos: o manual de W . I. Avdijev: Geschichte des alten
Orients, publicado em Moscou em 1948 e traduzido em Berlim em 1953
(Volk und Wissen, Volkseigener Verlag), se apóia nas opiniões do aca­
dêmico V . V . Struve para afirmar que “os povos da Índia e da China
seguiram a mesma via da constituição gentílica à escravidão” (págs. 12-
1 3 ). An Outline History o f China publicado em Pequim (Foreign Lan­
guages Press) em 1958 fala também da mais antiga sociedade de classe
na China (a dinastia Shang) como uma “ sociedade fundada na escra­
vidão” (pág. 1 5 ).
10 Wirtscnaft und Gesellschaft Chinas, Leipzig, 1931, Hirschfeld, pág.
768.
11 Ver a êsse respeito Maurice Godelier, “ La Notion de “ mode de
production asiatique” et les schémas marxistes devolution des sociétés” ,
Cahiers du C.E.R.M., págs. 26-7, e Eric Hobsbawm, “ Introduction” to
Karl Marx, Precapitalist Economic Formations, Londres, Lawrence and
Wishart, 1964, págs. 61-3.
124 P E N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE KARL M A R X

O renascimento do debate em tôrno do “ modo de produ­


ção asiático” deve ser saudado. Mas é preciso ao mesmo tem­
po distinguir cuidadosamente aquilo que M arx e Engels ti­
nham designado por essa fórmula, a deformação que ela so­
freu em seguida, por causa de certos discípulos e de certos
adversários, e o uso que fazem dela hoje os historiadores e
sociólogos que se inspiram no marxismo. E, para êsse fim,
um breve exame da gênese dessa noção em Marx e Engels
nos parece útil.
Sem querer remontar até a origem da fórmula de “ des­
potismo oriental” que data do século X V II, e sem remontar
a Montesquieu, que a empregou abundantemente,12 é prová­
vel que M arx e Engels tenham elaborado sua teoria do "modo
de produção asiático” sob a influência de três correntes: de
início, dos economistas como John Stuart Mill e Richard Jones,
que Marx tinha estudado ou que estava estudando em 1853,
e que utilizaram fórmulas análogas;13 em seguida, dos relatos
das viagens, memórias ou monografias consagradas aos paí­
ses do Oriente, que Marx e Engels leram nessa época;14 enfim,
dos estudos particulares empreendidos sôbre a comunidade da
aldeia em outras partes do mundo e que chamaram a sua aten­
ção para a importância dessa comunidade nos países do
Oriente.15

12 Wittfogel se refere a isso.


13 John Stuart Mill fala de “ sociedade oriental” , em 1848, e Richard
Jones de “ sociedade asiática” já havia falado em 1831 (W ittfogel, op.
cit., p á g . 489 ).
14 Eric Hobsbawm ( op. cit., pág. 22) levanta uma lista bastante com­
pleta. Ela inclui Voyages, de Bernier, L ’Histoire de Java, de Raffles,
a Géographie historique de l’Arabie, do pastor C . Foster, Treatise on
ihe East India Trade, de J. Child etc. Pierre Naville (L a Chine future,
Paris, 1952, Les éditions de Minuit, págs. 89-93) lembra que as Voyages,
de Bernier, foram redigidas para contrariar um projeto de Luís XIV de
proclamar a propriedade real sôbre tôdas as terras da França — ou ao
menos um projeto que os adversários do absolutismo lhe haviam atri­
buído .
16 Maximilian Rubel chama a atenção para dois estudos de Marx que
datam do ano de 1853: um sôbre a comunidade de aldeia na Escócia
( “The Duchess of Sutherland and Slavery” , artigo publicado no New
York Daily Tribune de 9 de fevereiro de 1853); o outro sôbre as rela­
ções entre monarquia absoluta e descentralização administrativa na Es­
panha (M . Rubel, Karl Marx: Essai de biographie intellectuelle, Paris,
Rivière, 1959, págs. 297-301).
“modo de produção a s iá t ic o ” 125

T odos êsses estudos eram no fundo subprodutos de urna


análise constante e minuciosa do comércio exterior da Grã~
Bretanha e da conjuntura econômica dêsse país. Os merca­
dos orientais desempenhavam um papel crescente de saída
para a industria britânica. A expansão das exportações bri­
tânicas provocou perturbações profundas na sociedade orien­
tal. A revolução dos Tai'-Ping na China, o motim dos sipaios
na índia, eram reações diretas ou indiretas a essa ação dis­
solvente. Apaixonados pelas revoluções, quer elas se produ­
zam a leste ou a oeste, M arx e Engels se puseram a estudar
a estrutura das sociedades assim abaladas. Foi assim que for­
mularam a hipótese de trabalho de um “ modo de produção
asiático” .
A s características fundamentais dêsse modo de produ­
ção foram já expostas bastante exaustivamente nas três cartas
já citadas de junho de 1853, assim como em quatro artigos
publicados no N ew York Daily Ttibune. Podemos resumi-las
assim:
1) O que caracteriza antes de tudo o "m odo de produ­
ção asiático” ê a ausência da propriedade privada do solo.18
2) Por êsse fato, a comunidade de aldeia conserva uma
fôrça de coesão essencial, que resistiu através das épocas às
conquistas mais sangrentas.17
3 ) Essa coesão interna da comunidade de aldeia antiga
é ainda aumentada pelo fato da união íntima da agricultura e
da indústria (artesanal) que é aí mantida.18

16 Para a Índia: “ Pode-se dizer que a propriedade privada das casas


e jardins era um fato reconhecido nas zonas urbanas e arrabaldes a
partir do século VI antes da nossa era. Mas não havia em geral proprie­
dade privada dos campos cultivados” (D . D . Kosambi, An Introduction
to the Study of lndian History, Popular Boolc Depot, Bombaim, 1956,
pág. 145). Para a China, cf. Henri Maspero, citado em Pierre Naville,
La Chine future, págs. 96-8. Para o império clássico do Islã e os co­
meços do Império Otomano, Prof. Reuben Levy, The Social Structure
of Islam, págs. 13, 401 (Cambridge University Press, Cambridge, 1962).
17 O autor indiano antigo Kautilya escreve no seu Anthasastra: “ As
samghas (comunidades de aldeia tribais) são invencíveis por outras, por
causa de sua unidade.” Citado em Debiprasad Chattopadhyaya, Loka-
yata, A Study in Ancient lndian Materialism, People’s Publishing House,
Nova Deli, 1959, pág. 173.
18 Ver a descrição da antiga aldeia indiana em H . D . Malaviya:
“ Village Communities in índia, a Historical Outline” , em A . R . Desai:
126 PENSAM EN TO EC O N O M IC O DE KARL M A B X

4) M as por motivos geográficos e climáticos, a agricul­


tura próspera reclama nessas regiões trabalhos hidráulicos im­
portantes: “ A irrigação artificial é a primeira condição da
agricultura” .19 Essa irrigação reclama quase em todo^ lugar um
poder central regulador e empreendedor de grandes trabalhos.20
5) Por êsse fato o Estado consegue concentrar a maior
parte do superproduto social nas suas mãos, o que dá lugar
ao nascimento de camadas sociais mantidas por êsse exceden­
te, que são a fôrça dominante da sociedade (daí a expressão
“ despotismo oriental” ) . A “ lógica interna” de tal sociedade
joga no sentido de uma grande estabilidade das relações de
produção fundamentais.
N os Gmndrisse, encontramos tôdas essas características,
inclusive a importância concedida aos trabalhos hidráulicos.21
Mas encontramos ao mesmo tempo uma série de idéias suple­
mentares, que permitem circunscrever melhor aquilo que Marx
e Engels designavam por “ modo de produção asiático".
L ogo de início a ênfase é colocada em várias ocasiões
sôbre o desenvolvimento totalmente acidental e secundário das
aldeias no Oriente, estreitamente subordinadas aos chefes de
Estado ou a seus sátrapas.22 Isso significa que a produção

Rural Sociology in índia, The Indian Society of Agricultural Economics,


Bombaim, 1959, págs. 164-70. A passagem seguinte ( op . cit., pág. 170) é
particularmente significativa: “ O método original de remunerar os ser­
vidores (artesãos) da aldeia consistia ou bem em lhes dar uma dotação
de terra livre de renda, e algumas vêzes mesmo livre de imposto, ou
em lhes atribuir parte determinada da reserva coletiva de c e r e a is ...”
18 Engels a Marx, a 6 de junho de 1853, m e g a , III, 1, pág. 480.
20 C f. D . D . Kosambi (op. cit., pág. 280) a propósito do império dos
Gupta.
21 Grundrisse, pág. 377: “As condições comuns da apropriação real pelo
trabalho, os condutos de água, muito importantes para os povos asiáti­
cos, os meios de comunicação e tc ., aparecem desde logo como o tra­
balho da unidade superior — o Govêrno despótico planando acima das
pequenas comunas. ” Em Les Questions fondamentales du Marxisme
(pág. 4 3 ), Plekhanov atribui uma importância decisiva às condições geo­
gráficas que tornam necessários tais trabalhos. Êle volta a isso um pouco
mais adiante: “ E se êsses dois tipos (o modo de produção escravista
e o modo de produção asiático, E. M . ) diferem consideràvelmente um
do outro, seus sinais distintivos principais se formaram sob a influência
do meio geográfico” (pá g. 53).
22 Ibid., pág. 377. “ E certo que os mercadores e os artesãos, a burgue­
sia enquanto classe organizada nas suas guildas, jamais atingiram a su-
“modo de produção a s iá t ic o ” 127

permanece quase exclusivamente uma produção de valores de


uso.23 Ora, é o desenvolvimento da. produção de' valores de
troca nas aldeias que permite preparar a predominância do
capital. Quando o poder do dinheiro se torna predominante
em sociedades não-industriais, conduz à dominação do campo
sôbre a cidade.24 Em outras palavras: a estrutura particular
do ‘‘modo de produção asiático” , a subordinação das aldeias
ao mesmo tempo à agricultura e ao poder central25 implicam
que o Capital não pode tomar seu pleno impulso. Isso equi­
vale não a uma estagnação das fôrças produtivas — que não
se pode sobretudo demonstrar num caso como o da China —■
mas a um desenvolvimento retardado, que acaba por ser fatal
às nações fundadas sôbre êsse modo de produção.26

premacia que sua contrapartida européia tinha conquistado quando to­


mou o poder nas aldeias. Na índia, a aldeia era quase sempre um pôsto
avançado do Estado territorial, governado por prefeitos ou por organis­
mos designados pelo centro” (K. S. Shelvankar, citado em A. R. Desai,
op. cit., pág. 15 1).
23 Grundrisse, pág. 384. C f. A . R . Desai, op. cit., pág. 25: “ Na Índia
pré-britânica, a agricultura camponesa produzia essencialmente com
vista a satisfazer as necessidades da população da aldeia. Essa economia
agrícola de subsistência à aldeia foi transformada em uma economia de
mercado durante o período britânico. ’’
2i Grundrisse, pág. 405. Cf. Léon Trotsky: “ Assim as aldeias russas, da
mesma maneira que as aldeias sob o despotismo asiático, e em oposição
às aldeias artesanais e mercantis da Idade Média européia, não desem­
penhavam um papel senão de consumidoras. . . Onde estavam desde en­
tão situados a indústria manufatureira e os artesanatos? No campo, li­
gados à agricultura.” ( “ Balanço e Perspectivas” , pág. 176, em The Per-
manent, Revolution, New Park Publications, Londres, 1962).
25 Marx sublinha nos Grundisse (págs. 407-8) a importância de um
artesanato livre das aldeias para preparar a obra dissolvente do capital
sôbre as antigas relações comunitárias no cam po. No nosso Traité d’Eco-
nomie Marxiste (tomo I, pág. 148), citamos uma opinião pax-alela de
Etienne Balazs no que concerne às aldeias da antiga China, e fazemos
notar que a paternidade dessa idéia, atribuída a Max W eber, pertence
na realidade a Marx.
26 Isso não significa evidentemente que as nações asiáticas teriam sido
incapazes de chegar ao capitalismo pelos seus próprios meios. Isso ex­
plica simplesmente por que a Europa ocidental pôde tomar, a partir
do século XVI, um avanço cada vez maior sôbre as outras partes do
mundo. O subdesenvolvimento atual das nações da Ásia não é produto
do “ modo de produção asiático” , mas da ação retardadora e regressiva
que a relação de subordinação resultante da penetração européia exer­
ceu sôbre essas nações. A nação asiática que conseguiu conservar uma
128 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

Que se deve pensar desde então das tentativas feitas por


autores como Maurice Godelier, Jean Chesneaux, Jan Suret-
Canale e P . Boiteau, de trazer o "m odo de produção asiáti­
co ” a uma formação sócio-econômica que marca a passagem
da sociedade sem classes para a sociedade de classes?27
Para fazer isso, êles são obrigados a suprimir em pri­
meiro lugar o papel-chave que Marx e Engels tinham atri­
buído aos trabalhos hidráulicos e outros grandes trabalhos28
na criação dêsse modo de produção. Godelier, que segue Su-
ret-Canale, afirma que “ o controle do comércio intertribal ou
inter-regional exercido por aristocracias tribais sobre a troca
de produtos preciosos: ouro, marfim, peles etc., entre a África
negra e a África branca” ,29 pode dar origem a reinos como
Gana, Mali, Songhoi etc. M as dilatando assim a noção de
“ modo de produção asiático” — exatamente como os auto­
res marxistas “ dogmáticos” , que rejeitavam êsse conceito, eram
obrigados a dilatar a noção de "feudalismo” ■ — a especifici­
dade do “ modo de produção asiático” arrisca-se a desapa­
recer.

independência real — o Japão — conseguiu igualmente escapar ampla­


mente do subdesenvolvimento.
27 Maurice Godelier, “ La notion de “mode de production asiatique”
et le schémas marxistes d’évolution des sociétés” , Cahier du C.E.R.M.;
Jean Chesnaux: La Pensée, n.° 114, abril de 1964; Jean Suret-Canale,
La. Pensée, n.° 117, outubro de 1964; Pierre Boiteau, La Pensée, outu­
bro de 1964. O último ( op. cit., pág. 68) afirma mesmo que o “modo
de produção asiático” constitui um fenómeno universal, pelo qual todas
as sociedades passaram.
28 Jean Chesnaux ( op. cit., pág. 42 ) afirma: “ Deve-se perguntar se essa
noção de “ alto comando econômico” não recobre outras funções que não
a manutenção dos diques e dos canais: assim o contróle da rotação das
terras; a manutenção e o contróle de sua segurança. . . a proteção mi­
litar das aldeias contra os ataques dos nómades ou dos exércitos inva­
sores estrangeiros; a tomada a cargo direta pelo Estado de certos seto-
res da produção industrial, que ultrapassavam as possibilidades das c o ­
munidades camponesas, por exemplo no dominio das minas ou da me­
talurgia. . . ” Trata-se evidentemente de uma petição de principio, a
partir do momento em que não se atribui mais aos “ trabalhos hidráuli­
cos” a causa essencial do aparecimento de tal Estado-empreendedor.
Por que, em outras civilizações, confederações de aldeias, ver as primei­
ras corporações urbanas, os senhores locais, puderam preencher as fun­
ções que Chesnaux acaba de enumerar, enquanto no “ modo de produ­
ção asiático” estas vão para o Estado?
29 Maurice Godelier, op. cit., pág. 30.
“m odo de produção a s iá t ic o ” 129

Porque o que fazem ésses autores é trazer insensivelmen­


te as caracterísicas do “ modo de produção asiático” àquelas
que marcam tôda aparição primeira do Estado e das classes
dominantes no seio de uma sociedade ainda essencialmente
fundada sôbre a comunidade de aldeia. Pode-se com efeito
considerar como demonstrado que, em todos ésses casos, tra-
ta-se de inicio de um tributo voluntário concedido pelas co­
munidades para fins de interesse comum ( fôsse um interesse
imaginário, religioso ou m ágico);30 que, progressivamente, uma
aristocracia tribal ou intertribal se apropriou de início do usu­
fruto e depois da propriedade dêsse tributo; e que, durante
um período intermediário mais ou menos longo, uma “ demo­
cracia na base” , fundada sôbre a comunidade de aldeia, coa­
bitou com um Governo cada vez mais “ despótico” do cume,
expressão da nova classe dominante.
Depois de ter colocado de início que o “ modo de produ­
ção asiático” se deixa em última análise reduzir à combinação
única de uma comunidade de aldeia e de um poder central
explorador,31 os autores mencionados não têm evidentemente
dificuldade para descobrir, não sem espanto aliás, êsse modo
de produção “ asiático” ( sic) na África negra e na América
pré-colombiana, na Europa mediterrânea, entre os etruscos e
na civilização creto-micênica.32 Mas, essa operação de redu­
ção felizmente conseguida, deve-se perguntar o que subsiste
de especificamente asiático nessa categoria assim dilatada. E
a resposta é clara: não muita coisa, sobretudo no que con­
cerne aos fenômenos que foram, apesar de tudo, o ponto de
partida da análise de M arx e de Engels: o caráter hipertro­
fiado e despótico do Estado; a ausência de propriedade pri­
vada do solo.

30 Assim, a organização coletiva do trabalho em aldeias da África oci­


dental, que escorrega insensivelmente da ajuda mútua coletiva ao traba­
lho efetuado, em troca de presentes, em proveito dos “homens mais
eminentes” , depois à corvéia apenas camuflada (c f. Claude Meillassaux,
Anthropologie économique cies Gouro de Côte d’Ivoire, Mouton, Paris,
1964, págs. 175-185).
31 Jean Chesnaux, op. cit., pág. 41: “ O modo de produção asiático pa­
rece caracterizar-se pela combinação da atividade produtiva das comuni­
dades de aldeia e da intervenção econômica de uma autoridade estatal
que as explora.”
32 Maurice Godelier, op. cit., pág. 21.
130 PENSAM EN TO EC O N O M IC O DE KARL M A R X

M as a extensão excessiva da noção de “ modo de pro­


dução asiático” a todas as sociedades “ de passagem da so­
ciedade sem classes para a sociedade de classes” não permi­
te dar conta de outro aspecto, ainda mais capital, que essa
noção adquiriu com Marx. Fazendo do “ modo de produção
asiático” uma sociedade que se intercala entre o comunismo do
clã e a sociedade escravista ou a sociedade feudal; fazendo-a
“ explodir” seja numa via, seja na outra, suprime-se de nôvo
tudo o que é específico na história do Oriente, trazendo-a,
depois de um breve desvio, para a antiga rotina da “ escravi­
dão” ou do "feudalismo" universais. . . depois de ter lamen­
tado previamente a dilatação excessiva dessas noções.33 Não
se parece dar conta do fato de que essa noção de "m odo de
produção asiático” encobre, para Marx e Engels, não sò-
mente uma qualquer sociedade indiana ou chinesa “ primiti­
va” , perdida nas brumas do passado, mas a sociedade indiana
e chinesa tais como o capital industrial europeu as encontrou
no século X V II, na véspera da conquista (índia) ou da pe­
netração maciça (China) por êsse capital.34

33 Ver Godelier, op. cit., pág. 33, sôbre as formas de dissolução do modo
de produção asiático.
34 Lembremos a êsse respeito que o subcapítulo do qual é extraída a
passagem dos Grundrisse que trata do “ modo de produção asiático’’ é
intitulado: “ Formas que Precedem a Produção Capitalista” , e que é in­
tercalado num capítulo consagrado à acumulação primitiva do capital.
O contexto demonstra imediatamente que essa intercalação tem um sen­
tido preciso: trata-se de demonstrar por que, no seio do “ modo de pro­
dução asiático” , mesmo a acumulação mais vasta de somas de dinheiro
não produziu um processo de acumulação de capital. Assim também
Lênin caracteriza o “ despotismo asiático” em 1914 nestes têrmos: “ Cada
um sabe que êsse gênero de regime político goza de uma grande esta­
bilidade nos países em que a economia é marcada pela predominância
de traços inteiramente patriarcais, pré-capitalistas, e por um fraco de­
senvolvimento da economia mercantil e da diferenciação das classes”
( Oeuvres, vol. 20, pág. 426, Editions sociales, Paris, 1959). Dificilmente
reconhecer-se-á nessa descrição a sociedade que se intercala entre o c o ­
munismo tribal e a sociedade fundada na escravidão. . . É verdade que
nos Grundrisse, Marx caracteriza também o modo de produção asiático
como uma das formas de propriedade coletiva do solo originadas da
decomposição do comunismo tribal — no mesmo nível que a proprie­
dade coletiva do ager publicus em Roma ou que a propriedade coletiva
do solo entre os germanos e os eslavos (págs. 380-6). Foi sem dúvida
essa passagem que induziu em êrro certos autores. Mas, no mesmo con­
texto, Marx precisa bem que de tôdas essas formas de propriedade co-
“m odo de produção a s iá t ic o ” 131

A ésse propósito, aliás, Romesh Dutt cita autores de


relatos oficiais do comêço do século X I X que confirmam que
nessa época ainda os campos pertenciam coletivamente às co­
munidades da aldeia.35
Desde então, a noção de "modo de produção asiático”
desprovida de seu sentido específico não é mais capaz de dar
conta do desenvolvimento particular do Oriente em relação à
Europa ocidental e mediterrânea. Ela perde sua principal uti­
lidade como instrumento de análise das sociedades às quais
Marx e Engels tinham no entanto explicitamente destinado.
Ela não pode ganhar outra vez essa utilidade senão voltando
a suas formulações originais, e à função que Marx e Engels
tinham previsto para ela: explicar as particularidades do de­
senvolvimento histórico da índia, da China, do Egito, do Islã,
em relação ao desenvolvimento histórico da Europa ocidental.
Seu último “ magnum opus” carece visivelmente de obje­
tividade científica;36 parece-nos todavia que é na antiga obra-
prima de K. A . W ittfogel de 1931, W irtschaft und Gesell~
schaft Chinas, que se pode encontrar até hoje a melhor chave
para compreender o caráter específico do “ modo de produção
asiático” , no duplo sentido em que Marx e Engels tinham
compreendido essa especialidade nos Grundrisse. W ittfogel
aí descreve amplamente a extraordinária proeza do camponês

letiva, a do modo de produção asiático é a mais tenaz e a mais durável,


o que implica que ela se manteve até o limiar do capitalismo moderno.
35 Romesh Dutt: The Economic History of índia, vol. I, pág. 107 (The
Publication División of the Government of índia, Nova Deli, 1960).
36 No L e Despotisme Oriental, W ittfogel argumenta, sem prova algu­
ma, que Marx teria “ mistificado” o caráter ae classe da “ burocracia”
do “ modo de produção asiático” , por mêdo de condenar assim a buro­
cracia do “Estado socialista” que êle queria criar. É o mesmo móvel
que o teria aliás levado a deixar em surdina sua concepção do “ modo
de produção asiático” ( op . cit., págs. 497-9). Além do fato de que a
segunda parte dessa tese não está de maneira alguma demonstrada, a
primeira, que atribui a Marx uma concepção burocrático-stalinista do
Estado depois da derrubada do capitalismo (quando Marx celebrou na
Comuna, originada do sufrágio universal, abolindo os funcionários per­
manentes e reduzindo seu tratamento ao de operários qualificados, o
modêlo de sua “ ditadura do proletariado” ) constitui uma falsificação
histórica escandalosa. Rubel (nota na pág. 1680 da edição das Oeuvres
de Marx na coleção Pléiade-Economie I ) constata a justo título que
“ essa denúncia retrospectiva de uma desonestidade intelectual em Marx
releva da patologia mais do que da discussão científica” .
132 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE KARL M A R X

chinês, que fêz muito cedo da China um dos países mais den­
samente povoados do mundo. Mas essa proeza está subordi­
nada a trabalhos hidráulicos de tal amplitude que as comunas
ou mesmo os grupos das comunas ou das províncias não po­
dem executá-los.37 !É daí que nasce a necessidade objetiva, o
papel funcional, de um poderoso poder central. Daí também
a possibilidade de ver desenvolver-se bastante rápidamente
grandes manufaturas, muito mais cedo do que na Europa,38
mas sem dar origem a uma burguesia livre, mesmo no sentido
medieval do têrmo. O Estado é muito forte, impõe à acumu­
lação do capital-dinheiro um ritmo muito descontínuo, subor­
dina demais a vida intelectual e científica às necessidades da
agricultura,39 para permitir um processo equivalente ao da
acumulação primitiva do capital e da constituição de uma in­
dústria moderna com proletariado livre da Europa ocidental.
É preciso insistir sôbre o fato de que essa sociedade não
é de maneira alguma “primitiva” , no sentido de uma ausência
de classes sociais claramente delimitadas ou constituídas. A o
contrário, ao lado dos camponeses existem não somente os
funcionários públicos, mas ainda proprietários fundiários (que
se apropriam ilegalmente da propriedade do solo) e comer­
ciantes e banqueiros, muitas vêzes imensamente ricos. Mas
o que determina a especificidade dessas classes no “ modo de
produção asiático” é que, diante da hipertrofia do poder de
Estado, êles não podem nunca adquirir o poder social e po­
lítico que, em outros países, deu origem ao feudalismo primei­
ro, ao capitalismo moderno em seguida. Eis aquilo de que o
conceito de “ modo de produção asiático” deve dar conta.
Deve-se aqui responder a uma objeção formulada por
Michael Mauke, que particularmente se aplicou a aprofun­
dar a noção de classe para Marx em relação com uma tese
sôbre os empregados que êle estava acabando no momento em

37 K . A . Wittfogel, Wirtschaft und Gesellschaft Chinas, págs. 187,


192-3, e sobretudo págs. 285-7.
38 Ver um pressentimento surpreendente da existência dessas manufatu­
ras chinesas nos Grundrisse, págs. 397, 410.
39 Wittfogel, op. cit., págs. 670-9. Cf. uma passagem do mesmo livro,
pág. 572, onde o autor demonstra que o artesão chinês permanece sempre
servidor, e na maioria das vêzes servidor ambulante, pelo fato da ex­
tensão asiática dos domínios fundiários! Essa passagem poderia ser inte­
grada no contexto dos Grundrisse que comentamos aqui.
“modo de produção a s iá t ic o " 133

que faleceu bruscamente, com a idade de 37 anos. Mauke


afirma que no seio do modo de produção asiático há apro­
priação do superproduto social por camadas dominantes, e di­
reito de pedido do supertrabalho por elas. “ Mas enquanto
êsses dois fenômenos estão ainda ligados à realização de fun­
ções para o conjunto da sociedade (burocracia, teocracia
etc.) — quaisquer que sejam os abusos e o parasitismo —
não pode tratar-se para Marx de “ classes” , mas de Governo
de dominação e de despotismo.40
Mauke generaliza aqui, abusivamente a nosso ver, uma
característica de classe dominante que não se aplica na rea­
lidade senão somente à burguesia capitalista, para a qual a
separação entre “ interesse privado” e "função social” é qua­
se total.41 Em tôdas as classes dominantes pré-capitalistas, e
a fortiori nas classes não-dominantes tal como o artesanato
autônomo da Idade Média, essa separação radical não existe.
N o nível do domínio, o senhor feudal ou o abade da abadia
cumpre funções “ úteis para a sociedade no seu conjunto” , da
mesma maneira que o escriba do Egito antigo ou o mandarim
da China clássica. ,Êle vela pela secagem dos pântanos,
ocupa-se de construir e de proteger os diques quando a ne­
cessidade geográfica pede, protege o domínio contra incursões
de assaltantes etc. T u do isso não impede que êle se apro­
prie, em troca dêsses “ serviços” , do superproduto social —•
quando a pré-história e a história demonstram que essas mes­
mas funções podem ser realizadas a serviço da coletividade,
sem dar lugar a privilégios econômicos.
ÍÉ nesse sentido que se pode falar da aparição de uma
classe dominante no modo de produção asiático, classe que
se apropria do superproduto social. Mas, na escala das clas­
ses dominantes que a história humana conheceu, ela é certa­
mente a mais próxima das funções primitivas de “ servidores
da coletividade” , e a mais afastada da burguesia contempo­
rânea .
A história econômica nos mostra aliás que, ao lado des­
sa classe dominante, o modo de produção asiático enfeixa ou-

40 Michael Mauke, “ Thesen zur Klassentheorie von Marx” , em Neue


Krítik, pág. 29, n.° 34, fevereiro de 1966.
41 Mesmo a burguesia preenche aliás uma função útil do ponto de
vista do conjunto da sociedade: a de desenvolver as fôrças produtivas;
Marx volta a isso em numerosas ocasiões nos Grundrisse.
134 PENSAM EN TO EC O N Ô M IC O DE KARL M A R X

tras classes sociais diferentes das dos camponeses e das dos


senhores — principalmente uma classe comerciante relativa­
mente desenvolvida e uma classe de artesãos urbanos, traba­
lhando exclusivamente para os senhores.42
Uma crítica análoga a esta que acabamos de formular a
respeito das concepções de Godelier, Chesneaux, Suret-Ca-
nale e outros não foi ainda feita de maneira sistemática por
outros autores. Mas ela se encontra ao menos sugerida e em
parte antecipada em diversos estudos.
Assim, na sua introdução à edição inglesa de Formas
que Precedem a Produção Capitalista, Eric Hobsbawm se afas­
ta prudentemente de tôda interpretação mecanicista da céle­
bre série das “ quatro formações sócio-econômicas maiores”
que M arx enumera na Introdução à Contribuição a uma Crí­
tica da Economia Política (sociedade asiática, escravista, feu­
dal, capitalista), escrevendo que se trata de uma seqüência
analítica e não cronológica.43 N o entanto, algumas páginas
antes, êle havia retomado a idéia de Godelier de que o “ modo
de produção asiático" não representa ainda uma sociedade de
classe do “ gênero mais primitivo” ;44 A s duas observações são
manifestamente contraditórias. Se a seqüência não é crono­
lógica, se o “ modo de produção asiático” não se situa neces-
sàriamente antes da sociedade escravista (ou mesmo da so­
ciedade feudal), é impossível supor que não se trate nem
mesmo de uma sociedade de classe, ou somente de uma so­
ciedade de classes rudimentares...
Se bem que êle tenda, na nossa opinião erradamente, a
minimizar o “ modo de produção asiático” , principalmente em
relação com sociedades mais desenvolvidas como a índia ou
a China,45 Máxime Rodinson critica implicitamente a concep­
ção de Godelier, comentando nestes têrmos a passagem dos
Grundrisse que analisamos neste momento: “ Essencialmente,
M arx vê o desenvolvimento pré-capitalista em relação com o
capitalismo . O que o interessava era a aparição, em forma-

42 Ver a êsse propósito G . L . Adhya, Early Iridian Economics, Asia


Publishing House, Bombaim, 1966, pág. 98 para os comerciantes, págs.
84-7 para os artesãos urbanos.
43 Eric Hobsbawm, op. cit., pág. 37.
44 Ibid., pág. 34.
45 Máxime Rodinson, Islam, et Capitalisme, E d. du Seuil, Paris, 1966,
págs. 73-83.
“modo de produção a s iá t ic o ” 135

ções precedentes, de condições que tornem possível a emer­


gência de uma sociedade capitalista. A historia pré-capitalís-
ta não é, como quer uma visão vulgar marxista, uma suces­
são de estágios universais, de formações econômico-sociais
governadas por leis implacáveis, que as levam inelutàvelmen-
te para o capitalismo, e assim para o socialismo. . . Ela parte
de uma comunidade primitiva, com uma estrutura essencial­
mente imposta pelas condições de existência da humanidade
arcaica, mas que não apresenta menos tipos variados. Alguns
dêsses tipos possuem um potencial de evolução no seio de
sua estrutura particular pelo fato de suas contradições inter­
nas. É no curso dessa evolução, que se estende por milhares
de anos, que alguns fenômenos se produziram que, convergin­
do numa região determinada (a Europa), numa época dada
(o século X V I ) , e num contexto dado, produzem a sociedade
capitalista. Entre o ponto de partida e o ponto de chegada
há outros fenômenos como a escravidão, modos de produção
particulares46 (antes que formações sócio-econômicas no sen­
tido estrito do têrm o), nos quais, aqui e lá, relações sócio-
econômicas de dominação são cristalizadas.” 47
Deve-se mencionar o "Prefácio” notável de Pierre V idal-
Naquet da edição francesa do Despotism o Oriental, de Karl
W ittfogel, “ Prefácio” no qual o autor aceita em geral a teo­
ria do “ modo de produção asiático" aplicada acs países aos
quais Marx destinava esta noção, ao mesmo tempo assina­
lando as fraquezas e os exageros do livro de W ittfogel e in­
sistindo sôbre o fato de que “ só uma agricultura que implica
da parte da coletividade grandes trabalhos. . . é suscetível
de criar êsse tipo de sociedade” .48

i® É o sociólogo polonês Julián Hochfeld ( Sludia o marksouwskief


teor& spoleczemtwa — Estudos sôbre a Teoria marxista da sociedade
Panstwowe Wydawnictwo naukowe, 1963, Varsóvia) que estabelece a
distinção correta entre “ modo de produção” , isto é, um modêlo econô­
mico “ puro” , abstrato, e uma formação sócio-econômico, isto é, um tipo
concreto de sociedade no seio da qual um “ modo de produção” ocupa
um lugar dominante. Assim, seria exato dizer que o modo de produção
capitalista se desenvolveu na Grã-Bretanha a partir do século XVI; mas
caracterizar a Grã-Bretanha como uma “ formação sócio-econômica” ca­
pitalista, isso não seria exato senãõ a partir da segunda metade do sé­
culo X V III.
47 Máxime Rodinson, “W hat Happened in History” , em New L eft Re-
view, n.° 35, janeiro-fevereiro de 1966, págs. 97-9.
48 Pierre Vidal-Naquet, op. cit., pág. 10.
136 PE N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE KARL M A R X

Deve-se finalmente citar um texto mimeografado de Guy


Dhuquois, encarregado de curso da Universidade de Argel,
que o autor nos enviou gentilmente.49 Êle emite críticas aná­
logas àquelas que acabamos de formular a respeito das teses
de Godelier, Chesneaux, Suret-Canale. Da mesma maneira
que Maxime Rodinson, êle volta igualmente à intenção de
Marx, que era a de opor a linha de evolução européia àquela
originada do “ modo de produção asiático” . Insiste a êste res­
peito, justamente, sôbre a “ coerência e (a) tendência extre­
mamente pronunciada à estabilidade, e à “ palingenesia” que
caracterizam êsse modo de produção: “ O comércio cria por
vêzes um engôdo de capitalismo (seria mais correto dizer: de
acumulação de capital, E .M . ), mas é destinado às necessida­
des dos aristocratas e do suserano que dispõem do superpro-
duto. . . A s aldeias aparecem parasitárias vivendo a expen­
sas do mundo rural e não lhe rendendo quase nada; não for­
necem senão uma base estreita ao desenvolvimento do comér­
cio e do artesanato urbanos. O banqueiro trabalha sobretu­
do para o “ déspota” . O comerciante e o banqueiro estão num
meio que é, sob múltiplos pontos de vista, econômico, socioló­
gico, político ou cultural, desfavorável a iniciativas indivi­
duais de tipo nôvo. Por exemplo, os modelos sociais os inci­
tam a comprar direitos fundiários ou a fazer entrar seus fi­
lhos na função pública. Enfim, o Estado, diretor de tôda vida
econômica, intervém para controlar suas atividades. Assiste-
se à absorção contínua pelo modêlo dominante dessas ativida­
des marginais.” 50
Guy Dhuquois indica ao mesmo tempo que, graças a
êsse critério, a aplicação do conceito de “ modo de produção
asiático” a sociedades como o Baixo-Império Romano ou o
Império Bizantino é contra-indicada. N o primeiro caso, a
analogia está deslocada, “ porque, fora mesmo da importância
da propriedade privada que, com os grandes proprietários
fundiários, levou a um preparo de feudalização, a preponde­
rância econômica do Estado parece arbitrária em relação às
necessidades técnicas” .51 É por essa razão que tal preponde­
rância não foi de grande duração, que acabou numa degrada­

49 Guy Dhuquois, L e monde de production asiatique (manuscrito mi­


m eografado), pág. 13.
60 Ibid., págs. 4-5.
“modo DE PRODUÇÃO A S IA T IC O ” 137

ção contínua da situação econômica e finalmente na explosão


do Estado, sem chegar à palingenesia, tão característica para
países como a índia ou a China. Quanto ao caso de Bizâncio,
o Império Bizantino “ conheceu uma evolução que parece ter
sido inelutável para um tipo particular de feudalismo que,
aqui, tomou definitivamente a frente, enquanto, segundo nos­
sa definição, no modo de produção asiático, o Estado deve
normalmente reaparecer. . . no seu papel tradicional” . 52
Mas a noção de “ modo de produção asiático” não so­
mente conheceu um feliz renascimento, no curso dos últimos
an os. Foi também submetida a uma crítica, aliás, mais séria
que aquela feita pelos “ marxistas” dogmáticos do tempo de
Stalin. É principalmente o caso de E . R . Leach, num estu­
do publicado em 1959 sôbre o Ceilão, e que serve ao mesmo
tempo de crítica ao trabalho de W ittfo g e l.53
Essa crítica, válida na medida em que visa às formula­
ções excessivas ( “ dogmáticas às avessas” ) do W ittfogel de
1958, é muito menos pertinente quando é examinada à luz das
concepções de M arx e de Engels a respeito do "modo de
produção asiático” e do W ittfogel de 1931. Porque, incon-
testàvelmente, elementos de “ feudalismo” (isto é, de grande
propriedade fundiária de fato, se não de direito, cultivada com
a ajuda de corvéias, ou impondo uma renda aos campone-
ses-fazendeiros) existem no seio do “ modo de produção asiá­
tico” . Segundo a descrição de Leach, êsses elementos pare­
cem mais importantes no Ceilão do que na índia ou do que
na China, mas existiam igualmente China e, em W irtschaft
und Geselschaft Chinas, W ittfogel dá amplamente conta dis­
so. Senão vejamos: essa classe feudal não se tornou jamais
classe dominante. Seus progressos sempre foram considera­
dos como usurpações do poder do Estado e dos direitos dos
camponeses: e, quando essas usurpações se tornavam exces­
sivas, provocavam periodicamente uma crise econômica e po­
lítica, que terminava geralmente pela derrubada da dinastia

52 Ibid., pág. 8.
53 E . R . Leach: “ Hydraulic Society in Ceylon” , em Past and Present,
n.° 15, abril de 1959, págs. 2-26.
138 P E N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE KARL M A R X

existente, através de uma guerra camponesa, e a aparição de


uma nova dinastia que levou os proprietários fundiários à ra­
zão . 5i
Por outro lado, é possível, como Leach sugere no seu
estudo, que o antigo sistema de irrigação, no Ceilão, não fôs-
se tão impressionante quanto parece hoje, conforme as dimen­
sões das ruínas. Êle sugere que se trata de justaposições
progressivas, cada geração acrescentando um certo número
de canais e de reservatórios segundo técnicas de trabalho
descentralizadas (coordenadas na escala da aldeia) . Mas,
nesse caso, a conclusão de Leach não invalida, realmente, a
tese do “ modo de produção asiático” . ,Êste liga, com efeito, a
aparição de um Estado despótico hipertrofiado com a neces­
sidade, somente, de grandes trabalhos hidráulicos. E quando
êsses trabalhos se efetuam, essencialmente, ao nível da aldeia
■—• como no sistema dos qanats no Irã55 — o despotismo não
resulta dêles necessàriamente.58
Há, aliás, algumas outras passagens dos Grundrisse, nas
quais M arx volta a essa diferença específica entre uma so­
ciedade fundada sõbre a produção de valores de uso, isto é,
em última análise, fundada sôbre a agricultura (quer seja no
“ modo de produção asiático” , modo de produção antigo, ou

54 D. D. Kosambi (op. cit., págs. 326-331, 351-365) afirma que os


invasores mulçumanos na índia ali criaram, a partir do século XI, o
embrião de uma classe feudal, mas que jamais puderam apoderar-se do
poder sôbre todo o território, tomado entre o despotismo no alto e a
comunidade da aldeia na base.
05 Ver a êsse respeito Henri Goblot: “ Dans l’ancien Iran, les techniques
de l’eau et la grand histoire” , em Annales, 18.° ano, n.° 3, maio-junho
de 1963, págs. 500-20.
56 Assinalemos a êsse propósito que, na sua Filosofia da História Mun­
dial (volume II), que Marx e Engels estudaram com ardor, Hegel per­
cebera a diferença essencial entre a evolução histórica chinesa e euro­
péia: “ Igualmente não há aristocracia hereditária na China, nem situa­
ção feudal, nem dependência da riqueza como na Inglaterra, mas o p o­
der supremo é habitualmente exercido pelo monarca” ( “ Philosophie der
Weltgeschichte” , vol. II: D ie Orientalische W elt, pág. 290, Leipzig, Ver-
lag von Felix Meiner, 19 19 ). C f. também essa notável definição, que
anuncia já então a análise do “ modo de produção asiático” : “ O que
predomina na China é a igualdade (a comunidade da aldeia, E . M . ). . .
A China é o império da igualdade absoluta. . . Mas tudo deve ser re­
gulado pela administração. Porque na China reina a igualdade, mas
não a liberdade, o despotismo é o modo de Govêrno necessàriamente
dado” ( ibidem, pág. 29 9).
‘m o d o de produção a s iá t ic o ” 139

mesmo o feudalismo “ puro” ), e uma sociedade fundada sôbre


a produção d e valores de troca, sôbre a produção de merca­
dorias. A aparição do capital mercantil (comprar para ven­
der), “êsse movimento pode produzir-se no seio de povos ou
entre povos para os quais o valor de troca não se tornou de
modo algum a condição da produção. O movimento não se
apropria senão do excedente de sua produção orientada para
o imediato consumo, e não se produz senão na sua fronteira
(isto é, marginalmente, E . M . ) . Igualmente como os judeus
(fizeram-no) no seio da velha sociedade polonesa ou em ge­
ral no seio da Idade Média, povos inteiramente de comer­
ciantes, como na Antiguidade, e mais tarde os lombardos, po­
dem ocupar essa posição intermediária entre povos cujo modo
de produção não possui, ainda, o valor de troca como condi­
ção fundamental.” 57
E ainda: “ O dinheiro na qualidade de fortuna de mer­
cadores — tal como êle aparece no seio das formas de so­
ciedade mais diversas e nos estágios mais diferentes de de­
senvolvimento das forças produtivas sociais — não é senão
um movimento intermediário entre extremos, que êle não do­
mina, e entre condições que êle não cria. . . A maioria dos
povos comerciantes ou das cidades comerciantes independen­
tes e poderosamente desenvolvidos pratica o carrying trade,
que se fundou sôbre a barbárie dos povos produtores entre os
quais êles representam o papel do dinheiro (de intermediá­
rio) . Nos primeiros estágios da sociedade burguesa, o co­
mércio domina a indústria; na sociedade moderna é o inverso.
O comércio reagirá, evidentemente, mais ou menos às comu­
nidades entre as quais êle se realiza. Submeterá a produção
mais ou menos ao valor de troca; rechaçará cada vez mais, ao
último plano, o valor de uso imediato, na medida em que faz
depender a subsistência mais da venda do que da imediata
utilização do produto. Êle dissolve as antigas relações. A u­
menta, por êsse fato, a circulação do dinheiro. Apreende, de
início, o excedente da produção, em seguida açambarca pro­
gressivamente esta nela mesma. M as a ação dissolvente de­
pende muito da natureza das coletividades produtivas, entre as
quais (o com ércio) opera. Assim, êle apenas abalou as anti-

57 Grundrisse, pág. 165. (Grifos nossos.)


140 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE K ARL M A R X

gas comunidades da índia e, em geral, as condições asiáti­


cas” .5S
Essa passagem é importante porque demonstra que, em
1857-8, Marx conservava a sua opinião do ano de 1853 a res­
peito da resistência que o “ modo de produção asiático” apre­
sentava sob o ponto de vista da ação dissolvente da troca.
Ela sublinha, igualmente, que para Marx tôda a evolução
progressiva dos modos de produção está fundada sobre urna
dialética do superptoduto social (d o excedente), que não é
senão una dialética do “ tempo necessário" e do “ supertraba-
lho” , como vimos precedentemente.
Resta colocar tôdas essas considerações sobre o “ modo
de produção asiático” no seu contexto concreto, isto é, na aná­
lise efetuada, por Marx, das condições históricas — mais abs­
tratas — do impulso do capital e do capitalismo. Ter-se-á já
então compreendido que, segundo o método dialético que éle
usa com predileção ños Grundrisse, Marx não se demora so­
bre as “ formas que precedem a produção capitalista” senão
para pôr em evidência, de maneira negativa, os fatóres que,
positivamente, conduziram ao desabrochamento do capital e
do capitalismo na Europa.
Marx releva, a ésse propósito, a necessidade, antes de
tudo, de que o trabalho se torne efetivamente “ livre” — mas
isso não somente no sentido jurídico como também, e sobre­
tudo, no sentido econômico do têrmo, isto é, livre de todo o
laço com os meios de subsistência, de todo o laço com os
meios de trabalho. Isso é “ antes de tudo o desprendimento
do operário da terra como desprendimento de seu laboratório
natural — portanto, dissolução da pequena propriedade li­
vre do solo e da propriedade coletiva do solo, baseada sôbre
a comuna oriental” . 59 !É uma idéia que vem em numerosas
passagens nos Grundrisse, e que é aí notadamente retomada
numa análise das condições da colonização, análise que será
desdobrada no volume I de O Capital. O vôo do capitalismo
é impossível tanto tempo quanto subsista o livre acesso a uma
terra (relativamente) abundante:60 êste axioma estabelecido

58 Ibid., págs. 70, 741-2. (Grifos nossos.)


59 Ibid., pág. 375.
60 K . S. Shelvankar assinala que, mesmo no século XVIII, a terra era
ainda abundante na região do Ganges ( em A. R. Desai, op. cit., pág. 1 4 9 ) .
“ modo de produção a s iá t ic o ” 141

por M arx encontrou uma confirmação surpreendente na tra­


gédia imposta aos povos de Zimbabwe e da África do Sul,
que tiveram de ser cortados de seu solo natal, e encurralados
em “ reservas", para sofrer a obrigação econômica de vender
a sua fôrça de trabalho ao Capital.
Isso implica, por outro lado, uma separação do produtor
de seus meios tradicionais de trabalho (por exemplo, do ar­
tesão independente) e do fundo de consumo que lhe era cre­
ditado antes mesmo que se pusesse a produzir.61
Mas M arx revela, também, a outra face da medalha: nas
comunidades primitivas, o homem é estreitamente integrado
nas condições naturais de existência e na coletividade “ da
qual êle é até certo ponto a propriedade” . 62 O nível de de­
senvolvimento das forças produtivas não permite outra orga­
nização social. É, somente, se êsse desenvolvimento supera o
estágio da comunidade primitiva, se as fôrças produtivas se
tornam muito mais produto do homem do que produto óa na~
íureza,03 que o indivíduo sedesprende das comunidades pri­
mitivas: “ o homem não se individualiza senão pelo processo
histórico” . 04 A troca é um dos principais instrumentos dessa
individualização. Ela produz, ao mesmo tempo, a alienação
do homem — mas cria, também, as condições necessárias à
sua expansão integral como indivíduo, com tôda “ a univer­
salidade das necessidades, das capacidades, dos gozos, das
fôrças produtivas dos indivíduos” , que é ausente nas comu­
nidades primitivas e recalcada na sociedade burguesa.
V ê-se, assim, quanto é injusta a censura freqüentemen­
te endereçada a Marx, segundo a qual êle desejaria uma com­
pleta integração do indivíduo na coletividade, segundo a qual
a socialização como êle deseja seria uma socialização integral

61 Ibid., pág. 397.


62 Ibid., pág. 395.
63 C f. a fórmula quase idêntica utilizada nos Manuscritos de 1844.
“ O homem se produz a si próprio” . “ Man makes him self’ é, também,
o título do excelente epitome de pré-história e de história antiga redi­
gido pelo saudoso Gordon Childe. ( N. do E .: Traduzido para o por­
tuguês e publicado, sob o título A Evolução Cultural do Homem, por
Zahar Editores, Rio, 19 66 .)
64 Ibid., pág. 395.
142 P E N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE K ABL M A R X

do indivíduo.60 É o contrário que é verdade. Se M arx atri­


bui uma tão grande importância ao desenvolvimento das for­
ças produtivas; se é, numa certa medida, “ amoroso do pro­
gresso técnico” — sem, aliás, jamais subestimar os perigos de
divisão e de alienação do trabalho que disso resultam — é,
precisamente, porque compreende que somente êsse desen­
volvimento das fôrças produtivas cria as necessárias condi­
ções para uma individualização cada vez maior do homem,
que se realizará definitivamente, na sociedade socialista.67

60 C f., por exemplo, o Prefácio de François Perroux na edição das


Obras de Karl Marx ( “ Economia I” ) na Collection de la Plêiade,
N .R .F ., Paris, 1963, pág. X XII: “ O homem socializado do comunismo
final não é homem senão no todo social, na totalidade que é a socieda­
de comunista. O indivíduo se objetiva em e por pertencer a essa socie­
d a d e .. . ” E, igualmente, pág. X XIII: “Êsse homem tornado verdade no
e pelo todo social, êsse homem que não permanece verdade senão na
e pela totalidade social, não é caracterizado como um sujeito original e
único capaz, essencialmente, de ação livre e de palavra livre. Êle não
é verdade pela espontaneidade irredutível do espírito origem da ação
e da palavra pessoais; êle o é pela participação na sociedade; não é
senão na e pela totalidade que êle se tornou e que êle permanece um
homem. . . ” A citação dos Grundrisse que acabamos de reproduzir de­
monstra quanto a imagem que Perroux esboça aqui de “ o homem so­
cialista’’ ou de “ o homem comunista” segundo Marx é pouco conforme
com a visão marxista. Marx assinala, ao contrário, à sociedade do fu­
turo a função de assegurar “o livre desenvolvimento das individualida­
des” , que é, essencialmente, o seu desenvolvimento “ artístico, científico
e tc .” ( Grundrisse, pág. 593). Essa passagem, assim como o seu apro­
fundamento, págs. 599-600, da mesma obra, onde Marx se estende sôbre
a ação recíproca do “tempo livre” — que transforma o homem em “ ou­
tro sujeito” capaz de experimentar, de criar livremente — e o desenvol­
vimento das fôrças produtivas, indica quanto outra idéia de Perroux
( op. cit., pág. X V II), segundo a qual, conforme Marx, “ um pequenino
número de senhores das máquinas” subsistiria mesmo na sociedade c o ­
munista, é contrária às concepções de Marx.
67 Isso não está de modo algum em contradição com a sexta tese sôbre
Feuerbach que afirma que “a essência humana não é alguma coisa
abstrata que é inerente a cada indivíduo. Na sua realidade, ela é o
conjunto das relações sociais’’ . Trata-se, precisamente, de relações so­
ciais infinitamente mais ricas que permitirão ao homem socialista se
afirmar.
9

O Acabamento da Teoria dos Salários

Como vimos, a primeira obra que Marx consagrara, mais


particularmente, ao trabalho assalariado, Lohnarbeit und Ka-
pital ( Trabalho Assalariado e Capital), ainda se apoiava, em
parte, sobre uma errônea teoria dos salarios, retomada, em
geral, de Ricardo. A mesma teoria dos salarios se encontra
noutros escritos de M arx da mesma época, notadamente na
Miséria da Filosofia e no M anifestó Comunista,
D e que se trata? A teoria ricardiana dos salários inspi-
ra-se amplamente em Malthus, e tem em conta um movi­
mento de oferta e procura de mão-de-obra essencialmente es­
timulado pelo processo demográfico. A alta dos salários acar­
retaria uma procriação mais avançada nas casas dos operá­
rios — ou se se quer exprimir com mais circunspeção: uma
baixa de mortalidade infantil —- daí, o crescimento da oferta
de braços, daí, a queda dos salários. Pelo contrário, a que­
da dos salários reduziria as dimensões dos lares operários
(ou, o que dá no mesmo, aumenta a taxa da mortalidade: in­
fantil), daí, a redução da oferta de braços. A um certo mo­
mento, a procura de mão-de-obra deve, pois, superar a ofer­
ta, o que acarreta uma alta dos salários. Êsses dois movimen­
tos da balança tendem a equilibrar o nível dos salários, mas
isso ao nível mais baixo, exatamente suficiente para manter
vivo o operário e um lar “ médio” (para permitir um movi­
mento demográfico que corresponda, exatamente, às neces­
sidades de mão-de-obra criadas pela indústria capitalista).
144 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE K ARL M A R X

Que se trate de uma teoria muito primitiva/ isso não


sofre discussão. O raciocínio é antes de tudo caduco porque
quando define o salário como resultante das flutuações da
oferta e da procura de mão-de-obra, limita-se, de fato, a es­
tudar as flutuações da oferta (e ainda!), fazendo abstração
das flutuações da procura. Não examina, como oferta de
mão-de-obra, senão a que resulta do movimento demográfico
no meio operário, fazendo abstração de um processo, entre­
tanto, dos mais significativos do capitalismo: êste da proleta-
rização dos produtores que dispunham antes diretamente de
seus meios de produção ou de troca ( camponeses, artesãos,
pequenos comerciantes e pequenos empreiteiros), e que apa­
recem, progressivamente, no mercado para oferecer a sua
fôrça de trabalho.
Finalmente, nisso que o raciocínio parece ter de válido
(as flutuações da mortalidade infantil governadas pelo nível
de vida médio dos lares operários), há um êrro de raciocínio
grosseiro: o fator tempo é escamoteado. Na realidade, uma
queda da mortalidade infantil não aumenta, imediatamente, a
oferta de braços, não a aumenta senão dez ou quinze anos
mais tarde (o intervalo depende da ampliação do trabalho in­
fantil e da idade média na qual as crianças .começam a ser
aliciadas) . Para se saber se êsse crescimento de oferta de
mão-de-obra provocará ou não uma queda de salários, deve-
se, ao menos, colocar-se a questão de saber qual é a tendência
da procura de mão-de-obra, de decênio em decênio. A teo­
ria dos salários de Malthus-Ricardo pressupõe, pois, de fato,
tàcitamente, uma estagnação a longo têrmo da procura de
mão-de-obra (de decênio em decênio!), o que está em con­
tradição com os fenômenos da revolução industrial, da indus­
trialização e do crescimento econômico sob o capitalismo em
geral.

1 Deve-se, entretanto, acrescentar à defesa de Ricardo que êste não


ignorava o efeito da acumulação do capital sôbre os salários, que êle
de início supusera que a expansão do maquinismo tenderia a aumentar
os salários, para modificar, mais tarde, essa opinião e admitir que o
maquinismo poderia exercer efeitos nefastos sôbre êstes (ver a Introdu­
ção de Piero Sraffa às Obras Completas de Ricardo, The W orks and
Correspondence of David Ricardo, vol. I, pág. LVII, Cambridge Univer­
sity Press, 1951). Mas êle estava hipnotizado demais por sua teoria
das rendas, e a hipótese de um encarecimento geral e permanente dos
víveres, para romper de maneira decisiva com as concepções de Malthus.
T E O R IA DOS SALARIOS 145

Essa teoria não foi retomada, sob essa forma crua, se­
não por diversos socialistas ditos “ utópicos” e por Lassalle e
a sua famosa “ lei de bronze dos salários” . 2 M arx e Engels
jamais a defenderam, mas ela os influenciou, incontestável-
mente, a formular a sua primeira teoria errônea dos salários,
que concluiu, como a teoria Ricardo-Malthus, com a tendên­
cia dos salários de cair para o mínimo vital fisiológico e aí se
manter.
É “ o esbôço genial” do jovem Engels, Umrisse zu einer
Kritik der Nationalökonomie, que fornece a teoria dos salá­
rios que os dois amigos manterão, em grandes linhas, até o
segundo exílio de M arx na Inglaterra. Engels ai condena
como “ infame e ignóbil” a doutrina de Malthus,. mas dela
adota, não obstante, as conclusões: “ A o trabalho não volta
senão o que é estreitamente necessário, os meios de subsistên­
cia totalmente nus. . . ” 3 Êle deduz êsse fato não de um mo­
vimento demográfico (se bem que afirma que seja um mérito
de Malthus ter demonstrado “ que a população pesa sempre
sôbre os meios de ocupação” 4), mas de um fato econômico: a
concorrência universal na qual os operários são mais fracos
do que os capitalistas, e tanto mais enfraquecidos porque po­
dem ser substituídos por máquinas.
Depois, aquêle argumento final que, nos Umrisse, apa­
rece um tanto marginal, ocupará o primeiro lugar na teoria
dos salários das obras de juventude de M arx e de Engels.
Assim, nas suas “ Notas de Leitura” do ano de 1844, Marx
já então acrescentou, aos textos de Ricardo e de Adam
Smith, o comentário que aqui está: “ Em todos os países in­
dustriais, o número de operários é agora superior à procura,
e pode-se recrutar, cotidianamente, proletariado desempregan­
do, do mesmo modo como aquêles operários aumentam por
sua vez êsse proletariado. Assim, a acumulação tem, tam­

2 “A lei econômica de bronze que determina o salário nas condições


atuais, sob a denominação da oferta e da procura de trabalho, é a se­
guinte: que o salário médio permanece sempre reduzido à subsistência
que é necessária para a existência e a procriação conforme os hábitos
de um povo” ( F . Lassalle, “ Offenes Antwortschreiben an das Zentral­
komitee zur Berufung eines allgemeinen Deutschen Arbeiterkongresses
zu Leipzig” , 24 de abril de 1863, na Gesammelte Reden und Schriften,
III, pág. 5 8 ).
3 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , 1, 2, pág. 401.
4 Ibid., pág. 399.
146 PE N S A M E N T O E C O N O M IC O DE KARL M A R X

bém, a conseqüência inversa de que o salário operário é cada


vez mais reduzido.” 5 N o primeiro dos Manuscritos Económi­
co-Filosóficos d.e 1844, Marx afirma que o capitalismo rea­
girá contra todo o aumento dos salários, buscando reduzir a
procura de mão-de-obra graças à substituição dos trabalha­
dores por máquinas: “ Visto que o homem caiu ao nível de
uma máquina, a máquina pode fazer-lhe face como concor­
ren te."6 É essa tendência em substituir pelo trabalho morto
o trabalho vivo, inata no capitalismo, que se torna o motor,
ao mesmo tempo, da acumulação do capital e da baixa ten-
dencial dos salários no jovem M a rx .7
A conclusão que êle destaca dessa etapa dessa lei é que
êle considera que quanto mais o operário produz, tanto me­
nos consome; êle supõe, pois, uma absoluta baixa dos salá­
rios. O fato de que o salário não pode aumentar numa dada
situação senão fazendo baixar o lucro está, já então, clara­
mente destacado no segundo manuscrito de 1844.®
Assim, os nossos dois jovens autores desenvolvem, de
fato, uma teoria dos salários que parte, essencialmente, não
do movimtínio demográfico, mas do movimento da acumula­
ção do capital.
Nos Manuscritos Económico-Filosóficos do ano de 1844,
Marx constata que é o período de expansão, de alta conjun­
tura, que é o mais favorável ao operário porque, em tal perío­
do, a procura de mão-de-obra supera a oferta, e a concorrên­
cia se acentua entre os capitalistas. Êsses dois fatores fazem
aumentar os salários. Mas Marx acrescenta que a lógica do
sistema capitalista produz, rápidamente, o resultado inverso.
Porque a alta conjuntura estimula a acumulação dos capitais,

5 É interessante constatar que o jovem Marx utiliza aqui a palavra


“ proletariado” não como idêntica à classe operária, mas como designan­
do, exclusivamente, os desempregados, por analogia com o antigo pro­
letariado romano.
6 K . Marx, “Zur Kritik der Nationalökonomie” , em K. Marx, Fr. En­
gels: Kleine ökonomische Schriften, pág. 50.
7 Dois anos mais tarde, êle escreverá a Annenkov: “ Desde 1825, a in­
venção e aplicação das máquinas não é senão o resultado da guerra entre
os patrões e os operários” (K . Marx, Fr. Engels, Briefe über “ Das Ka­
pital” , Dietz-Verlag, Berlim, 1954, pág. 21 ).
8 K. Marx: “Zur Kritik der Nationalökonomie” , em K. Marx, Fr. En­
gels, Kleine ökonomische Schriften, pág. 114.
TE O B IA DOS SALÁRIOS 147

portanto a concentração capitalista, que faz cair grande


número de produtores independentes na condição proletária.
D e onde o crescimento de oferta da mão-de-obra e a queda
dos salários.9
Na Miséria da Filosofia, no manuscrito Arbeitslohn, no
Trabalho Assalariado e Capital, no M anifesto Comunista,
M arx e Engels permanecem ligados à idéia de que a tendên­
cia geral dos salários, no regime capitalista, é a de baixar no
sentido absoluto do têrmo, e de cair para o mínimo fisiológi­
co de subsistência. Indicamos, acima, quais são as reservas
e matizes que êles introduzem nessa concepção — reservas e
matizes que os ajudarão, grandemente, a sobrepujar o que
havia de errôneo na sua teoria. As duas fôrças motrizes des­
sa baixa tendencial dos salários reais são, de uma parte, a
substituição dos trabalhadores pelas máquinas (isto é, uma
forma de acumulação do capital que suprime mais empregos
do que os cria), e de outra parte a concorrência que cresce
entre operários, como resultado dêsse desemprego permanen­
te e crescente.
Redigindo as suas notas Arbeitslohn em Bruxelas no ano
de 1847, M arx acredita, ainda, que as objeções dos econo­
mistas contra os sindicatos (as associações de operários),
afirmando que êstes não podem impedir as baixas dos salá­
rios, porque a sua ação provoca, inevitavelmente, novas for­
mas de divisão do trabalho, o deslocamento dos capitais de
um setor a outro, a aparição de novas máquinas etc., são de­
finitivamente fundadas. Êle não defende menos essas "asso­
ciações” , avaliando que é, em seu seio, que os operários
aprendem a se preparar para a derrubada da “ velha socieda­
de” .10 fisse ponto de vista M arx o revisará e igualmente o
ampliará alguns anos mais tarde.
Breve, durante todo êsse período, a concepção funda­
mental de M arx sôbre os salários foi que “ o preço natural”
(o valor) do trabalho (da fôrça do trabalho) é o salário mí­
nimo — o mínimo sendo concebido como uma noção fisioló­
gica.11 Quando e como êle revisou essa concepção? N ão é fá-

9 Ibid., págs. 48-9.


10 K . Marx, Fr. Engels, Kleine okõnomische Schriften, págs. 246-7.
11 C f. a passagem célebre do Manifesto Comunista: ‘ Os gastos que
ocasiona o operário se limitam, pois, quase exclusivamente aos víveres
dos quais êle tem necessidade para a sua subsistência e para a procria-
148 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE KAHL M A R X

eil estabelecê-lo com precisão. M as foi, sem dúvida, o estu­


do das flutuações cíclicas e da atividade sindical na Grã-Bre­
tanha que o levou a visões mais corretas.12
Nos Grundrisse, escritos nos anos de 1857-8, portanto,
exatamente dez anos após as passagens que acabamos de
citar,13 Marx já tem, então, uma visão mais dialética, mais
completa e mais amadurecida do problema dos salários, visto
que, praticamente, não será mais modificada até à redação do
Capital.
Assim, Marx aí nota que a única coisa que distingue o
operário do escravo é que êle pode alargar o círculo de seu
gôzo no período de boa conjuntura, que pode “ tomar parte
nos gozos superiores, mesmo espirituais, na agitação por seus
próprios interêsses, que pode comprar jornais, ouvir conferên­
cias, educar os filhos, desenvolver os seus gostos” , em poucas
palavras, “ participar da civilização” da única maneira que lhe
permanece aberta, elevando as suas necessidades ,14 Ora, Marx
afirma aqui, implicitamente, que êsse aumento do consumo,
êsse alargamento das necessidades, permanecem possíveis
para os operários pelo menos no período de alta conjuntura,
e que o valor da fôrça de trabalho inclui, pois, dois elemen­
tos, um sendo um elemento filosófico mais ou menos estável, o
outro sendo um elemento variável, considerado como neces­
sário para a reprodução da fôrça de trabalho conforme as
necessidades crescentes adquiridas pelos operários.

ção de sua raça. O preço de uma mercadoria e, pois, também do tra­


balho é, entretanto, igual aos seus gastos de produção. Na mesma me­
dida onde cresce o caráter repugnante do trabalho, o salário baixa’ ’
(nossa própria tradução do texto alemão, ed. Buchhandlung Vorwärts,
1918, Berlim, pág. 32).
12 Todavia, desde 1847, no seu caderno Arbeitslohn, Marx considera
que êsse mínimo não é uma noção fisiológica absoluta; que diferentes
elementos podem aí ser introduzidos ou daí ser desfalcados; que os
próprios burgueses aí englobam “ um pouco de rum, de chá, de açúcar
e de carne” e que os próprios operários aí englobam a sua quotização
sindical ( Kleine ökonomische Schriften, pág. 247).
13 C f. Fr. Engels: “Em 1850, Marx ainda não pusera ponto final
à sua crítica da Economia Política. Êle não o fêz senão ao fim dos dez
anos seguintes” (Introdução à edição de 1891 de Trabalho Assalariado e
Capital, pág. 63 das Obras Escolhidas, vol. I, Moscou, Edições do Pro­
gresso, 1955).
14 K. Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Oekonomie, págs. 197-8.
TE O R IA DOS SALARIOS 149

E algumas páginas adíante, 15 ele indica que o capital


tem a tendencia de impelir o operario a substituir as suas
“ necessidades naturais” (fisiológicas) por necessidades “ his­
tóricamente criadas” .
Essa idéia foi, aliás, já tratada numa passagem anterior
dos Grundrisse, onde M arx sublinha que o operario é, igual­
mente, considerado como consumidar pelo capitalista, e que
éste tem, pois, tendencia a querer estimular o consumo. . .
salvo em seus próprios operários.16 E ela é desenvolvida na
análise da produção da mais-valia relativa, onde os dois efei­
tos contraditórios da acumulação do capital sobre o valor da
fôrça de trabalho e sobre a evolução dos salários são colo­
cados em evidencia.
D e um lado, a acumulação do capital; a substituição do
trabalho vivo por máquinas; o crescimento da produção do
trabalho, tudo isso tende a fazer baixar o salário nominal
(uma mesma quantidade de víveres ou de mercadorias em ge­
ral é, agora, produzida num lapso de tempo mais reduzido)
e o próprio salário real (sob a pressão do desemprego cres­
cente) . Mas, por outro lado, a acumulação do capital implica
a criação de novos ramos industriais, portanto a criação de
empregos novos, assim como a criação d e novas necessidades,
e a propagação dessas necessidades em meios cada vez mais
am plos.17 Dessa maneira, ela tende a aumentar o valor da
fôrça de trabalho (porque êsse valor inclui, agora, o preço
de novas mercadorias, devendo satisfazer essas novas neces­
sidades) do mesmo modo que o seu preço (quando o desem-
prêgo se reduz) . O s movimentos reais dos salários não são,
pois, mais determinados por leis mecânicas e simples, mas de­
pendentes da interação dialética dêsse duplo efeito da acumu­
lação do capital sôbre o valor da fôrça de trabalho.18

is Ibid., pág. 231.


16 Ibid., págs. 194, 198.
17 Ibid., pág. 312.
18 Ricardo tivera o pressentimento dêsses efeitos complexos quando su­
blinhava que a baixa dos preços de numerosas mercadorias podia permitir
o seu consumo pelos operários. Mas êle acrescentava: com a condição de
que haja desproporção entre os preços das matérias-primas (e da fôrça
de trabalho) e os preços das mercadorias acabadas, e com a condição de
que os operários sacrifiquem uma parte da renda prevista para a compra
de víveres. Como Marx o sublinha, suprimindo essa “ desproporção” , a
150 PENSAM EN TO E C O N O M IC O DE K ARL M A R X

N o manuscrito das Teorias sôbre a Mais- V alia ( Theo-


ríen über den M eh rw ert), redigido nos anos de 1862-3, Marx
precisa que a acumulação do capital, substituindo' constante­
mente o trabalho vivo por máquinas, pode reproduzir o traba­
lho assalariado' numa larga escala, isto é, aumentar, de manei­
ra absoluta, o número de assalariados, mesmo se a massa dos
salários diminui relativamente em relação ao capital global.19
Algures, êle observa que, em períodos de alta conjuntura, os
operarios “ representam um papel importante na qualidade de
consumidores” , enquanto “ consumidores de seus próprios
produtos” (bens de consumo) . 20
Mas é na sua exposição diante do Conselho Geral da
Associação Geral dos Trabalhadores (I Internacional), rea­
lizada nos dias 20 e 27 de junho de 1865, que Marx exporá,
de maneira completa, a sua teoria dos salários. Essa teoria,
êle a resume na seguinte passagem: “ M as há algumas cir­
cunstâncias particulares que distinguem o valor da fôrça de
trabalho, o valor do trabalho, dos valores de tôdas as outras
mercadorias. O valor da fôrça do trabalho é formado de
dois elementos, do qual um é puramente físico e o outro his­
tórico ou social. O seu limite supremo é determinado pelo
elemento físico, isto é, que para subsistir e se reproduzir, pa­
ra prolongar a sua existência física, é preciso que a classe
operária receba os meios indispensáveis de subsistência para
viver e multiplicar-se. O valor dêsses meios de subsistência
de necessidade absoluta constitui, por conseguinte, o limite
mínimo do valor do trabalho. . .
"Paralelamente a êsse elemento puramente fisiológico, o
valor do trabalho' é determinado pela maneira de viver usual
a cada país. Isso não somente consiste na existência física,
mas na satisfação d e certas necessidades nascentes das con­
dições sociais nas quais os homens vivem e foram educa­
dos . . .
“ Se você compara os salários normais, isto é, os valores
do trabalho em diferentes países e em épocas históricas dife­
rentes no mesmo país, encontrará que o próprio valor do tra-

livre-troca suprimiria, ao mesmo tempo, a origem de expansão das neces­


sidades nos operários ( Grundrisse, II, págs. 81 7-8 ).
19 K. Marx, Theorien über den Mehrwert, vol. II, pág. 570.
20 Ibid., vol. III, pág. 221.
TE O R IA DOS SALÁRIOS 151

balho não é uma grandeza fixa, que êle é variável, mesmo se


se supõe que os valores de tôdas as outras mer-cadorias per­
manecem constantes.” 21 (G rifo nosso.)
Marx disso deduz que, se o limite mínimo dos salários
pode ser mais ou menos exatamente definido, não existe li­
mite máximo para êsses salários. Ou, mais exatamente: o
máximo dos salários é o que deixa suficientemente subsistir
lucro, aquém do qual o Capital não tem mais interesse em ali­
ciar a mão-de-obra.
Entre êsse mínimo e êsse máximo, a concreta determi­
nação do nível dos salários depende ‘‘das fôrças respectivas
dos combatentes” , isto é, das vicissitudes da luta de classe.
É, aliás, o que Marx procurou demonstrar, visto que a sua ex­
posição tendia, antes de tudo, refutar a tese segundo a qual
a ação dos sindicatos seria inútil e mesmo nociva para os tra­
balhadores22 (c f. carta a Engels em 20 de maio de 1865) .
M as essas “ fôrças respectivas dos combatentes” são, por
sua vez, determinadas, pelo menos em parte, por fatôres ob­
jetivos. E entre êsses, êle cita, antes de tudo, a flutuação da
oferta e da procura da mão-de-obra, o que lhe permite pre­
cisar que nos países de além-mar, como os Estados Unidos
da América, relativamente pouco povoados, onde “ o merca­
do do trabalho constantemente se esvazia pela contínua trans­
formação dos operários assalariados em camponeses” ,23 a lei
da oferta e da procura favorece o operário e lhe permite ob­
ter salários mais elevados do que na Europa. Marx notara,
aliás, alguns anos mais cedo — numa polêmica contra Ricar­
do — que a penúria relativa da população nos Estados Uni­
dos permitira ali estimular, por sua vez, altas de salários e
uma expansão prodigiosa do maquinismo.24
Como evoluem a oferta e a procura de mão-de-obra nos
países já amplamente industrializados? Pela substituição cons-

21 K. Marx, Salaires, prix et profits, Bureau cTEditions, Paris, 1945.


22 Briefwechsel zwischen Fr. Engels und K. Marx, vol. III, pág. 259.
23 K. Marx, Salaires, Prix et Profits, pág. 25.
24 K. Marx, Theorien üher den Mehrwert, vol. II, págs. 573-4. Cf. uma
observação análoga feita desde dezembro de 1846 na carta a Annenkov:
“ Afinal, quanto à América do Norte, a introdução das máquinas era tra­
zida pela concorrência com os outros povos e pela escassez de mão-de-
obra, isto é, pela desproporção entre a população e as necessidades in­
dustriais da América do Norte” (K . Marx, Fr. Engels: Briefe iiber “ Das
Kapital’’, Dietz-Verlag, Berlim, 1954, pág. 2 1 ).
152 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE KARL M A R X

tante dos trabalhadores pelas máquinas, pelo crescimento


constante da composição orgânica do capital. A tendência a
longo prazo é, pois, a de um desequilíbrio da oferta e da
procura a favor dos capitalistas e às custas dos trabalhado­
res, acredita M arx: “ A tendência geral da produção capita­
lista não é elevar o salário médio, mas baixar.” 25
Deve-se entender essa expressão no sentido absoluto ou
no sentido relativo do têrmo, como baixa do valor da fôrça
do trabalho ou como baixa do poder d e compra dos salários?
Muitos elementos deixam supor que o sentido relativo é mais
conforme com o pensamento de Marx do que o sentido abso­
luto. Êste indica, com efeito, na mesma exposição, que uma
baixa do valor da fôrça do trabalho, no caso do aumento da
produtividade, pode acompanhar-se da manutenção do salá­
rio real, e aí êle acrescenta: “ Se bem que as condições abso­
lutas de existência do operário tivessem permanecido as mes­
mas, o seu salário relativo e, portanto, a sua situação social
relativa, comparada à do capitalismo, teria baixado.” 26
Ora, essas condições de crescimento da produtividade
são, incontestàvelmente, mais “normais” nos países capitalis­
tas há quase um século. Marx, aliás, acrescenta, imediata­
mente, à passagem supramencionada: “ Se o operário opusesse
resistência a essa diminuição de salário relativo, não faria se­
não se esforçar para obter uma parte da produtividade acres­
cida de seu próprio trabalho, e conservar a sua antiga situa­
ção social relativa.” 27
Esta eventualidade implica mesmo uma alta tendencial
dos salários reais, com baixa da parte relativa dos valores no­
vamente criados que volta aos operários. E, nas Teorias sd-
bre a M ais~Valia, M a r x parece indicar que se trata ali de
uma tendência geral e que “ os operários não podem impedir,
é verdade, a baixa do salário (em valor), mas não se deixam

25 K. Marx, Theorien über den Mehrwert, vol. II, págs. 573-4.


26 Marx dedica uma enorme importância à noção de “ salário relativo” ,
e considera que um dos principais “méritos científicos” de Ricardo foi
êsse de ter estabelecido a categoria do salário relativo ou proporcional
( Théories sur la plus-value, II, pág. 415). Êle próprio tinha sublinhado a
importância dessa noção desde 1847, nas suas conferências intituladas
Travail, Salariés et Capital (nas Oeuvres Choisies, vol. I, págs. 9 0 -1 ).
27 K. Marx, Salaires, Príx et Profits, pág. 20.
28 K. Marx, Théorien über den Mehrwert, vol. III, pág. 309.
TEORIA DOS SALÁRIOS 153

absolutamente abaixar ao mínimo, mas arrancam antes quan­


titativamente uma certa participação no progresso da riqueza
geral” .
Seja como fôr, a conclusão dizendo respeito à baixa ten-
dencial dos salários médios deve, em todo caso, ser tempera­
da por duas observações. N ão se aplica senão à sociedade
capitalista tomada no seu conjunto, isto é, na escala mundial;
e pode muito bem exprimir-se concretamente por uma alta
tendencial dos salários médios dos países industrializados, a
acumulação do capital ali tomando tal amplidão que o empre­
go ali constantemente aumenta em relação ao movimento de­
mográfico, porque a supressão de empregos que implica êsse
movimento não se produz tanto no interior dêsses países
quanto no exterior, nos países ditos “ do terceiro mundo” .
Pode ser temperada pelo fato de que, com os progressos do
maquinismo, aumentam ao mesmo tempo os empregos no setor
dos serviços, e que se desenvolve uma “ nova classe média”
que evita, assim, um crescimento contínuo do exército de re­
serva industrial, fenômenos, que Marx previra muito tempo
antes que êles se produzissem, nas duas passagens das T eo­
rias sôbre a M ais-Valia,29
A o mesmo tempo, a utilidade da ação sindical é a de su­
primir, ao menos em grande parte, aquela famosa concorrên­
cia entre os operários que, para o jovem Marx, apareceu co­
mo a causa da queda inevitável dos salários para o seu míni­
m o .30 N os Salários, Preços e Lucros, Marx exprime-se de
maneira mais científica, afirmando que, quando há abundân­
cia de oferta no “ mercado do trabalho” , notadamente no pe­
ríodo de crise econômica e de desemprêgo maciço, a fôrça de
trabalho se arrisca a ser vendida abaixo de seu valor. A coa­
lizão operária, a supressão da concorrência entre operários, a
negociação coletiva dos salários, a ação sindical, tudo isso
visa, em última análise, a obter que, em média, a fôrça do tra­
balho seja vendida ao seu valor, e não abaixo dêste. E estas
formas de ação são, pois, julgadas absolutamente indispen­
sáveis por Marx, porque, sem elas, a classe operária “ se re­
baixaria a não ser mais do que uma massa informe, esmaga-

2» Ibid., págs. 569-70, 572.


30 Ver notadamente Travail Salarié et Capital, Oeuvres Choisies, I,
págs. 98-9.
154 P E N S A M E N T O EC O N O M IC O DE KAKL M A R X

da, de seres famélicos aos quais não se poderia mais, de mo­


do algum, vir em auxilio” . 31 Mas as possibilidades objetivas
de uma ação sindical bem sucedida dependem, por sua vez,
da relativa amplidão do exército de reserva industrial que, co­
mo dirá Marx no Capital, é reguladora do nivel dos salá­
rios. N ão é senão quando o desemprego tende a estabilizar­
se ou a reduzir-se a longo prazo que uma alta dos salários
reais a longo prazo se pode produzir.32
Para Marx, o essencial era pôr em evidência a pauperi-
zação relativa do proletariado, o fato de que, mesmo quan­
do os seus salários aumentam, aumentam bem menos do que
as riquezas do Capital. Desde o Trabalho Assalariado e Ca­
pital, encontramos a êsse propósito a imagem da casa “ gran­
de ou pequena” ao lado da qual se levanta um palácio. V in ­
te anos mais tarde, êle escreverá no Capital: “ A situação do
operário deve agravar-se, qualquer que seja o seu salário,
seja êle baixo ou elevado.” Uma mesma condenação da pau-
perização relativa liga essas duas expressões.33 T udo o que
precede indica, claramente, que M arx jamais expôs, nas suas
obras de maturidade, qualquer “ lei” da pauperização absoluta
dos trabalhadores, ainda que êle considerasse sua pauperiza­
ção relativa como inevitável.
Eliane M ossé34 cita a célebre passagem do volume I do
Capital (capítulo X X X I I ) , onde M arx fala da acumulação
da riqueza em um pólo que é, ao mesmo tempo, “ acumulação
de miséria, de sofrimento no trabalho, de escravidão, de in­
certeza, de brutalização e de degradação moral em outro pó­
lo, isto é, do lado da classe que produz o seu próprio produ­
to como capital” . 35 M as ela não parece notar que, conforme
o contexto (isto é, as frases que precedem), a fórmula apli-

31 K. Marx, Salaires, Prix et Profits, pág. 26.


32 C f. nosso Traité d’Economie Marxiste, I, págs. 175-7.
33 K. Marx, Fr. Engels, Oeuvres Choisies, I, pág. 88; K. Marx: Das
Kapital, I, pág. 611, edição de Engels, Meisner, Hamburgo. Todo o pro­
blema da teoria dos salários de Marx é examinado, de maneira notável,
por Roman Rosdolsky: “ Der esoterische und der exoterische Marx” , em
Arbeit und Wirtschaft (Revue syndicale autrichienne), números de no­
vembro de 1957 e janeiro de 1958.
34 Eliane Mossé, Marx et le problème de la croissance dans une éco-
nomie capitaliste, Paris, Armand Colin, 1956, pág. 60.
35 Das Kapital, I, pág. 611 da edição de Engels, Hamburgo, Meisner,
TE O R IA DOS SALÁRIOS 155

ca-se não aos operários no trabalho, mas à "camada de Lá­


zaro do proletariado” , isto é, à massa dos desempregados que
constituem o exército de reserva industrial. Isso é, ainda, su­
blinhado pela passagem precedente em que Marx precisa “ a
lei absoluta, geral, da acumulação capitalista” : “ A amplidão
relativa do exército de reserva industrial cresce, pois, com o
potencial da riqueza. Mas, quanto maior é aquêle exército de
reserva em relação com o exército dos operários ativos, tanto
mais maciça é a população excedente consolidada, cuja misé­
ria está em relação inversa com o seu sofrimento no traba­
lho. Maior é, finalmente, a camada de Lázaro da classe ope­
rária e do exército de reserva industrial, e maior é o paupe-
rismo oficial. Eis a lei absoluta, geral, da acumulação capita­
lista. Como tôdas as outras leis, é modificada na sua realiza­
ção por numerosas circunstâncias, cuja análise não se deve
aqui fazer.36 N ão há, pois, motivo para se deduzir o que quer
que seja dessa passagem dizendo respeito à evolução dos sa­
lários, tanto mais que M arx fêz preceder essa passagem pela
frase: “ Resulta que, na medida em que o capital se acumula,
a situação do operário deve agravar-se, qualquer que seja o
seu pagamento, elevado ou baixo.”
Numerosos estudos confirmam a existência dessa “ ca­
mada de Lázaro da classe operária” em todos os países ca­
pitalistas. O exemplo mais chocante é êsse dos países com
salários mais elevados, os Estados Unidos da América, onde
a "lei absoluta, geral, da acumulação capitalista” verificou-se
de maneira dramática. Depois da aparição do livro de M i-
chael Harrington, The Other America, é largamente aceito,
nos Estados Unidos, que um quarto da nação, cinqüenta mi­
lhões de americanos, é pobre e sofre os estigmas da pobreza.37
E se tal cifra não é mais elevada, isso é devido, em parte, ao
fato de que, entre os anos de 1940 e 1957, a porcentagem das
mulheres casadas que são assalariadas ou empregadas pas­
sou de 15 a 30% , o que implica num país, cujos serviços so­
ciais são notoriamente subdesenvolvidos, “ o empobrecimen­
t o . . . dos filhos que recebem menos cuidados, menos amor
e menos vigilância” . 38

36 Ibid., pág. 609.


37 Michael Harrington, The Other America — Poverty in the United
States, Penguin Books, Harmonsdsworth, 1963, págs. 177-178.
38 Ibid., pág. 174.
156 PE N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

O Professor James está mais próximo do pensamento de


Marx do que a Senhorita Mossé, quando êle escreve, no pre­
fácio do livro da Senhorita M ossé: “ A conclusão é que, con­
forme as visões de Marx, se produziu uma “ pauperização ab­
soluta” e uma “ pauperização relativa” da classe operária, no
curso da expansão francesa. N o que concerne à “ pauperiza­
ção relativa” , no sentido indicado por Marx, parece que a
demonstração da Senhorita M ossé é convincente. M as o que
seria importante seria provar que houve “pauperização abso­
luta” . Ora, não hesito em dizer que, sôbre êsse ponto, a lei­
tura da obra da Senhorita M ossé não me convenceu.” 39 De
fato, a “ pauperização absoluta” não está conforme com as vi­
sões do M arx dos anos de maturidade.
Há, aliás, uma prova mais probatória ainda de que Marx
e Engels não aderiram a uma hipótese de “ pauperização ab­
soluta” do proletariado. N a sua crítica do programa de Er-
furt da democracia-social alemã, Engels comentou a frase “ o
número e a miséria dos proletários crescem sem cessar” da
seguinte maneira: “ Dito de maneira tão absoluta, isso não é
justo. A organização dos trabalhadores, sua resistência sem
cessar crescente, poderão, ta.lvez, opor um certo dique ao
crescimento da miséria, M as o que aumenta, sem dúvida al­
guma, é a insegurança de existência. É isso o que eu inscre­
veria. ” 40
Pode-se, entretanto, conceber que, para Marx, a rela­
tiva pauperização não se dá somente na relação entre a ren­
da global e o que cabe aos operários. Ela dá-se, também, na
insuficiência dos salários em relação às necessidades nova­
mente suscitadas pela produção capitalista.
Para Marx, trata-se de comparar os salários à riqueza
geral criada pelo Trabalho; e “ a riqueza, considerada de um
ponto de vista material, não consiste senão na diversidade
das necessidades” .41 Ora, a evolução da produção industrial
tende a tornar comuns e necessárias necessidades considera­
das, prèviamente, como necessidades de luxo. Mas o faz de
maneira contraditória, no seio do modo de produção capitalis­
ta, “ na medida em que coloca somente um determinado crité-

89 Emile James, Eliane Mossé, Marx et le problème de la croissance


dans une économie capitaliste, Préface.
40 Marx-Engels W erke, vol. 22, pág. 231, Dietz-Verlag, Berlim, 1963.
41 K. Marx, Grundrisse der Kritik aer politischen Oekonomie, pág. 426.
TEORIA DOS SALARIOS 157

rio social como necessário em relação ao luxo” . 42 Noutros


termos: somente certas necessidades novas são satisfeitas, in­
clusive no cálculo dos salários, para a mão-de-obra assalaria­
da, ao passo que outras permanecem necessidades de luxo às
quais os trabalhadores não têm acesso, apesar do fato de que
a grande indústria poderia satisfazer essas necessidades tam­
bém para êles, sa não mais se desenvolvesse sôbre a base da
apropriação privada.
Terminando a análise detalhada do problema dos salá­
rios, Marx, realmente, terminou a obra analitica, que lhe de­
veria permitir redigir O Capital. “ Trabalho, agora, como um
cavalo porque devo explorar o tempo no curso do qual sou
capaz de trabalhar, e os carbúnculos continuam,” escreve
Marx a Engels em 20 de maio de 1865.43 Êsses carbúnculos,
êle diz aliás que a burguesia se lembrará dêles por muito
tempo.

42 Ibidem.
43 Briefwechsel zwischen Fr. Engels und K. Marx, vol. III, pag. 259.
10

Dos Manuscritos de 1844 aos Grundrisse:


de uma Concepção Antropológica a urna
Concepção Histórica da Alienação

Chegou o momento de se concluir. A gênese das con­


cepções econômicas de Marx foi descrita. Como se pode re­
sumir a evolução das concepções econômicas de Marx, de
1843-4, época na qual êle começa a estudar sistemáticamen­
te a Economia Política até no dia seguinte da redação dos
Grundrisse?
Marx abordou os problemas económicos na Fi.losofia, im­
buido, ainda, de Hegel e de Feuerbach, aceitando em geral a
crítica materialista de Hegel por Feuerbach, mas, começando
a criticar o próprio Feurbach, apoiando-se em Hegel, pelo
fato de que a contribuição de Hegel podia acrescentar à A n ­
tropologia uma dimensão histórico-social que estava ausen­
te em Feuerbach.1 É, assim, que os Manuscritos de 1844
constituem um fascinante encontro entre a Filosofia e a E co­

1 Herbert Marcuse, Reason and Revolution, págs. 271-2. Ver, também,


a anotação de E . Bottigelli na sua “ Présentation” da edição dos Ma-
nuscrits de 1844 nas Editions Sociales: “ De Hegel, Marx retoma a idéia
do vir-a-ser histórico do homem: D e Feuerbach, êle retoma o materia­
lismo, o homem concreto e a fórmula humanismo = naturalismo. Mas
a sua própria concepção é outra coisa que não a síntese dêsses elemen­
tos. Supera-os de uma maneira original, mesmo quando parece falar a
linguagem daqueles cujo pensamento o inspira” ( Manuscrits de 1844,
Paris, Editions Sociales, 1962, pág. L X IX ). Plekhanov já precisara: “ Se
Marx começou a obra de sua interpretação materialista da história pela
crítica da Filosofia hegeliana do Direito, não pôde proceder assim senão
CO N CE PÇÃ O DA A L IE N A Ç Ã O 159

nomia Política, que é, ao mesmo tempo, origem de nova cons­


ciência e de contradição no próprio Marx, e que permanece
origem de problemas e de controvérsias para os que hoje o
estudam.
Êsse encontro da Filosofia e da Economia Política não
é, portanto, nôvo na história do pensamento humano. Já
ocorreu em Aristóteles e em Tomás de Aquino; os teóricos
liberais do direito natural tinham-no praticado numa grande
es.cala.2 Pela crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx
descobrira, já então, que o Estado, defendendo os interêsses
dos proprietários, não serve aos interêsses da sociedade no
seu conjunto. Bastava confrontar a realidade da sociedade
burguesa com as hipóteses dos teóricos do direito natural pa­
ra se perceber que a igualdade das possibilidades e a afirma­
ção da personalidade de cada um são logros numa sociedade
fundada sôbre a propriedade privada.
Mas é a filosofia do trabalho de Hegel que fornece os
instrumentos conceptuais, com os quais Marx efetuará essa
primeira confrontação com a Economia Política.3 Essa filo­
sofia do trabalho, fundada no System der Sittlichkeit, desen­
volvida na Realphilosophie, firmemente baseada na Fenom e­
nología do Espírito, e mantida na Filosofia do Direito e na
Ciência da Lógica,1 é, ao mesmo tempo, uma verdadeira A n ­
tropologia .
Hegel estabelece, com efeito, desde 1805-6, a relação
entre a teleología do homem e a causalidade da natureza, que
o homem utiliza no seu trabalho (trabalho que êle apresen­
tará na Ciência da Lógica como a forma original da praxis
humana) . E, na Fenomenología do Espírito, Hegel definiu o
trabalho como “ o desejo freado” (gehemmte B egierde).5 Êle

porque a crítica da Filosofia especulativa de Hegel já fôra feita por


Feuerbach” ( Les Questions fondamentales du Marxisme, pág. 24 ).
2 Ver o nosso Traite d’Economie marxiste, vol. II, capítulo 18, págs.
383-5, 387-90, e Habermas: Theorie und Praxis, pág. 79.
3 Ver a êsse propósito o excelente capítulo relativo à filosofía do tra­
balho em Hegel, de P. Naville, D e l’aliénation à la jouissance.
* Georg Lukacs, em D er junge H egel (Europa-Verlag, Zurique, 1948),
analisou, sobretudo, o “ System der Sittlichkeit’ , no qual Hegel parte da
primeira tríade dialética: necessidades-trabalho-gôzo, e a “ Realphiloso-
phie” de lena.
5 G . W . Fr. Hegel, Phänomenologie des Geistes, Berlim, 1832, Dun-
cker und Humblot, pág. 148.
160 PE N S A M E N T O EC O N O M IC O DE K ARL M A R X

desenvolveu uma verdadeira dialética das necessidades e do


trabalho e, assim, chegou a uma dupla definição do trabalho
alienante e alienado: alienante porque o trabalho é, por na­
tureza, exteriorização ( Veräusserung) de uma capacidade
humana, que faz que o homem perca alguma coisa que lhe
pertencia antes: alienado porque as necessidades estão sem­
pre em avanço sôbre a produção, porque esta jamais pode sa­
tisfazer, plenamente, aquelas.6
A natureza antropológica da noção de “ trabalho aliena­
do” , em Hegel, não reside no fato de que Hegel não entre­
via as contradições sociais produzidas pela sociedade burgue­
sa. Encontra-se, na Filosofia do Direito, uma passagem que
se lê como uma antecipação da passagem mais célebre do
Capital, relativamente às tendências gerais da acumulação ca­
pitalista: " . . . a acumulação das riquezas aumenta de um
lado, do mesmo modo como aumentam de outro lado a sin-
gularização ( Vereinzelung) e a limitação (Beschränkung)
do trabalho particular, e, pois, a dependência e a miséria da
classe ligada a êsse trabalho” .7 Reside a natureza antropoló­
gica e mistificadora dessa teoria no fato de que, por um lado,
Hegel considera essa alienação como fundada sôbre a natu­
reza do homem, senão sôbre a natureza simplesmente, e, por
outro lado, êle não admite que a contradição que resulta da
oposição da riqueza e da pobreza possa conduzir a uma eli­
minação dessa alienação por uma transformação das estrutu­
ras da sociedade, desde o momento que atingiu um certo ní­
vel de desenvolvimento das fôrças produtivas.8
É dessa posição que parte M arx para a recolocar em
questão, ao mesmo tempo que recoloca em questão os funda­
mentos da Economia Política clássica, confrontando-os com
a Antropologia de Feuerbach e de H egel. Os instrumentos

6 G . W . Fr. Hegel, Rechtsphilosophie, § 193. É o argumento chave


que numerosos economistas opuseram à possibilidade do socialismo. Um
teórico comunista iugoslavo, Branko Horvath, ainda dêle se serve hoje
para “ refutar” a possibilidade de um enfraquecimento da produção mer­
cantil, mesmo sob o comunismo ( Towards a Theory of Planned Econo-
my, pág. 132).
7 G . W . Fr. Hegel, Rechtsphilosophie, § 243.
8 Ver a êsse propósito a célebre dialética do senhor e do escravo de
que não se resolve nada pela supressão efetiva da servidão, mas, so­
mente, pela afirmação de que, espiritualmente, o servidor se torna mais
livre do que o senhor ( Phänomenologie des Geistes, págs. 145-148).
CO N CEPÇÃO DA A L IE N A Ç Ã O 161

da análise parecem idênticos, os resultados da análise são di­


ferentes. Nesse sentido, não podemos seguir Althusser quan­
do afirma: “Êsse encontro de M arx com a Economia Política
é ainda. . . um encontro da Filosofia: a Filosofia edificada
por Marx através de tôdas as suas experiências prático-teóri-
cas. . . É essa Filosofia que resolve a contradição (entre a
pauperização crescente dos operários e as riquezas crescen­
tes da sociedade) pensando~a, e através dela pensando tôda
a Economia Política, tôdas as suas categorias, partindo de
um conceito chave; o conceito de trabalho alienado.” 9 É
muito mais indicado constatar com Marcuse. “ A transição
de Hegel para M arx é, em todo ponto de vista, uma transi­
ção para uma ordem diferente de verdade, que não pode ser
interpretada em têrmos de Filosofia. Veremos que todos os
conceitos filosóficos da teoria marxista são categorias sociais
e econômicas, quando as categorias sociais e econômicas de
Hegel são tôdas conceitos filosóficos. Mesmo os primeiros
escritos de M arx não são filosóficos. Exprimem a negação
da Filosofia, se bem que o façam, ainda, em linguagem filo­
sófica. ” 10
É que, desde o comêço, M arx afirma, claramente, a sua
posição crítica a respeito da Economia Política, tão bem
quanto a respeito da F ilosofia.11 O seu ponto de partida nes­
sa crítica não é de modo algum o “ conceito” de trabalho alie­
nado; o seu ponto de partida é, ao contrário, a constatação
prática da miséria operária, que cresce na mesma medida em
que crescem as riquezas que essa mesma classe operária pro­
duz. A sua conclusão não é, de modo algum, uma solução
filosófica ao nível do pensamento, da idéia, do trabalho in­
telectual. Êle conclui, ao contrário: “ Para superar a idéia da
propriedade privada, o pensamento comunista é amplamen­

9 Louis Althusser, Pour Marx, págs. 157-8, Paris, 1965, Maspero. (N .


do E .: Traduzido para o português e publicado, sob o título Análise
Crítica da Teoria Marxista, por Zahar Editores, Rio, 19 67 .)
10 Marcuse, Reason and Revolution, pág. 258. Ver igualmente Habermas
( op. cit., pág. 2 7 9 ): “ Marx não mais quer filosofar conforme as suposi­
ções da Filosofia, mas, antes, conforme as suposições de sua superação
— isto é, êle quer criticar. Assim absorvidas, as categorias se transfor­
mam, do mesmo modo que os problemas da Filosofia, e com elas se
transforma, igualmente, o próprio instrumento de reflexão.’ ’
11 Ver K. Marx, Introduction de Zur Kritik der Nationalökonomie, págs.
42-5.
162 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE K ARL M A R X

te suficiente. Para superar a propriedade privada real, pre­


cisa-se de uma verdadeira ação comunista. ” 12 O apêlo à ação
revolucionária —• levantado pe,lo proletariado — já substituiu
a resignação da “ filosofia do trabalho” .
Deve-se dizer que os Manuscritos de 1844 já tinham re­
jeitado tôdas as escórias filosóficas de um pensamento do­
ravante vigorosamente sócio-econômico? Evidentemente não
é isso. Trata-se, precisamente, de uma transição, do jovem
Marx, da Filosofia hegeliana e feuerbachiana para a elabo­
ração do materialismo histórico. Nessa transição, elementos
do passado combinam-se, necessàriamente, com elementos do
futuro. M arx aí combina, à sua maneira, isto é, modifican-
do-os profundamente, a dialética de Hegel, o materialismo
de Feuerbach e as determinações sociais da Economia Políti­
c a .13 Essa combinação não é coerente. N ão cria um nôvo
“ sistema” , uma nova “ ideologia". Oferece fragmentos espar­
sos que encerram numerosas contradições.14 Não se deve es­
quecer, também, de que se trata de um "manuscrito” não só-

12 Ibid., pág. 148.


13 Naville, D e Valienation à la jouissance, pág. 136.
14 É aqui que tocamos com o dedo a origem do êrro de Louis Al­
thusser, que se esforça, em vão, em apresentar os Manuscritos de 1844
como a obra de uma ideologia acabada, “ formando um todo” . Êle tem
razão em se opor a todo método analítico-teleológico, que concebe a
obra de um autor jovem exclusivamente sob o ângulo de saber até que
ponto êle se aproximou do “fim” (que constitui a obra da maturidade).
Mas êle errou em opor um método que corta, arbitràriamente, em fatias
ideológicas coerentes fases sucessivas de evolução de um mesmo autor,
sob o pretexto de considerar “cada ideologia como um todo” ( Pour
Marx, pág. 59 ). Uma totalidade rica e movente (o pensamento de um
autor tomado com o um todo, evoluindo sem cessar sob o pêso de suas
próprias contradições internas, evolução determinada, em última análi­
se, pela dinâmica do contexto sócio-econômico, vivido pelo autor) é
assim sacrificada a uma totalidade estreita e estática. Não é por acaso
que Althusser é levado a falar das “mutações” de um pensamento —
isto é, de saltos mais ou menos arbitrários — e que a noção das con­
tradições internas dêste, na qualidade de motores de sua evolução, de­
saparece completamente. A objeção de Althusser, segundo a qual essa
concepção substituiria “ Marx em Hegel” , visto que o marxismo “nas­
ceria das contradições internas do hegelianismo” , é sem fundamento.
Não se trata das contradições de Hegel, mas das contradições do pen­
samento de Marx, combinando elementos emprestados a H egel a novos
conhecimentos, nascidas de uma experiência nova e de uma prática
nova, num contexto histórico sócio-econômico nôvo.
CO N CEPÇÃO DA ALIE N A Ç Ã O 163

mente inacabado, mas também em parte destruído.15 É, pre­


cisamente, à luz do conceito do trabalho alienado que as con­
tradições, que encerram os Manuscritos de 1844, podem ser
mais claramente reveladas.
A pós ter, sucessivamente, descoberto a alienação no do­
mínio religioso (desde o anexo' à sua tese de doutorado) e
no domínio jurídico (o interêsse privado aliena o homem da
coletividade), M arx compreendera, desde a sua Crítica do
Direito do Estado em H\egel, que a propriedade privada é
uma fonte geral de alienação; depois, desde a Contribuição à
Crítica da Filosofia do Direito d e H egel, que a alienação
humana é, fundamentalmente, uma alienação do trabalho hu­
mano.10 Submetendo a uma crítica sistemática a Economia
Política, êle descobre que esta tendia a encobrir as contradi-

15 Naville, D e Valiénation à la jouissance, pág. 131. Ver, também, êste


conselho de Kaegi: “É, pois, aconselhável examinar, com precisão, pri­
meiro os restos ( dêsses esboços, E . M . ) tomados separadamente. Isso
nos evitará de os combinar cedo demais, deixar-nos arrastar por nossa
imaginação para o esbôço de um todo e perder de vista as diferenças
essenciais entre os pedaços ( Genesis des historischen Materialismus, pág.
2 1 7 ). Bottigelli (Präsentation des Manuscrits de 1844, págs. X XXVII-
X X X V III) diz igualmente: “ Os Manuscritos de 1844 não se apresentam
como uma obra acabada. Antes de tudo, não os possuímos integralmen­
t e .. . Em seguida, terminaram sem conclusão e a sua redação teve,
sem dúvida, de ser paralisada por causas exteriores. Enfim, há falta de
homogeneidade entre as diversas partes.”
16 Wolfgang Jahn: “D er Ökonomische Inhalt des Begriffs des Entfrem­
dung der Arbeit in den Frühschriften von Karl Marx” , pág. 850, em
Wirtschafts Wissenschaft, ano de 1957, n.° 6. Jahn empresta essa idéia
a Auguste Cornu ( Karl Marx — D ie Ökonomisch-philosophischen Ma­
nuskripte, Berlim, 1955) que declarara muito a propósito: “ O problema
fundamental permanece, para êle, o da emancipação humana; mas êle
o levanta, agora, do ponto de vista do proletariado, o que o conduz a
conceber a supressão da alienação que êle continua a considerar como
condição fundamental da emancipação humana, não mais na sua forma
político-social como supressão da essência humana no Estado, mas na
sua forma econômico-social, como supressão da alienação da atividade
humana, do trabalho h u m a n o ...” (pág. 9 ). Vê-se, assim, quanto se en­
gana Jacques Rancière que afirma que, pelo menos no Primeiro Manus­
crito, “ ela (a alienação econômica) não aparece também como aliena­
ção fundamental obtida por redução das outras alienações. . . As alie­
nações se apresentam de início como estando tôdas ao mesmo nível”
( Lire le Capital, vol. I, pág. 102). Isso está em contradição total com o
texto: “ Na determinação de que o operário se relaciona ao produto de
seu trabalho como a um objeto alienado, tôdas as conseqüências estão
já contidas” (Primeiro Manuscrito, pág. 99).
164 PENSAM EN TO E C O N Ô M IC O DE KARL M A R X

ções sociais, a miséria operária, que são, por assim dizer, re­
sumidas no fenômeno do trabalho alienado.
Mas, aqui, o pensamento de M arx oscila à beira de
grandes descobertas. Num dos fragmentos dos Manuscritos
de 1844, Marx precisa, de maneira notável, o trabalho alie­
nado como o produto de uma forma particular da sociedade.
Êle se recusa, explicitamente, a recuar o problema nas bru­
mas do passado. Êle proclama: “ Partimos de um fato eco­
nômico contemporâneo. O operário torna-se tanto mais po­
bre quanto mais riquezas produz. . . O operário torna-se tan­
to mais uma mercadoria barata quanto mais mercadorias pro­
duz. A desvalorização do mundo humano cresce em propor­
ção direta com a valorização do mundo das coisas (mercado­
rias, E. M . ) . O trabalho não produz, somente, mercado­
rias; produz, também, êle próprio e o operário como merca­
doria, e isso justamente na medida em que produz, precisa­
mente, mercadorias.” 17
N ão queremos prosseguir a citação, mas tudo permane­
ce coerente no contexto indicado pelo próprio M arx. O tra­
balho alienado, na sociedade contemporânea, é o trabalho que
não é mais proprietário dos produtos de seu trabalho, é o
trabalho que enriquece outros com seus próprios produtos, é
o trabalho que se torna trabalho forçado, que se torna tra­
balho em proveito dos que não traba.lham. Noutros têrmos:
o trabalho alienado, aqui, está, claramente, reduzido à divi­
são da sociedade em classes, à oposição entre o Capital e o
Trabalho, à propriedade privada, e, se se quiser, numa pas­
sagem bastante obscura, à divisão do trabalho e ao nascimen­
to da produção mercantil.18
M as êsse manuscrito se interrompe, bruscamente, nesse
caminho. O pensamento bifurca, e produz uma passagem em
que a origem do trabalho alienado1 não é mais procurada
numa forma específica da sociedade humana, mas na própria

17 K . Marx, Zur Kritik der Nationalokônomie, Primeiro Manuscrito,


p á g . 98.
18 Poder-se-ia objetar que há uma passagem na qual Marx afirma que
o trabalho alienado é a causa, e a propriedade privada o resultado ( op.
cit., pág. 108). Mas Jahn observa, com razão, que Marx não coloca aqui
o problema da origem histórica da propriedade privada, e sim o pro­
blema de sua natureza, de sua reaparição cotidiana num modo de pro­
dução fundado sôbre o trabalho alienado ( Wirtschafts, wissenschaft, 1957,
n.° 6, pág. 856).
CO N CE PÇÃ O DA A L IE N A Ç Ã O 165

natureza humana, ou, mais exatamente, na natureza simples­


mente, la onde o trabalho alienado é oposto às qualidades do
“ homem genérico” (G attungsw esen), onde a alienação po­
deria ser compreendida, de início, senão como exteriorização
num sentido hegeliano, pelo menos como uma negação de um
“ homem ideal” , que jamais existiu.
Igualmente, aí, Marx já supera Hegel, porque, para re­
tomar as palavras de Naville: "O que é para se reter aqui é
que a alienação não está somente fundada na sociedade, está
também na natureza; mas as relações naturais podem recriai
o que destroem as relações sociais, a reapropriação humana
depende de sua manutenção. Com efeito, a natureza é urna,
e o seu “ dilaceramento” interior, tal como Hegel ilustrara,
não é, pois, senão relativo, não tem caráter absoluto. De
modo que, é justamente porque a alienação tem também um
caráter natural que ela é uma discordância transitória no
seio da própria natureza, que pode ser sobrepujada e que a
apropriação natural pode ser reencontrada.” 20
N ão obstante, essa concepção antropológica da aliena­
ção, se bem que indo mais longe do que aquela de Hegel,
porque indo para uma solução, permanece largamente filosó­
fica, especulativa. Ela não tem fundamento empírico. Não
é demonstrada. N ão se encontra, aliás, noutros manuscritos,
especialmente no notável desenvolvimento concernente às
necessidades em que Marx opõe, explicitamente, a alienação
dos consumidores, sob o regime da propriedade privada, ao
gôzo, origem de desenvolvimento das capacidades universais
dos hom ens.21 Trata-se, pois, de uma contradição no seio dos
Manuscritos de 1844,22 que nenhuma casuística poderá fazer
desaparecer, seja interpretando arbitràriamente as passagens
sócio-econômicas num sentido filosófico, seja interpretando a

19 K. Marx, Zur Kritik der Nationalökonomie, Primeiro Manuscrito, págs.


102-107.
20 Pierre Naville, D e l’aliénation à la jouissance, pág. 152.
21 K. Marx, Zur Kritik der Nationalökonomie, Terceiro Manuscrito, págs,
140-144.
22 Essa contradição é, ainda, reforçada pelo fato de que, no Quarto
Manuscrito, Critique de la dialectique et de la Philosophie de H egel en
general, Marx recusa seguir Hegel quando éste identifica objetivação e
alienação ( m e g a , I, 3, pág. 162), e distingue, para retomar urna fórmula
de Garaudy ( Dieu est mort, P . U .F ., 1962, pág. 6 9 ), a objetivação alie­
nada e a objetivação humana.
166 PENSAM ENTO EC O N O M IC O DE KARL M A R X

passagem supramencionada como equivalente à descrição de


tima alienação socialmente determinada,23
Sabemos como Marx resolveu, depois, essa contradição.
Abandonando, resolutamente, o conceito do “ homem gené­
rico” — que êle censura mesmo a Stirner um ano mais tar­
de, em A Ideologia Alemã! — êle descobre as precisas raízes
históricas da exploração do homem pelo homem, e esboça,
assim, as suas origens, as razões de seu desdobramento, e as
condições de seu definhamento.
Desde A Ideologia Alemã, a origem do trabalho aliena­
do se precisou como resultado da divisão do trabalho e da
produção mercantil, idéia que se encontra, aliás, já ,no terceiro
dos Manuscritos de 1844,24 E, no Capital, o caráter fetichis­
ta das categorias econômicas é reduzido às relações mercantis,
isto é, à propriedade privada e à concorrência, que isola os
produtores (e proprietários) individuais, uns dos outros, des­
de antes do capitalismo, desde a pequena produção mercan­
til . 25
A evolução do conceito do traba,lho alienado de Marx
é, pois, clara: de uma concepção antropológica (feuerbacho-
hegeliana), antes dos Manuscritos de 1844, êle avança em di­
reção a uma concepção histórica da alienação (partindo de
A Ideologia A lem ã). O s Manuscritos de 1844 constituem
uma transição da primeira para a segunda, onde a concep­
ção antropológica sobrevive no que lhe diz respeito, totalmen­
te realizando, já então, de início, um considerável progresso
sôbre a concepção hegeliana porque, não sendo mais funda­
da sôbre uma dialética necessidades-trabalho, que desemboca

23 “A passagem sôbre o trabalho alienado, cujo final foi, infelizmente,


destruído, foi preparado pelas. . . observações concernentes às anotações
copiadas de James Mill. Pode-se, verdadeiramente, ali apreender ao vivo
como Marx chega a aplicar a imagem de Hegel e de Feuerbach concer­
nente à alienação sôbre fenômenos econômicos, e dela, assim, fazer um
meio fértil de demonstração, e como êsse meio de demonstração se toma,
imperceptivelmente, num meio de conh ecim en to...” (Kaegi, Genesis des
historischen Materialismus, pág. 231).
24 K . Marx, Fr. Engels, D ie deutsche Ideologie, págs. 29-32. K. Marx:
Zur Kritik der Nationalökonomie, págs. 153-4.
25 K . Marx, Das Kapital, I, págs. 39-41 e seg. da edição de Fr. Engels,
Hamburgo, Meisner, 1890.
CON CEPÇÃO DA ALIE N A Ç Ã O 167
sô,bre a impossibilidade de solução,26 em seguida porque já
implicando a possibilidade da superação da alienação, graças
à luta comunista do proletariado.
Uma enorme controvérsia nasceu ao redor do conceito
da alienação em Marx, praticamente desde o dia seguinte da
primeira publicação dos Manuscritos de 1844, em 1932. Essa
controvérsia está longe de ser terminada. Ela acaba, mesmo,
de ressurgir na França, com a aparição do Pour M arx, de
Louis Althusser, que já recebeu inúmeros comentários críti­
cos.
O ponto de partida dessa controvérsia foi a tentativa fei­
ta, por uma série de filósofos burgueses ou revisionistas, de
“ reinterpretar” Marx, à luz de suas obras de juventude.27

26 Popitz censura, precisamente, Marx de ter abandonado em A Ideo­


logia Alemã o postulado hegeliano das “ necessidades-superando-necessària-
mente-o-nível-de-desenvolvimento-das-fôrças-produtivas” ( Der Entfremde-
te Mensch, pág. 151). Ele não vê 1) que Marx já o abandonara no
terceiro Manuscrito de 1844; 2 ) que êsse postulado vale o que valem
todos os “postulados filosóficos” , isto é, não grande coisa; 3 ) que uma
análise concreta da história econômica humana demonstra que, durante
dezenas de milênios, as necessidades humanas jamais ultrapassaram, ou
quase não ultrapassaram, o nível dado de desenvolvimento das fôrças
produtivas; 4 ) que a “ superação” generalizada e institucionalizada não
é senão o produto da economia mercantil generalizada, isto é, do modo
de produção capitalista; 5 ) que êsse modo de produção cria, ao mesmo
tempo, as premissas para a superação da “ dialética necessidades-traba-
lho” , criando as premissas materiais da abundância.
27 Os antecedentes dessa tentativa devem ser procurados no esforço
da ideologia burguesa de se reapropriar de Marx, após se ter, em vão,
esforçado para o ignorar ou declará-lo definitivamente superado. N . I.
Lapin ( D er junge Marx im Spiegel der Literatur, Dietz-Verlag, Berlim,
1965, pág. 12) lembra que é, partindo de 1895, que o número de escritos
acadêmicos consagrados a Marx e ao marxismo aumenta rapidamente
(20 antes de 1883, 66 obras entre 1883 e 1895, 214 entre 1895 e 1904).
É a ascensão do movimento operário que explica, evidentemente, êsse
esforço de reapropriação. O antepassado direto dos filósofos e soció­
logos que procuraram trazer Marx a Hegel é o Dr. Johann Plenge
( Marx und Hegel, Tiibingen, Verlag der H. Laupp’schen Buchhandlung,
1911), que afirma que Marx permaneceu tôda a vida o que êle se tor­
nara como estudante em Berlim, a saber, um “ realista dialético, um
dialético realista” (págs. 1 6 -7 ). Veremos, mais adiante, que sem ter
conhecido os Manuscritos de 1844, Plenge pressentiu a maior parte dos
argumentos dêstes que opunham o “ jovem Marx” ao “ Marx amadure­
cido” . Mas, em lugar de ver uma oposição entre essas duas fases do
pensamento marxista, êle a concebe com o uma contradição inerente ao
marxismo. O que é mais matizado e sutil nos autores contemporâneos
168 P E N S A M E N T O EC O N O M IC O DE KAHL M A R X

M as as linhas de fôrça da discussão assim começada são, a


tal ponto, combinadas e superpostas que, hoje, três posições
diferentes podem ser distinguidas:
1) A posição dos que procuram contestar a diferença
entre os Manuscritos de 1844 e O Capital, que reencontram
o essencial das teses do Capital já nos Manuscritos de 1844.
2) A posição dos que, contra o M arx do Capital, consi­
deram que o Marx dos Manuscritos de 1844 expõe, de ma­
neira mais “ global” , “ integral” , o problema do trabalho alie­
nado, notadamente dando uma dimensão ética, antropológica
ou mesmo filosófica a essa noção, e que assim opõem os dois
Marx, ou “ reavaliam” o Capital à luz dos Manuscritos de
1844.
3) A posição dos que consideram que as concepções so­
bre o trabalho alienado do jovem M arx dos Manuscritos de
1844 não somente estão em contradição com a análise econô­
mica do Capital, mas que elas eram, mesmo, um obstáculo
que impediu o jovem Marx de aceitar a teoria do valor-tra-
balho. Para os representantes extremistas dessa escola, o
conceito da alienação' é um conceito “ pré-marxista” , que Marx
teve de sobrepujar antes de chegar a uma análise científica
da economia capitalista.

A primeira escola reúne, assaz estranhamente, autores


comunistas oficiais, escritores socialistas ferozmente antico­
munistas, como Erich Fromm e M . Rubel, e autores católicos
tais como o R . P . Bigo, o R . P . Calvez e H . Bartoli.28

é brutal e grosseiro em Plenge: tôda a sua tese é fundada sôbre a ne­


gação dos principais aspectos materialistas do materialismo histórico, o
que constitui uma manifesta falsificação.
28 Notadamente Palmiro Togliatti, “ D e Hegel au Marxisme” , págs. 36-
52, em “ Le jfeune Marx” , Recherches intemationales à la lumière du
marxisme, caderno n.° 19, 1960, Paris, Editions Sociales; Roger Garau-
dy, Dieu est mort, P .U . F ., Paris, 1962; Erich Fromm, Marx’s Concept
of Man, Frederick Ungar Publishing C o ., Nova York, 1961; M . Rubel,
Karl Marx, Essai de biograpliie intellectuelle, Paris, Librairie Rivière,
1957; R . P. Bigo, Humanisme et Economie politique chez Karl Marx,
Paris, P .U .F ., Í953; R . P. Jean-Yves Calvez, La Pensée de Karl Marx,
Editions du Seuil, 1956.
Classificamos essas duas últimas obras dentro da primeira catego­
ria com certas reservas. Se bem que êsses autores sublinhem a conti-
CO N CEPÇÃO DA ALIE N A Ç Ã O 169

Fromm, por exemplo, escreve: “ É de uma extrema im­


portância, para a compreensão de Marx, constatar quanto o
conceito de alienação foi e permaneceu o ponto central do
pensamento do jovem Marx, que escreveu os Manuscritos
Econômicos e Filosóficos e do “ velho” M arx que escreveu
O Capital” .29 Fromm cita, a êsse propósito, explicitamente, a
idéia de que a alienação, para Marx, implica uma alienação
do homem da natureza. Mas é evidente que essa concepção
está completamente ausente do Capital.30 Igualmente, a ten­
tativa de identificar o conceito da alienação do trabalho dos
Manuscritos de 1844 com o conceito de alienação1e de muti­
lação do operário, tal como se encontra nas obras ulteriores
de Marx, passa, sob silêncio, o verdadeiro problema: a saber,
a justaposição de uma concepção antropológica e de uma
concepção histórica da alienação nos Manuscritos d e 1844
que são lógica e pràticamente irreconciliáveis. Se a aliena­
ção, verdadeiramente, é fundada na natureza do trabalho e
se êste é indispensável à sobrevivência do homem —- como
Marx o precisará mais tarde numa famosa carta a Kugel-
mann31 — então a alienação jamais será sobrepujada. Numa
comparação precisa de duas passagens, uma dos Manuscritos
de 1844 e outra do Capital,32 Fromm «não observa que na pri­
meira passagem está a questão do trabalho e dos produtos
do trabalho em geral, enquanto a segunda passagem começa,
precisamente, com as palavras: “ N o sistema ca p ita lista ...”
Por seu lado, M.. Rubel afirma que, nos Manuscritos
de 1844 e com a noção de trabalho alienado, “ estamos no

nuidade do pensamento econômico de Marx, dos Manuscritos de 1844


ao Capital, têm mesmo assim a tendência a reavaliar um pouco esta
última obra à luz da primeira.
29 Erich Fromm, Marx’s Concept o f Man, pág. 51. (N . do E . : Tradu­
zido para o português e publicado, sob o título Conceito Marxista do
Homem, por Zahar Editores, Rio, 4.a e d ., 1967. )
30 O problema da evolução da idéia que Marx fêz da natureza foi
tratado, com grande detalhe, por Alfred Schmidt, D er Begriff der Natur
in der Lehre von Marx, Europäische Verlagsanstalt, Frankfurt-Main,
1962, que mostra, também, o abandono, pelo Marx mais amadurecido,
da esperança ingênua “ de uma solução do conflito do homem com a
natureza” que se encontra ainda nos Manuscritos de 1844.
31 “Que tôda nação morreria se cessasse de trabalhar, não quero dizer
por um ano, mas por algumas semanas, isso tôda criança o sabe” (K.
Marx, Briefe an Kugelmann, pág. 51 ).
32 Fromm, Marx’s Concept of Man, págs. 51-2.
170 P E N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE KARL M A R X

próprio coração da crítica e da visão marxiana, temos a cha­


ve de tôda a obra futura do economista e do sociólogo. . . O
conceito do trabalho alienado ocupará, doravante, um lugar
central na Sociologia e na étnica marxianas.” 33 Como a
“ chave” da obra futura do economista pode ser descoberta
fora da teoria do valor-trabalho e da teoria da mais-valia?
N o máximo, poder-se-ia aprovar a idéia de que a motivação
fundamental de M arx é revelada nos Manuscritos de 1844;
que a partir dêsse momento êle procura, efetivamente, criti­
car uma “ Economia Política inumana” . Mas, entre êsse mo­
tivo da crítica e o conteúdo eficaz desta, há um mundo de
diferença, para o qual o próprio Marx atraiu a atenção, e
para o qual voltaremos nas conclusões dêste estudo.
Não se pode aceitar mais a opinião de Togliatti, que
afirma que, nos Manuscritos de 1844, “ as categorias econô­
micas são trazidas à expressão necessária de um processo dia­
lético real. O caminho está aberto à crítica da totalidade da
sociedade burguesa, que será feita nos anos e nas obras se­
guintes, que culminará no Capital, mas da qual se pode dizer
que, em grande parte, já está completa.” (G rifo nosso.)
Ou melhor ainda: “ A despeito da forma que não é sim­
ples, sente-se bem que todo o marxismo já está aqui contido."
(G rifo n osso.)34 T o d o o marxismo, sem a teoria do valor-
trabalho, sem a teoria da mais-valia, sem compreender que o
conflito entre nível de desenvolvimento das fôrças produtivas
e relações de produção é o motor das revoluções sociais?
É interessante assinalar a identidade de visão entre T o ­
gliatti e o R . P . Jean-Yves Calvez: “ N ão há. . . falta de in­
térpretes para admitir que as categorias econômicas do Ca­
pital não relevavam do mesmo modo de pensar que as cate­
gorias filosóficas das obras de juventude de M a r x ... Che­
gamos a uma conclusão que contradiz, rigorosamente, tôda
a tentativa de dissociação dêsse gênero. T od o o raciocínio
de Marx repousa sôbre o vínculo entre as diversas aliena­
ç õ e s .” E, ainda: “ Há uma real unidade em tôda a obra de
M arx: as categorias filosóficas de alienação que êle retoma­
va de Hegel na sua mocidade deviam formar a armadura de

33 M. Rubel, Karl Marx, Essai de biographie intellectuelle, págs. 121-135.


34 P. Togliatti, “ D e Hegel au marxisme” , op. cit., págs. 48-9.
CO N CE PÇÃ O DA A L IE N A Ç Ã O 171

sua grande obra de maturidade.” 35 A infelicidade, para essa


hipótese, é que as categorias “ filosóficas” , retomadas de He-
gel, são, já então, “ recolocadas sôbre seus pés” , isto é, trans­
formadas em categorias sócio-econômicas desde os Manus­
critos de 1844, e que representam, no máximo, a motivação e
não a armadura do Capital, cuja “ armadura” é fornecida por
uma crítica das categorias da Economia Política burguesa, e
o aperfeiçoamento da teoria do valor e da mais-valia.
N ão podemos, igualmente, aprovar a observação de
Jean Hyppolite: “ Essas posições iniciais de Marx se encon­
tram no Capital e permitem, sozinhas, bem compreender a
significação de tôda a teoria do v a lo r.” 36 Isso fazendo,
Hyppolite sugere, de fato, que essa teoria não se compreen­
deria senão partindo da indignação moral de Marx, con­
frontada com os fenômenos do trabalho alienado. A dialética
real da evolução de Marx é mais .complexa e mais rica ao
mesmo tempo. Há a coincidência entre a motivação ética e
as conclusões da análise econômica; uma recobre bem a ou­
tra. Mas essa análise econômica tem o seu próprio valor au­
tônomo. Procede de um estudo econômico rigorosamente ci­
entífico. A teoria da mais-valia corresponde a uma realida­
de objetiva; se bem que ela reforce a indignação moral de
Marx a respeito do capitalismo é independente desta.
Encontram-se elementos de uma confusão análoga, igual­
mente, em certos autores, que não deixam, portanto, de pôr
o acento sôbre as diferenças entre os Manuscritos de 1844 e
o Capital. Assim, Adorat^ki escreve, na introdução da pri­
meira edição soviética dos Manuscritos, que “ as contradições
reais da ordem social capitalista são ali reveladas de manei­
ra chocante dentro da situação da classe operária". 37 Em
lugar de dizer “ reveladas” teria sido muito mais justo dizer
“ sugeridas” ou “pressentidas” . Está-se longe de uma análi­
se das contradições reais do capitalismo nos Manuscritos de
1844; e a própria descrição da situação operária ali está, no-

35 R. P. Jean-Yves Calvez, La Pensée de Karl Marx, págs. 316-7, 319.


Ver também uma idéia análoga no R . P. Bigo: Humanisme et écono-
mie politique chez Karl Marx, pág. 30.
38 Jean Hyppolite, Eludes sur Marx et Hegel, Paris, Librairie Riviére,
pág. 145.
37 K. Marx, Fr. Engels, m e g a , I, 3, pág. XIII.
172 P E N S A M E N T O EC O N O M IC O DE KARL M A R X

tadamente, estorvada de uma teoria da “ pauperização abso­


luta” que Marx abandonará mais tarde.
Mesmo um autor como Jahn, que ergue uma tela dogmá­
tica absoluta entre o conceito de alienação e o conceito de
valor-trabalho, quer descobrir nos Manuscritos de 1844 uma
teoria das “ relações de produção em geral", quando tal teo­
ria falta aí totalmente.38 D o mesmo modo, Popitz, que su­
blinha, portanto, as diferenças entre o “ jovem M arx" e o
“ Marx amadurecido” , vê, nos Manuscritos, já o anúncio da
descoberta do conflito entre o grau de desenvolvimento das
íôrças produtivas e as relações de produção,39 quando, em
1844, Marx se encontra, ainda, manifestamente, no limiar da
descoberta dêsse conflito — um limiar ainda não transposto.40

A segunda escola, aquela que opôs o “ jovem M arx”


como mais rico e mais “ ético" ao M arx mais maduro, que
reinterpreta êste à luz daquele, é aquela que se exprimiu mais
amplamente até agora no debate. Partindo da introdução de
Landshut e Mayer à publicação dos Manuscritos de 1844
na Alemanha, ela produziu um grande número de abras entre
as quais algumas são' de um interêsse evidente.41 Pode-se no

38 Jahn, op. cit., pág. 854.


39 Popitz, op. cit., pág. 161.
40 A análise, em geral, excelente, dos Manuscritos de 1844 por W olf­
gang Heide, contém, igualmente, alguns elementos de excessiva ideali­
zação dêsse texto ( Ueber die Entfremduns. und ihre Ueberwindunp,
págs. 69 0-2 ).
41 Principalmente Heinrich Popitz, D er Entfremdete Mensch, Basiléia,
1953, Verlag fiir Recht und Gesellschaft; Heinrich Weinstock, Arbeit
und Bildung, Heidelberg, 1954; Jakob Hommes, D er Technische Eros,
Friburgo, 1955; Erich Thier, Das Menschenbild des jungen Marx, Van-
denhoeck und Ruprecht, 1957; Victor Leemans, D e jonge Marx en de
marxisten, Bruxelas, 1962; Karl Lõwith, Von H egel zu Nietzsche, 1953;
parcialmente também Herbert Marcuse, Reason and Revolution, Nova
York, 2.a edição, The Humanities Press, 1954; Hendrik De Man, em
D er Kampf, ns. 5 e 6, 1932; Kostas Axelos, Marx, penseur de la techni­
qu e. Etc.
Numa obra anterior a Marx’s Concept o f Man que já citamos, a
saber, The Sane Society (Londres, Routledge and Kegan Paul, 1963,
a obra data de 1956), Erich Fromm tinha também oposto o jovem Marx
ao “velho Marx”, exclusivamente preocupado com uma “ análise pura­
mente econômica do capitalismo” , e prisioneiro da “ concepção tradicio­
nal da importância do Estado e do poder político” (op. cit., págs. 263,
CO N CEPÇÃO DA ALIE N A Ç Ã O 173

entanto seguir Jürgen Habermas quando afirma que o êrro


comum que elas contêm é de não ver a diferença entre a con­
cepção antropológica e a concepção histórica do trabalho:4“
“ A dialética materialista significa, pois: comprender a lógi­
ca dialética a partir do contexto “ trabalho", a partir do me­
tabolismo dos homens com a natureza, sem conceber o traba­
lho de maneira metafísica (seja teologicamente, enquanto ne­
cessário para a salvação, seja antropológicamente, enquanto
necessidade para sobrevivência).” 43 O M arx de 1844 conser­
va ainda parcialmente semelhante concepção metafísica do
trabalho: o Marx do Capital abandonou-a há muito tempo.
A análise dessas obras permite registrar as contradições
e paradoxos aos quais chega necessàriamente o mal-entendi­
do fundamental quanto' às intenções de Marx, nos Manuscri­
tos de 1844, e a natureza dos conceitos que êle utiliza. Limi-
tar-nos-emos aqui a alguns exemplos.
Assim, no prefácio da edição Landshut e Mayer dos M a­
nuscritos de 1844, Landshut os considera como “ a revelação
do marxismo autêntico. . . a obra central de Marx, o ponto
crucial do desenvolvimento de seu pensamento, onde os prin­
cípios da análise económica decorrem diretamente da idéia da
realidade verdadeira do homem” .44 Kostas Axelos postula:
“ O Manuscrito de 1844 é e permanece aliás o texto mais rico
em pensamento de todos os trabalhos marxianos e marxis­
ta.” 45 Hendrik D e Man afirma, desde o mesmo ano de 1932,
que “ por mais alto que sejam apreciadas as obras mais tardias
de Marx, elas manifestam no entanto uma certa freagem e um
enfraquecimento de suas possibilidades criadoras (!), que
Marx não conseguia sempre vencer através de uma heróica

259). (N . do E . : Traduzido para o português e publicado, sob o tí­


tulo Psicanálise da Sociedade Contemporânea, por Zahar Editores, Rio,
5.a e d ., 1 9 6 7 .)
42 Essa diferença recobre evidentemente também uma diferença de
método, diferença entre a dialética idealista apriorística e a dialética
materialista experimental que pesquisa a lógica específica do objeto es­
pecífico (Galvano Delia Volpe, Rousseau e Marx, Editor Riuniti, Roma,
1964, págs. 150, 153).
43 Habermas, op. cit., págs. 318-9.
44 Karl Marx, D er historische Materialismus, D ie Frühschriften, vol. I,
1932, Leipzig, pág. X III.
45 Kostas Axelos, Marx, pensem de la technique, pág. 47.
174 P E N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

tensão de suas fôrças” .46 Basta lembrar que a descoberta da


teoria da mais-valia e o aperfeiçoamento da teoria do valor-
trabalho são posteriores em 14 anos aos Manuscritos para
perceber tôda a “profundidade” dêsse “ enfraquecimento” .
Erich Thier coloca um sinal completo de igualdade entre
"exteriorização” do trabalhador e trabalho alienado, e afirma
que “ a alienação é dada como tendência, potencialmente (no
trabalho, E .M .); o operário “ produz” , êle próprio, o não-
o p erá rio... Não Hegel mas M arx deixa assim a proprie­
dade privada aparecer como decorrente da análise do con­
ceito do trabalho exteriorizado e avançar para ulteriores alie­
nações.”47 Thier não parece lembrar-se que êle próprio tinha
afirmado, previamente, que a crítica por M arx da Fenomeno­
logía de Hegel contida nos Manuscritos de 1844 é essencial­
mente hegeliana de alienação.. . que êle vem agora atri­
buir-lhe integralmente.48 Êle não notou também que, com ex­
ceção da única passagem mencionada acima, os Manuscritos
fazem decorrer a alienação não de uma concepção antropoló­
gica da “ exteriorização do trabalho criador", mas de condi­
ções históricas precisas: produção de um excedente; divisão
do trabalho; nascimento da produção mercantil etc. Êle não
examinou o contexto para demonstrar que a única passagem
que escapa a essa concepção pode ser efetivamente conside­
rada como exprimindo uma idéia geral de Marx sôbre a alie­
nação. E sobretudo não notou que, mesmo na passagem “ an­
tropológica” dos Manuscritos de 1844, não é do conceito de
“ trabalho exteriorizado” , mas da análise (errônea, ou pelo
menos incompleta) da atividade do trabalhador na natureza
que decorre a noção de alienação. O jovem Marx é retrans-
formado num hegeliano puro e simples, o que não facilita a
compreensão dos Manuscritos . 49

48 Hendrik D e Man, em D er Kampf, 1932, págs. 275-6.


47 Thier, Das Menschenbild des Jungen Marx, págs. 69-70.
48 Ibid., pág. 25.
49 R. P. Bigo efetuou a mesma tentativa de reduzir Marx a um hege­
liano puro e simples: “ A fenomenología do espírito está simplesmente ( ! )
transformada na do trabalho, a dialética da alienação humana na do
Capital, a metafísica do saber absoluto na ( !) do comunismo absoluto”
( Humanisme et Economie politique chez Marx, pág. 3 4 ). Para fazer
isso, R. P. Bigo deve negar os penosos trabalhos empíricos que Marx
CSTCEPÇÃO DA ALIE N A Ç Ã O 175

Da mesma maneira, quando Thier afirma que para Marx


“ Antropologia pode ser plenamente desenvolvida, que par­
tido dela se pode compreender o objetivo de Marx nos seus
editos científicos e políticos, sem que a lei do valor e sua pro­
blemática sejam pensadas” ,50 há evidentemente confusão.
£>rque é preciso constatar que, partindo de seus conhecimen-
ts científicos insuficientes de 1844, Marx não pôde senão
pessentir as contradições reais do modo de produção capita-
]jta; êle não pôde analisá-las plenamente, exaustivamente e
d maneira satisfatória.51 Seu objetivo era desde o comêço da
rdação dos Manuscritos de 1844 formular uma “crítica da
Iconomia Política” ; êste objetivo êle não pode realizar ple-
nmente senão depois de se ter apropriado da teoria do va-
l¿r-trabalho e depois de a ter aperfeiçoado.52
Para Popitz, cuja obra é no entanto mais fundamental
emais profunda que a de Thier, encontra-se uma série de
c^iproquós do mesmo gênero. Êle afirma que, nos Manus-
citos de 1844, M arx “ critica relações sociais determinadas
eas leva a um centro indeterminado ( ! ) , que êle chama de
";er essencial humano” . É o substrato conceptual das rela-
çies empiricamente constatadas. . . Marx atribui um esque-
natísmo dialético aos fenônemos sociais, e se esforça em o
f.ndamentar pela gênese de um “ ser essencial” humano. Êste
cfsempenha pois o papel do espírito do mundo ou do espíri-

eetuou no domínio da Economia Política, e apresentar sua tomada de


©nsciência como o produto de uma simples “ intuição genial” (págs.
3>-7) •
5< Thier, Das Menschenbild des /ungen Marx, pág. 71.
e: Cf. a observação correta de Léonide Pajitnov: “As idéias fundamen­
tas de Marx (nos Manuscritos de 1844) estão ainda em devir, e para­
lelamente a formulações notáveis, germes da futura concepção do mun-
d>, pode-se também encontrar aí freqüentemente pensamentos não ainda
afiadurecidos, trazendo a marca da influência das fontes teóricas que
sírviram de material para a reflexão de Marx e de onde êle partiu para
a elaboração de sua doutrina” ( pág. 98, em L e jeune Marx, em Cahier
n.° 19, 1960).
5: Também nos parece excessivo afirmar, como faz T. I. Oiserman, que
\!arx atribui a alienação, nos Manuscritos de 1844, ao grau de desen­
volvimento insuficiente das fôrças produtivas ( D ie Entfremdung ais his-
ttrische Kategorie, Dietz-Verlag, Berlim, 1965, pág. 8 3 ). No máximo
pxle-se afirmar que há pressentimento dessa tese que êle só desenvolverá
nitidamente na Ideologia Alemã.
176 P E N S A M E N T O EC O N O M IC O DE K ARL M A R X

to popular em H e g e l.’’53 Qiiiproquó manifesto: Marx é sim­


plesmente retransformado em Hegel. O fato de que a aliena­
ção foi deduzida de uma análise das condições empíricas da
sociedade burguesa é esquecido; também é esquecido todo o
contexto histórico-social das origens da alienação nos M a­
nuscritos: excedente econômico; divisão do trabalho; produ­
ção mercantil; separação do Capital e do Trabalho etc. Esta­
mos bem longe do “ W eltgeist" de H egel. . .
Popitz atribui igualmente a Marx um “ postulado” da
produtividade progressiva do género humano,54, quando em
Marx não se trata senão da produtividade progressiva do
modo de produção capitalista, e que esta não é deduzida de
uma qualquer “ teoria das necessidades” , mas da concorrência.
A idéia de Popitz, segundo a qual a famosa passagem da
Ideologia Alemã sôbre a supressão necessária da divisão do
trabalho seria “ antitécnica” ou “ romântica” ,55 demonstra uma
surpreendente incompreensão de um raciocínio já amplamente
esboçado nos Manuscritos d e 1844. Nesse raciocínio a alie­
nação do trabalho provém historicamente de um excedente
muito limitado, cujo aparecimento conduz à troca simples,
depois à divisão progressiva do trabalho, depois à troca desen­
volvida, à produção mercantil, à produção mercantil generali­
zada e ao capitalismo. Para superá-la, é preciso pois criar um
excedente suficientemente amplo para tornar supérflua “ a
apropriação mesquinha do trabalho de outrem” , o que é jus­
tamente o resultado de um desenvolvimento da máquina e da
ciência!
E por que seria “ romântico” supor que no quadro da au­
tomação, pressentida por Marx, a abundância dos bens e a
generalização do ensino superior, junto com a extensão cons­
tante do “ tempo livre” , criariam as condições de umdesabro­
char p.leno e inteiro do homem, se liberando efetivamente da
escravidão da divisão social do trabalho, e praticando livre­
mente atividades técnicas, científicas, artísticas, esportivas,
sociais e políticas umas ao lado das. outras?58

53 Popitz, Der entfremdete Mensch, pág. 88.


54 Ibid., pág. 152.
55 Ibid., pág. 160. Adam Schaff ( Marxismus tind das menschliche In-
dividuum) exprime uma idéia análoga.
56 Numa passagem que criticamos anteriormente sob outro aspecto, o
Professor Perroux pode muito bem se representar, quanto a êle, uma
C O N CE PÇÃ O D A A L IE N A Ç Ã O 177

Notemos também uma observação de Popitz, segundo a


qual seria impossível “ distinguir fenomenològicamente” entre
a utilização e o emprêgo das fôrças produtivas, de um lado,
e as relações de produção determinadas por estas, de outro
lado.57 Aqui Popitz é muito mais "determinista” do que Marx,
mas determinista num sentido estreitamente mecanicista. O
que Marx precisa principalmente na Introdução à Contribui-
cão a uma Crítica da Economia Política é que quando há con~
flito entre um nível determinado de desenvolvimento das fôr­
ças produtivas e das relações de produção objetivamente su­
peradas se abre um período de revolução social — período que
pode ser de longa duração, e durante o qual dois tipos de re­
lações d e produção podem coincidir com um nível de desen­
volvimento equivalente das fôrças produtivas ( cf . a Europa
ocidental durante o período 1770-1830, ou a Europa central
durante o período 1914-1964!).
Em poucas palavras, o que todos êsses escritores deixam
de compreender é que o M arx dos Manuscritos de 1844.
mesmo não tendo ainda desenvolvido plenamente a teoria
do materialismo histórico, superou Hegel, não raciocina
mais com idéias absolutas ou conceitos filosóficos, mas pro­
cura criticar uma ideologia determinada (a Economia Políti­
ca) com a ajuda de contradições sociais reais empiricamente

vida social na qual “ a economia está inteiramente e plenamente automa­


tizada” , o que toma possível uma vida social inteiramente livre (onde
cada um faz o que lhe agrada e quando lhe agrada)” . A única objeção
que Perroux avança dessa imagem é que ela implica um enfraquecimen­
to do Estado, quando, segundo êle, ‘ contradições fundamentais (subsis­
tem sempre) entre os indivíduos’’, contradições entre “ chefes das má­
quinas” e “fiscais e controladores” . Mas Perroux não demonstra de ma­
neira alguma a inevitabilidade dessa sobrevivência de contradições so­
ciais, em condições de abundância (François Perroux, Préface, pág. XVII,
das Oeuvres — Economie I de K. Marx. Bibliotèque de la Plêiade). Dah-
rendorf afirma também que haverá sempre “ dominadores” e dominados
e que não se pode “ representar de maneira realista” uma “ sociedade
sem diferenciação (dos homens) do ponto de vista de seu poder legí­
timo” ( Soziale Klassen und Klassenkonflikte in der industriellen Gesell-
schaft, Ferdinand Enke-Verlag, Stuttgart, 1957, pág. 181). A atrofia da
imaginação social de Dahrendorf não é evidentemente um argumento
científico. Quanto a Marx, longe de querer manter quaisquer “ elites
de comando” , êle pressupõe ao contrário que a extensão constante do
“ tempo livre” , no sentido real do têrmo, desenvolverá ao máximo as ca­
pacidades científicas e criadoras na grande maioria dos homens.
67 Popitz, D er Entfremdete Mensch, págs. 164-5.
178 P E N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

constatadas. Êles confundem o objeto de suas pesquisas e


preocupações, com os instrumentos e a linguagem que êle em­
prega para atingir o seu objeto.

Resta a terceira escola, que foi sobretudo representada


por autores que defendem o ponto de vista oficial dos parti­
dos comunistas no curso dos anos 40 e 50. Jahn58 apresenta
a tese da maneira mais sucinta. Auguste Cornu retomou-a
amplamente por sua conta no volume II de sua biografia de
M arx e de Engels.59 Emile Bottigelli a esposa em parte na
sua Präsentation dos Manuscritos nas Editions Socíales.59bis
M anfred Buhr permanece um defensor convencido.60 Ela se
deixa resumir assim: os Manuscritos d e 1844 são uma etapa
importante, mas transitória, na história intelectual de Marx
que consegue já apreender as contradições principais da so-

68 W olfgang Jahn, Wirtschaftswissenschaft, 1957, n.° 6.


59 Auguste Cornu, K. Marx und Fr. Engels — Leben und W erk, vol.
2, 1844-5, Berlim, Aufbau-Verlag, 1962. A mesma tese já havia sido
exposta pelo autor em D ie Ökonomisch-philosophischen Manuskripte,
Berlim, 1955, Akademie-Verlag.
59bis K . Marx, Manuscrits de 1844, editions Sociales, Paris, 1962.
“ Apresentação” de Bottigelli, em geral prudente e cheia de bom senso,
constata (pág. L X ) que “o problema da identificação do sujeito e do
objeto que Hegel tinha resolvido pela dialética da Idéia absoluta, Marx
resolve concretamente. Com o comunismo, “forma necessária do futuro
próximo” , o homem tomará posse de sua verdadeira natureza e o mun­
do, ao qual tôda sua prática o opunha no tempo da alienação, voltará
a ser o mundo humano, o prolongamento da sua própria essência. Assim
o problema do retorno à unidade que preocupou todo o pensamento ale­
mão do fim do século XVIII e do comêço do XIX se acha resolvido não
no sentido místico, mas em favor do homem, afirmando sua liberdade
e seu direito ao livre desenvolvimento de suas faculdades’ ’ . Fica-se tan­
to mais espantado ao ler algumas páginas adiante (pág. L X V II) que nos
Manuscritos “ é ainda a idéia, em si hegeliana, do desenvolvimento das
contradições que traz ( ? ) a passagem de um regime social para outro’’ .
Na realidade, nos Manuscritos, Marx não se apóia de maneira alguma sô-
bre uma “idéia” qualquer, mas sôbre a análise concreta das contradições
sociais; e o comunismo, desde êsse momento, não é mais o resultado da
“ idéia do desenvolvimento das contradições’’, mas da luta prática do pro­
letariado.
60 Manfred Buhr, “ Entfremdung — Philosophische Anthropologie —
Marx-Kritik” , em Deutsche Zeitschrift für Philosophie, V. E. B. Deuts­
cher Verlag der Wissenschaften, 14. Jahrgang, Heft 7, 1966, págs. 806-
CO N CEPÇÃO DA A L IE N A Ç Ã O 179

ciedade burguesa, mas as exprime ainda numa linguagem feu-


erbachiana, humanista. A concepção do trabalho alienado é
a expressão mais nítida disso. Tal concepção o impediu de
aceitar a teoria do valor-trabalho de Ricardo. Foi necessário
superá-la para que êle pudesse formular sua teoria do valor
e da mais-valia.61 Não se a encontra mais nas suas obras de
maturidade.
Êste raciocínio não é nunca acompanhado por uma de­
monstração lógica: não se vê por que seria precisamente o
conceito do trabalho alienado que teria impedido M arx de
aceitar a teoria do valor-trabajho de Ricardo. A s razões reais
que retardaram sua aceitação dessa teoria foram examinadas
no capítulo 3 dêste estudo. A experiência demonstrou que
era perfeitamente possível combinar uma teoria da alienação
com a teoria do valor-trabalho aperfeiçoada; foi o que Marx
aliás fêz em 1857-8.
O raciocínio de Jahn, de Cornu, de Bottigelli e de Buhr
não é sobretudo seguido por uma demonstração empírica. ¡Eles
não provam que M arx abandonou o conceito de alienação de­
pois de ter aceito a teoria do valor-trabalho. Jahn se contenta
em constatar que M arx e Engels voltam a isso na Ideologia
Alemã para dar “ um conteúdo nôvo” (o que é exato); mas
ê.le acrescenta imediatamente: “ Nas obras seguintes, êle (o
problema da alienação) não desempenha mais um papel im­
portante (o que é falso) . ” 62 Bottigelli afirma: “ Uma vez ter­
minada a luta contra a esquerda hegeliana, a expressão alie­
nação não reaparece no nosso conhecimento, senão no Prefá­
cio à Contribuição à Crítica da Economia P o lítica .. . É o úl­
timo (texto) no qual êle raciocinou como filósofo no senti­
do clássico do têrmo.” 63 Parece-nos deslocado afirmar que no
Prefácio, um dos textos mais notáveis do ponto de vista me­
todológico, M arx “ raciocina como filósofo” . M as é em todo
caso falso que, depois de 1857, o conceito de alienação não
aparece mais nas suas obras. Também é falso afirmar, como
faz Manfred Buhr, que Marx teria “ amplamente renunciado
ao emprêgo dêste têrmo” nas suas obras posteriores, se bem
que êste autor reconheça que M arx jamais perdeu de vista

61 Jahn, op. cit., pág. 683, e Cornu, op. cit., pág. 152.
62 Jahn, op. cit., págs. 863-4.
83 Emile Bottigelli, “Présentation” dos Manuscrits de 1844, págs.
LXVII-LXVIII.
180 PENSAM EN TO EC O N Ô M IC O DE KARL M A R X

o problema subjacente a êsse conceito.64 Quanto a Louis A l­


thusser, êle recentemente aventurou-se mais longe ainda pro­
clamando que “ o conceito ideológico de alienação” é um con­
ceito “pré-marxista” . 65
Infelizmente para todos êsses autores, nos Grundrisse,
escritos in tempore non suspecto ,66 depois do célebre Prefácio
à Contribuição à Crítica da Economia Política, numa data
que Althusser coloca no comêço do período de “ maturidade”
de Marx, êste volta ao conceito de alienação, e mesmo ,bem
amplamente! As passagens re.lativas à alienação abundam nos
Grundrisse e reduzem ao nada a tese de Jahn, de Cirnu, de
Bottigelli, de Buhr e de Althusser. N ão somente o conceito
de alienação não é “ pré-marxista” , mas faz parte do msíra-
mentarium do M arx chegado à maturidade plena. Lendo aten­
tamente o Capital, pode-se encontrá-lo aí igualmente aliás,
mesmo que algumas vêzes sob uma forma inteiramente modi­
ficada.67

64 Manfred Buhr, Entfremdung — Philosophische Anthropologie — Marx-


Kritik, p á g . 813.
65 Louis Althusser, Pour Marx, pág. 246. Ver também o mesmo autor:
“ Será necessário um dia entrar nos detalhes e dar dêsse texto uma ex­
plicação palavra por palavra; interrogar sôbre o status teórico e sôbre
o papel teórico dados ao conceito-chave de trabalho alienado; examinar
o campo conceptual dessa noção; reconhecer que ela desempenha bem
o papel que Marx lhe dá então: um papel de fundamento originário;
mas que ela não pode desempenhar êsse papel senão com a condição de
o receber em mandato e missão de tôda uma concepção do homem, que
vai tirar da essência do homem a necessidade e o conteúdo dos con­
ceitos econômicos que nos são familiares. Em poucas palavras, será
necessário descobrir sob têrmos votados à iminência de um sentido fu­
turo, o sentido que os mantêm ainda cativos de uma filosofia que vai
exercer sôbre êles seus últimos prestígios e seus últimos poderes. . . Sob
esta relação. .. o Marx mais afastado (sic) de Marx é êste Marx” (ibid.,
pág. 159). Que dizer então do Marx dos Grundrisse?
UG A redação dos Grundrisse é com efeito posterior (K . Marx, Grun­
drisse der Kritik der politischen Oekonomie, Vorwort, págs. VII, V III)
àquela do célebre prefácio que, segundo Althusser ( “ L ’objet du Capital” ,
em Lire le Capital, tomo II, Paris, Maspero, 1965) seria a quinta-essência
do método marxista maduro!
67 Ver no entanto as passagens seguintes: “ A forma ( Gestalt) autô­
noma e alienada ( entfremdet) que o modo de produção dá em geral às
condições de trabalho e ao produto do trabalho, por relação ao operá­
rio, se desenvolve com a máquina em um antagonismo total” ( Das Ka­
pital, I, pág. 397, na edição de Engels de 1890, Meissner, Ham burgo).
“ Vimos na quarta parte, por ocasião da análise da produção da mais-
CO N CE PÇÃ O DA A L IE N A Ç Ã O 181

Eis como Marx introduz nos Grundrisse o problema do


trabalho alienado, no capítulo sôbre o dinheiro: “ Diz-se, po­
de-se dizer, que o que é belo e grande (na economia mercan­
til, E . M . ) se funda precisamente nessa interconexão, êsse
metabolismo material e espiritual, independentemente dos co­
nhecimentos e da vontade dos indivíduos, e que pressupõe
precisamente sua independência e sua indiferença recíproca.
E essa interconexão objetiva é certamente preferível a uma
falta de interconexão ou a uma interconexão puramente local,
ou fundada sôbre uma natureza estreita e primitiva como o
sangue, e sôbre relações de dominação e de servidão. É certo
que os indivíduos não se podem subordinar às suas próprias
interconexões sociais, antes que êles as tenham criado. Mas é
inepto conceber essa interconexão somente como objetiva
(M arx sublinha, E .M .) como uma interconexão original, in­
dissociável da natureza da individualidade (em oposição com
o conhecimento e a vontade refletida) e imanente nela. Ela é
seu produto. É um produto histórico. Pertence a uma fase de­
terminada de sua evolução. O caráter estranho, e a autono­
mia que ela conserva a seu respeito, demonstram somente que
ela (a individualidade) está ainda criando as condições de
sua vida social, em lugar de ter começado a partir dessas con­
dições. Ela é a interconexão original de indivíduos no qua­
dro de relações de produção determinadas, limitadas. Os in-
valia relativa: no seio do sistema capitalista, todos os métodos de au­
mento da produtividade social do trabalho se realizam às custas do ope­
rário individual: todos os meios para desenvolver a produção se trans­
formam em meios para dominar e explorar o produtor, mutilam o ope­
rário num homem parcial, degradam-no ao estado de anexo da máqui­
na, destroem o conteúdo de seu trabalho em conseqüência do tormento
dêste, alienam ( entfrem den) as potências espirituais do processo do
trabalho, na mesma medida em que a ciência é integrada como potên­
cia autônoma nesse p r o c e s s o ...” ( ibid., pág. 6 1 0 ). “Visto que antes
de sua entrada (a do operário, E. M .) no processo (d e produção), seu
próprio trabalho lhe é alienado ( entfrem det), é apropriado pelo capi­
talista e incorporado no capital, êle se objetiva no curso do processo
constantemente sob forma de produtos alienados ( in fremdem Produkt)”
(ibid., pág. 53 3). “ O capital se manifesta sempre mais como uma fôrça
social, da qual o capitalista é o funcionário, e que não está mais de to­
do numa relação possível com aquilo que o trabalho de um simples in­
divíduo poderia criar, mas como uma fôrça social alienada ( entfrem-
d ete), tornada autônoma, que se levanta como uma coisa e como po­
tência dos capitalistas graças a essa coisa, contra a Sociedade” ( Das
Kapital, vol. III, I, pág. 247, mesma edição).
182 PE N S A M E N T O EC O N O M IC O DE K ARL M A R X

divíduos universalmente desenvolvidos, cujas relações sociais


foram submetidas a seu próprio controle coletivo como sendo
suas próprias relações coletivas, não são um produto da na­
tureza, mas da história. O grau e a universalidade do de­
senvolvimento das capacidades (das fôrças produtivas, E .M .),
que torna possível semelhante individualidade:, pressupõe pre­
cisamente a produção fundada em valores de troca, que pro­
duz, com a generalidade, a alienação do indivíduo dêle mes­
mo (grifo nosso, E .M .) e dos outros, mas que produz tam­
bém a generalidade da universalidade de suas relações e ca­
pacidades. Em etapas precedentes da evolução, o indivíduo
singular aparece como tendo mais plenitude, precisamente
porque êle não desenvolveu ainda a inteireza de suas rela­
ções, e porque êle não as opôs ainda a êle mesmo como fôr­
ças e relações sociais independentes dêle. Tanto é ridículo
desejar um retorno a esta plenitude original quanto é ridícula
a crença de que se deve parar nesse vazio completo (de hoje,
E . M. ) . . . ”68
Deve-se acrescentar a essa passagem aquelas nas quais
Marx descreve nos Grundrisse a submissão total do "traba-
balho vivo” ao “ trabalho objetivado” (o “ trabalho morto” , o
capital fix o ),69 assim como a passagem notável em que Marx
desenvolve a diferença entre o trabalho “ repulsivo” , o traba­
lho escravo, o trabalho servil e o trabalho assalariado, de um
lado, e o “ trabalho livre” , o “ trabalho atrativo” , de outro
lado,70 para completar êsse quadro.
Há aliás várias outras passagens dos Grundrisse nas
quais o conceito de alienação reaparece explicitamente. Há
principalmetne uma passagem das mais importantes, onde
Marx volta à distinção entre objetivação e alienação: "O s
economistas burgueses estão a tal ponto prisioneiros das con­
cepções de uma fase histórica determinada do desenvolvi­
mento da sociedade, que a necessidade da objetivação das
fôrças de trabalho sociais lhes parece indissociável da neces­
sidade da alienação destas por respeito ao trabalho livre. ..
N ão é preciso uma inteligência particular para compreender
que, partindo do trabalho livre oriundo da servidão, ou do

68 K. Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Oekonomie, págs. 81-

69 Ibid., págs. 582-592.


70 Ibid., pág. 505.
CO N CEPÇÃO DA ALIE N A Ç Ã O 183

trabalho assalariado, as máquinas não podiam efetivamente


ser criadas senão enquanto propriedades alienadas dêles (os
operários, E . M . ) e lhes aparecendo como uma fôrça hostil,
isto é, deviam-se opor a êles enquanto capital. Mas pode-se
compreender facilmente que as máquinas não deixarão de ser
agentes da produção social, quando elas se tornarem, por
exemplo, a propriedade dos operários associados.” 71
E há sobretudo a passagem seguinte, que lembra quase
textualmente os Manuscritos de 1844: “ M as se o capital apa­
rece como o produto do trabalho, o produto do trabalho apa­
rece da mesma maneira como o capital — não somente en­
quanto produto simples, nem somente enquanto mercadoria
introcável, mas enquanto capital: do trabalho objetivado en­
quanto dominação, enquanto fôrça de dominação sôbre o tra­
balho vivo, Êle aparece pois também como um produto do
trabalho mesmo que seu produto apareça como uma proprie­
dade alienada ( grifos nossos, E . M . ) , um modo de existên­
cia autônomo com o qual 0 trabalho vivo é confrontado, um
valor existindo por êle mesmo, ainda que o produto do tra­
balho se cristalize como uma potência estranha (alienada)
por respeito ao trabalho (grifo nosso, E . M . ) . D o ponto de
vista do trabalho, êle aparece como sendo ativo no processo
de produção de maneira tal que êle destaca ao mesmo tempo
dêle mesmo sua realização. . . como uma realidade estranha,
e que êle se coloca pois como uma capacidade de trabalho
sem substância, plena somente de necessidade, frente a essa
realidade alienada ( grifo nosso, E . M . ) que não lhe perten­
ce, mas que pertence a outros.” 72
Deixemos de citar. D e tôdas essas passagens se destaca
claramente uma teoria marxista da alienação-, que é o desen­
volvimento coerente daquela contida na Ideologia Alemã, e a
superação dialética das contradições contidas nos Manuscri­
tos de 1844.
Na sociedade primitiva, o indivíduo fornece diretamente
trabalho social. Está harmoniosamente integrado em seu meio
social, mas se êle parece “plenamente desenvolvido” , não é
184 PENSAM EN TO E C O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

senão o fato da estreiteza extrema das necessidades das quais


êle tomou consciência. Na realidade, a pobreza material da so­
ciedade, a impotência dos homens diante das fôrças da natu­
reza73 são aí fontes de alienação, sobretudo social (de suas
possibilidades objetivas), ideológica e religiosa.74
Com os lentos progressos da produtividade social do tra­
balho, um excedente econômico aparece progressivamente. Êle
cria as condições materiais da troca, da divisão do trabalho e
da produção mercantil. Nesta, o indivíduo é alienado do pro­
duto do seu trabalho e de sua atividade produtora, seu tra­
balho se torna cada vez mais trabalho alienado. Essa aliena­
ção econômica, que se junta agora à alienação social, religio­
sa e ideológica, é essencialmente o resultado da divisão so­
cial do trabalho, da produção mercantil e da divisão da so­
ciedade em classes. Ela produz a alienação política, com a
aparição do Estado, e os fenômenos de violência e de opres­
são que caracterizam as relações entre os homens. N o seio do
modo de produção capitalista, essa alienação múltipla atinge
seu ponto culminante: “ A transformação de todos os objetos
em mercadorias, sua quantificação em valores de troca feti­
chistas (torna-se) . . . um processo intenso que age sôbre cada

73 A passagem extraída dos Grundrisse, págs. 81-2, que citamos an­


tes demonstra claramente que não se tratava para Marx de idealizar o
homem primitivo ou de o apresentar como desalienado. Henri Lefebvre
se enganou pois quando falou do “ equilíbrio maravilhoso da comuni­
dade da aldeia” , na qual o homem podia abandonar-se “ à sua vitali­
dade espontânea” ( Critique de la vie quotidienne, I, pág. 221, L/Arche
Editeur, Paris, 1958), seguindo Engels que havia emitido idéias análogas
em As Origens da Família, da Propriedade Privada e do Estado. L e­
febvre escreveu também: “ A alienação despojou a vida de tudo aquilo
que outrora, na sua fraqueza primitiva, lhe conferia alegria e sabedo­
ria” , no seu primeiro volume da Critique de la vie quotidienne (Edi-
tions Bernard Grasset, 1947, pág. 242), que contém aliás uma das me­
lhores exposições da teoria marxista da alienação. Ver também sôbre
êsse mesmo assunto, Gajo Petrovic: “ Marx’s Theoiy of Alienation” , em
Philosophy and Phenomenological Research, págs. 419-426.
74 George Novack: “ Basic Differences between Existencialism and
Marxism” , em Existencialism versus Marxism, edited by George Novack,
Nova York, 1966, Dell Publishing Co., pág. 337. Ver também T. I. Oi-
serman ( D ie Entfremdung ais historische Kategorie): “ O homem cada
vez mais se apossou das fôrças espontâneas da natureza, e simultánea­
mente está cada vez mais sujeito às fôrças espontâneas da evolução so­
cial” (pág. 8 ).
-
CON CEPÇÃO DA ALIE N A Ç A O 185

forma objetiva da vida.” 75 M as êsse mesmo modo de produção


cria, com a universalidade das relações de troca e o desenvol­
vimento do mercado mundial, a universalidade das necessi­
dades humanas e: das capacidades humanas, e um nível de de­
senvolvimento das fôrças produtivas que torna objetivamente
possíve.l a satisfação dessas necessidades, o desenvolvimento
universal do homem.76 A abolição do regime capitalista torna
então possível o enfraquecimento progressivo da produção
mercantil, da divisão social do trabalho e da mutilação dos
homens. A alienação não é " suprimida” por um acontecimen­
to único, assim como não apareceu de um\ só golpe'. Ela se en­
fraquece progressivamente, assim oomo apareceu progressiva­
mente. Ela não está de qualquer maneira ancorada na “ natu­
reza humana” ou na "existência humana” , mas nas condições
específicas do trabalho, da produção e da sociedade huma­
nas. Pode-se pois entrever e precisar as condições necessá­
rias a seu desaparecimento.
E se compreende melhor agora o sentido social das três
interpretações mistificantes das relações entre os Manuscritos
de 1844 e o Capital, das três interpretações errôneas das re­
lações do M arx amadurecido com o conceito antropológico
do trabalho alienado. Elas refletem condições históricas e con­
textos sócio-econômicos precisos, que esclarecem sua apari­
ção, além do acaso da publicação dos Manuscritos em 1932.

75 Georg Lukacs, Geschichte und Klassenbewusstsein, pág. 187, Ber­


lim, 1923, Malilc Verlag. A obra de Lukacs, redigida antes que o autor
pudesse ler os Manuscritos de 1844 ou os Grundrisse, constitui uma re­
constituição magistral do pensamento de Marx por respeito aos proble­
mas da alienação e da reificação, apesar de alguns exageros idealistas
nas conclusões.
70 Não partilhamos a opinião de Gajo Petrovic (op. cit., págs. 422-
423), segundo a qual a alienação constitui a ausência de realização das
possibilidades humanas históricamente criadas. Se fôsse assim o homem
primitivo ( que realizava com efeito as possibilidades existentes nessa
época) teria sido efetivamente um homem desalienado, contrariamente
ao que o próprio Petrovic afirma. Um exemplo típico de alienação no
domínio das necessidades é oferecido pela tentativa deliberada da so­
ciedade burguesa americana de “fazer voltar ao lar” a mulher que fêz
estudos universitários. A finalidade é estimular a venda de aparelhos
eletrodomésticos, móveis etc. O efeito é provocar uma verdadeira atro­
fia das capacidades intelectuais, uma “ desumanização progressiva” das
mulheres (Bethy Friedan, The Feminine Mystique, Penguin Books,
1965, passim).
186 P E N S A M E N T O EC O N O M IC O DE K ARL M A R X

Para a burguesia trata-se, depois da ascensão fenomenal


do movimento operário de inspiração marxista, de se reapro-
priar de Marx, levando M arx inteiramente a Hegel. Pelo
mesmo fato, ela procura desengodar a significação revolucio­
nária, explosiva, da doutrina de Marx, para reintegrá-lo como
“ pensador” e "filósofo” num mundo capitalista concebido, se
não como o “ melhor dos mundos” , ao menos como o menos
mal dos mundos possíveis.
A social-democracia reformista lhe embarga o passo. P o­
rém é mais difícil identificar o M arx das obras de juventude
com o Marx do Capital. Durante muito tempo, ela tentou ca­
muflar a natureza revolucionária da obra de Marx, defenden­
do uma interpretação mecanicista desta. A tarefa de derru­
bar o modo de produção capitalista estava confiada ao “ de­
senvolvimento inexorável das fôrças produtivas” , antes que à
ação do proletariado organizado.
N o entanto, quando a crise econômica de 1929-33 e a
ascensão do fascismo manifestam aos olhos de todos que ne­
nhuma relação causal inevitável conduz, do conflito incontes­
tável entre o nível de desenvolvimento das fôrças produtivas
e as relações de produção capitalistas, de um lado, para o
advento do socialismo, de outro, a ideologia social-democrá-
tica deve mudar o seu fuzil de ombro. Depois de ter durante
muito tempo desprezado as obras de juventude de M arx17 ela
procura aí bruscamente a inspiração para opor uma "mensa­
gem ética” ao mesmo tempo à realidade capitalista desespe­
rante, à revolução socialista pela qual ela não quer optar, e à
sua degenerescencia na União Soviética na época stalinista
que serve de motivo para repelir, oferecido bem a propósito.
Daí a moda que os Manuscritos de 1844 conhecem há mais
de um quarto de século nos meios social-democratas, moda
que se acompanha de uma tentativa deliberada de embotar a
mensagem revolucionária contida nesses Manuscritos.7S
Marx enquanto herdeiro que supera a Filosofia clássi­
ca alemã está “ desculpado” da responsabilidade pelos defei-

77 N. I. Lapin, D er Junge Marx im Spiegel der Literatur, págs. 72-75.


78 Víctor Leemans, D e jonge Marx en de marxisten, págs. 126-130, e
outras que não deve tomar as precauções oratórias que se impõem aos
sociais-democratas, vê na vontade de ação revolucionária de Marx, isto
é, na sua praxis política, seu pecado original e a contradição fundamen­
tal de sua obra de juventude. Não se poderia ser mais claro. . .
CONCEPÇÃO DA ALIEN AÇ ÃO 187

tos do stalinismo, na mesma medida em que “ o humanismo an­


tropológico” do jovem M arx é oposto ao “ economismo” do
“ M arx dos anos maduros". “ Reabi.lita-se” Marx, para poder
voltá-lo contra o movimento comunista e revolucionário' in­
ternacional.
Por outro lado, a realidade soviética na época stalinista
era tal que o conceito de trabalho alienado aí provocaria uma
identificação inevitável com a corrente imagem dessa reali­
dade. Eis por que êsse conceito pareceu inaceitável ■—■ porque
muito explosivo — aos dirigentes e ideólogos dêsse regime.
“ Na sociedade soviética não podia mais, não devia mais se
tratar de alienação. O conceito devia desaparecer, por ordem
superior, por razão de Estado.” 79 Daí a tentativa de desfigu­
rar as obras de juventude como os Manuscritos de 1844, a
começar pela tentativa de não os reproduzir in extenso numa
só edição.80 Daí a tentativa de minimizar o conceito de aliena­
ção, ou de declará-lo decididamente “ pré-marxista” .
Aqueles que tinham degradado o marxismo ao nível de
uma apologética vulgar da política do regime stalinista esta­
vam pelo mesmo fato impotentes para responder ao desafio
dos exegetas idealistas ou existencialistas dos Manuscritos de
1844.
Quanto aos marxistas que de um lado reconheceram o
caráter mistificador dessa tentativa, mas que de outro lado
procuraram conservar seu lugar no interior da ortodoxia ofi­
cial, êles se saíram recolocando todo o M arx maduro no Marx
jovem, chegando assim freqüentemente a resultados análogos
aos da pseudocrítica burguesa.

79 Henri Lefebvre, “ Prefáce” da segunda edição do volume I da Cri­


tique de la vie quotidienne, Paris, L’Arche, 1958, pág. 63.
80 Louis Althusser se queixa justamente do fato de que nenhum eco­
nomista tenha estudado os Manuscritos de 1844 como filósofo, e que ne­
nhum filósofo os tenha estudado como economista. Mas essa discórdia
na interpretação não existe sem relação com o fato de que na República
Democrática Alemã se tenha durante muito tempo publicado separada­
mente os três primeiros manuscritos e o quarto, e, que na URSS, a pri­
meira edição russa integral dos Manuscritos date d e . . . 1956! (Günther
Hillmann: “Zum Verständnis der Texte” , págs. 203-4, 240, em K. Marx,
Teste zu M ethode und Praxis, II, Rowohlt-Verlag).
11

Desalienação Progressiva pela Construção da


Sociedade Socialista, ou então Alienação
Inevitável na “Sociedade Industrial”?

A deformação ideológica e mistificadora da teoria mar­


xista da alienação tem assim fontes sociais especificas, na
realidade de nossos dias. Ela tem, por outro lado, funções
apologéticas evidentes. O s ideólogos da burguesia tentam re­
presentar os traços mais repelentes do capitalismo contempo­
râneo como resultados eternos e inevitáveis do ‘‘drama hu­
mano” . Êles se esforçam para trazer a concepção sócio-his-
tórica da alienação humana para uma concepção antropoló­
gica, cheia de resignação' e de desespero. Quanto aos ideólo­
gos stalinistas, êles se esforçam por reduzir o “núcleo válido”
da teoria da alienação a traços específicos da exploração ca­
pitalista do trabalho, para poder assim “ provar” que a alie­
nação não existe mais na União1 Soviética e não pode existir
em nenhuma sociedade de transição do capitalismo para o so­
cialismo (e a fortiori em nenhuma sociedade socialista) .
Indiretamente, a sobrevivência manifesta de fenômenos
de alienação na sociedade soviética serve de ponto de apoio
aos ideólogos burgueses para demonstrar triunfalmente a fa­
talidade inevitável da alienação “ na sociedade industrial” . E
a obstinação da ideologia oficial na U R SS em negar a evi­
dência — isto é, a sobrevivência dos fenômenos de alienação
no curso da fase de transição do capitalismo para o socialis­
mo — arrisca provocar conclusões análogas nos teóricos mar­
DES ALIEN AÇ ÃO OU ALIE N A Ç Ã O IN E V IT Á V E L ? 189

xistas dos países de base econômica socialista, que aspiram


sinceramente a descobrir a realidade sob o véu das mentiras
oficiais.
Uma análise da teoria marxista da alienação não está,
pois, completa enquanto não permite formular uma teoria mar­
xista da desalienação progressiva, não a defende com suces­
so do mito da “ alienação inevitável” no seio de tôda “ socie­
dade industrial” .
Semelhante concepção marxista da alienação e da desa­
lienação não se enquadra evidentemente com a afirmação apo­
logética de autores como Jahn, segundo a qual “ a dominação
de uma potência estrangeira sôbre os homens é eliminada com
a supressão da propriedade privada pela revolução proletá­
ria e a construção da sociedade comunista, visto que os ho­
mens se colocam aqui livremente em face dos seus produ­
t o s . . . ” 1 Uma tese análoga é defendida por M anfred Buhr,
que escreve que a alienação é “ eliminada somente com a revo­
lução socialista, a criação da ditadura do proletariado no pro­
cesso de construção da sociedade socialista” .2 O autor acres­
centa aliás que todos os. fenômenos da alienação não desapa­
recem espontáneamente após a revolução socialista. Mas êle
se refere a êste propósito a vagas “ sobrevivências” ideológi­
cas e psicológicas da era capitalista, o individualismo burguês
e o egoísmo, sem revelar suas raízes materiais e sociais.
Num escrito posterior, Manfred Buhr afirma nitidamente:
“ Assim como o fenômeno social da alienação é um fenômeno
de origem histórica e deixará de se manifestar no curso da
história, o conceito de alienação que o reflete é igualmente
um conceito histórico e não pode ser aplicado de maneira
significativa senão em condições capitalistas.” 3 Não há evi-

1 Jahn, op. cit., pág. 864.


3 Artigo “Entfremdung” , pág. 140, Philosophisches Wörterbuch, edi­
tado por Georg Klaus e Manfred Buhr, Leipzig, 1964, V. E. B. Verlag
Enzyklopädie. É preciso assinalar que essa fraqueza em relação ao pro­
blema da desalienação, êsse texto de Buhr, representa um progresso so­
bre a maneira pela qual a questão da alienação tinha sido tratada an­
teriormente na República Democrática Alemã.
3 Manfred Buhr, Entfremdung — Philosophische Anthropologie —
Marx-Kritik, pág. 814. Numa nota de pé de página, Manfred Buhr ad­
mite que a desalienação é um processo que não faz senão começar com
a derrubada da sociedade capitalista. Mas êle conclui que não se pode
deduzir dessas premissas que existem ainda fenômenos de alienação na
190 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE KARL M A R X

dentemente nenhuma relação causal entre a primeira e a se­


gunda parte dessa frase. O fato de que a alienação é um fe­
nómeno históricamente limitado não implica de maneira ne­
nhuma que sua validade se limite somente à época capitalista.
T . I. Oiserman desenvolve sua argumentação num nível
mais elevado: “ N o socialismo (o autor se refere aqui expli­
citamente à “ primeira fase do socialismo” , segundo a fórmu­
la de Marx na Crítica do Programa d e G ota) não existe
o que Marx chamou a essência, o conteúdo da alienação, e
êste conteúdo propriamente dito não pode aí existir: domina­
ção dos produtos do trabalho sôbre os produtores, alienação
da atividade produtora, relações sociais alienadas, submissão
da personalidade sob as fôrças espontâneas da evolução so­
cia l.”4
Infelizmente, todos os fenômenos que Oiserman acaba
de enumerar não somente podem subsistir na época de tran­
sição do capitalismo para o socialismo, mas subsistem mesmo
inevitavelmente, na medida em que subsistem a produção mer­
cantil, a troca da fôrça de trabalho por um salário estritamen­
te limitado e calculado, a obrigação econômica dessa troca, a
divisão do trabalho (e principalmente a divisão do trabalho
em trabalho manual e trabalho intelectual etc) . E numa so­
ciedade de transição burocráticamente deformada ou degene­
rada, êsses fenômenos arriscam mesmo a tomar cada vez mais
amplitude.
Isso é evidente quando se analisa em profundidade a rea­
lidade econômica dos países de base econômica socialista. É
manifesto que as necessidades de consumo dos trabalhadores
não estão aí inteiramente satisfeitas: isso não implica uma
alienação do trabalhador em relação aos produtos de seu tra­
balho, sobretudo quando êsses produtos são bens que êle de­
seja adquirir e que o desenvolvimento insuficiente das fôrças
produtivas ( sem falar das deformações burocráticas do sis­
tema de distribuição!) o impede de se apropriar déles? É ma­
nifesto também que a divisão do trabalho (cujos prejuízos são

sociedade socialista (mais exatamente: na época de transição do ca­


pitalismo para o socialismo). Tudo o que se designa “ comumente e le­
vianamente” sob o têrmo de alienação no socialismo seria no máximo
“ exteriormente análogo” à alienação capitalista. O aspecto apologético
dessa casuística salta aos olhos.
4 T. I. Oiserman, D ie Entfremdung ais historische Kategorie, pág. 135.
DESALIENAÇÃO OU A L IE N A Ç Ã O IN E V IT Á V E L ? 191

reforçados pela organização burocrática) aliena freqüentemen­


te o trabalhador e o cidadão da atividade produtiva. O nú­
mero de candidatos aos estudos universitários que não são
admitidos na Universidade e que são pois obrigados a pros­
seguir uma atividade com a finalidade única de subsistência
são outros tantos testemunhos dessa alienação. Poder-se-ia
prosseguir a lista ao infinito.
N a Tcheco-Eslováquia, um autor comunista, Miroslav
Kusy, não hesitou aliás em chamar a atenção para os fenô­
menos novos da alienação provocados pela burocratização das
instituições, que se alienam do povo.5 É um tema sôbre o qual
se poderia amplamente f al ar. ..
Mesmo um autor tão fino quanto J . N . D awydow pre­
fere ignorar êsse problema e se acantona prudentemente numa
análise das condições da desalienação na segunda fase do
socialismo, análise aliás notável, à qual voltaremos mais
adiante.
Nessas condições, não se pode senão aprovar Henri Le-
febvre quando proclama peremptoriamente: “ Jamais M arx li­
mitou a esfera da alienação ao capitalismo."8 E deve-se saudar
a coragem de W olfga n g Heise que afirma: “ A superação da
alienação é ao mesmo tempo idêntica ao desenvolvimento do
indivíduo socialista consciente e da capacidade de criação co­
letiva. Ela se realiza através da construção do socialismo e do
comunismo. Por êsse fato, ela é um aspecto de todo progresso
histórico para superar em tôdas as relações e atividades vitais
as marcas da antiga sociedade. Ela começa com a emancipa­
ção da classe operária, a luta pela ditadura do proletariado, e
conclui com a realização da autogestão social plena e intei­
ra.’’ 1 Isso nos parece, grossa modo, correto, mesmo se tiver­
mos de criticar Heise na sua análise dos aspectos concretos
da alienação e do processo de desalienação na época de tran­
sição do capitalismo para o socialismo.

6 Citado por Günther Hillmann: “Zum Verständnis der Texte” , págs.


216-7, em K. Marx, Texte zu M ethode und Praxis II — Pariser Manus­
kripte 1844, Rowohlt-Verlag, Hamburgo, 1966.
6 Henri Lefebvre, “ Préface” da segunda edição do volume I da Cri­
tique de la vie quotidienne, pág. 74.
7 Wolfgang Heise, “ Ueber die Entfremdung und ihre Ueberwindung” ,
em Deutsche Zeitschrift für Philosophie, 1965, n.° 6, pág. 701.
192 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE K ARL M A R X

Retenhamos em todo caso isto: para Marx, o fenômeno


da alienação é anterior ao capitalismo. Êle está ligado ao de­
senvolvimento insuficiente das fôrças produtivas, à economia
mercantil, à economia monetária e à divisão- social do traba­
lho. Tanto tempo quanto sobreviverem êsses fenômenos, a so­
brevivência de uma certa forma de alienação humana é ine­
vitável . 8
O teórico comunista iugoslavo Boris Ziherl o admite,
quanto a êle, para a “ sociedade socialista” (diríamos mais
corretamente: a sociedade de transição do capitalismo para o
socialismo), o que é totalmente em sua honra. Mas não é
senão para se indignar com os filósofos iugoslavos que recla­
mam um comêço de desalienação por um comêço de enfraque­
cimento da economia mercantil, ou que colocam em relêvo as
coações supérfluas e alienantes que subsistem na sociedade
iugos.lava.9
A posição dos teóricos iugoslavos oficiais é muito con­
traditória a êsse propósito. Êles afirmam que as condições
materiais não estão maduras para o enfraquecimento da eco­
nomia mercantil e da alienação que daí resulta. Mas as con­
dições materiais estão maduras para o enfraquecimento do
Estado? Contra Stalin e seus discípulos, os comunistas iugos­
lavos tinham chamado Lênin que, em O Estado e a Revolu­
ção, tinha demonstrado que, para estar conforme com a mar­
cha para o socialismo, o enfraquecimento do Estado devia co­
meçar “ em seguida à revolução proletária” , que o proleta­
riado devia construir um Estado “ que não é mais um Estado
no sentido próprio do têrmo” . Êles haviam proclamado justa­
mente que a recusa em se engajar nesse caminho, longe de
preparar “ a maturação das condições objetivas", iria fatal­
mente erigir obstáculos suplementares no caminho de um en­

8 Uma variante da concepção apologética nos é oferecida por E. V.


Ilenkov, que afirma que somente a ‘ divisão antagonista do trabalho” ,
“ a divisão burguesa do trabalho” , mutilam o homem (L a dialettica deli’
astratto e dei concreto nel Capitale di Marx, Feltrinelli, Milão, 1961,
pág. 32 ). Em Marx, tôda divisão do trabalho que condena o homem a
não exercer senão uma só profissão, assim, pois, também aquela que
subsiste na URSS é alienante.
9 Boris Ziherl, “ Sur les conditions objectives et subjectives de la désa-
liénation dans le socialisme” , em Questions actuelles du socialisme, n.°
76, janeiro-março de 1965, págs. 122, 129-130.
D ESALIEN AÇÃO OU A L IE N A Ç Ã O IN E V IT Á V E L ? 193

fraquecimento futuro. Êste não pode surgir de um reforço


contínuo do mesmo Estado!
M as o raciocínio que é exato para o Estado o é também
para a economia mercantil.10 O proletariado não pode privar­
se dela em seguida à derrubada do capitalismo; ela está li­
gada a uma fase histórica do desenvolvimento das fôrças pro­
dutivas, que está longe de ser superada nos países chama­
dos “ em vias de desenvolvimento” (e todos os países de
base econômica socialista, com exceção da República Demo­
crática Alemã, se encontravam nessa categoria no momento
de iniciar a construção do socialism o). Ela pode e deve ser
utilizada no quadro de uma economia planificada —•para aper­
feiçoar essa planificação e acelerar o desenvolvimento das
fôrças produtivas, sem o qual seu enfraquecimento final será
utópico.
M as ao mesmo tempo ela deve conteç&r a se enfraquecer,
senão sua extensão criaria obstáculos novos — objetivos e
subjetivos — no caminho de seu enfraquecimento futuro. A
natureza dêsses obstáculos novos manifestou-se trágicamente
na Iugoslávia, onde a mercadoria reproduziu uma das contra­
dições que ela contém em germe: o desemprêgo, com tôdas
as conseqüências que daí decorrem também para a consciên­
cia do homem.11 Tanto quanto o Estado não pode miraculo­
samente se enfraquecer de um só golpe depois de se ter cons­
tantemente reforçado no período precedente, a economia mer­
cantil não pode miraculosamente se enfraquecer depois de se

10 W olfgang Heise ( Ueber die Entfremdung und ihre Ueberwindung,


págs. 700-711) analisa com detalhes os numerosos fatores que o pro­
cesso de desalienação no curso da fase de construção do socialismo (isto
é, na realidade, durante a fase de transição do capitalismo para o socia­
lismo). Mas êle nem mesmo menciona, nesse contexto, a sobrevivência
das economias mercantil e monetária, quando esta é uma das fontes
essenciais da alienação em Marx!
11 Esquecendo completamente os laços entre a alienação e a produção
mercantil, o economista iugoslavo Branko Horvat vê na autogestão o
caminho para a supressão da alienação. Êle escreve: “ O controle da
produção sem o intermediário do Estado significa o controle pelos pro­
dutores diretos, que quer dizer, por sua vez, a igualdade dos proletá­
rios é transformada numa igualdade de mestres. O processo de alienação
h u m an a... chega a seu fim” ( Towards a Theory of Planned Economy,
pág. 8 0 ). Estranhos “mestres” , em verdade, que podem encontrar-se na
rua, sem trabalho nem renda dignos dêsse nomel
194 P E N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

ter constantemente consolidado e expandido no período de


transição do capitalismo para o socialismo.
Os filósofos iugoslavos que levantam o problema da so­
brevivência e da reprodução de fenômenos da alienação no seu
país12 são pois mais "marxistas” a êsse propósito que os teó­
ricos oficiais — mesmo que sejam algumas vêzes levados, sob
a influência de más experiências que viveram, a colocar um
ponto de interrogação sôbre a teoria marxista da desaliena-
ção integral do homem na sociedade comunista.
A possibilidade dessa desalienação é igualmente contes­
tada em duas obras recentes de Henri Lefebvre,13 onde o autor
não entrevê mais do que um contínuo balanço entre aliena­
ção, desalienação e alienação de nôvo. ,Êle afirma justamente
que é preciso “ completamente particularizar” , “ historiar” e
"relativizar o conceito de alienação” .14 M as se, relativizando
êsse conceito, suprime-se a possibilidade de sua negação inte­
gral, tende-se a torná-lo de nôvo absoluto. Assim, a tentativa
de Lefebvre de “historiar” a alienação deve ser considerada
como tendo fracassado, porque ela produziu o resultado dia­
lético inverso, transformou de nôvo a alienação em um con­
ceito imanente à sociedade humana, mesmo se êle se apresen­
ta sob formas diferentes em cada tipo de sociedade diferente.
A s fontes dêsse ceticismo histórico são evidentes: são os
fenômenos negativos que acompanharam as primeiras tentati­
vas históricas de construir uma sociedade socialista.15 Trata-se

12 Assinalemos entre estes: Rudi Supek, “ Dialectique de la pratique


sociale” , em Praxis, n.° 1, 1965; Gajo Petrovie, op. cit., e “ Man as E co­
nomie Animal and Man as Praxis” , em Inquiry, vol. 6, 1963; Predrag
Vranicki, “ Socialism and the Problem of Aliénation” , em Praxis, n.°
2 /3 , 1965; Predrag Vranicki, “La signification actuelle de l’Humanisme
du jeune Marx” , em Annali dell’lstituto Feltrinelli, ano 7, 1964-65;
Zaga Pesic-Golubovic, “What is the Meaning of Aliénation?” , em Pra­
xis, n.° 3, 1966; etc.
13 Henri Lefebvre, Critique de la vie quotidienne, II, L ’Arche Edi­
tions, Paris, 1961; Henri Lefebvre: Introduction à la Modernité, Editions
de Minuit, 1962, Paris.
14 Critique de la vie quotidienne, II, pág. 209.
15 “ Estamos hoje menos convencidos do que Marx de um fim absoluto
da alienação” (Henri Lefebvre, Introduction à la Modernité, pág. 146
— grifo nosso). Referindo-se às condições atuais para demonstrar a qua­
lidade dessa conclusão, Lefebvre parece esquecer as premissas do ra­
ciocínio de Marx: enfraquecimento da produção mercantil, da econo-
D ESALIENAÇÃO OU A L IE N A Ç Ã O IN E V IT Á V E L ? 195

de produtos do stalinismo, que ultrajante e inutilmente acen­


tuaram os fenômenos de alienação que não podem deixar de
subsistir na época de transição do capitalismo para o socia­
lismo.
Assim, o nôvo ceticismo de um Lefebvre ou de um Pesic-
Golubovic não é senão uma reação negativa diante da expe­
riência stalinista, da mesma forma que a apologética de Buhr.
Jahn, Oiserman e Ilenkov não é senão um produto da mes­
ma experiência, procurando passar em silêncio sôbre os as­
pectos negativos da realidade social nos países de base econô­
mica socialista. Quando o pensamento supera essa apologética,
num nôvo contexto político no Leste, pode, seja desembocar
num retorno à concepção original da desalienação em Marx
— a desalienação enquanto processo que depende de uma in­
fra-estrutura material e social que não existe ainda na época
de transição do capitalismo para o socialismo — seja desem­
bocar num ceticismo quanto às possibilidades de desalienação
integral.
A tarefa científica é ao contrário a de analisar as fontes
sócio-econômicas da sobrevivência de fenômenos de aliena­
ção na época de transição do capitalismo ao socialismo, e du­
rante a primeira fase do socialismo, de descobrir os motores
do processo de desalienação durante essas mesmas fases.
Trata-se de efetuar a análise fazendo de início abstração dos
fatores que reforçam e agravam a alienação em conseqüência
da deformação ou da degenerescência burocráticas da socie­
dade de transição, depois integrar êsses fatores particulares
numa análise mais concreta dos fenômenos de alienação em
países como a URSS, as “ democracia populares” etc.
A fonte geral da sobrevivência dos fenômenos de alie­
nação na época de transição, e na primeira fase do socialis­
mo, é o grau de desenvolvimento insuficiente das fôrças pro­
dutivas e a sobrevivência das normas de distribuição burgue­
sas que daí decorrem.10 A contradição entre o modo de pro­
dução socializado e as normas de distribuição burguesas —

mia monetária, da divisão social do trabalho num quadro mundial, e


sôbre a base de um desenvolvimento muito elevado das fôrças produ­
tivas.
16 Ver a fórmula empregada por Marx em Kritik des Gothaer Pro-
gramms, págs. 16-7, em Ausgewãhlte Schriften, vol. II. Ver também
nosso Traité d’Economie Marxiste, vol. II, pág. 231.
196 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE K ARL M A R X

contradição principal da época de transição — introduz fato­


res de alienação nas relações de produção. O s trabalhadores
continuam a sofrer, mesmo que parcialmente, o efeito de uma
evolução social objetiva e espontânea que êles não controlam
(sobrevivência das “ leis do mercado” no domínio dos bens de
consumo; sobrevivência de uma "seleção profissional” que não
desenvolve inteiramente tôdas as aptidões de todos os indi­
víduos etc. ) .
Quando a isso se acrescentam a hipertrofia da burocra­
cia, a ausência de democracia socialista no plano político, a
ausência de autogestão operária no plano econômico, a au­
sência de liberdade de criação no plano cultural, [atôres es­
pecíficos de alienação, resultantes da deformação ou da dege­
nerescência burocráticas, se acrescentam aos fatores inevitá­
veis que acabamos de mencionar. A burocratização da socie­
dade de transição tende a exasperar a contradição entre o
modo de produção socializado e as normas de distribuição
burguesas, principalmente pela acentuação da desigualdade
social. A generalização da economia monetária vai no mesmo
sentido.
W olfg a n g Heise se dedica, a êsse proposito, a uma aná­
lise muito sutil. Se a propriedade coletiva dos meios de pro­
dução e a planificação socialista superam em princípio a im­
potência social diante da evolução da sociedade no seu con­
junto, isso não significa que essa impotência social se encon­
tra imediatamente superada por todos os indivíduos. É pre­
ciso levar em conta não somente as escórias ideológicas do
passado capitalista, os membros das antigas classes dominan­
tes, a educação insuficiente de uma parte do proletariado etc.
Deve-se também compreender que essa impotência não é su­
perada na prática senão quando os indivíduos realizam sua
identidade com a sociedade através de uma atividade social
fundada sôbre uma ampla medida de decisões livres.17 Isso
implica não somente uma autogestão integral do Trabalho ao
nível da economia tomada no seu conjunto (não somente no
processo de produção, mas ainda no de distribuição e de con­
sum o), mas ainda um enfraquecimento do Estado e o desapa­

17 W olfgang Heise, Ueber die Entfremdvng und ihre Ueherwindung,


págs. 702-3.
D ESALIENAÇÃO OU A L IE N A Ç Ã O IN E V IT Á V E L ? 197

recimento de tôdas as relações humanas fundadas na coação


e na opressão.
A té aí a análise de Heise nos parece correta. M as afir­
mando que o processo de desalienação não pode ser um fe­
nômeno espontâneo, mas deve ser guiado pelo partido, êle co­
meça por afirmar que o risco de burocratização — de ver os
aparelhos se tornarem autônomos por respeito aos objetivos
da sociedade no seu conjunto — pode ser neutralizado por
essa ação do partido.18 É pecar por uma visão idealista e per­
der de vista que há as duas fontes objetivas da burocratiza­
ção: por um lado, a sobrevivência de um processo econômico
espontâneo (sobrevivência das normas de distribuição mer­
cantis e de elementos de economia mercantil, sobrevivência da
divisão do trabalho, dos privilégios de cultura e de delegações
de poder, que impulsionam os aparelhos a se tornar autôno­
mos e a se transformar de servidores em mestres da socieda­
de) e, por outro lado, a centralização do superproduto social
e o direito de dispor livremente dêsse que cabe ao aparelho.
O duplo processo de desalienação em relação a êsses fenôme­
nos específicos de alienação é pois o enfraquecimento progres­
sivo da economia mercantil e da desigualdade social, e a subs­
tituição do sistema de gestão estatal da economia por um sis­
tema de autogestão operária, democráticamente centralizado.
Por êsse fato, a infra-estrutura material da burocratização é
destruída. E é somente nessas condições que a ação subjetiva
do partido — e a amplificação da democracia socialista num
plano político, que implica o abandono do dogma do partido
único -—- pode emancipar-se da empresa burocrática que a apri­
siona.19
Heise insiste justamente sôbre a importância de um de­
senvolvimento suficiente das fôrças produtivas para permitir
o desencadeamento de todos êsses processos de desalienação.
M as depois de ter pecado de início por voluntarismo, êle peca
em seguida por mecanicismo. Semelhante desenvolvimento das
fôrças produtivas reclama “ um grau extraordinariamente
elevado da organização e da diferenciação das funções so­
ciais” ; eis por que seria “ insensato reclamar a democracia di­
reta na produção ou o abandono da planificação central auto­

18 Ibid., pág. 704.


19 É bem conhecido que na URSS, na época de Stalin, o partido foi
o principal veículo da burocratização.
198 P E N S A M E N T O EC O N O M IC O DE K ARL M A R X

ritária. . . como condição de superação da alienação. . . Seria


uma exigência oposta à necessidade real da produção racio­
nal oposta à lógica econômica e técnica. . . ” 20
É notável que, levada às suas últimas trincheiras, uma
apologia da ausência de autogestão operária na República D e­
mocrática Alemã manipule o mesmo argumento que os ideó­
logos burgueses utilizam para demonstrar a inevitabilidade da
alienação, não somente em regime capitalista, mas em tôda
“ sociedade industrial” : “ o grau elevado de diferenciação das
funções sociais” . Voltaremos a isso mais adiante. É também
notável que Heise não possa conceber a planificação central
senão como planificação autoritária, e que da mesma maneira
que os autores iugoslavos êle permaneça fechado no di,lema:
ou anarquia da produção (economia de mercado), ou plani­
ficação autoritária. A possibilidade de uma planificação de­
mocraticamente centralizada, resultante de um congresso de
conselhos operários gerindo as emprêsas, parece escapar-lhe.
O que êle chama “ a redução do grau de organização da so­
ciedade” equivale para êle (com o para os autores stalinistas
e burgueses !) à supressão das estruturas autoritárias. Como
se os "produtores associados” — para falar com M arx —
fôssem incapazes de melhorar o grau de organização social
substituindo, ao menos entre êles,21 a disciplina livremente
consentida por uma hierarquia de comandantes e de coman­
dados!
Mas a fraqueza fundamental do raciocínio de Heise é
ainda mais profunda. Por um lado, êle reclama o primado da
ação do partido (contra as tendências à espontaneidade do
burocratismo); por outro lado, invoca o primado do cresci­
mento econômico (contra a democratização da vida das em­
prêsas ). Êle não parece perceber que a potência da buro­
cracia se reflete subjetivamente nesse argumento econômico,
que o aceitando, paralisa de início tôda ação subjetiva contra
ela. Por que não pretende ela encarnar a “ competência” e a
“ especialização” , face às massas ignaras? E êle não nota tam­
bém que objetivamente a burocracia permanece todo-poderosa

20 W olfgang Heise, Ueber die Entfremdung und ihre Ueberwindung,


pág. 706.
21 A coação permanece evidentemente inevitável por respeito às ou­
tras classes sociais, mas o grau dessa coação depende da violência das
contradições sociais.
D ESALIEN AÇÃO OU A L IE N A Ç Ã O IN E V IT Á V E L ? 199

tanto tempo quanto ela pode soberanamente dispor do su-


perproduto social (quer seja por via da autoridade, como na
URSS, ou por intermédio das “ leis do mercado” , como na Iu-
goslavia).
Eis por que êle reclama “ corretivo” contra os “ erros” sob
forma de um “ direito de controle crescente da coletividade” ;
eis por que admite que, a longo prazo, a centralização do po­
der no aparelho deveria ser superada pela “ democracia socia­
lista” e pelo “ desenvolvimento de uma atividade consciente
das massas” 22 — sem tirar a conclusão manifesta do ponto de
vista marxista de que o passo decisivo para essa democracia
é aquêle que submete ao conjunto dos trabalhadores ■ —• aos
“ produtores associados” — a gestão da produção e a possi­
bilidade de dispor do superproduto social.
J. N . D aw ydow se esforça por analisar os mecanismos
da desalienação na construção do comunismo de maneira bem
mais aprofundada do que W olfga n g Heise. Para Marx, a
divisão do trabalho capitalista resultou na eliminação com­
pleta da liberdade da esfera da produção material; essa li­
berdade, o comunismo a reintegrará, porque as necessidades
da técnica reclamam uma mobilidade de função cada vez maior
entre os produtores, tornados principal fôrça produtiva a par
de seus conhecimentos científicos. A individualidade univer­
salmente desenvolvida é possível, na base dessa técnica. Esta
a reclama mesmo, visto que do ponto de vista dessa “ econo­
mia política do comunismo” cada homem que não se tornou
uma “ individualidade plenamente desenvolvida” representa
uma enorme perda econômica.23
M as isso significa que, em condições de abundância cada
vez mais generalizada de bens materiais, a finalidade prin­
cipal da produção se torna a de produzir indivíduos “ total­
mente” desenvolvidos, criadores e livres.24 Na mesma medida
em que o homem se torna a “ fôrça produtiva principal” 25 pelo
fato da enorme extensão da tecnologia científica, êle está cada

22 W olfgang Heise, Ueber die Entfremdung und ihre Ueberwindung


págs. 706-7.
23 J. N. Dawydow, Freiheit und Entfremdung, pág. 114.
24 Ibid., pág. 117.
25 Cf. K. Marx nos Grundrisse, pág. 593: “É o desenvolvimento do indi­
víduo social que aparece (agora, É. M .) como o grande pilar funda­
mental da produção da riqueza.”
200 P E N S A M E N T O EC O N O M IC O DE K ARL M A R X

vez menos “ integrado” diretamente no processo de produção.


N a medida mesma em que o “ trabalho vivo” é expulso do
processo de produção, êle se revaloriza como organizador e
controlador dêsse processo. E, na medida mesma em que se
opera assim a produção paralela de urna abundancia de bens
materiais e de homens universalmente desenvolvidos, a do­
minação do “ trabalho morto” sobre o “ trabalho vivo” desa­
parece, e a liberdade é “ reintegrada” na produção material.28
Tôda essa análise, que se apóia essencialmente nas pas­
sagens dos Grundrisse de Marx que citamos antes, nos pa­
rece de natureza a esclarecer fundamentalmente o problema.27
Sua fraqueza principal é que ela salta de um só golpe da so­
ciedade capitalista para as relações de produção comunistas
— sem analisar as mediações históricas necessárias e inevitá­
veis, isto é, descrever os motores concretos da desalienação
progressiva na fase de transição, por ocasião da construção do
socialismo. A autogestão operária; a planificação central de-
mocrático-centralista; o enfraquecimento progressivo da pro­
dução mercantil; a generalização do ensino superior; a redu­
ção radical da jornada de trabalho; o desenvolvimento da ati­
vidade criadora no curso do “ tempo livre” ; a interpenetração
progressiva dos hábitos de consumo na escala mundial; a re­
volução psicológica provocada por essas transformações su­
cessivas, e principalmente pelo enfraquecimento da produção
mercantil:28 tudo isso não está integrado na análise de Dawy-
dow e deveria completá-la para tirar de seu estudo uma sus­
peita de axiomatismo, que seus críticos burgueses e dogmá­
ticos censurarão erradamente.29
!É que, para ser lógica, a análise da desalienação pro­
gressiva do trabalho do homem no socialismo deve integrar-
se numa análise exaustiva de sua alienação na época de tran­
sição. Na ausência desta, aquela se torna arbitrária. Ela ad-

26 J. N . Dawydow, Freiheit und Entfremdung, págs. 117-131.


27 Ver a série de citações contidas no capítulo 7 desta obra.
28 Consagramos a êsses problemas uma grande parte do capítulo XVII
de nosso Traité de Economie Marxiste.
29 Diversos aspectos do raciocínio de Dawydow receberam já um c o ­
m eço de verificação empírica, notadamente a necessidade de uma mobi­
lidade maior do trabalho e das tarefas, no seio de equipes funcionais,
que resulta na grande indústria do progresso da automação (ver Geor­
ges Friedmann e Pierre Naville, Traité de Sociologie du Travail, págs.
3 8 0 -1 ).
DESALIEN AÇÃO OU A L IE N A Ç Ã O IN E V IT Á V E L ? 201
quire um aspecto de “ fuga para adiante” que irrita aqueles
que concedem a prioridade a uma abordagem mais pragmáti­
ca da realidade imediata. Mas ao menos essa “ fuga para
adiante” tem o mérito da clareza e de perspectivas precisas.
Ela permanece fiel ao ensinamento de Marx, que rejeita tõda
concepção antropológica da alienação.
O mesmo mérito não se encontra nas conclusões desabu­
sadas que um Adam Schaff tira de seu confronto com a rea­
lidade polonesa de hoje. Êle admite a sobrevivência de fenô­
menos de alienação na sociedade socialista — mas se sai co­
locando em dúvida a possibilidade de realizar, mesmo na so­
ciedade comunista, o enfraquecimento do Estado, o desapa­
recimento da divisão do trabalho (que êle concebe de ma­
neira mecânica; a leitura de D awydow deveria fazê-lo mudar
de idéia!) e a supressão da produção mercantil.30 Essa revi­
são cética e misantrópica de M arx foi criticada pelos dirigen­
tes do PC polonês31 — mas não no sentido de uma análise
franca dos obstáculos à desalienação que impõe a realidade
social burocratizada de seu país, mas no sentido de uma sim­
ples negação apologética do problema. Schaff, que ensaiou
formular ao menos um “ programa de ação” contra a aliena­
ção, é relativamente mais sincero.33 Mas uns como os ou­
tros são importantes para relembrar o ensinamento de Marx,
e não podem assim fazer parar a ascensão da Filosofia e da
Sociologia não-marxistas na Polônia.
É assim que um sociólogo como Stanislaw Ossowsky
afirma que a concepção clássica de classes sociais formulada
por Marx não se aplica de maneira integral senão a um tipo

80“ Não faço senão mencionar êsse problema, tanto mais que se pode
estimar que a produção mercantil terá desaparecido da sociedade co­
munista plenamente desenvolvida, se bem que essa estimação apareça
como problemática ( ! ) à luz das experiências atuais” (Adam Schaff,
Marxismus und das menschliche Individuum, Europa-Verlag, Viena,
1966, pág. 177).
31 Nowe Drogi, número de dezembro de 1965.
32 Schaff reconhece que a socialização dos meios de produção não po­
de senão começar o processo de desalienação. Mas êle dá mais ênfase
à educação socialista do que à mudança das condições econômicas (prin­
cipalmente ao necessário enfraquecimento das normas de distribuição
burguesas) para arrematar êsse processo. Sua defesa em favor de um
“igualitarismo moderado” e de maior liberdade de opinião e de crítica
a respeito da “ elite no poder” é meritória, mas não vai ao fundo das
coisas.
202 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE KARL M A R X

de sociedade caracterizada pelo capitalismo de livre concor­


rência. H oje não somente a apropriação dos meios de produ­
ção, mas ainda a dos bens de consumo, permitiria estabele­
cer a “ dominação econômica sôbre os homens” . Haveria tam­
bém novas formas de “ dominação do homem sôbre o homem,
dominação que seria função seja da propriedade dos meios
de produção, seja da propriedade dos meios de consumo, seja
da propriedade dos meios de violência, seja de uma combi­
nação entre essas diferentes propriedades” . 33 Passa-se cla­
ramente de uma Sociologia que parte das noções de classe
social e de superproduto social para uma Sociologia fundada
no conceito infinitamente mais vago e menos operatório de
"grupos dominantes” . 34 E a ponte está assim lançada entre
a Sociologia (e a Filosofia) críticas, mas revisionistas, nos
países ditos socialistas, e a Sociologia acadêmica dos países
capitalistas, que rejeita o marxismo em nome de uma divisão
da sociedade em “ comandantes” e “ comandados” .
É inútil sublinhar o caráter apologético dessa construção
da “ sociedade industrial” , tal como foi elaborada por nume­
rosos autores. O que é específico do modo de produção ca­
pitalista é atribuído a tôda sociedade na era da grande in­
dústria.35 O que decorre de um tipo de organização social é
atribuído a uma forma de organização técnica.
A maior parte dos sociólogos ocidentais tira conclusões
pessimistas dessa identificação mistificadora de relações so­
ciais e de relações com a técnica. Êles fazem ressurgir o an­

33 Stanislaw Ossowski, Klassenslruktur in sozialen Bewusstsein, Luchter-


hand-Verlag, Neuwied, 1962, págs. 227-8.
34 As idéias de Ossowski se aproximam a êsse propósito daquelas, ci­
tadas anteriormente, de um François Perroux ou de um Dahrendorf, ou
das concepções de um antropólogo conservador como Arnold Gehlen:
a autoridade funcional substituiria cada vez mais a divisão social em
classes (Anthropologische Forschung, Rowohlt-Verlag, Hamburgo, 1961,
pág. 130). Ossowski deixa entender ( op. cit., pág. 223) que é a in­
capacidade do “marxismo” dogmático e apologético da época stalinista
em explicar os fenômenos de privilégios sociais nas sociedades com
meios de produção socializados que está na base de seu revisionismo
cético.
35 Ver principalmente Raymond Aron, Dix-huit leçons sur la société
industrielle, Gallimard, 1962, Collection “Idées” ; Reinhard Rendix, W ork
and Authority in Industry, Harper Torchbooks, Harper and Row, New
York, 1963; Rolf Dahrendorf, Soziale Klassen und Klassenkonflikt in der
industriellen Gesellschaft; etc.
DESAL1ENAÇÃO OU A L IE N A Ç Ã O IN E V IT Á V E L ? 203

tigo mito do Leviatã de Hobbes, e vêem o homem moderno


inevitàvelmente esmagado pela máquina, oriunda de seu cére­
bro. A alienação do trabalho, o esmagamento do trabalha­
dor por seu próprio produto, seriam o resultado inevitável da
grande indústria, e essa alienação se agravará implacàvelmen-
te, na medida em que o aparelho técnico se aperfeiçoar.
É preciso reconhecer que a degenerescência burocrática
da URSS, sobretudo na época stalinista, forneceu muitos ar­
gumentos aos partidários dessa tese pessimista. O que os ca­
racteriza, no entanto, em geral é a ausência de análises em
profundidade, que destacariam as leis de desenvolvimento da
realidade social de uma descrição puramente fenomenológica.
Afirmando que haverá sempre “ comandantes” e “ coman­
dados” , que haverá sempre bens raros e a necessidade de
uma repartição alienante dêstes, elevam-se a um nível de
axioma não as conclusões, mas as premissas de um raciocínio.
Acredita-se estar-se apoiando em fatos empíricos, mas nega-
se na realidade uma tendência que vai no sentido inverso.
Porque é difícil contestar que a riqueza potencial da socieda­
de, o grau de satisfação das necessidades racionais e a pos­
sibilidade de eliminar por êsse fato mecanismos de coação da
organização sócio-econômica aumentam a passos de gigan­
te desde um século e sobretudo no curso do último quarto de
século, na sociedade dita “ industrial” . Por que supor que
essa tendência não possa chegar a um "salto” qualitativo,
onde se enfraqueceria a sujeição do homem às necessidades
de uma luta “ pela existência” , e onde desabrocharia sua ca­
pacidade de dominar sua organização social tanto quanto êle
dommaria as fôrças da natureza?
Ora, deve-se reconhecer que a tendência de desenvolvi­
mento da técnica não caminha de maneira alguma no sentido
previsto pelos pessimistas. Georg Klaus distingue justamen­
te dois tipos de automação, do qual o segundo, muito mais
rígido que o primeiro, e fundado na cibernética, cria a infra-
estrutura de um enfraquecimento do trabalho alienante e as
precondições de um trabalho universalmente criador. E um
sábio como o Professor V an Melsen admite honestamente
que a técnica está ainda na sua fase primitiva, e que muitos
de seus aspectos embrutecedores resultam precisamente dês-
te primitivismo: “ Quando as primeiras necessidades estiverem
de fato satisfeitas, é bem possível, em parte graças ao pró-
204 P E N S A M E N T O E C O N O M IC O DE K ARL M A R X

prio progresso técnico, produzir muitas pequenas séries e in­


corporar em cada uma dessas séries projetos artísticos ori­
ginais. Por outro lado, o tempo de "trabalho obrigatório”
cada vez mais reduzido contribuirá para trazer ao floresci­
mento tôdas essas coisas que reclamam tantos cuidados pes­
soais e amor. . . Sem dúvida elas voltarão sob a forma de
artes livres praticadas por aquêles que terão sido liberados
pela técnica.” 36 Não precisa dizer que essa ação emancipa­
dora da técnica não será possível senão quando essa tiver sido
liberada da empresa do lucro privado e da valorização do ca­
pital .
O pessimismo pronunciado dos partidários da tese da
alienação inevitável da “ sociedade industrial” se explica aliás
por uma confusão entre as fontes verdadeiras do poder e as
articulações funcionais do poder,37 O conselho de administra­
ção de uma sociedade capitalista de ações pode decidir o fe­
chamento de suas empresas — e a supressão de tôda a hierar­
quia burocrática pacientemente construída — sem ter previa­
mente usurpado “ a autonomia crescente” dos laboratórios de
pesquisa ou do departamento do planning tecnológico. Mas
sua decisão de dissolver a sociedade,, tomada em função de
imperativos de lucro, revela quanto a delegação de poder
que a precedeu estava limitada a funções determinadas, e
quanto a propriedade privada permanece a fonte real do po­
der. Por que um conselho operário não poderia delegar tam­
bém certos poderes técnicos sem perder com isso a possibi­

36 Georg Klaus, Kybem etik in philosophischer Sicht, Dietz-Verlag, Ber­


lim, págs. 414-415; Prof. Dr. A . G . M . Van Melsen: Nautuurwetenschap
en Techniek, Aula-Boeken, Utrecht—Antuérpia, 1960, pág. 321.
37 Típicas a êsse propósito são as considerações de Alain Touraine sô-
bre a descentralização crescente das decisões no seio das grandes em­
presas “ burocratizadas” , em Georges Friedmann e Pierre Naville, Traité
d e Sociobgie du Travail, vol. I, págs. 420 e seg. Um dos primeiros a
empregar êsse argumento foi o Dr. Johann Plenge, verdadeiro ancestral
da crítica burguesa contemporânea de Marx: “A técnica moderna im­
plica o trabalho espiritual, implica a subordinação do trabalho manual
disciplinado na emprêsa no seu conjunto” ; o exercício do poder pelos
trabalhadores manuais seria impossível por essa razão (Marx und Hegel,
pág. 134). Essa passagem deve ser aproximada daquela de W olfgang
Heise, citada anteriormente, que concerne à impossibilidade de uma
democracia no seio da emprêsa pelo fato da “ diferenciação das funções
sociais.” Vê-se que a apologia da hierarquia burguesa na fábrica for­
nece o argumento principal da apologia da hierarquia burocrática.
D ESALIEN AÇÃO OU ALIE N A Ç Ã O IN E V IT Á V E L ? 205

lidade de tomar (ou mesmo de fazer tomar pelos coletivos


de trabalhadores) as decisões fundamentais de gestão econô­
mica?
N ão é da inelutabilidade técnica dessas articulações fun­
cionais que decorre a impossibilidade de “ democratizar as em­
presas” . N ão é a complexidade e a diferenciação crescen­
tes das tarefas que se opõem a essa democratização. É no
direito de decisão de última competência que querem reser-
var-se os grandes acionistas e seus aliados-delegados, os
managets, que reside o obstáculo intransponível, no regime
capitalista.38 Se êsse obstáculo é eliminado pela revolução
socialista, não há nenhuma razão a priori para crer que “ no­
vas alienações” devem resultar dos imperativos técnicos no
seio das empresas autogeridas, democraticamente centraliza­
das.
O mesmo pessimismo resulta ainda de uma distinção in­
suficiente entre o automatismo aparente dos mecanismos e as
decisões humanas inspiradas por móveis sócio-econômicos
que caracterizam a sociedade chamada “ industrial” . Quan­
do autores como W iener temem que as máquinas acabarão
por tomar decisões independentemente de um julgamento
qualquer dos homens (êles próprios mecanizados),39 êle es­
quece que a tendência à mecanização do trabalho na base é
acompanhada na sociedade capitalista por uma concentração
inusitada de poder de decisão no cume, onde um punhado
de homens, ajudados por uma enorme massa de informações
recebidas, e apoiando-se em tôdas as articulações funcionais
do poder que aumentam sua fôrça de ataque, permanecem
únicos mestres, em última instância, de decidir se tal ou tal
orientação sugerida por computadores será definitivamente
tomada ou n ã o .40 O que a teoria marxista esclarece são os

88 É o que revela de maneira surpreendente François Bloch-Lainé em


Pour une Réform e de 1’Entreprise (Paris, Editions du Seuil, 1963).
Êle pede em favor de maior participação dos sindicatos e dos trabalha­
dores na gestão de certos aspectos da atividade das empresas. Mas êle
precisa imediatamente que essa “ participação” mantém a direção única,
a hierarquia mestra, que conserva sozinha o direito de tomar as decisões
econômicas chaves (págs. 41, 43-44, 100).
39 Norbert Wiener, Cybernétique et Société, Paris, Editions des Deux-
Rives, 1950, págs. 161-163.
40 O caso da máquina de guerra americana, altamente mecanizada
(principalmente o sistema de alerta guiado por com puters), mas que
20 6 PENSAM EN TO EC O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

móveis que inspiram definitivamente êsses homens: nem mó­


veis arbitrários, nem móveis irracionais, nem um simples jô-
go, mas a defesa global de interesses de classe, tais como a
camada mais poderosa no seio dessa classe os entende.
Ora, se é efetivamente assim, é claro que basta substi­
tuir êsse poder de decisão de um pequeno grupo pelo da
massa dos “produtores associados” , para que essas mesmas
máquinas comecem a servir à sociedade, na mesma medida
em que elas parecem escravizá-la hoje.40bis
A o lado das mistificações pessimistas subsistem no entan­
to também algumas mistificações otimistas. A alienação
do trabalho resultaria inevitavelmente da “ sociedade indus­
trial” , mas poderia ser superada sem uma derrubada necessá­
ria do capitalismo. Bastaria, dizem uns, dar aos trabalhado­
res um “ sentido da participação” ,41 ver uma “ ética do traba­
lho” graças a relações humanas revalorizadas no seio da em­
presa, para que êsses trabalhadores não tenham mais o sen­
timento de ser alienados.41 É preciso assegurar, afirmam ou­
tros, mecanismos de comunicação, de diálogo e de criação,
que dêem ao trabalhador o sentido de sua personalidade e
de sua liberdade no trabalho ou no lazer.42
A primeira tese é nitidamente apologética. Dizemos
mesmo sem nenhuma dúvida que ela está a serviço direto do
Grande Capital, visto que sua finalidade confessada é ate­
nuar os conflitos sociais no seio do regime Hal como êle é. O
que os especialistas de “ relações humanas” procuram abolir
não é a realidade da alienação; é a consciência que os tra-

chega por fim ao Presidente dos Estados Unidos, único habilitado a


"impulsionar” certos botões, é simbólico do conjunto do mecanismo do
regime capitalista.
40bis Exemplo surpreendente de confusão entre poder de decisão só-
cio-econômico e autoridade técnica, êsse “ argumento” do diário bur­
guês alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung-. no ponto em que estamos
com tôdas essas reivindicações de autogestão, por que não reclamar
que um “ conselho de doentes” dite aos médicos diagnósticos e terapêu­
ticas? (número de 16 de agôsto de 1 9 6 7 ) ...
41 Elton Mayo, The Human Problems of an Industrial Civilization, No­
va York, The Viking Press, 1960, págs. 158-9, 171 e outras. Reinhard
Bendix: W ork and Authority in Industry, págs. 448-450.
42 François Perroux, “Aliénation et Création collective” , em Cahiers
de 1’ISEA, n.° 150, junho de 1964, págs. 92-3.
D ESALIEN AÇÃO OU A L IE N A Ç Ã O IN E V IT Á V E L ? 207

balhadores têm dessa realidade. Sua pseudodesalienação se­


ria a alienação levada ao paroxismo, aquela em que o traba­
lhador alienado seria alienado da consciência de seu estado
de ser humano mutilado.43 A alienação adquire assim dimen­
sões suplementares, pela tentativa da sociedade burguesa de
manipular não somente o pensamento e os hábitos, mas mes­
mo o inconsciente dos produtores. Há no entanto poucas
probabilidades de que os técnicos das “ relações humanas”
possam a longo prazo impedir as tomadas de consciência pe­
los trabalhadores do estado de opressão no qual êles se en­
contram .44
A segunda tese, mais sutil, é sobretudo ambígua. É for­
mulada como um imperativo moral, evidentemente indepen­
dente da “ forma das instituições” (isto é, do m odo de pro­
dução). M as François Perroux precisa que “ não é num qua­
dro rígido de instituições, que consagram o êrro e a injusti­
ça no todo social, que instituições especializadas podem pre­
encher sua função” .45 Uma sociedade fundada na obrigação,
para o trabalhador, de vender sua fôrça de trabalho e de exe­
cutar um trabalho embrutecedor para obter os bens de sub­
sistência necessários para a sua sobrevivência não é um “ qua­
dro rígido que consagra o êrro e a injustiça” ? Como se pode
dar ao trabalhador, nesse quadro, “ o sentimento de que êle

43 Bendix classifica aliás justamente a teoria das “human relations” na


categoria mais geral de “ a ideologia dos empresários” (diríamos antes:
a ideologia capitalista no que concerne à empresa). Seria fácil demons­
trar que a evolução dessa ideologia, no curso de um século, reflete não
somente a evolução da estrutura da empresa capitalista, mas ainda e so­
bretudo a evolução das relações de fôrça entre burguesia e proletaria­
do. Nada é mais revelador a êsse propósito que a transformação do puri­
tanismo altivo ou do darwinismo social da época de onipotência capi­
talista em uma defesa hipócrita em favor da associação Capital-Traba-
lho.
44 Vanee Packard, The Hidden Persuaders, Pocket-Book, Nova York,
1958. Se um Wright Mills teme o desenvolvimento de uma indiferença
diante da alienação ( The Marxists, pág. 113), Bloch-Lainé sublinha,
com mais realismo, a propósito dessa mesma alienação, ao menos seu
aspecto mais tocante ( a ausência de poder operário nas empresas): "A
calma é enganadora. Ela recobre muitas insatisfações particulares, pron­
tas a acender revoltas ao primeiro enfraquecimento da conjuntura geral”
( Pour une reforme de VEntreprise, pág. 2 5 ). Ver no capítulo I algumas
fontes bibliográficas sôbre o estado de espírito da classe operária.
45 “Aliénation et Création collective” , pág. 44.
208 P E N S A M E N T O EC O N Ô M IC O DE KAHL M A R X

participa de uma criação coletiva” , ou "a ocasião e os meios


de tomar consciência de si” durante seus lazeres? N o seio do
modo de produção capitalista, isso não seria senão engano
grosseiro. A realização dêsse programa reclama a derrubada
da sociedade capitalista. Mas, a partir dêsse momento, o pro­
grama de Perroux deveria conhecer uma singular expansão.
Não se trataria mais de dar ao trabalhador o “ sentimento”
de participar de uma criação coletiva, mas de fazer dêle um
criador efetivo. N ão se trataria mais de lhe dar a ocasião e
os meios de "tomar consciência de si” nos seus lazeres, mas
a ocasião dêle próprio se realizar por uma criação livre sem
coação exterior. N ão se trataria mais somente de deixar-se
desenvolver "zonas benfazejas” de “ curiosidade desinteres­
sada” , mas de chegar a uma autogestão integral dos homens,
em tôdas as esferas da atividade social.
Porque aí está a chave da desalienação definitiva. Ela
é função da abolição do trabalho (n o sentido em que Marx e
Engels o entendem na Ideologia Alemã)™ ou, se se quiser,
da substituição do trabalho mecânico e esquemático por um
trabalho realmente criador, e que não é mais trabalho no sen­
tido tradicional da palavra, que não tem mais por finalida­
de “ ganhar a vida” , que não chega mais a que se perca a
vida para assegurar a existência material, mas que se tornou
a atividade criadora universal do hom em.47
Uma crítica das concepções apologéticas da burguesia e
da burocracia nos leva assim à visão grandiosa da sociedade
sem classes que Marx evocou nos Grundrisse, e que repro­
duz, num plano mais elevado, porque alimentado com conhe­
cimento científico e com uma demonstração sócio-econômica
coerente, a visão análoga que êle já havia esboçado nos M a ­
nuscritos de 1844 e na Ideologia Alemã.

16 K. Marx, Fr. Engels, D ie deutsche Ideologie, págs. 70, 78, 222, 228.
47 Cf. Georg Klaus: “ A fim de desenvolver tôdas as potencialidades
criadoras do homem, é necessário libertá-lo amplamente da obrigação
de fornecer trabalho esquemático. . . ” “ A cibernética e a automação são
as condições técnicas dessa situação (comunista), porque permitem ao
homem se libertar de todo trabalho esquemático não-criador.. . Elas
lhe darão sobretudo o tempo de uma formação científica e técnica uni-
versál, isto é, as condições de um trabalho verdadeiramente criador no
nível atual da produção” ( Kybernetik in philosophischer Sicht, Dietz-
Verlag, Berlim, 1965, págs. 457, 4 6 4 ).
DESALIENAÇÃO OU A L IE N A Ç Ã O IN E V IT Á V E L ? 209

E é na transformação da teoria da alienação de uma


concepção antropológica, metafísica, e resignada, em uma
concepção histórica, dialética e revolucionária, que reside em
resumo tôda a obra econômica gigantesca que M arx realizou
entre sua primeira leitura dos economistas clássicos em 1843-4
e a redação dos Grundrisse em 1857-8.
Podemos assim concluir respondendo a uma questão que
não deixou de ser discutida pelos comentadores de M arx:
aquela que concerne à natureza específica de M arx como eco­
nomista. Duas teses se encontram uma em face da outra. Há
de um lado aqueles que como M . Rubel ou, numa medida
menor, R . P . Bigo, contestam na realidade que M arx te­
nha feito obra de economista, afirmam que é por uma “ intui­
ção genial” 48 que êle teria formulado suas teorias fundamen­
tais, ou dizem mesmo mais claramente: "M arx não será de
maneira alguma o promotor de uma nova teoria econômica,
mas um dos pioneiros da Sociologia científica.” 49
Há, por outro lado, aqueles que admitem, como o Profes­
sor James, que Marx foi o maior economista do século X IX ,50
ou como Jean Marchai, que êle foi o economista que permitiu
à ciência econômica obter “ a grande visão de uma evolução
imanente dos processos econômicos” . 51
Na nossa opinião, Marx respondeu antes a uns e a ou­
tros numa definição de seu método que constitui ao mesmo
tempo uma crítica do método de Lassalle: "Êle (Lassalle)
aprenderá às suas custas que é bem diferente levar uma ciên­
cia pela crítica ao ponto em que se pode representá-la dialè-
ticamente, e aplicar um sistema abstrato, acabado, de lógica
partindo do pressentimento de semelhante sistema.” 52 E

48 R. P. Bigo, Humanisme et Economie Politique chez K. Marx, págs.


36-7. A tese de Rubel sôbre o caráter ético da obra de Marx tinha sido
formulada desde 1911 por Karl Vorlander em Kant und Marx, Mohr,
Tiibingen, pág. 293. Ela a havia implicado numa controvérsia célebre
com Max Adler.
49 M . Rubel, Karl Marx — Essai de biographie intellectuelle, pág. 12.
50 Emile James, Histoire sommaire de la pensée économique, pág. 167.
61 Jean Marchai, D eux Essais sur le Marxisme, pág. 80. Ver também
Ernest Teilhac: “ Marx, em seguida aos economistas clássicos, entendia
colocar-se, estritamente, na ordem econômica, formular uma teoria pro­
priamente econômica, fazer obra de economista” ( L’Economie politique
perdue et retrouvée, pág. 106).
52 Briefwechsel zvoischen Fr. Engels und K. Marx 1844-1883, vol. II,
pág. 243.
210 P E N S A M E N T O E C O N Ô M IC O DE K ARL M A R X

desde os Manuscritos de 1844 êle tinha incluído a seguinte


advertência na Introdução: “ Não tenho a oferecer ao leitor
habituado com a Economia Política a segurança de que os
meus resultados foram ganhos por uma análise fundada num
estudo consciencioso, critico, inteiramente empírico, da E co­
nomia Política. ” 53
Marx partiu da vontade de uma crítica de conjunto da
sociedade burguesa, tomada na sua totalidade. Isso o levou
a formular algumas leis gerais sôbre a evolução de tôdas as
sociedades humanas. Uma dessas leis é o fato de que as re­
lações de produção constituem de alguma maneira “ o siste­
ma anatômico” da sociedade. Para poder formular essa lei
de maneira eficaz, êle teve de começar por se apropriar de
todos os dados empíricos da ciência econômica de sua época
(assim como de muitos dados de outras Ciências Huma­
n a s ) .54 Para bem conduzir a obra crítica total em relação à
sociedade burguesa, êle teve, por outro lado, de aprofundar
a história das doutrinas econômicas,55 cujo desenvolvimento
segue uma lógica interna, mesmo se ela é determinada em úl­
tima análise pela evolução sócio-econômica no seu conjunto.
Essa dupla obrigação o levou a se ocupar da matéria da ciên­
cia econômica como economista dotado de uma consciência
particular da impossibilidade de separar essa ciência econô­
mica das outras Ciências Humanas.56 Marx não pôde pois

53 K. Marx, Fr. Engels, Kleine Ökonomische Schriften, pág. 42.


84 “ Marx se refere sempre ao conjunto dos dados empíricos, à intuição
socialmente realizada” (E . I. Ilenkov, La Dialettica deli’astratto e dei
concreto nel Capitale di Marx, pág. 13).
65 “ O pesquisador deve sempre se esforçar por encontrar a realidade
total e concreta, mesmo se êle sabe não poder aí chegar senão de uma
maneira parcial e limitada, e por isso, integrar, no estudo dos fatos so­
ciais, a história das teorias sôbre êsses fatos, e, por outro lado, ligar o
estudo dos fatos de consciência à sua localização histórica e à sua infra-
estrutura econômica e social” (Lucien Goldmann, Sciences sociales et
Philosophie, pág. 18).
56 “A introdução das noções de estrutura e de sistema parece ser o
único meio que a ciência encontrou até aqui para lançar uma ponte en­
tre as duas ordens de pesquisas, freqüentemente separadas: a pesquisa
histórica e a análise teórica” (André Marchai, Systèmes et structures
économiques, PUF, Paris, 1959, pág. 11). Foi precisamente Marx quem
primeiro conseguiu lançar essa ponte entre a história e a análise econô­
mica, graças ao emprêgo de categorias históricas para a análise, que
DESALIEN AÇÃO OU A L IE N A Ç Ã O IN E V IT Á V E L ? 211

ser “ um dos pioneiros da Sociologia científica” senão na me­


dida em que êle fêz obra autônoma de economista. Sem suas
descobertas próprias como economista, tôda a sua teoria so*
ciai teria conservado um caráter essencialmente utópico, vo-
luntarista e “ filosófico” no sentido negativo do têrm o.57 N ão
é senão graças a suas descobertas econômicas que êle pôde
realizar o que êle mesmo considerou como a obra maior de
sua vida: c/ar um fundamento científico à aspiração e a luta
socialistas do proletariado: "O pensamento dialético.. . torna
compreensível a simultaneidade da objetividade dos conheci­
mentos das Ciências Sociais e das posições políticas que se
impõe àquele que é por elas penetrado no processo social.” 58
É impossível dissociar em M arx o sociólogo do revolu­
cionário, o historiador do economista. M as êle não pôde ser
eficazmente, isto é, cientificamente, sociólogo, historiador e
sobretudo revolucionário senão porque foi economista, senão
porque subverteu a ciência econômica por meio de descobertas
das quais quisemos seguir passo a passo a gênese, neste es­
tudo. Êsse trabalho realizado, o Capital era um fato; não fal­
tava senão escrevê-lo.

permitem aliás aí introduzir as noções de estrutura e de sistema recla­


madas por André Marchai.
57 Também Karl Korseh ( Marxisme et Philosophie, Les Editions de
Minuit, Paris, 1964) se engana quando, movido pelo desejo de resta­
belecer a unidade entre a teoria e a prática na doutrina de Marx, e de
defender a significação revolucionária contra epígonos reformistas, acaba
por contestar o caráter objetivamente científico da análise econômica de
Marx e não vê aí mais do que “ a expressão teórica de um processo re­
volucionário” (pág. 103). Para poder formular de maneira teoricamen­
te válida, isto é, eficaz, a análise da luta de classes no regime capita­
lista, e a marcha para a derrubada revolucionária do Capital, êle devia
primeiro se apropriar empiricamente de todos os dados das ciências hu­
manas e efetuar sua crítica, a superação científica. O próprio Marx mui­
tas vêzes definiu dessa maneira sua obra para que se possa hoje desvir­
tuar o sentido e contestar seu valor científico objetivo, independente­
mente da “ paixão revolucionária” que o animou tôda vida e do objetivo
revolucionário que êle constantemente procurou atingir.
58 Max Adler, Marxistische Probleme, Dietz Nachfolger, Stuttgart, 1922,
pág. 59.

Você também pode gostar