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Dossiê

Este é o r e l a t o de
u m a a n á l i s e q u e só foi
C(Ã)ES-TERAPEUTAS:
possível q u a n d o meus
cães p a s s a r a m a fazer O ENQUADRE A
parte do c a m p o trans-
f e r e n c i a i . T a l fato n o s
obriga a problematizar SERVIÇO DO
a transferência enquan-
to r e l a ç ã o i n t e r s u b j e t i ¬
va, b e m c o m o u m en-
MÉTODO NA
q u a d r e fixado a priori,
i n d e p e n d e n t e do diag-
nóstico transferenciai.
ANÁLISE DE UMA
Método psicanalítico;
d i a g n ó s t i c o transfe-
renciai; enquadre; ins-
ADOLESCENTE
tituição; campo trans-
ferenciai

A SPECIAL SETTING SER-


VING THE PSYCHOA-
NALYTICAL METHOD IN
THE ANALYSIS OF AN M a rion M inerbo
ADOLESCENT GIRL
This is the narrative
of an analysis that be-
came possible when
my clogs became part
of the transferential fi-
eld. This fact does
...E n t ã o s a í m o s , eu, m i n h a p a c i e n t e e
oblige us to problema-
tize the concept of
transference as "inter- meus dois cachorros, para mais u m a de nossas ses-
subjective relahtionship ",
as well as the idea of sões na praça ao lado do consultório. Eles h a v i a m
a setting stablished
from outside the sido requisitados para c o m p o r nosso e n q u a d r e . A
analytic process, that
is, regardless of the
transferer]tial diagnosis.
transferência maciça entre m i n h a paciente e m i n h a
Psychoanalytical me-
thod; transferential cachorra não me deixava alternativas. Meu lugar era
diagnosis; setting;
institution; transfe- acompanhá-las, quieta e atenta. Na pele/mente de um
rential field

cão me foi possível, aos poucos, ir h u m a n i z a n d o

esta garota.
Tenho, cá para m i m , que o trabalho a n a l í t i c o
com Tais só foi possível graças aos cães, eficientes
c(ã)es-terapeutas. Além de movida pelo desejo de par-
tilhar com
M e m bos colegas
r o efetivo d a uma experiência
Sociedade clínica
Brasileira de sui ge-
Psicanálise de
São Paulo, doutora
neris, a apresentação deste em psiquiatria
caso permitepela Universidade
esboçar algu-
Federal de São Paulo, sócia fundadora e atual presidente
mas considerações sobre como o trabalho em hospi-
do Instituto Therapon A d o l e scência.
tal-dia fertilizou meu trabalho em consultório, resul¬
tando no híbrido que o leitor tem em mãos. A flexibilidade no
enquadre externo depende de um rigor no enquadre interno - a
postura psicanalítica. Em outras palavras, m u d a o enquadre, mas
não o método.

A.C.

Os pais de Tais lhe propõem um trato. Ela deve iniciar uma


análise, emagrecer, melhorar suas notas, fazer amigos. Em troca, em
seu aniversário, ganhará o cãozinho tão desejado.
Não me parecia uma maneira muito auspiciosa de iniciarmos
um trabalho. A d e m a n d a de Tais não era de análise, mas de ca-
chorro. Na primeira sessão, vejo uma adolescente de uns 16 anos,
alta, gorda, rosto bonito, ostensivamente descuidada no vestir. Sua
primeira fala, ao olhar para a cadeira de vime onde a convido a
sentar: "esta cadeira me agüenta?".
Esta análise se divide em dois grandes períodos: A.C. e D.C.
- antes e depois do cachorro.
Nos primeiros meses do período A . C , conversávamos amiga-
velmente sobre cães, sua grande paixão. Frases recolhidas me aju-
dam a iniciar um esboço do universo mental de Tais.
"O pitbull tem uma mordida equivalente a 5 toneladas, é as-
sustador."
"O labrador é muito meigo, amigo."
"O cocker é lindo e fofo, mas fede."
Em vista da possibilidade de ganhar seu cãozinho, Tais passa
tardes inteiras num pet shop "escolhendo" o filhotinho mais lindo,
mais perfeito.
Soube na entrevista que Tais e seu irmão são adotados. Não
era difícil conversar sobre como ela se preparava para adotar um
c a c h o r r i n h o , desejava o mais perfeito etc. A i n d a nesta l i n h a , o
material clínico que segue era transparente:
"Não entendo as pessoas que c o m p r a r a m u m c a c h o r r i n h o e
depois não brincam com ele."
"Tem cachorra que tem mais instinto materno do que muita
mãe. Vi uma que deu cria e um filhotinho morreu; a dona jogou
no lixo e a cachorra foi buscar por três vezes. Ela não abandonou
o filhote, nem morto."
Uma representação importante de sua identidade era o cachor-
ro vira-latas.
" N i n g u é m quer v i r a - l a t a s , há p r e c o n c e i t o . T a m b é m contra
gordos."
Marion - Ninguém quer cachor-
ro de pais desconhecidos.
"Tá me chamando de vira-latas?"
A análise parecia ter engatado,
p r i n c i p a l m e n t e depois de saber que
tenho u m b e a g l e e u m a l a b r a d o r a .
O u v i r a os l a t i d o s e p e r g u n t a r a se
os c a c h o r r o s e r a m m e u s , q u a l a
raça, o nome. Trazia revistas sobre
cachorros e eu me sentia u m a mãe
a c o m p a n h a n d o a gravidez da filha,
folheando, juntas, revistas de deco-
ração de quarto de criança. Seu ani-
v e r s á r i o se a p r o x i m a v a . S i m , t u d o
parecia ir bem.
Mas então o que era aquela ver¬
borréia amorfa q u a n d o a conversa
n ã o era c a n i n a ? O que era a q u e l e
vago incômodo que eu sentia quan-
do ia de u m assunto a outro, sem
que nada tivesse relevo emocional? E
de o n d e v i n h a m i n h a sensação de
que ela " m e n t i a " para m i m ? Não é
que ela procurasse dissimular ou si-
mular alguma coisa, apenas inventava
histórias, sem convicção, para preen-
cher a sessão. Histórias de plástico...
Será que Tais v i n h a às s e s s õ e s
apenas para g a r a n t i r seu cachorro?
Era estranho: ela me parecia tão ver-
dadeira e transparente quando falava
dos cães, mas t a m b é m tão opaca e
mentirosa com suas histórias de plás-
t i c o . Fui p e r c e b e n d o que nem ela
havia me adotado, nem ia permitir
que eu a adotasse. Assim era a trans-
ferência, esta estranha mistura feita
de o p a c i d a d e transparente, verdade
mentirosa.
"Vi u m g a t o p e r s a , p e r f e i t o ,
branco, de olhos verdes. Em vez de
cachorro, agora quero u m gato."
M a r i o n - Não acredito que
você seja capaz de fazer isto.
Tais leva um susto, fica imóvel, quieta. "Agora você me dei-
xou muito sem graça."
Eu invadira seu refúgio. Ela não esperava que eu estivesse aten-
ta ao outro lado de suas palavras que são, e ao mesmo tempo não
são, '"de verdade".
Chega o aniversário. Tais não passou em todas as matérias. Ao
saber das notas, aquela menina durona, que agüenta firme qualquer
castigo, chorou - escondido.
A mãe simplesmente anuncia: - seu cachorro "dançou".
Tais joga no lixo tudo o que se relaciona com cães. Enlutece
e emudece. A mãe solicita uma entrevista. "Quero dar o cachorro
a Tais, mas se eu voltar atrás no trato estarei falhando em meu
papel de mãe. Mas também, por que ela não tenta me levar no
bico para ganhar seu cachorro? Eu escuto: por que raios ela não
faz direito seu papel de filha?"
A mãe quer ser mãe de verdade, mas se agarra ao papel de
mãe, plastificando sua maternagem. Mãe tem que ser dura por fora
(papel de mãe) e mole por dentro (mãe de verdade). O papel de
filha, muito parecido com ser filha de verdade, é chorar e levar a
mãe no b i c o . Enfim, r e e n c o n t r o no d i s c u r s o da mãe a m e s m a
opacidade transparente e verdade mentirosa que vinha observando
em Tais.
Ao solicitar a entrevista, a mãe deseja que eu a autorize a ser
mãe de verdade, "quero dar o cachorro". Tais g a n h a seu cãozi-
nho. Depois desta conversa, o incômodo a que me referi ganhou
um contorno: eu e Tais representávamos papéis, e isto plastificava
nossa relação.

D.C.

Mudança brusca. Assim que ganha sua cachorrinha, Tais adota


uma atitude de "cagar e andar" para tudo o que eu digo. Na esco-
la torna-se "delinqüente". Em casa não cuida do cachorro. Todos se
irritam com ela, que apenas dá de ombros. Tais é psicopata? Ou
seria apenas a encenação de mais um papel?
O trabalho ficou mais difícil. Eu tendia a ser superegóica, por
exemplo, quando ela quase deixou sua cadelinha morrer. Tentava
interpretações "continentes" de supostas angústias relacionadas à
adoção. Conversei com ela sobre a distância entre a mãe ideal que
imaginava ser e a mãe que ela era de verdade. Nada a tocava.
Para falar a verdade, m i n h a s interpretações também não me
convenciam. Era estranho, eu começava a frase visando a um supôs¬
to eu-angustiado e me descobria falando com um "eu-cago-e-ando".
Além de me deixar irritada, eu perdia o pé. Assim, fui obrigada a
reconhecer que, apesar de m i m mesma, eu continuava fazendo "pa-
pel" de analista, e era justamente este o campo transferenciai (Herr-
mann, 1991) em que estávamos: o campo de plástico.
O mesmo drama se passava com Tais. Eu percebia que, às ve-
zes, ela desejava contar alguma coisa significativa. Porém, quando
ia dar o braço a torcer (como a mãe, que queria dar o cachorro,
mas não podia dar o braço a torcer), quando iniciava uma fala de
verdade, em pouco tempo estava falando da boca para fora. Fora
dos papéis, Tais entrava em pânico de verdade. O eu-delinqüente
era, possivelmente, mais um papel. De onde surgira?
E importante frisar que, embora me refira à representação de
papéis, não penso que sejam falsos, no sentido do falso self. Ao
contrário, um papel é sempre de verdade, pelo menos e n q u a n t o
dura. C o m o no teatro. C o m o o jogo das crianças. C o m o a trans-
ferência, pois é disto que se tratava.
Assim, em meio ao bombardeio das grosserias do "eu-cago-e-
ando", eu tinha duas preocupações: evitar o tom superegóico que
reforçava o eu-delinqüente e procurar conversar de verdade com
ela. Eu estava decidida a só dizer o que eu realmente quisesse dizer.
Dar o cachorro, se esta fosse m i n h a vontade, sem me preocupar
com o papel de mãe-analista.
"Sabe, Tais, eu começo a falar com você e de repente você
não está mais lá, eu não sei mais com quem estou falando.
Ah, mas eu não vou fazer como esta sua amiga, que fingia que
tinha aulas particulares enquanto o professor fingia que dava aula.
Olha, eu tenho todo o tempo do mundo para tentar ter uma
conversa de verdade com você."
Eu continuava a me perguntar de onde surgira aquele eu-delin-
qüente.

MELANCOLIA

Procuro outros c a n a i s de c o m u n i c a ç ã o , já que, no c a m p o


transferenciai acima descrito, as palavras, minhas e dela, tinham esta
estranha propriedade de se transformar em plástico no meio do
c a m i n h o . Instalo u m a pequena oficina de artes no c o n s u l t ó r i o .
M i n h a hipótese era de que u m a m u d a n ç a no enquadre poderia
colocar em cena outro eu de Taís, assim como no teatro a mu-
dança no cenário indica a entrada de outros atores ou, pelo me-
nos, de outra cena.
Ela faz um desenho significativo: ela continuava a lhe devotar. O curio-
um mergulhador sendo devorado so é que ela j a m a i s se a p a i x o n a r a
por tubarão, enquanto outro mergu- por alguém, nem tivera n a m o r a d o s .
lhador olha, sarcástico, do lado de Enquanto ela lia os poemas, exigia
fora. U m a parte dela sofre, a outra que eu ficasse de costas para ela, de
finge que "caga-e-anda", mas a quem tão envergonhada. Jamais repetia um
eu poderia dizer isto? O eu-que-so¬ poema, nem sequer um trecho. Lem-
fre não estava lá, o outro d a r i a de bro-me de ter i n t e r p r e t a d o o u t r a
ombros. Rapidamente, a produção poesia, em que eu lhe falava de seu
artística foi se plastificando. .Tentei pacto com "as sombras", sua dolorosa
jogos. Se vencesse, me maltratava, se renúncia ao sol, às palavras, enfim,
perdia, dava um jeito de não se im- ao humano.
portar. Desânimo. O diagnóstico de melancolia não
Neste meio tempo, seu compor- é difícil. As poesias falam do investi-
tamento na escola e suas notas esta- mento maciço no objeto perdido, ao
vam se tornando insustentáveis. Suge- mesmo tempo amado e odiado. A
ri u m a escola especial, cuja postura teoria fala em ódio ao objeto trans-
não é p u n i t i v a e c o m p r e e n d e r i a a formado em ataque ao próprio ego -
"delinqüência" como sintoma. "você não presta para n a d a " . Seria
Embora me xingasse como um esta a origem do eu-delinqüente? Se o
pitbull, Tais tinha os olhos doces de " n a m o r a d o " a tinha a b a n d o n a d o , é
um l a b r a d o r . No dia em que veio porque ela não o merecia. Afinal, era
bêbada à sessão, depois de ter embe¬ u m a garota gorda, desleixada, insu-
bedado seus colegas de classe, tinha portável. O mais grave, neste quadro,
certeza de ter atingido meus limites. era a impossibilidade de investir amo-
Então eu me l e m b r a v a de sua pri- rosamente n u m novo objeto. C o m o
meira fala: "esta cadeira me agüen- abrir espaço para o eu-amoroso,
ta?" Eu imaginava que aqueles olhos anunciado pelas poesias?
de l a b r a d o r t i n h a m u m a h i s t ó r i a
para contar.
Para m e c o n t a r esta h i s t ó r i a ,
entra em cena o eu-poeta de T a i s .
CONSULTÓRIO E
Ela escrevia bem! O tema foi outra INSTITUIÇÃO:
surpresa. Todas as poesias falavam, de
u m a m a n e i r a ou de outra, do pri-
ENQUADRES
meiro grande amor, para sempre per- DIFERENTES, M E S M O
dido. Em algumas poesias jurava fi-
delidade eterna a um suposto namo- MÉTODO
rado que falecera, deixando em seu
lugar o esplendor da Lua. "Não ha- Antes de prosseguir, mostrando
verá outro além de você". Em outras, c o m o e por que i n t r o d u z i os cães
acusava o namorado de ter "apronta- no enquadre da análise, creio ser útil
do" com ela e de não ser merecedor uma pequena digressão em torno do
do imenso amor que, não obstante, método e do enquadre.
Há 30 anos nascia em Paris um comprometem a própria continuidade
h o s p i t a l - d i a para adolescentes com do processo analítico.
transtornos e m o c i o n a i s graves (CE- O enquadre oferecido por u m
REP). Seus fundadores, dois psicana- hospital-dia soluciona essas dificulda-
listas, estavam às voltas com a neces- des. A i n s t i t u i ç ã o não só p e r m i t e ,
sidade de justificar, do ponto de vis- como encoraja, a "atuação", no sen-
ta teórico, por que uma tal mudan- t i d o teatral do t e r m o , isto é, de
ça no e n q u a d r e - do c o n s u l t ó r i o colocar em cena, c o n c r e t a m e n t e , a
para u m a instituição - não desnatu¬ c o m p l e x i d a d e dos d r a m a s emocio-
rava o essencial de u m t r a t a m e n t o nais. Nas palavras de Bernard Penot
psicanalítico. (1999), a instituição funciona como
A resposta era simples: o enqua- um neo-meio de vida. O espaço de
dre mudava, mas o método não, ou vida é p a r t i l h a d o por adolescentes
seja, no dia-a-dia da vida institucional com dificuldades e m o c i o n a i s e por
garantia-se certo tipo de escuta, que adultos que vão implicar-se não ape-
só é possível quando balizada pelos nas no nível da palavra, mas tam-
conceitos de inconsciente e transfe- bém, e sobretudo, através de tarefas,
rência. A postura psicanalítica - uma d i v i d i d a s com os jovens ao l o n g o
escuta d e s c e n t r a d a do d i s c u r s o do do dia. É a partir da experiência de
paciente - vai construindo uma com- vida cotidiana que pode ser produzi-
preensão teórica do caso, que orienta da u m a palavra em c o m u m , porta-
a resposta do analista. A fala do ana- dora de u m t r a b a l h o de s u b j e t i v a ¬
lista considera o desejo do paciente, ç ã o . A noção winnicottiana de espa-
porém não coincide com ele. ç o transitional é preciosa: o ambien-
Neste trabalho percorro o cami- te t e r a p ê u t i c o é c o n c e b i d o c o m o
nho inverso. Em certa fase da análise, uma matriz de colocação em discurso
criei u m e n q u a d r e de h o s p i t a l - d i a da experiência vivida.
para trabalhar com Tais no consultó- O c o r r e que T a i s n ã o era tão
rio: recorri a meus cães c o m o "co- p e r t u r b a d a , a p o n t o de exigir u m
terapeutas". Do meu ponto de vista, tratamento i n s t i t u c i o n a l , nem sufi-
o m é t o d o exigia a m u d a n ç a de en- cientemente normal, a ponto de su-
quadre, esta se i m p u n h a a partir do portar um enquadre tradicional.
processo analítico. C r e i o ter d e i x a d o c l a r o c o m o era
O enquadre é, freqüentemente, pro- difícil estabelecer com ela u m a dis-
blemático na análise de adolescentes bas- tância ideal. Havia o risco de estar
tante c o m p r o m e t i d o s ( C a h n , 1985). excessivamente p r ó x i m a , i n t r u s i v a ;
Quando muito rígido, torna-se perigo- ou m u i t o d i s t a n t e , i n d i f e r e n t e , es-
so pela importância conferida à relação trangeira. A posição face a face dei-
interpessoal. No outro extremo, quando xava a paciente em pânico. O cam-
é frouxo e d i l u í d o , n ã o oferece po transferenciai fazia com que nos
uma continência adequada. Freqüente- refugiássemos, a m b a s , no desempe-
mente, ele se torna o lugar e o pretex- nho de papéis e transformava nossas
to para transgressões de toda ordem. A palavras em falas de plástico. As ten-
partir de certo ponto, tais transgressões tativas de criar canais para a expres¬
são a r t í s t i c a ou l ú d i c a t i v e r a m o
mesmo destino.
À semelhança do consultório, a
equipe que trabalha n u m a instituição
deve, em p r i m e i r o lugar, deixar que
surja o material clínico. Entre outras
coisas, o paciente irá repetir e colo-
car seus dramas em cena. Assim que
algo tenha s u r g i d o , deve-se tomá-lo
em consideração (Herrmann, 1991).
U m a das maneiras de fazê-lo é assu-
mir, transferencialmente, as caracterís-
ticas do meio de origem do adoles-
cente, p r i n c i p a l m e n t e de seu m e i o
f a m i l i a r . O t r a b a l h o de deixar que
surja para tomar em consideração
será completado nas reuniões clínicas,
ou de síntese, quando a equipe pro-
cura funcionar como a mente de um
a n a l i s t a . As vivências de cada tera-
peuta são tomadas em consideração
p a r a , a p a r t i r do c o n j u n t o , tentar
conferir u m s e n t i d o ao que se ob-
servou no dia-a-dia. C o m o se vê, o
método é o mesmo.
A grande diferença é que na ins-
t i t u i ç ã o os v á r i o s eus do paciente
podem escolher terapeutas concreta-
mente diferentes para se apresenta-
rem. Um paciente (cada um de seus
eus) pode g r u d a r em certo técnico,
h o s t i l i z a r u m s e g u n d o e erotizar a
relação com u m terceiro. C a d a u m
desses eus cria um campo transferen-
ciai específico, d e t e r m i n a n d o , nos
vários terapeutas, reações diferentes
ao mesmo adolescente — seja em fun-
ção de c a r a c t e r í s t i c a s pessoais, seja
daquilo que aquele eu põe em cena.
No consultório isto também
acontece: nem o paciente nem o ana-
lista são os m e s m o s , d i a após dia.
Nem sempre isto fica tão claro como
na instituição. E pode acontecer de
algum aspecto do paciente sequer se manifestar, por não encontrar
no analista a ressonância necessária.
Retomando o caso de Tais, o enquadre tradicional mostrou
seus limites para o bom funcionamento do método. As poesias
expressavam a impossibilidade do luto pelo objeto primário. Tran-
cada na melancolia, aderia a uma única representação de si mesma
- a "delinqüente". Ela se movimentava nos estreitos limites entre
odiar e ser odiada. Se estivesse em tratamento n u m hospital-dia,
ela certamente encontraria na equipe algum terapeuta, ou mesmo
outro paciente, com quem estabelecer uma relação de outra nature-
za. Em outros termos, a diversidade de terapeutas, com suas carac-
terísticas pessoais variadas, poderia m o b i l i z a r e colocar em cena
outros eus de Tais. Por que não lhe oferecer esta possibilidade no
consultório? Por fim, é ela mesma que me dá a dica quando come-
ça a trazer sua cachorrinha Loli às sessões.

C A M P O TRANSFERENCIAL: H U M A N I D A D E
CANINA

O c a m i n h o para a recuperação do h u m a n o em Tais passou


por um longo período c a n i n o . Sua paixão por cães c o n t i n u a v a
presente. O tema da adoção, provavelmente relacionado à melanco-
lia, podia ser trabalhado a partir de sua relação com Loli. A idéia
de introduzir os cães no enquadre surgia, assim, "de dentro" do
processo. Coloco o enquadre a serviço do método.
A primeira a entrar em cena foi sua "filha"; pouco depois,
os meus cachorros. Loli, na verdade Lolita, era a única "pessoa"
com quem Tais realmente se importava. E assim que entra em cena
o eu-amoroso da paciente. Loli e eu nos cheiramos até ficarmos
amigas. Enquanto Tais e eu jogávamos cartas, Loli brincava pelo
consultório ou ficava a nossos pés.
"Ela não é u m a fofa, u m a m o r z i n h o ? Viu c o m o ela gosta
de você? Quer trazer u m osso para ela, na p r ó x i m a sessão?" O
t o m c a r i n h o s o de T a i s se d e s t i n a v a a m i m a t r a v é s de L o l i .
Nesta nova fase, em l u g a r de x i n g a r - m e o s t e n s i v a m e n t e , acari-
nhava-me disfarçadamente. T a m b é m meus c a r i n h o s eram ofere-
cidos ao cão, mas era Tais quem os recebia. H a v í a m o s encon-
trado a distância ideal para uma relação afetuosa. A troca,
indireta, já não ameaçava. A adoção bilateral começava a acon-
tecer. Eu já não tinha a sensação de representar u m papel, ou
de dizer coisas de p l á s t i c o .
Um dia Tais pega Loli no colo, "meu amorzinho", e depois a
joga no chão, "sua v a g a b u n d a ! " A a m b i v a l ê n c i a entra em cena.
Pouco tempo depois, pergunta se pode conhecer meus cachorros,
que ficam num quintal ao lado do consultório. Na verdade, eles já
se conheciam. Sandy - uma labradora enorme, cor de mel - e Billy
- um b e a g l e safado, por vezes bravo - latem sempre que ela chega,
e só q u a n d o ela chega. Por que l a t i a m para receber alguém que
nunca tinham visto?
A importância de Loli na criação de novos canais para a cir-
culação dos afetos levou-me a atender à solicitação de Tais: trago
meus cachorros para o consultório. Decido assumir os riscos. Num
primeiro momento, entra apenas Sandy, que é mais dócil. As duas
se jogam, uma nos braços da outra, com tal sofreguidão que me
surpreendo. Parecia que as duas se conheciam havia muito tempo.
Tais reencontrava a destinatária daqueles poemas que falavam do
grande amor perdido. "Você é linda, maravilhosa!", diz Tais beijan-
do Sandy, que também a lambia inteira. Comento que parecia que
as duas se conheciam desde sempre. Se antes a troca amorosa entre
nós era mediada por Loli, agora o campo transferenciai esquenta
porque, afinal, é a minha cachorra que ela "ama de paixão".
Tais passa a trazer presentinhos para Sandy. Docinhos, ossos,
biscoitos. Ela está, ostensivamente, tentando roubar, seduzir - ou
seria a d o t a r ? - minha cachorra. E consegue! M i n h a s intervenções,
como sempre, eram mínimas, respeitando os limites impostos por
Tais. Eu dizia a Sandy: "diz oi para a mamãe, m a m ã e chegou, o
que ela lhe trouxe hoje?" E para a Tais: "sua f i l h i n h a está com
saudades!" Tais quer me mostrar o tempo todo como Sandy gosta
mais dela do que de m i m . A relação de adoção é mais forte do
que a biológica?
Na realidade, as identificações possíveis eram muitas. Os papéis
de mãe/filha/biológica/adotiva alternavam-se entre Sandy, Loli, Tais e
Marion. Também Loli veio conhecer os meus cachorros - irmãos de
criação. Com a entrada de Billy, o consultório ficou pequeno. Saía-
mos, Tais, eu, Billy e Sandy para passear na praça. Ali ficávamos a
sessão inteira. Eu, a mãe biológica, ela, a mãe adotiva, e as crianças
que, honestamente, gostavam mais dela que de mim. Conversávamos
sobre amenidades, sobre nossos cachorros, e eu via Tais rir, quase
descontraída! - coisa que jamais fizera no consultório. "Você viu, a
Sandy gosta de nós duas!" eu brincava com ela. Assim passaram-se
muitos meses. Das três sessões semanais, uma ou duas eram na pra-
ça. As outras, jogando cartas em silêncio. Tais se encarregava de es-
friar o clima afetivo, restabelecendo a justa distância entre nós.
U m fato curioso dá o que pensar sobre os mistérios da com-
pulsão à repetição e à transmissão transgeracional da vida psíquica
- quer dizer, das fantasias inconscien- Assim, ela não hesita em abandonar
tes dos pais. Tais viaja e, na volta, S a n d y para que Loli não a b a n d o n e
encontra Loli grávida. Era uma típi- seus filhos. Tais e m p e n h a v a - s e em
ca gravidez de adolescente, resultado garantir as condições necessárias para
da transa da jovem cadela em seu que Loli fosse uma boa mãe.
p r i m e i r o cio com o cachorro vizi- Retrospectivamente, o campo
n h o . "É u m a v a g a b u n d i n h a , esta t r a n s f e r e n c i a i p r o p i c i a d o por este
m i n h a L o l i ! " O d i m i n u t i v o , bem enquadre ganha sentido.
como o tom amoroso, sinalizava as De u m lado, m i n h a função era
pazes com a " v a g a b u n d a " - expres- semelhante à presença silenciosa de
são que usava para se referir, com u m cão j u n t o à mesa de t r a b a l h o
desprezo e raiva, à mãe b i o l ó g i c a . do d o n o . Eu, sua a n a l i s t a , era um
Ainda me lembro da sessão em que cão, um fantástico "cão falante". Cria-
Tais alternava juras de amor e pon- va-se um ambiente terapêutico seme-
tapés à pobre Loli. l h a n t e ao de u m h o s p i t a l - d i a , no
A repetição freqüente do termo qual as relações acontecem em todas
"vagabunda/vagabundinha" e a gravi- as d i r e ç õ e s . Os v á r i o s eus de Tais
dez precoce da cadelinha me fizeram relacionavam-se com os c(ã)es-terapeu-
i m a g i n a r u m mito de origem para tas, de acordo com suas característi-
Tais. Curiosamente, seus pais - eu já cas "pessoais". Uma delas era o amor
lhes havia perguntado - não tinham incondicional. Em suma, eu era um
nenhum. Suas características físicas - cão e os cães eram os terapeutas.
alta, pele clara, olhos esverdeados, Porém o inverso também era ver-
traços finos - me levaram a imagi- dadeiro. Afinal, eu nunca deixei de ser
nar uma jovem de classe alta - uma sua analista e, na m i n h a escuta, era
sensual Lolita? uma "vagabunda"? - comigo que Tais se relacionava através
grávida aos 14 ou 15 anos. Em mi- dos cães. Eles eram apenas os mediado-
nha fantasia a garota é obrigada, pela res necessários entre mim e ela, eram
família, a livrar-se do bebê para evi- meus embaixadores. O resultado disto
tar um escândalo. Tais tem seu pró- é que certa gama de afetos, antes re-
prio m i t o de o r i g e m : r o u b a r a m - n a presada, agora fluía entre nós.
de sua mãe biológica, também contra Passamos por v á r i o s p e r í o d o s
sua vontade. nesta análise. O campo da representa-
Pois bem, Loli dá à l u z (Tais ção dos p a p é i s , que p l a s t i f i c a v a as
faz o parto) e, logo depois, Tais não palavras; o da h u m a n i d a d e c a n i n a ,
quer m a i s ver Sandy. No i n í c i o eu que prescindia de palavras. Em am-
fico chocada com o que me parece bos havia uma mesma regra: encon-
ser u m a rejeição m a c i ç a . O n d e foi trar e respeitar a justa distância entre
p a r a r todo a q u e l e a m o r ? M a s sua nós. Se ficasse m u i t o q u e n t e , Tais
explicação me surpreende ainda mais. entrava em p â n i c o ; m u i t o frio, ela
"Se eu p a s s a r o c h e i r o da S a n d y era um cãozinho vira-latas abandona-
para os filhotes da Loli, ela não vai do à m e l a n c o l i a . Neste s e n t i d o , as
mais reconhecê-los, não vai mais que- alterações introduzidas no enquadre
rer c u i d a r deles e dar de m a m a r . " facilitaram o trabalho.
Fui aprendendo que, para tocar O papo era e s t e r e o t i p a d o , o
Tais sem assustá-la d e m a i s , eu n ã o que lhe convinha, dada sua falta de
p o d e r i a u l t r a p a s s a r certo l i m i t e de intimidade com as palavras. Entrava
palavras por sessão. Desrespeitar esta nas salas c o m o nick de B o n i t a e
regra significava colocar-me fora do Gordinha e perguntava: " a l g u é m aí
campo da justa distância. Este é o não tem p r e c o n c e i t o c o n t r a gordi-
campo transferenciai de m i n h a pre- nhas?". " G o r d i n h a " era a nova ma-
sença canina, atenta, orelhas em pé, neira de trazer o "vira-lata" do iní-
faro sensível. Como um cão de cio da análise, ambos alvo de rejei-
guarda, ou de c o m p a n h i a , eu podia ção e preconceito. Eu escutava: "Al-
quebrar o silêncio para apontar uma guém, além dos cães, pode se interes-
ou o u t r a coisa. Soa e s t r a n h o , mas sar por mim?".
penso ter c o n d u z i d o a parte m a i s A conversa na sala de chat segue
s i g n i f i c a t i v a desta a n á l i s e na p e l e / u m r o t e i r o . C e d o ou t a r d e vem a
m e n t e de um cão. Agora posso re¬ pergunta: c o m o você é? Ela se des-
i n t e r p r e t a r aquela d e m a n d a inicial c r e v i a de m a n e i r a v u l g a r : " t e n h o
de análise que me parecia tão pou- pele dourada, peito, bunda...gostou?".
co p r o m i s s o r a : "faço análise, desde Certa vez um rapaz quis saber mais:
que ganhe um cachorro" - uma ana¬ " c o m o é sua p e r s o n a l i d a d e ? " . Tais
lista-cachorro. balbucia o que ouvia em casa: "sou
doce, mas agressiva...", não tinha
idéia de c o m o c o n t i n u a r . Frente à
insistência do garoto, por quem ela
REINVESTINDO A se interessava, Tais me pede para des-
crever-lhe c o m o ela é. Não verbal-
PALAVRA mente, é claro, mas por escrito (ain-
da a justa distância!) para enviar um
Como sói a c o n t e c e r , quando e-mail ao rapaz. A s s i m , sou direta-
percebi, Tais já não r e q u i s i t a v a os m e n t e c o n v o c a d a a falar c o m ela,
c a c h o r r o s na sala de a n á l i s e . S a n - sobre e l a . O c ã o , a p e s a r de ser o
dy, B i l l y e Loli d e i x a r a m de fazer melhor a m i g o do homem, nada
parte do enquadre. As coisas muda- pode dizer sobre a personalidade de
vam. Ela a g o r a q u e r i a e n t r a r na sua dona...
internet, pelo meu computador. Nas sessões seguintes, em lugar
Entrava n a s s a l a s de chat e con- de entrar na sala de chat, Tais pes-
v e r s a v a c o m os r a p a z e s . Era um quisa sites de astrologia. Ela quer sa-
t e r r i t ó r i o novo, para q u e m sempre ber o que os astros têm a dizer so-
preferira animais a gente. Não bre ela, i m p r i m e tudo o que encon-
obstante, a regra da justa d i s t â n c i a tra sobre seu signo. Recusa o pedido
c o n t i n u a v a presente nas conversas de análise? Entra em sites esotéricos
v i r t u a i s . Preservada pelo anonima- que ensinam a usar perfumes e velas
to, Tais anotava e-mails e telefones coloridas para levantar o astral. Nem
dos rapazes para dar continuidade a c r e d i t o no que vejo: ela, que era
ao " r e l a c i o n a m e n t o " . dark, gótica, da tribo que "cultuava
a morte", agora procura algo para me dar n e n h u m presente, n e n h u m a
levantar seu astral! A melancolia vai lembrança?" Eu lhe dou um marcador
se d i s s i p a n d o . E com interesse que de livros que ficava perto de meu
ela anota os perfumes que produzem computador e com o qual ela brinca-
determinados benefícios. Fico saben- va enquanto navegava na internet.
do que bruxas não são más criatu-
ras, é o povo que as vê assim. "Elas
ajudam a conseguir u m amor, nem
que seja r o u b a n d o o n a m o r a d o de N O V A HISTÓRIA?
outra, por isso têm fama de m á s . "
Taís imprime, retiradas dos sites, re- Uns cinco meses depois, Taís re-
ceitas de poções do a m o r e de ba- t o r n a . A v i a g e m foi m u i t o boa e
nhos aromáticos. importante. Agora estuda hotelaria.
Embora para nós, adultos, os si- Iniciou um estágio. Capricha no vi-
tes possam ser vistos como uma fuga sual para trabalhar. Senta-se na cadei-
do m u n d o - afinal, são um universo ra ao l a d o do divã. A t i m i d e z e a
virtual - aprendi que, para os adoles- falta de jeito para conversar são no-
centes, os sites p o d e m ser objetos, tórias, mas ela faz um esforço. Che-
c o m o q u a i s q u e r outros, de intenso ga perto do final de seu horário,
investimento l i b i d i n a l . Pelo menos, para garantir a justa distância. E as-
era assim que eu via Taís, saindo do sim se mantém por várias semanas.
atoleiro em que se encontrava. U m d i a ela aparece com u m a
Taís nunca me contou nada so- nova proposta: quer c o m p r a r dois
bre seu d i a - a - d i a . N o s s o t r a b a l h o hamsters em sociedade comigo. Cada
processava-se em outra d i m e n s ã o , e u m a de nós p a g a r i a a m e t a d e das
ia d i s c r e t a m e n t e p r o d u z i n d o seus despesas. Eu recordo, junto com ela,
frutos. U m dia, na praça, q u a n d o que na entrevista i n i c i a l seus pais
a i n d a passeávamos com os cachor- haviam relatado que Tais tinha dois
ros, ela anuncia que entrou em duas hamsters. Por várias vezes ela permi-
faculdades. Eu sequer sabia que ha- tira que eles escapassem do quarto e
v i a p r e s t a d o v e s t i b u l a r . Em o u t r a passeassem pelo a p a r t a m e n t o . Estas
o c a s i ã o c o n t a que fez 18 a n o s , ia escapulidas "sem q u e r e r / q u e r e n d o "
tirar C I C , carta de motorista e ga- c o n t r a r i a v a m o c o m b i n a d o com a
n h a r u m carro. Emagrecera. T i n h a mãe, que tem pavor de ratos. Esta
alguns a m i g o s . Meses depois revela obriga Tais a se desfazer dos bichi-
que vai p a s s a r a l g u n s meses fora, nhos. Ela obedece sem reagir. Nunca
n u m i n t e r c â m b i o para aperfeiçoar m a i s teve n o t í c i a s . " T a l v e z m i n h a
seu inglês. Entramos no site da cida- mãe os aceite desta vez, se eles per-
dezinha em que ficaria. Vimos fotos tencerem a nós duas."
do lugar, as danceterias, o mapa da Não é difícil atribuir um senti-
cidade. Viajávamos juntas. do à proposta. Ela deseja reconstruir
T a i s se v a i , em seu p r i m e i r o uma história, a sua história. O desti-
movimento de autonomia. Antes, po- no dos "filhos" teria sido diferente,
rém, ela me pergunta: "Você não vai caso tivessem pai e mãe? Ou u m a
avó que aceitasse criar a neta? Con-
versamos também sobre o que aconte-
ceria caso sua mãe não aceitasse os
hamsters novamente. "Você cuida de-
les para mim, eles serão seus também!"
Para encurtar a história, as hams-
ters (eram duas fêmeas) passaram a
morar comigo. Batizou-as de Taís I e
Taís II. Uma era brava, mordia ("não
m o r d e a m a m ã e , sua p u t i n h a ! " ) , a
outra era dócil, carinhosa. Os animai¬
zinhos estavam sempre no consultório
q u a n d o ela chegava. Taís b r i n c a v a
com elas, trazia comida, brinquedos e
serragem limpa para a gaiola.
C o m o tempo este tema foi se
esvaziando, perdendo sua vitalidade,
tendendo à plastificação. Taís propõe
o fim de nosso trabalho. Percebo que
o nó principal de sua história emocio-
nal fora desatado. O resto teria que
ficar para outra análise. Ficou combi-
nado que Taís poderia vir visitar seus
hamsters quando desejasse.

EPÍLOGO

Ela n ã o r e t o r n o u . E n t r e t a n t o ,
seis meses após o término da análise,
ao voltar de u m a viagem, encontro
um presente que ela fizera especial-
mente para m i m : u m a pequena tela
pintada em vermelho com vários ros¬
tinhos sorridentes e u m a carta. Nes-
ta, ela dizia que recentemente tinha-
se dado conta de que me maltratara
durante nosso trabalho. Explica que
me via como inimiga, mas agora en-
tende que eu era sua amiga. Agrade-
cia por tê-la ajudado, acrescentando,
bem ao seu estilo, que não esperava
nem queria que eu respondesse à car¬
ta. Desejava apenas que eu soubesse to que ela t r o c a r i a seu futuro ca¬
t u d o isso. Fiquei satisfeita em ter chorrinho por um gato bonito, sua
notícias dela, mas também decepcio- resposta sugere que m i n h a fala teve
nada, pois não havia qualquer men- efeito interpretativo, em outras pala-
ção aos hamsters - que c o n t i n u a m vras, foi u m a interpretação transfe-
c o m i g o . Tive que aceitar o fato de renciai; em outro momento, percebo
que ela não pretendia reabrir a ques- que "algo transforma as palavras, mi-
tão da doação dos bichinhos que me nhas e de Tais, em plástico". Nestes
h a v i a feito. Para ela, era um fato dois casos, é evidente que a transfe-
consumado. r ê n c i a é a l g o d i f e r e n t e da r e l a ç ã o
concreta entre nós, até porque nos
ultrapassa. É mais apropriado dizer
que este a l g o - o campo transferenciai
PÓS-ESCRITO - organiza as relações entre analista e
paciente de modo a excluir a possibi-
V a m o s p a r t i r do p r e s s u p o s t o lidade de uma troca verbal "de ver-
de que o leitor reconhece aqui u m dade".
trabalho psicanalítico. Se assim for, O campo transferenciai é aqui-
ele problematiza a noção de transfe- lo q u e d e t e r m i n a a m a n e i r a p e l a
rência enquanto r e l a ç ã o i n t e r s u b j e t i ¬ qual a relação entre analista e paci-
va. Em minha instituição de forma- ente vai se estabelecer, durante cada
ção, a Sociedade Brasileira de Psica- p e r í o d o da a n á l i s e . D i t o de o u t r o
nálise de São Paulo, identifico pelo modo, é aquilo que faz com que as
menos duas maneiras de concebê-la. relações entre Tais, os cães e m i m ,
C o m o r e l a ç ã o e n t r e a p e s s o a do t e n h a m de ser de u m j e i t o , e n ã o
p a c i e n t e e a pessoa do a n a l i s t a , e possam ser de outro.
como relação entre os objetos inter- Assim, a transferência não é pro-
nos do paciente, projetados s o b r e / priamente a relação emocional (que
para dentro do analista. seria a l g o o b s e r v á v e l , e, p o r t a n t o ,
Vejamos, primeiramente, a trans- c o n s c i e n t e ) , m a s sua c o n d i ç ã o de
ferência como relação entre duas pes- possibilidade, sua ordem de determi-
soas. De cara, soa estranho afirmar nação. Esta "não é acessível à obser-
que a transferência possa ser a rela- vação (é inefável!) por ser inconscien-
ção entre Tais e o cão. Por o u t r o te", t a n t o p a r a o a n a l i s t a q u a n t o
lado, não é exato supor que a repe- para o paciente.
tição do passado no presente corres- Da mesma forma que transferên-
ponde, p o n t o por ponto, à relação cia não é s i n ô n i m o de relação emo-
entre paciente e analista, mesmo que cional, também não se reduz "àquilo
m e d i a d a p e l o c ã o . As c o i s a s que que Tais faz comigo", "como ela me
a c o n t e c e m n u m a a n á l i s e vão a l é m vê", "quem ela quer que eu seja". Em
disso, como se discutiu em reunião outras palavras, transferência não
científica. Dois exemplos desta ultra¬ pode ser s i n ô n i m o de identificação
passagem: em certo momento da aná- projetiva, exitosa ou não. Vimos que
lise, digo à paciente que não acredi- fui obrigada a desistir das palavras e
a conduzir esta análise na pele de um cão. Não penso que tenha
sido uma atuação, resultante de identificação projetiva com êxito.
Os resultados mostram que a análise progrediu, o que não acon-
teceria em caso de a t u a ç ã o . H a v e r i a a l g u m objeto i n t e r n o , em
m i m projetado, capaz de explicar as condições peculiares desta
análise? Dizer que precisei me identificar com um "objeto b o m "
é verdade, mas é pouco, porque não dá conta da especificidade
do que aconteceu a q u i . A f i r m a r que me i d e n t i f i q u e i com u m
"objeto c a n i n o " é óbvio, mas o que é um objeto canino? Enfim,
penso que esta análise problematiza a idéia de que transferência
seja sempre identificação projetiva.
Finalizando, o campo transferenciai leva em consideração as
concepções anteriores, porém situa-se n u m lugar um pouco dife-
rente em relação a ambas. Considera, certamente, a relação emo-
cional da dupla, mas transferência seria, antes, sua ordem de deter-
minação. Considera a identificação projetiva, porém como um me-
canismo de defesa entre outros, capaz de conferir certas caracterís-
ticas ao campo transferenciai. Enfim, se este é um trabalho psicana¬
lítico, ele nos encoraja a explorar outras técnicas para o manejo de
pacientes difíceis, adolescentes ou não. E claro que há o risco do
vale-tudo. Podemos optar: d o m i n a r o método e tentar chegar lá
onde está o paciente. Ou?... •

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

C a h n , R. ( 1 9 8 5 ) . Adolescence et folie. Paris: PUF.

H e r r m a n n , F. ( 1 9 9 1 ) . Clínica Psicanalítica: a arte da interpretação. São Pau-


lo, SP: B r a s i l i e n s e .
P e n o t , B. ( 1 9 9 9 ) . T e x t o inédito (s/t), apresentado no I Encontro Clínico
Institucional p r o m o v i d o pelo Instituto T h e r a p o n Adolescência.

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