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JUSPODIVM
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO PÚBLICO
Salvador
2012
1
Salvador
2012
2
TERMO DE APROVAÇÃO
Monografia aprovada como requisito para obtenção do grau Especialista em Direito Público,
pela seguinte banca examinadora:
Nome:______________________________________________________________________
Titulação e instituição:________ ___________________________________________________
Nome:______________________________________________________________________
Titulação e instituição: __________________________________________________________
Nome:______________________________________________________________________
Titulação e instituição:__________________________________________________________
AGRADECIMENTOS
RESUMO
A presente monografia tem como objeto uma reflexão crítica acerca das escolhas trágicas que
envolvem a aplicação dos direitos prestacionais em um ambiente de escassez de recursos, de
modo a propor respostas dogmaticamente mais adequadas aos dilemas de decidibilidade
constitucional. Para isso, o texto analisa a estrutura dogmática dos direitos fundamentais
enfatizando os imprescindíveis custos de sua consecução. Nesse sentido, esta monografia
busca estabelecer um diálogo profícuo entre a análise econômica e a ponderação
principiológica, sob o leitmotiv da eficiência, da proporcionalidade e da isonomia. Ao avalizar
as relações entre Direito e Economia, este trabalho busca acentuar não apenas seus fatores em
comum, como também apontar as insuficiências teóricas de um monólogo autista (jurídico ou
econômico), em detrimento de um diálogo construtivo de ambas as áreas do conhecimento. A
partir desse diálogo, redimensionam-se as fronteiras dogmáticas dos direitos prestacionais em
torno de uma estrutura tripolar, refratária às lógicas de microjustiça. Criticam-se, nesse plano,
as inconsistências de um modelo voluntarista que descure das consequências das decisões
judiciais, assim como uma postura excessivamente ativista que se arvore a substituir a Agora
legislativa pelo Forum judicial. Essa monografia propugna, em seu lugar, um ativismo
judicial voltado ao redirecionamento das deliberações políticas a seu locus constitucional
parlamentar. Destarte, o Judiciário deve manejar mecanismos que garantam a máxima
transparência da res publica, especialmente trazendo à tona as inexoráveis escolhas trágicas
que envolvem a tutela dos direitos prestacionais.
RÉSUMÉ
Cette monographie a pour objet une réflexion critique sur les choix tragiques de l'application
des droits aux prestations dans un contexte de rareté des ressources, afin de proposer des
réponses dogmatiquement plus appropriées aux dilemmes de la décidabilité constitutionnel.
Pour ce faire, le texte analyse la structure dogmatique des droits fondamentaux, mettant
l'accent sur les indispensables coûts de son réalisation. Ainsi, cette monographie vise à établir
un dialogue fructueux entre l'analyse économique et la pondération des principes, sous le
leitmotiv de l’efficacité, de la proportionnalité et de l’égalité. Afin d'évaluer la relation entre le
droit et l'économie, ce travail vise souligner non seulement leurs facteurs communs, comme
indiquer les insuffisances théoriques d’un monologue autiste (juridique ou économique), au
détriment d'un dialogue constructif de ces deux domaines de connaissance. Dans ce dialogue,
les frontières dogmatiques des droits aux prestation sont redimensionnées autour d’une
structure tripolaire, réfractaire aux logiques de microjustice. Ce sont critiqués, dans ce plan,
les incohérences d'une modèle voluntariste qui négligent les conséquences des décisions
judiciaires, aussi bien que une attitude trop ativiste que prétende substituer l’Agora legislative
par le Forum judiciaire. Cette monographie déffend, dans ce lieu, un activisme judiciaire vers
le redirectionnement des delibérations politiques pour sson locus constitutionnel
parlementaire. Ainsi, le pouvoir Judiciaire doit gérer des mécanismes qui garantissent le
maximum transparence de la res publica, surtout mettant en evidence les inéxorables choix
tragiques qui impliquent la protection des droits aux prestations.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 10
6 CONCLUSÃO 86
REFERÊNCIAS 88
10
1 INTRODUÇÃO
A existência de uma voz interior remonta ao próprio daimon socrático. Ela deriva, decerto, da
própria estrutura reflexiva da subjetividade humana, objeto da filosofia moderna,
consubstanciada no cogito cartesiano. Esse juízo interior não é algo arbitrário, senão inerente
ao ser humano, que pode chegar a desconsiderá-lo, mas jamais deixar de dar-lhe ouvidos. A
questão que se põe à Ciência do Direito é como cotejar os ditames desta autonomia da
consciência, vis à vis às determinações da heteronomia do direito. Nesse prisma, os juízes,
como qualquer mortal, estão sujeitos a uma instância moral interior; mas, do ponto de vista
jurídico, encontram-se indissociavelmente ligados ao império da lei. Não obstante, se ao
magistrado não é facultado seguir os voluntarismos de sua consciência, tampouco lhe é dado
ser uma partícula ilativa destinada unicamente a conectar premissas de um silogismo judicial.
Deveras, não há como se descrever senão pela angústia 2, a situação pela qual o operador do
direito é premido pelo imperativo de decidibilidade concreta, entre o “tribunal da consciência”
e a “consciência do tribunal” (MUGUERZA, 1994).
1
Ou desvelado, nos termos heideggerianos.
2
No sentido que lhe dá Martin Heidegger (1969). A angústia permite a manifestação da aflitiva impossibilidade
de determinação. O ingresso na angústia leva o ser humano a projetar um modo prático na dimensão existencial
do cuidado. Isso significa integrar ao agir no mundo, a lucidez de novos horizontes, com a consciência de sua
temporalidade.
3
No sentido de “Gewissen” e não “Rewsstsei”.
11
Decisões dessa natureza, que fecham os olhos as consequências de suas decisões, espécie de
cegueira edipiana, aparentam mais refletir uma obediência ao “tribunal da consciência” que à
“consciência do tribunal”. Garantem a alguns poder dormir sem o peso da responsabilidade de
ter dado a palavra final sobre a vida de outro ser humano. Mas a que custo? Essa tentativa de
isentar-se das intrínsecas responsabilidades morais da decisão jurídica aproxima-se da má fé
sartriana4. O jurista não deve ceder a sentimentalismos de uma microjustiça sectária e
fragmentária. O plano decisório encontra-se indissociável de uma dinâmica de trade-off5. Não
se pode olvidar que todas as decisões sobre direitos, em especial direitos sociais prestacionais,
trazem em si um quê de “escolha de Sofia6”.
O reconhecimento dessa dimensão trágica torna visível a tensão entre o dever ser jurídico e o
dever ser moral diante do fato que, em vista da inexorável escassez de recursos, algum bem há
de ser sacrificado. Decisões jurídicas implicam (re) alocação de recursos, portanto, resultam
em custos. envolvem escolhas de “primeira ordem” (first order) sobre o que atender e de
“segunda ordem” (second order choices) a quem atender (CALABRESI, 1978). Supor que os
custos de realização de direitos não serão arcados por outras pessoas em situações concretas,
seus “financiadores ocultos”, resta uma “profissão de fé” (AMARAL, 2010). “Levar os
direitos a sério” implica em levar em consideração escolhas trágicas, afinal “direitos não
nascem em árvores”. (GALDINO, 2005).
4
Mauvaise fois em Jean-Paul Sartre (1987) remete à obstinação daquele que mantém uma posição intransigente
a despeito de qualquer argumentação racional em sentido contrário, embora nem mesmo si mesmo esteja
convencido da adequação de seu ponto de vista à realidade.
5
O termo trade-off corresponde, no jargão econômico, à relação inversamente proporcional entre duas variáveis,
no sentido em que a opção por uma dada alternativa implica necessariamente que as demais serão preteridas.
6
A menção à “Escolha de Sofia” refere-se ao dilema protagonizado pela personagem Sophie Zawistowski em
obra homônima do romancista americano William Styron (1979), posteriormente adaptado às telas do cinema. A
expressão alude a uma necessidade imperiosa de tomada de decisão, a qual, independente da alternativa que se
opte, haverá custos trágicos para um dos envolvidos. Trata-se de um caso extremo de trade-off, no qual o
benefício de determinada escolha implica no fenecimento tout court da opção concorrente. A tensão inerente ao
impasse da escolha trágica entre dois bens de valor análogo refoge, aqui, à temática do estado de necessidade
interpartes, tendo em vista que cabe a um terceiro, Sofia, (ou o Estado, em cada um de seus poderes constituídos,
seja o Legislativo, a Administração ou o Judiciário) decidir qual dentre estes deve ser sacrificado.
12
Pontes de Miranda
7
O conceito de direito subjetivo remete ao poder de ação juridicamente atribuído a dado indivíduo (assente em
um direito objetivo), destinado à satisfação de certo interesse tutelado pelo Direito.
8
Embora citada igualmente em Ingo Sarlet (2001, p.11) e reproduzida por diversos doutrinadores como se fosse
de autoria deste último, a conceituação é de Robert Alexy (2008). Embora Sarlet faça menção que se baseia na
definição de Alexy, em realidade trata-se, como se vê, de transcrição ipsis verbis.
14
Despiciendo dizer que tratam-se aqui todos de direitos necessariamente subjetivos de sede
constitucional. Enquanto subjetivos, os direitos a prestação envolvem relações triádicas que
podem ser descritas da seguinte forma: a tem em face do Estado (s) a obrigação que este
realize dada ação h; o que implica que o Estado (s) tem, em função de a, o dever de realizar h.
Essa exigibilidade “perfeita” marca seu caráter prima facie (ALEXY, 2008).
A abstenção do Estado em torno dos direitos de defesa não é suficiente para a proteção dos
direitos fundamentais. Para Gilmar Mendes (2002), a liberdade “em relação ao” (Freheit vom)
Estado complementa-se pela liberdade “mediante atuação” do Estado (Freiheit durch).
“Podemos partir da premissa de que tanto os direitos de defesa quanto os direitos sociais
formam o sistema unitário e materialmente aberto dos direitos fundamentais na nossa
Constituição” (SARLET, 2001, p.21). A questão que se coloca é em que medida o Estado se
vê obrigado a realizar as prestações fáticas necessárias para consecução dos direitos positivos
constitucionalmente colimados.
A aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais contemplada pelo art. 5º, §1º
CF tem âmbito de abrangência amplo, à luz de uma interpretação teleológico-sistemática. A
forma de sua positivação, contudo, pode ensejar uma eficácia limitada, que imprescinde de
regulação, como a disciplina das relações de consumo (art. 5º, XXXII, CF) e participação na
gestão da empresa (art. 7º, XI CF).
9
A utilização do signo “social”, longe de configurar mera armadilha semântico-pleonástica, é instrumento de
ênfase normativa. A expressão consigna “certo grau de intervenção estatal na atividade econômica, tendo por
objetivo assegurar aos particulares um mínimo de igualdade material e liberdade real na vida em sociedade”
(SARLET, 2001, p.4).
15
Todavia, esses direitos não devem ser entendidos enquanto normas meramente intencionais
vez que isso implicaria em deixá-los desprotegidas diante de omissões estatais, tornando
grande parte da Constituição um “nada jurídico” (FREIRE JÚNIOR, 2005). Tampouco devem
ser entendidas como direitos destituídos de qualquer dimensão subjetiva. Entrementes, devido
às dificuldades em sua realização, há de se reconhecer barreiras a uma eficácia tout court10.
Em síntese, a aplicabilidade imediata de normas constitucionais esculpida no art. 5º, § 1º CF
deve ser analisada com cautela.
10
Existem as mais variadas classificações sobre eficácia de normas constitucionais, cuja análise foge à proposta
da presente monografia. Apenas a título de exemplo temos: Classificação Clássica (Ruy Barbosa / Thomas
Cooley) que distingue Norma (não) autoexecutável /(not) self-executing; a Classificação de Meireles Teixeira
que distingue Norma de eficácia plena e Norma de eficácia limitada ou reduzida; Classificação de José Afonso
da Silva que distingue Norma de eficácia plena, Norma de eficácia contida e Norma de eficácia limitada
(declaratória de princípio programático e declaratória de princípio institutivo); Classificação de Maria Helena
Diniz que distingue Norma de eficácia absoluta, Norma de eficácia plena e Norma de eficácia relativa
(restringível e complementável). Para uma análise mais detida, vide Luís Roberto Barroso (2008).
16
Com argúcia, Stephen Holmes e Cass Sustein (1999) apontam que à construção kelseniana
que a dado direito do cidadão corresponde a uma obrigação do funcionário estatal, deveria ser
acrescentado que esse funcionário deve, necessariamente, ser pago13. O direito ao voto não
pode ser desempenhado sem verbas destinadas à realização dos procedimentos eleitorais.
Tampouco a liberdade pode ser exercida sem a garantia de um custoso aparato de segurança
pública. O próprio acesso à justiça imprescinde de recursos suficientes à criação e
manutenção dos tribunais. Referendar os direitos de defesa enquanto direitos absolutos em
detrimentos das prestações sociais por uma suposta ausência de custos em relação aos
primeiros, logo, não se sustenta. Em outras palavras, “a dificuldade de subjetivização de um
direito a um facere do Estado não é apenas um fenômeno do moderno ‘Estado Social’”
(CANOTILHO, 2008, p.50).
Contudo, apesar da tutela de todo e qualquer direito envolver custos, no caso dos direitos
sociais, este aspecto assume especial relevância. Esses direitos têm como objeto conferir, por
assim dizer, um “mínimo” de existência digna e oportunidades isonômicas de
desenvolvimento, reclamando uma maior intervenção do Estado nas esferas econômica e
social. Os direitos prestacionais “custam mais dinheiro”, diferenciando-se os “gastos
institucionais” (como o aparato judiciário), comuns aos direitos de defesa (SARLET, 2011);
são, logo, “posições jurídicas claudicantes” (CANOTILHO, 2008).
11
Conforme já antedito, há direitos sociais como o direito à greve que, pela sua estrutura dogmática, revestem-se
de verdadeiro direito de defesa, de caráter não prestacional em sentido estrito.
12
No sentido que envolve custos intrínsecos e, obviamente, não na acepção comum de direito vigente, posto.
13
Do mesmo modo, o clássico posicionamento de Norberto Bobbio (2004, p.23) de que “o problema
fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas de protegê-los”, poder-
se-ia acrescentar a necessidade de custeá-los. Além de político, sua tutela é, deveras, um problema econômico.
17
Entrementes, no que pese os inegáveis contributos teóricos dos autores americanos à Ciência
do Direito, não parece ser apropriado considerar a escassez, apesar de seu caráter inexorável,
pertencente ao próprio campo de delimitação de direitos in abstrato.
18
Este último parece ser igualmente o entendimento de Robert Alexy (2008), segundo o qual o
âmbito de proteção do direito é passível de restrições em vista das possibilidades fático e
jurídicas de sua realização14. Desse modo, o modelo (4) de verificação da limitação dos
recursos à luz da reserva do possível é o referencial adotado nesta monografia. Nesse mesmo
sentido seguem tanto Ingo Sarlet (2011) como Gustavo Amaral (2010)15 e Gomes Canotilho
(2008) que assenta: “o recorte jurídico-estrutural de um direito não pode nem deve confundir-
se com a questão de seu financiamento” (p.108). Diferencia-se, desse modo, o direito abstrato
(prima facie) “garantido constitucionalmente ao cidadão que preencha os pressupostos
subjetivos de admissão”, da “reserva do possível, aquilo que o indivíduo pode razoavelmente
exigir da sociedade” (ALEXY, 2008, p.439).
Nesse cotejo, para além do plano estritamente normativo, uma interpretação constitucional
consequencialista, que leve em conta os custos do direito, figura instrumento imprescindível à
manutenção de integridade do sistema jurídico. Nesse prisma, mais que em qualquer outro
ramo da Jurisprudência, o Direito Constitucional, em especial no que tange à tutela de direitos
fundamentais prestacionais, validade e faticidade encontram-se em permanente tensão. Pode-
se dizer que o Direito é um “servo de dois senhores”, da lei e da realidade (AMARAL, 2010).
O nó górdio desse contexto é definir o conteúdo dessa relação bifronte no campo da Lex
Legum. Nesse aspecto, Stephen Holmes e Cass Sustein (1999) destacam a “futilidade” de
discussões interpretativas com alto teor de abstração.
Pode-se dizer que tergiversações teóricas perdem-se nas brumas do “mundo dos conceitos”
(GALDINO, 2005). Nos casos simples, há possibilidade de justificação interna mediante
lógica dedutiva e inferências; já os “casos difíceis” (hard cases), nos termos de Ronald
Dworkin (2002), especialmente os que encerram “escolhas trágicas” (tragical choices), na
expressão de Guido Calabresi (1978), demandam justificativa mais complexas. A
interpretação constitucional não deve ser pautada pelo culto inconsequente à norma, sob o
risco de sua reificação. Essa espécie de fetichismo jurídico, nos termos de Flávio Galdino
(2005), o cogito ergo sum torna-se um ilusório cogito ergo est: trata-se da nefasta
14
Os desdobramentos dessa posição serão avalizados com mais vagar no Capítulo 03.
15
Vale dizer que, originariamente filiado ao modelo (5), na última edição de sua obra, o autor reformou o
entendimento no sentido supradelineado.
19
“expropriação dos fatos pelo direito” (p.114) que pode ensejar uma “esquizofrenia jurídica”
(p.334). A Constituição não se duvida, há de ser cumprida. Porém, deveras, à mesma não cabe
normatizar o infactível.
O culto à norma, à fetichização do positivo, tem como objeto “afastar nossos olhares de horror
das trevas e poupar ao ‘sujeito’ pelo bálsamo salutar da aparência” (NIETZSCHE, 2004,
p.121). Acostumamo-nos, portanto, a uma genealogia positivista acrítica, rendemo-nos aos
monumentos legislativos de uma “cultura bacharelesca”, esse interesse quase que bizantino
pelos livros (HOLANDA, 1995). Ao renegar-se o aspecto consequencial do fenômeno
jurídico, opera-se uma “décalage regulativa [...] o modo normativo-intervencionista descura a
necessidade de informação, quer no momento do impulso regulativo, quer na fase de
controlo” (CANOTILHO, 2008, p. 258). Esse gap informativo “mutila o conflito social,
reduzindo-o ao caso legal e desse modo exclui a possibilidade de uma adequada pró-futuro
resolução socialmente compensadora16” (TEUBNER, 1987, p.8).
16
Tradução livre do original: “It mutilates the social conflict, reducing it to a legal case and thereby excludes the
possibility of an adequate future orientated, socially rewarding resolution”.
20
Oscar Wilde
Sabe-se bem que Herbert Hart (2007), partindo de um modelo puro de regras, concebe que
nos casos de maior complexidade caberia ao intérprete decidir discricionariamente,
recorrendo a elementos externos ao ordenamento jurídico18. Para Richard Posner (2010), a
análise econômica do direito insere-se nessa corrente de pensamento, conquanto orientador de
critérios racionais de decisão. Esse construto, todavia, não parece ser estruturalmente
apropriado, por situar os contornos da decisão judicial fora do controle de racionalidade da
dogmática jurídica. Contraponde-se a esse espectro discricionário, Ronald Dworkin (2002)
propõe integrar ao sistema jurídico os padrões de decidibilidade de “casos difíceis” (hard
cases). Para esse fim, aduz que, para além de regras, regidas por uma lógica de “tudo ou
nada” (all or nothing), a Ciência do Direito é regida por princípios, preceitos normativos que,
para além da validade, incorporam a dimensão de sopesamento. Desse modo, a atribuição
argumentativa de maior peso a um dado princípio em detrimento de outro em dada caso
concreto não afeta sua dimensão de validade; o afastamento de dado princípio operacionaliza-
se de maneira ad hoc, não sendo excluído do ordenamento do qual decorre.
17
“Hoje em dia as pessoas sabem os preços de tudo e o valor de nada”.
18
A discussão acerca da discricionariedade do intérprete na aplicação do direito, decerto, não é nova e antecede
as considerações de Hart (FACCI, 2011). Hans Kelsen (1999) em sua Magnum opus, Teoria Pura do Direito
(Reine Rechtslehre), trata a norma jurídica como um antecedente lógico e inafastável de uma norma de decisão,
ponto culminante do processo de interpretação, carreado pelo “intérprete autêntico”, o órgão estatal aplicador do
direito. À interpretação do texto, sucede-se a concretização do direito, ao bosquejar-se a norma jurídica a caso
concreto. Nesse processo biface interligam-se um ato de conhecimento interpretativo a um ato de vontade
concretizador. Inserida dentro da moldura normativa, diversas interpretações são possíveis de serem
gnosiologicamente deduzidas, entre as quais uma há de ser volitivamente escolhida pelo intérprete (KELSEN,
1999). À luz do paradigma kelseniano, essa inarredável discricionariedade decisória refoge ao campo
epistemológico da Ciência do Direito, sendo juridicamente insindicável, logo, despida de cientificidade.
21
As decisões jurídicas, mesmo em hard cases operam-se, portanto, mediante critérios ex lege.
A polêmica Hart / Dworkin acerca da existência ou não de um espaço de discricionariedade
do intérprete tem como pano de fundo a tradição jurídica anglo-saxã. Como é cediço, no
Common Law há um espaço ampliado à atuação jurisdicional na criação do direito, devido à
ausência de uma regulação legislativa circunstanciada como ocorre nas codificações
continentais19. No Civil Law, a contrario sensu, devido ao vetusto processo de positivação, a
adoção de um parâmetro discricionário nos moldes hartianos parece não ter razão de ser.
Desse modo, a distinção dworkiana de princípios e regras, tal qual brilhantemente
desenvolvida do ponto de vista dogmático por Robert Alexy (2008), parece ser um
instrumental adequado para analisar a decidibilidade jurídica em torno dos direitos
prestacionais20. Sobre esse plexo teórico, a análise econômica do direito não se situa fora do
sistema jurídico, antes, integra sua dinâmica interna21.
19
O Common Law passou de certo modo isento ao movimento de grandes codificações que grassou seu correlato
continental no século XIX, a despeito dos esforços depreendidos por Jeremy Bentham nesse sentido na Inglaterra
(POSNER, 2010).
20
Destaque-se que apesar da relevância da construção teórica de Dworkin (2002), o modelo proposto por Alexy
(2008) possui estrutura e configuração próprias como se verá a seguir.
21
A necessidade de ponderação de aspectos econômicos enquanto sucedâneo intrassistêmico (e não
extrajurídico) pode ser balizada pela própria dicção do art. 37 CF (com a redação dada pela EC 18/98) que
consagra expressamente a eficiência como princípio geral da Administração Pública no Brasil. Demais disso,
ainda antes de sua positivação expressa, em rigor poder-se-ia concluir qua tale a doutrina alemã, tratar a
eficiência (a dizer sua adequada gestão econômica de resultados), como “principio constitucional estrutural pré-
dado” (MODESTO, 2000).
22
Afastam-se, no presente trabalho, as conclusões esboçadas por Humberto Ávila (2004). Segundo este autor, a
diferença entre princípios e regras reside na intensidade da contribuição institucional do aplicador. Nessa linha,
é traçada uma série de critérios de dissociação, brevemente descritos a seguir. O primeiro deles refere-se à
natureza do comportamento prescrito. Nessa senda, os princípios, têm caráter finalístico, exigem a promoção de
um estado de coisas (state of affairs), revestindo-se de caráter déontico-teleológico (ought-to-be-norms); por seu
turno, regras têm caráter descritivo de ações (actions), apenas mediatamente finalísticas, ou seja, são normas
com caráter deôntico-deontológico; normas do que fazer (ought to do norms). O segundo critério, corresponde à
natureza da justificação aplicativa. Nesse quadro, os princípios exigem, em sua aplicação, uma correlação entre
22
Um conflito entre regras, nesse diapasão, apenas pode ser resolvido mediante adoção de uma
cláusula de exceção ou se uma delas for considerada inválida (como através do critério de
especialidade e/ou temporalidade). Ou seja, a impossibilidade de aplicação normativa de
regras no caso concreto corresponde a sua própria invalidade sistêmica. O nível de princípios
reflete um dever ser ideal, cuja passagem ao dever ser real envolve necessariamente tensões,
conflitos e colisões entre valores23. A não aplicação de um princípio no caso concreto não
ilide sua validade. O que ocorre é seu afastamento sistêmico pontual, a partir de uma lógica de
precedência valorativa no caso concreto.
No mesmo sentido, a concepção de princípio aqui trabalhada não se confunde com sua
acepção jusfilosófica de causa primeira, nos moldes do cogito cartesiano, ou com a concepção
oitocentista que atribui à sua função mero caráter integrativo-interpretativo24. Igualmente não
prospera, à luz do presente referencial, intelecções que distinguem ambas as espécies
normativas por mero grau de abstração, segundo propugnam Raul Machado Horta (1997) e
Humberto Ávila (2004).
os efeitos da conduta exigida à vista dos fins propostos, em uma perspectiva primariamente prospectiva (future-
regarding); as regras, por seu turno, exigem uma correlação conceitual entre construto fático e normativo,
assumindo um referencial retrospectivo (past-regarding), sempre centrado, porém, na carga axiológico-
finalística que lhe é subjacente. O terceiro e último critério refere-se à natureza de sua contribuição à
decidibilidade. Enquanto os princípios contribuem de maneira precipuamente parcial e complementar, as regras
colaboram ao processo de decisão jurídica de modo mais abrangente e decisivo. Em que pese o reconhecimento
a seu trabalho teórico, as reformulações sugeridas por Humberto Ávila (2004), no particular, não serão
utilizadas. Para uma crítica consistente a esse respeito, vide Virgílio Afonso da Silva (2003).
23
Apesar de semelhantes, princípio e valor não se identificam. De acordo com a divisão de conceitos práticos,
podemos identificar princípios enquanto preceitos que possuem caráter deontológico (que remetem à
modalidades deônticas básicas do dever ser). Princípios expressam juízos de valor; eles têm valor, mas não são,
em si, valor (ALEXY, 2008).
24
Como se depreende do art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.
23
Essa regra possui tantos atributos de suporte fático quanto o princípio prevalecente possui
condicionantes de precedência. Logo, o caminho que vai do princípio ao direito definitivo
passa por uma necessária relação de preferência que fundamenta um sistema diferenciado de
regras. A fundamentação racional dessa preferência é passível de todos os argumentos
disponíveis na argumentação constitucional como: vontade do constituinte, consensos
dogmáticos, precedentes jurisprudenciais, argumentos consequencialistas, dentre outros.
Desse modo, não se pode ilidir a racionalidade dessa operação sem acometer à pecha de
irracional grande parte do que se entende como Ciência do Direito. Tal procedimento (isso é
fundamental), não é diferente da fundamentação de regras semânticas criadas para tornar
conceitos vagos precisos. Seu resultado é um enunciado de preferências condicionadas, o
qual, de acordo com a lei de colisão já descrita, corresponde a uma regra de decisão
diferenciada. Associa-se, portanto, a lei de colisão à teoria da argumentação jurídica, o que
afasta a crítica a sua suposta irracionalidade.
25
Vale dizer que mesmo regras podem ser relativizadas a partir da adscrição ao princípio no qual subjaz sua
ratio essendi.
24
26
Embora solução semelhante seja adotada por Humberto Ávila (2004), não se coaduna neste trabalho com a
divisão por ele proposta entre postulados específicos e inespecíficos. Considera-se aqui que tanto a
“concordância prática” quanto a “proibição de excesso” são elementos indissociáveis da própria dinâmica da
proporcionalidade.
27
A constatação feita por Ávila de que nem sempre os princípios devem ser realizados na máxima medida é
decorrente da própria estrutura de sopesamento principiológico e não circunstância que o descaracteriza.
Confunde-se causa como consequência. Dada situação jurídica prima facie tutelada torna-se definitiva,
conquanto resultado de uma ponderação concreta, em que se estabelecem suas condições de precedência
normativa. Nesse prisma, a indeterminação de efeitos não se restringe a princípios, mas consiste em
característica comum a toda norma que não encerre omissão, mas imponha comportamento omissivo. Nesse
prisma, a determinação “salvar alguém” pode se realizar de várias maneiras, em virtude da própria estrutura de
comando normativo (SILVA V, 2003).
25
Nesses termos, no plano fático, um princípio de proteção P1 pode ser satisfeito mediante
várias medidas de M1 a M5 (todas elas, portanto, adequadas à sua consecução). Dentre essas,
as mais efetivas são M1 e M2 (ou seja, são de fato, necessárias à sua realização). Nesse caso,
do ponto de vista estrito de P1, exige-se a adoção discricionária de M1 ou M2. Entretanto, a
análise não se limita a considerações fáticas, mas deve ser analisada sobre o ponto de vista de
possibilidades jurídicas. Logo, é possível haver um princípio colidente P2, sendo
imprescindível o sopesamento jurídico entre ambos (proporcionalidade em sentido estrito).
Esse exame pode levar à conclusão de que as medidas M1 e M2 afetam o campo de proteção
de P2 de forma mais intensa que tutelam o bem jurídico almejado por P1. Logo, o campo de
discricionariedade para realização de P1 desloca-se para a utilização justificada de M3 ou M4.
Porém, ainda aqui M4 pode afetar P2 de forma mais intensa que M3, de modo que deixe
apenas a adoção de M3 justificada. Desse modo, de um campo de cinco medidas a priori
efetivas, o campo de discricionariedade exaure-se em apenas uma alternativa viável.
Essa teoria, contudo, foi alvo de diversas críticas, entre as quais a que o caráter
principiológico derrubaria o muro de proteção em torno dos direitos fundamentais. Ou seja, a
ponderação de valores, mesmo que estribada sob da tecnologia decisória da
proporcionalidade, mascararia um decisionismo voluntarista, insuscetível de controle de
racionalidade. Robert Alexy (2008) refuta esse argumento ao aduzir ser possível auferir uma
escala racional de afetação dos direitos fundamentais em três níveis: leve (l), sério (s) e
moderado (m), o que levaria à possibilidade de sopesamentos não apenas aceitáveis, como
passíveis de controle.
A impossibilidade de uma ordenação rígida não ilide uma ordenação flexível que pode ser
dada pela precedência prima facie (ônus argumentativo não definitivo) aos standards
jurisprudenciais de um Tribunal Constitucional. Em busca de operacionalizar esses standards,
a questão fundamental é estabelecer quais elementos justificadores capazes de engendrar
possíveis “consensos29” dogmáticos. É isso que será analisado a seguir.
28
Percebe-se, portanto, a existência de um espaço de discricionariedade estrutural no âmbito da decidibilidade
jurídica, na qual a decisão favorável a um ou outro princípio será indiferente no plano normativo. Essa
discricionariedade, contudo, não se confunde com os moldes propostos por Hans Kelsen (1999) ou Herbert Hart
(2007). Embora as relações de pesos correspondentes (l/l, m/m, s/s) torne possível tanto a prevalência de Pi ou
Pj, ainda assim o processo de decisão interpretativa encontra-se dentro do sistema jurídico (faz parte da Ciência
do Direito) e não fora dele.
29
Seja em uma acepção “ideal” da Teoria do Discurso (HABERMAS, 2003), seja em uma acepção “suposta”
da Teoria dos Sistemas (LUHMANN, 2012), esse consenso reveste-se de teor procedimentalmente e não
material ou ontológico.
30
Como bem demonstra Richard Posner (2010), a análise econômica não deve ser confundida com o utilitarismo
clássico de Jeremy Bentham. Voltado à promoção da “felicidade”, o modelo ético-jurídico utilitarista padece de
um inafastável subjetivismo em sua mensuração, que pode gerar “monstruosidades morais”. Por uma perspectiva
estritamente utilitarista, na ponderação de valores, haveria de se levar em consideração a felicidade de quem quer
que seja, inclusive o prazer sádico de um assassino serial. Nos dizeres de Friedrich Hayek (1985a) o utilitarismo
se resume a uma “falácia construtivista”.
27
A primeira delas é reconhecer que tanto o direito como a economia trabalham sobre
pressupostos comuns: a distribuição de recursos finitos em meio a infinitas pretensões
humanas. Nesse prisma, uma decisão jurídica sobre determinado direito fundamental aloca
recursos escassos em benefício de alguma (s) pessoa (s), em detrimento a outra (s). Em suma,
sem recursos, o direito não se realiza. Não se pode tirar conclusões normativas
exclusivamente abstratas. Cada decisão judicial, em especial em face de direitos fundamentais
prestacionais, implica uma “escolha de Sofia”; gera inexoráveis trade-offs. Ou seja, há um
custo de oportunidade, no qual o benefício auferido por um enseja necessariamente o prejuízo
de outrem. O problema que se coloca é que, no mais das vezes, oblivia-se essas externalidades
quando da tutela de direitos fundamentais. Isso acarreta uma ponderação viciada e assimétrica
em prol de dado valor, sem sopesar seu devido contraponto principiológico. A crença na
ausência de custos de alguns direitos permite justificar sua tutela preferencial, mascarando-se
uma determinada lógica distributiva sob a falsa aparência de neutralidade; uma espécie de
status quo neutrality (GALDINO, 2005).
31
Embora insuficientes, os critérios de eficiência de Pareto ou de Kaldor-Hicks são instrumentos analíticos
passíveis de utilização na ponderação de valores. No método de mensuração de Pareto, pode-se considerar
determinada conduta lícita quando beneficia ao menos uma pessoa sem prejudicar ninguém. No método de
Kaldor-Hicks (‘superioridade potencial de Pareto’), em vista das dificuldades de não afetação de terceiros,
estabelece-se que o aumento de proveito de dado indivíduo seja suficiente para compensar eventuais prejuízos de
terceiros. Para além desses critérios, a análise econômica volta-se à análise da utilidade marginal, a partir de
transações voluntárias, em um ambiente de livre mercado (POSNER, 2010).
28
Essa mesma lógica pode ser aplicada no caso de uma ação promovida por uma associação de
moradores contra a instalação de uma fábrica de insumos agrícola em dada localidade. Nessa
hipótese, a emissão de efluentes industriais levaria à depreciação imobiliária no entorno do
empreendimento.
32
Vide os adicionais contidos no art. 192 e seguintes da CLT.
33
“Riqueza” (wealth) corresponde ao valor de mercado (preço) de todas as mercadorias e serviços de uma dada
sociedade, além dos superávits de consumidores e produtores; ou seja, a satisfação de preferências total
financeiramente sustentado em um dado mercado. (POSNER, 2010)
34
A eficiência pode ser entendida como otimização da aplicação dos recursos em vista dos fins reputados
essenciais à ordem constitucional.
29
Nessa situação poder-se-ia igualmente aplicar o célebre Teorema de Coase35 (COASE, 1960).
Esse teorema toma como base caso do Common Law (case Sturges v Bridgman) que se refere
ao conflito entre duas atividades econômicas exercidas contiguamente: a de um médico, que
precisa de silêncio para realizar seu mister e, do outro, um confeiteiro cuja atividade provoca
considerável ruído. Se, de um lado, o ruído impede o exercício profissional do médico,
impossibilitando-o de atender seus pacientes e auferir uma renda de $600,00 mensais, a
suspensão da atividade da confeitaria ocasionaria a falência do estabelecimento contíguo com
a perda da renda de $300,00 mensais a seu proprietário. Desde já se torna patente a dimensão
de trade-off na relação entre ambos os profissionais.
Outro campo de análise é a responsabilidade civil subjetiva por dano (tort Law). Longe de
avalizar a negligência a partir de puras abstrações conceituais, a análise econômica permite
oferecer certo grau de objetividade na decisão do julgado.
35
Em que pese levar seu nome, não fora Ronald Coase (1960) em seu célebre artigo “The Social Cost” que
cunhara a expressão, mas outro economista, George J. Stiglerm, a partir do citado artigo (COASE, 1997).
Situação por sinal análoga a experimentada pela metáfora arquitetônica “Pirâmide de Kelsen” que apesar de
levar o nome do fundador da Escola de Viena, fora concebida por um de seus discípulos, Adolf Merkl
(DOMINGO, 2009).
36
Os desdobramentos teóricos do Teorema de Coase no plano econômico e na Teoria dos Jogos valeram-lhe o
Nobel de Economia em 1991. O que o teorema enfatiza é que a negociação interpartes pode ensejar uma solução
ótima independente da atuação do Estado; a atuação estatal, poderia até mesmo prejudicar essa forma de
resolução do problema. Gunther Teubner (1987), porém, observa que o direito age como fundo sem o qual a
estrutura negocial, tão cara à análise econômica, não pode se destacar; a dinâmica transacional seria, em
realidade, uma “‘barganha’ à sombra do direito” (‘bargaining’ in the shadow of Law).
30
É importante salientar que a análise econômica tem como variável a posição jurídica do
sujeito (consumidor ou proprietário). Nesse orbe, quando os custos são proibitivos, as
transações voluntárias não constituem meios idôneos à alocação de recursos (POSNER,
2010). Esse é o caso da aplicação do princípio da bagatela. Nessa hipótese, os valores
envolvidos não encontram correspondência no mercado real. É o que ocorre, por exemplo, no
furto famélico. A utilidade marginal desse bem para aquele que furta seria tão elevado que o
valor econômico para este seria muito superior ao do proprietário. Desse modo, essas
circunstâncias são, economicamente, excludentes de ilicitude.
Em suma, a análise econômica pode, portanto, ser considerada enquanto parâmetro jurídico-
normativo. É nessa ordem que devem ser avalizados os direitos prestacionais, vis à vis ao
princípio da eficiência, positivado no art. 37 CF e a e a sustentabilidade do sistema financeiro
nacional esculpida no art. 192 CF38. Posto esse denominador comum, em termos de direitos
sociais, ainda que brevemente, pode-se analisar à luz da análise econômica, dois casos
emblemáticos vistos a seguir.
37
Refere-se a raciocínio esposado pelo juiz americano Learned Hand no caso “Halley v London Eletrcity Board”
(1964). Nesse caso, um cego ao chocar-se com um obstáculo, perdeu igualmente a audição. Vale dizer que,
apesar do grande aporte teórico atual da Escola de Chicago sobre a matéria, Richard Posner (2010) atenta para o
fato de que a análise econômica do direito é derivada, ainda que intuitivamente, da própria práxis jurisprudencial
do Common Law. Esste, porém, não é um entendimento pacífico. Em sentido contrário: (DWORKIN, 1980) e
(CALABRESI, 1980).
38
Ao que Flávio Galdino (2005) acrescenta os arts. 70, 74, II e 144 § 7º CF além da Lei de Responsabilidade
Fiscal (LC nº 101/2000).
31
O primeiro caso, partindo de exemplo retirado da obra de Cento Veljanovski (1994), refere-se
ao direito fundamental à moradia. Imagine-se, pois, um posicionamento jurisprudencial que,
com o intuito de sufragar o preceito instituído no art. 6º CF, interpretasse restritivamente o art.
9º, III da Lei 8245/91, limitando o escopo da ação de despejo. A análise econômica do direito
permite elucidar como esse tipo de posicionamento proativo, pretensamente provedor de
justiça social, tem como consequência resultado antagônico ao que se pretende. Ao
obstacularizar que o legítimo proprietário do imóvel possa exercer seu direto de reaver sua rés
a despeito da ausência de contraprestação sinalagmática de haveres de aluguel o Tribunal
(Estado) interfere no livre fluxo do mercado. Decerto, outros proprietários, cientes desse
posicionamento jurisprudencial (e ciosos da conservação de seu patrimônio) tomarão certas
medidas para resguardar seus bens. O aumento do risco do negócio é evidente e isso repercute
no incremento do custo da prestação. Em outras palavras, haverá um aumento generalizado
dos valores locatícios no mercado imobiliário, de modo a compensar o risco de ter de
sustentar eventual inquilino inadimplente.
Muitos investidores deixarão de reverter capital em bens imóveis em busca de outros tipos de
investimentos mais lucrativos ou seguros. A escassez de investimento constrange a oferta que,
mantida a demanda estável ou crescente, pressiona ainda mais valor dos aluguéis. Sucede que
essa pressão inflacionária não é acompanhada necessariamente de aumento de renda da
população em geral, que necessita de imóveis para alugar. Ao final e ao cabo, portanto, ao
adotar uma postura interventiva no mercado imobiliário, supostamente em prol do direito
fundamental à moradia, o tribunal aumenta seus custos gerais de transação. A Corte está, em
verdade, afastando uma quantidade indeterminável de pessoas do acesso a esse direito. Os
efeitos são justamente o inverso do que se pretende: o tiro sai pela culatra. Afinal, os direitos
têm custos; alguém há de pagar por eles. Não despejar alguns acaba por levar outros tantos a
ficarem sem teto. Escolhas trágicas são inevitáveis.
O segundo caso toma de empréstimo exemplo utilizado por Flávio Galdino (2005), sobe o
princípio da continuidade do serviço público a concessionária de água e energia (art. 241,
CF). Suponha-se então que um tribunal passe a restringir a possibilidade de suspensão de
serviços apesar do inadimplemento da respectiva contraprestação. Essa retórica da gratuidade
acaba por premiar maus usuários em detrimento coletivo, inclusive usuários hipossuficientes
32
que, com aqueles, não se confunde. A possibilidade de aporte de verbas públicas no sistema
tem o condão de assegurar a modicidade dos preços a todos e não a gratuidade a poucos. Tudo
tem um custo; a ausência de contraprestação adequada além de ser repassada para a sociedade
como um todo, o que, aliado a um ambiente de insinceridade normativa, leva à desvalorização
dos direitos, incita a irresponsabilidade dos indivíduos e ocasiona injustiça social. Indaga-se,
nos termos de Stephen Holmes e Cass Sustein (1999) se não “teriam os direitos ido longe
demais39” (p.135), afinal “levar os direitos a sério significa também levar a escassez [e seus
efeitos colaterais] a sério40” (p. 94).
39
Tradução livre do original: “Have rights gone too far?”.
40
Tradução livre do original: “taking rights seriously means taking scarcity seriously”.
33
Guido Calabresi (1980) enfrenta a questão com parcimônia. Em sua célebre análise acerca da
responsabilidade civil por dano (Tort Law) este autor elenca que a finalidade do direito deve
possuir dois objetivos principais que não se confundem entre si: em primeiro lugar a justiça e,
em segundo, a redução dos custos transacionais. A justiça atua, nesse diapasão, como “veto
ou constrangimento sobre aquilo que pode ser feito para reduzir os custos41” (CALABRESI,
1980, p. 558). Ou seja, reconhece-se a eficiência econômica como parâmetro prático-jurídico,
mas seu conceito não é totalmente intercambiável à noção de justo. Nesse diapasão, a justiça
age antes como temperamento à análise econômica. No particular, para Guido Calabresi
(1980), o sentido último do que seja justo refoge à análise do jurista; sua atividade encontra-se
voltada mais aos “sinais indicativos” da direção a seguir em uma estrada (Road signs) do que
à determinação de seu destino final (end point).
Em última instância, esse fim de caminho queda inalcançável, pois depende permanentemente
de aspectos contextuais: aquilo que pode parece correto em dado momento, em outro pode ser
considerado uma injustiça histórica (CALABRESI, 1980). A função do direito, portanto,
passa pela capacidade de lidar com decisões alocativas em direção à consecução de dada
concepção de justiça. Esse entendimento pragmático, apesar de abrir mão de discussões
metafísicas, nem por isso torna menos árduo o labor dogmático, pois o manejo do
instrumental de maximização de riqueza imprescinde da assunção de suposições sobre a
“combinação” (blend) entre os imperativos de eficiência e redistribuição de recursos no seio
social.
41
Tradução livre do original: “veto or constraint on what can be done to achieve cost reduction”.
34
Richard Posner (2010), responde às críticas salientando que a acepção de “riqueza” (wealth)
com que trabalha traz ínsito um conjunto de objetivos desejáveis socialmente, que a análise
econômica logra poder alcançar de maneira mais adequada que outros modelos normativos.
Na célebre polêmica que travou com Richard Posner na Cornell-Chicago Conference, Ronald
Dworkin às testilhas afirma que “uma teoria que faz o valor moral da escravidão depender de
custos transacionais é grotesca42” (DWORKIN, 1980, p. 211). Em que pese a virulência da
crítica, o asserto feito tangencia uma questão curial: a análise econômica deve levar em
consideração a advertência de Guido Calabresi (1980) sobre o papel de constrangimento
(constrain) de um ideário de justiça, de modo a evitar que princípio de maximização da
riqueza leve a resultados teratológicos.
Vexata quaestio; essa discussão põe a relevo as desinteligências do campo epistêmico. Não
pode se perder de vista que o próprio paradigma econômico encontra-se às voltas de disputas
teóricas. Ora, apenas de caráter ilustrativo sobre a complexidade da questão, podemos apontar
as disputas entre a teoria (neo) clássica43 e a escola keynesiana44. Ambas as concepções
econômicas repercutiram em outros sistemas sociais como o Direito. O paradigma keynesiano
contribuiu, no âmbito do New Deal americano, ao fomento do Critical Law Studies. O
paradigma (neo) clássico, por seu turno, tem inegável aporte na Análise Econômica do Direito
da Escola de Chicago. No primeiro, o papel redistributivo do estado favorece a eficiência, ao
passo que no outro esse mesmo papel a ela se contrapõe. A depender do paradigma adotado,
42
Tradução livre do original: “a theory that makes the moral value of slavery depend on transaction costs is
grotesque”.
43
A premissa basilar do pensamento (neo) clássico é que o mundo, em sua essência, é ordenado e racional. O
desequilíbrio econômico, portanto, resta apenas uma ilusão, ou, quando muito, de natureza espasmódica,
circunstancial. As forças do mercado tendem a um ponto ótimo de equilíbrio, logo, fatores externos, como a
intervenção estatal na alocação de recursos deve ser, ao máximo, evitada (PAIVA, 2008).
44
O keynesianismo parte de uma premissa diametralmente oposta à teoria (neo) clássica: o sistema de mercado
não tende ao equilíbrio; o desemprego estrutural é a regra, e não exceção passageira em uma perspectiva de
longo prazo. Logo, o paradigma keynesiano considera imprescindível a intervenção do Estado na Economia (via
políticas fiscais e monetárias), de modo a garantir o equilíbrio de mercado (PAIVA, 2008).
35
logo, decisões econômicas (e jurídicas) serão diametralmente opostas. Retrata bem essas
posições inconciliáveis a satírica citação atribuída a George Bernard Shaw que aduz: “Se
todos os economistas fossem postos lado a lado, eles nunca chegariam a uma conclusão 45”.
45
Tradução livre do original: If all the economists were laid end to end, they would not reach a conclusion.
46
Fabio Conder Comparato (2011), aliás, reage com verve a essa perspectiva:“Constitui, aliás, uma aberrante
falácia do discurso neoliberal sustentar que o Estado fica dispensado, doravante, de cumprir seus deveres
próprios de prestar serviços de natureza social [...] porque tais serviços podem e devem ser prestados pelas
empresas privadas” (p.10).
47
Hayek, em verdade, utiliza o termo “catalaxia”. Em sua raiz grega, o vocábulo significa “intercâmbio”,
ingresso em uma comunidade (HAYEK, 1985b). O termo é empregado no sentido de ajuste reciprocamente
condicionado de diferentes interesses econômicos individuais em um mercado. O citado autor prefere usar esse
termo a “economia” por este último, em sua raiz etimológica depreender uma relação de fim comum, não
comportada em uma dinâmica mercadológica. Para se evitar maiores tergiversações e manter o fluxo do texto,
optou-se pela manutenção do uso da expressão “economia”, embora por questão de fidelidade ao pensamento do
autor, essa consideração se fizesse necessária.
48
Tradução livre do original: “I think the government solution to a problem is usually as bad as the problem and
very often makes the problem worse”. Nessa esteira, Milton Friedman (1975) recomenda que a organização da
atividade econômica seja subtraída do controle da autoridade política. Esse entendimento é, contudo contrariado
por Kenneth Arrow, economista igualmente laureado com o nobel (CAPPELLETTI, 1999).
36
Contudo, a questão, como bem pontua Ronald Dworkin (1980) não é se a realização de
direitos prestacionais através da atuação estatal ilide a eficiência econômica (assim afetando
negativamente no todo social), mas em que media a justiça, fim último do direito, é servida
por elementos redistributivos, ainda que ao custo da eficiência.
Resta importante assentar que a crítica à análise econômica aqui esgrimida não incide sobre
um modelo macroeconômico específico em si considerado, mas à forma de (não) aplicação
desse instrumento analítico no plano da decidibilidade jurídica. Mais precisamente, a crítica
ora realizada incide sobre duas formas de monólogo. O primeiro envolve uma concepção de
Direito voltada ao normativismo extremo, que despreza os aspectos consequenciais, das
decisões jurídicas: os custos por vezes trágicos de realização de direitos. O segundo envolve
uma práxis economicista que reduz a complexidade do fenômeno jurídico a cálculos e
transações de mercado; que intercambia economia e justiça.
Assentadas essas considerações, pode-se salientar que este trabalho afasta-se, portanto, das
críticas desferidas por parte da doutrina ao pensamento (neo) liberal, como se este fosse o
responsável per se pelo enfraquecimento da capacidade do poder público em efetivar os
direitos fundamentais (SARLET, 2001).
49
Na mesma linha contrária a leitura histórica hegemônica dos acontecimentos econômicos nos últimos séculos
Milton Friedman (1962) considera ter sido a interferência do Estado por meio do Federal Reserve no mercado
financeiro estadunidense (e não sua suposta omissão) o responsável pelos ocorrido na quinta-feira negra, o Wall
Street crash, e posterior Grande Depressão na década de 1930.
50
Para uma visão didático-ilustativa, vale consultar a excelente compilação de Hans Rosling (2010).
37
Concessa venia, esse entendimento parece inverter a lógica dos fatores. Não é o modelo (neo)
liberal que impede a realização do Estado de bem estar social, mas a falência do welfare state
que enseja a emergência do paradigma (neo) liberal. Não se pretende aqui realizar uma
apologia ao (neo) liberalismo, mas é preciso evitar maniqueísmos (in) voluntários. Durante os
trinta anos da era Ouro do capitalismo (HOBSBAWN, 2009), a redução do papel do Estado
no sentido de corte de direitos sociais não conseguira firmar-se como discurso hegemônico. A
própria hipertrofia desse ambicioso modelo prestacional que, contudo, contribuiu para sua
débâcle51. A espiral inflacionária da década de 1970, derivada, em grande medida, da falência
dessa pretensão, aliada ao refluxo conservador na política dos EUA e Inglaterra na década
seguinte, pavimentaram o caminho (neo) liberal, já em um ambiente de crise (PAIVA, 2008).
Não se perde de vista, contudo que a falta de capacidade prestacional do Estado produz
espécie de efeito cascata no que tange à inefetividade dos demais direitos fundamentais em
especial o aumento do índice de criminalidade o que afeta bens jurídicos mais diversos.
Zygmunt Bauman (1998, p.254) capta muito bem essa sensação: “Se ‘o dinheiro de seu bolso’
cresce enquanto as redes protetoras se desintegram é uma questão discutível; o que é
indubitável é que a privação e falta de emprego voltam em grandes proporções, [...]
assombrando as casas dos afortunados”.
51
A ineficiência do modelo estatal em termos de regulação ampla e irrestrita do mercado resta patente à vista da
falência dos modelos de economia estatizada. Em geral à hipertrofia do Estado no plano econômico acompanha-
se de uma sufocante expansão de seu campo de atuação sobre a liberdade individual do cidadão.
52
Ilustrativamente, entre 1990 e 2011, a média de crescimento do IDH brasileiro foi de 0,86%, enquanto a da
América Latina foi de 0,76% e a dos países de alto desenvolvimento, de 0,64% (NAÇÔES UNIDAS, 2012)..
38
O que importa destacar no presente trabalho é que, a despeito do modelo econômico que
impera hoje no establishment político e econômico, a solidariedade social, consubstanciada
juridicamente nos direitos prestacionais, implica necessariamente em custos a serem arcados
pela comunidade política como um todo. A análise econômica permite um vislumbre acerca
da mensuração desses custos, mas (e isso é fundamental) não esgota per se as discussões
alocativas, servindo precipuamente enquanto instrumento de uma lógica de ponderação
axiológica mais ampla.
53
“Habermas também chega a falar em uma nova dimensão estatal: a do Estado de Segurança (Sicherheitstaat),
ou de prevenção (Präventionstaat), fundado no princípio da solidariedade e na prevenção coletiva, e que,
sucedendo o Estado de Direito (Rechtstaat) e o Estado Social (Sozialstaat), tem ampliadas a base financeira
(Geldbasis) e a base do conhecimento (Wissensbasis)". (TORRES R, 2005, p. 13).
39
Com efeito, a análise econômica corre o risco de descurar do elemento gregário, reduzindo o
corpo social a mero repertório de transações de mercado (LUHMANN, 2012). Na leitura
crítica da Teoria dos Sistemas, a aplicabilidade da análise econômica à realidade de um país
periférico enseja considerações mais pormenorizadas, em virtude das deficiências de
autorreferência do sistema normativo54 (seja pela estruturação econômica deficitária, seja pela
assimetria na divisão internacional do trabalho). Por seu turno, nos termos da Teoria do
Discurso habermesiana, deve-se evitar a “colonização do mundo da vida” por uma
racionalidade estratégica eminentemente econômica, em detrimento da esfera comunicativa
(HABERMAS, 2003). As pretensões de mensuração economicista envolvem severos riscos,
entre os quais, a propensão à totalização da razão científica sobre o agir humano. Em suma, as
“escolhas de Sofia” inerentes aos direitos fundamentais prestacionais não podem se resumir
ao “caráter destruidor do cálculo” (HEIDEGGER, 1969).
A rigor, economia de mercado perfeita, alheia ao Estado de Direito não há. Ambos são
conceitos coconstitutivos e indissociáveis. A regulação é onerosa porque os resultados sempre
serão subótimos. O preço da democracia é a perda de rendimentos econômicos da
comunidade. É um preço que, a despeito dos custos, decerto, vale a pena ser pago. Caso
contrário, constituir-se-ia a tirania de um modelo decisório monolítico, na qual a Verdade,
muito citada, pouco encontrada, estaria em cálculos matemáticos e cédulas de papel. Seguir
esse reducionismo consiste exercício de autoilusão situacional. Uma miragem no “deserto do
real”, para fazer alusão a Zygmunt Bauman (2008). De tanto percorrer os caminhos
metodológicos da Jurisprudência, o operador do direito, esse eterno “arrivista”, quer acreditar
que a miragem que vê é a solução de seus problemas.
Nesse orbe, há de se dosar prudência ao afã de trazer a discussão sobre custos do direito à
práxis judicial, para não obscurecer as efetivas contribuições da análise econômica à
ponderação de valores normativos. “Análise de custo-benefício econômico deve ser tratado,
[portanto] com cautela e usado somente como um critério de decisão entre outros”
(TEUBNER, 1987, p. 30). O jurista, em busca de maior consistência e adequação à Ciência
do Direito, encontra na análise econômica um importante auxiliar, mas não a solução
definitiva para os problemas concretos de decidibilidade jurídica.
54
No sentido em que o código-diferença do direito lícito / ilícito reproduz-se autonomamente, a despeito da
interação de outros sistemas sociais. Na modernidade periférica, essa autorreferência encontra-se fragilizada em
vista à maior incidência de corrupção sistêmica do código econômico sobre o direito. Para maior análise, vide
Marcelo Neves (2008).
40
Victor Hugo
Na lição de Robert Alexy (2008), os contornos dos direitos fundamentais podem ser
analisados primariamente à luz de duas perspectivas contrapostas.
Pela Teoria Interna há apenas e tão somente o direito com determinado conteúdo, ou seja,
definido pelos seus próprios limites imanentes; o âmbito de proteção coincide com o âmbito
de garantia efetivo (CANOTILHO, 2008). Segundo essa teoria, não ocorre senão
pseudocolisões de princípios, sendo desnecessário o recurso à ponderação. A tarefa do
intérprete se limita a identificar o âmbito de proteção próprio de dado direito. Pela Teoria
Externa, por seu turno, há de um lado o direito, do outro, a restrição; conteúdo de um direito
não se confunde com sugestão de conteúdo do mesmo (CANOTILHO, 2008). Segundo essa
teoria, há um âmbito de proteção suscetível de restrições em face de colisões de princípios
concorrentes; a tarefa do intérprete seria tentar harmonizá-los.
55
“A Expressão tem fronteiras, o pensamento, não”.
42
Em alguns casos, é possível questionar se eventuais restrições ao conteúdo de dado direito não
seriam apenas parte de seu próprio suporte fático. Esse suporte corresponde às condições
necessárias para produção das consequências jurídicas de uma norma. Em se tratando de
suporte fático de direitos fundamentais, a consequência jurídica ou eventual restrição deve,
obviamente, ter fundamento constitucional. Para que a consequência jurídica definitiva de um
direito ocorra, é necessário que o suporte fático seja preenchido e eventual cláusula de
restrição não. Esse suporte pode ser analisado, no plano dogmático, por uma teoria ampla ou
uma teoria restrita (ALEXY, 2008).
De acordo com a Teoria Restrita, todo direito fundamental é garantido de forma limitada,
sendo sujeito, portanto, a “restrições imanentes” (limites) derivados de sua própria natureza.
Essa imanência estaria relacionada ao caráter não escrito irrenunciável de pertencimento a
uma dada ordem jurídico-constitucional. Segundo essa teoria, a análise de restrições deve ser
substituída pela extensão do conteúdo de validade do próprio direito; ou seja, a análise do
âmbito da norma e de sua expressão pelo programa normativo do direito fundamental. Desse
modo, do âmbito normativo devem fazer parte apenas as modalidades materialmente
específicas de exercício de dado direito. Essas modalidades devem ser estruturalmente
conectadas com o âmbito normativo, não sendo específicas se forem intercambiáveis.
43
A análise de uma Teoria Ampla do suporte fático, por seu turno, leva a uma consideração
expandida sobre o âmbito de proteção de dado bem protegido.Uma teoria ampla implica
igualmente reconhecer amplitude às possibilidade de intervenção. Tal entendimento é,
contudo, bastante criticado. Uma dessas críticas assevera que sua adoção faz com que não
sejam levadas a sério as disposições constitucionais. Essa censura remete à sensação de
frustração e incerteza decorrente da circunstância de que um direito fundamental, a princípio
assegurado, possa ser logo em seguida ter restringida sua realizabilidade. Essa técnica dos
direitos fundamentais reveste-se, portanto, de uma “dubiedade inquietante” (ALEXY, 2008).
A insegurança gerada, porém, pode ser superada mediante uma jurisprudência constitucional
que se oriente de forma contínua e racional pela máxima da proporcionalidade e pela análise
econômica do direito. Outra crítica esgrimida contra essa teoria afirma que sua utilização leva
à constitucionalização excessiva. O que deve se destacar, contudo, é que uma teoria ampla do
suporte fático expande uma esfera protetiva prima facie, e não definitiva. Desse modo,
distinguem-se casos de direitos fundamentais potenciais e reais. A teoria ampla também é
criticada por conduzir a um aumento do número de colisões entre direitos fundamentais. Esse
aumento (importante, obviamente, aos casos reais e não meramente potenciais) é algo
necessário para consecução do postulado de se levar em consideração racionalidades
contrapostas.
44
Uma última objeção à teoria ampla diz respeito à ampliação da competência jurisdicional do
Tribunal Constitucional. Porém essa crítica é mitigada pelo fato de que essa competência é
exercida na definição de posições definitivas (e não abstratas) da relação entre conduta e
suporte fático.
Analisadas as distinções dogmáticas entre limites e restrições dos direitos fundamentais, cabe
tratar sobre os contornos possíveis de seu “conteúdo essencial” (Wesensgehalt).
(a) absoluta, segundo a qual cada direito fundamental in concreto teria um núcleo intangível,
impedindo a continuidade de sopesamentos; ou
Pode-se dizer que a teoria subjetiva absoluta alicerça o conceito de mínimo existencial, ao
passo que a teoria subjetiva relativa, a reserva do possível, como será visto a seguir.
56
Como já destacado anteriormente, na terminologia adotada neste trabalho, limites referem-se a uma
delimitação imanente. Uma vez que uma concepção imamente de direitos fundamentais parece ser inapropriada
no campo de uma teoria mista (de regras e princípios) ora adotada, resta mais adequado falar aqui de restrições
de segundo grau, ou restrições de restrições.
45
A defesa da teoria subjetiva em sua modalidade absoluta implica que há um ponto prévio, um
mínimo vital, diante do qual as restrições a direitos fundamentais não podem mais avançar.
Construção dogmática da jurisprudência alemã, originariamente o conceito de mínimo
existencial refere-se à responsabilidade do Estado em prover os recursos mínimos para
existência digna daquele indivíduo incapaz de prover o próprio sustento.
Para Ingo Sarlet (2011), o núcleo essencial refere-se a uma esfera de intangibilidade em face
do Estado, inclusive sobre a própria reforma constitucional. Nesse quadro, de especial
relevância configura a tutela especial do art. 60, §4º, CF que estabelece como limites
materiais ao poder constituinte derivado: o princípio federativo, a ordem democrática,
separação de poderes e direitos e garantias fundamentais. A supressão ou esvaziamento desses
preceitos encontram-se vedados, mas não seu ulterior desenvolvimento, desde que “garantida
a sua essência58”. No particular, a abrangência da cláusula pétrea dos diretos fundamentais
resulta problemática, alguns defendendo que nela se incluem apenas os direitos individuais.
57
Nesse quadro teórico, a vedação ao retrocesso decorre dos seguintes princípios e argumentos constitucionais:
Estado democrático e social; dignidade da pessoa humana; máxima eficácia das normas definidoras de direitos
fundamentais; proteção de cunho retroativo; confiança; autovinculação dos órgãos estatais; impossibilidade de
recriação de omissões legislativas; e obrigação internacional de implantação progressiva de proteção de direitos
(SARLET, 2011).
58
Como exemplo, tem-se julgado do Supremo Tribunal Federal (STF) de 1980 que considerou que a ampliação
de mandato de prefeito em mais dois anos não afeta o princípio republicano, pois seu núcleo essencial
(temporalidade) fora preservado. (SARLET, 2011).
46
Tal entendimento não parece ser o mais adequado, pois afasta desta tutela especial direitos
essenciais como os políticos, os de nacionalidade, além dos diretos sociais. Os próprios
direitos individuais não eram reconhecidos expressamente como inderrogáveis na constituição
anterior e nem por isso tinham sua fundamentalidade questionada. Logo, nada obsta o
reconhecimento de outros preceitos que correspondam ao telos constitucional nessa categoria
normativa.
Parece haver um equívoco conceitual no manejo da Teoria dos Princípios quando, por
exemplo, alega-se que: “poder-se-á sustentar, na esteira de Alexy e de Gomes Canotilho, que,
na esfera de um padrão mínimo existencial, haverá como reconhecer um direito subjetivo
definitivo a prestações, admitindo-se, onde tal mínimo for ultrapassado, tão somente um
direito subjetivo ‘prima facie’” (SARLET, 2001, p.37). Colocado dessa forma, dá a entender
que o mínimo existencial condiciona o sopesamento, e não o contrário que é o que
efetivamente ocorre. Ao menos, há de se reconhecer que, ao contrário sobrescrito, é isto o que
Robert Alexy (2008) meridianamente propugna, como se vê, vg, in verbis: “a extensão da
proteção ‘absoluta’ depende de relação entre princípios. [...] a garantia do conteúdo essencial
[...] não cria, em relação à máxima da proporcionalidade, nenhum limite adicional à
restringibilidade dos direitos fundamentais” (ALEXY, 2008, p. 301). Em outras palavras: O
mínimo existencial não é parâmetro, mas parametrizado à luz de cada caso concreto. Assim,
direitos não têm um conteúdo essencial definido a priori e de caráter absoluto. Isso
porque tal concepção absoluta estaria presa aos mesmos pressupostos que se
pretende aqui rejeitar, ou seja, definição a priori de conteúdos, essenciais ou não,
que excluem, por consequência e também a priori, diversas condutas, atos, estados e
posições jurídicas da proteção dos direitos fundamentais, deixando-os ao capricho de
meros juízos de conveniência e oportunidade políticas, para os quais não se exige
nenhuma fundamentação constitucional (SILVA V., 2006, p.25-26).
“Ao invés de enxergar valores como determinados standards de mensuração, devemos
entendê-los como um tipo de insaciável e imperfeito impulso avaliador 59“ (BALKIN, 1994,
p.20). A definição de um mínimo existencial nesse ínterim, longe de figurar-se enquanto
“coisa em si”, derivaria de uma aspiração humana cujos contornos clamam permanentemente
por realização. Nessa senda, buscar deduzir de um suposto mínimo vital pré-dado a
substancialização do conteúdo essencial dos direitos fundamentais não encontra razão de ser,
senão em matizes teóricos artificiosos. Quando muito, seu revestimento confunde-se com a
máxima da proporcionalidade, em seu caráter formal-procedimental, ou à própria necessidade
de justificação dos atos estatais. Ao vedar-se o arbítrio em uma Ordem Constitucional, a todos
cabe o direito à fundamentação racional (e proporcional) de eventuais restrições a direitos;
ainda que, excepcionalmente, ex post facto. O mínimo aí remete à própria dinâmica
comunicativa60 de aferição de proporcionalidade das decisões judiciais, na qual se assenta o
Estado de democrático. Sem esta, não cabe se falar sequer de Direito, que dirás de mínimo.
59
Tradução livre do original: “Instead of viewing values as determinate standards of measurement, we should
understand them as a sort of insatiable and inchoate drive to evaluate”.
60
Uma razão comunicativa de teor procedimental voltada ao entendimento, no sentido habermesiano, parece ser
o único conceito racional compatível a um mínimo existencial democrático.
48
A aplicação da teoria subjetiva em sua modalidade relativa parece ser do ponto de vista
dogmático, mais adequada para descrever as fronteiras dos direitos fundamentais.
A récita discursiva jusnaturalista, como bem aponta Hans Kelsen (1999), aponta para
concepções ideológicas pouco propensas ao diálogo. Nas nuvens 61, o jurista desloca-se da
realidade, frustra expectativas normativas e enfraquece o direito que ilusoriamente buscava
fortalecer. O uso retórico da Constituição apenas leva ao esvaziamento semântico dos direitos
fundamentais. A menção excessiva ao princípio da dignidade da pessoa humana62, por
exemplo, envolve um problema tautológico de circularidade conceitual: o dito mínimo
existencial remete a um suposto conteúdo essencial que, por seu turno, desbanca no “princípio
panaceia” da dignidade da pessoa humana, apenas para retornar ao que seria o mínimo
existencial. Eis um digno exemplo de metodologia fuzzy (CANOTILHO, 2008): fala-se muito
e não se diz absolutamente nada. Ao perder de vista a estrutura relacional dos direitos
fundamentais, a dignidade da pessoa humana torna-se um simulacro de legitimidade a
qualquer decisão, sem peias ou arreios. Dignitas torna-se katchanga63, um curinga
hermenêutico. Esse mau uso da jurisprudência dos valores (Wertungsjurisprudenz), enseja
verdadeiro bullying interpretativo (STRECK, 2012).
O problema, contudo, não parece estar na Teoria dos Direitos Fundamentais (ALEXY, 2008),
como inquisitoriamente aponta Streck, mas em apropriações indevidas de seu instrumental
teórico. Ora, decerto que a Theorie der Grundrechte não é dada a pretensões jusnaturalistas,
mas elementos de direito natural lhe são equivocadamente imputados. Ela não define um
núcleo essencial condicionante, mas núcleos a priori são pretensamente agasalhados sob sua
égide. A teoria não propõe saídas voluntaristas ao labirinto da decidibilidade jurídica, mas
deciscionismos são arbitrariamente atribuídos a sua estrutura dogmática.
61
A alusão é clara à obra homônima de Aristófones que parodia Sócrates. Segue-se aqui a crítica de Friedrich
Nietzsche (2004) em relação à caricatura do pensamento socrático-alexandrino no qual perde-se a dimensão
trágica da vida (e do direito) às brumas de um Deus ex machina euripedeano (in casu, o voluntarismo judicial).
62
De fato, a dignidade pode ser considerada epicentro e valor supremo da ordem jurídica, mas sua alusão não
resolve o problema incontornável da decidibilidade jurídica. Deveras, a dignidade, se considerada como
princípio, se sujeita igualmente a colisões com outros valores a serem sopesadas no caso concreto. Por sua vez,
enquanto regra, no sentido de identificar-se com o conceito de justiça, a dignidade encontra-se destituída de
conteúdo material, sendo antes resultado de uma ponderação do que condicionante desta. A definição desta regra
(ou máxima) dá a impressão de existência de um núcleo absoluto, mas não há de se perder de vista seu
fundamento relativo em um jogo de razões e contrarrazões entre princípios (ALEXY, 2008).
63
Katchanga refere-se a anedota atribuída da Luis Alberto Warat (STRECK, 2012), forma de satirizar a prática
interpretativa voluntarista. A estória dá-se da seguinte forma: certa feita havia um Cassino em que se jogavam
todos os jogos (espécie de vedação ao non liquet). Eis que surge um forasteiro, decidido a jogar nenhum outro
senão seu jogo, suas regras. Os croupiers aceitam a proposta, impossibilitados que estavam de agir de outra
maneira. Imaginavam, pois, que cedo ou tarde, compreenderiam as regras estabelecidas e poderiam agir em
conformidade as mesmas. Perceberam logo que, a cada rodada, independente da configuração do carteado, o
forasteiro gritava “katchanga” e, desse modo, levava as apostas da mesa. Um dos croupiers deduzira que a regra
de ouro era que tão logo distribuídas as cartas, bastava dizer katchanga para ganhar a mão. Mas assim que o fez,
após uma derradeira distribuição do carteado, eis que o forasteiro suspira em um misto de fausto e desaprovação
e diz: “katchanga real”. Pela derradeira vez recolhe os haveres e se retira em silêncio.
50
Álibi por álibi, mesmo a hermenêutica filosófica heideggeriana que tanto alude Lênio Streck
(2012) pode servir a qualquer fim. O voluntarismo não surge de dado método, ele antes o
instrumentaliza. Ou o que impede de um intérprete ocultar seu decisionismo por detrás, senão
do signo da ponderação (Abwägung) sob o signo do des-velamento (Unverborgenheit)? O que
impede a alatheia converter-se em nova pedra filosofal da interpretação, como soa parecer a
alguns a proporcionalidade? Seria a fiscalização de algum sacerdote ascético nietzschiano,
suposto descobridor da “Verdade” e detentor do “conhecimento último” acerca da “natureza
das coisas” (BAUMAN, 2008)? Este não é um caminho promissor. A questão primordial
parece residir não na metodologia empregada, mas em seu operador: o intérprete. Afinal
[...] muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através
deles, buscarem a justiça – ou o que entendem por justiça -, passaram a negligenciar
do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com
os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um
decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com os
seus jargões grandiloquentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um
decisionismo (SARMENTO, 2006, p.200).
O que está em jogo é a própria práxis jurisprudencial brasileira, na qual
64
Gomes Canotilho (2008) elenca origem diversa ao instituto, referenciando aos desenvolvimentos teóricos de P
Häberle e W Martens na década de 1970. A rigor, em sua essência, o condicionamento de possibilidades
51
No julgado BVerfGE 33, 303 de 1972 o Tribunal Constitucional alemão, em que pese
reconhecer o direito fundamental prestacional à admissão em cursos universitários (à luz do
princípio de livre escolha do local de ensino, da profissão, da igualdade e do Estado Social ),
restringiu-o à “reserva do possível, no sentido de estabelecer o que pode, o indivíduo,
racionalmente falando, exigir da coletividade” (ALEXY, 2008, p. 439). A necessidade de
“caixas financeiros” (CANOTILHO, 2008), não se confunde, em absoluto, com a depreciada
leitura dos fatores reais de poder a que faz referência Ferdinand Lassalle (2001) que
reduziriam a Essência da constituição (Über das Verfassungswesen) a uma mera folha de
papel65 (ein stück Papier). Muito pelo contrário, essas considerações são imprescindíveis à
própria concretização da força normativa da constituição (Die normative Kraft der
verfassung), nos termos assaz iluminadores de Konrad Hesse:
normativas aos imperativos da realidade é inerente à existência humana, como ilustra o brocardo ad
impossibilita nem tenetur. Só do ponto de vista dogmático-conceitual que se pode falar ser sua origem tedesca.
65
Nessa linha, sustenta Ingo Sarlet (2001, p.39): “não devem - especialmente o Juiz e os demais operadores do
Direito - simplesmente capitular diante das ‘forças reais de poder’ (Lassale) ou em face da alegação de que
inviável o reconhecimento de um direito subjetivo a prestações, socorrendo-se [sic] dos limites fáticos da reserva
do possível e argumentando que inexiste dotação orçamentária.
52
66
O grau de desenvolvimento vivenciado pela Alemanha possibilita que o Estado integre ao mínimo existencial
daquele país prestações que na realidade brasileira seriam supérfluas, como dentaduras para fins puramente
estéticos. Na mesma medida, a discussão acerca da essencialidade de um acompanhamento neonatal no Brasil
não encontra razão de ser no Sahel, onde a pretensão a um sistema público de saúde é impensável à vista da
escassez mesma de água potável. A discussão acerca do mínimo existencial na África subsaariana, logo,
restringe-se as próprias condições de subsistência em um ambiente onde grassam graus extremos de pobreza. Em
cada local, Brasil, Alemanha, Sahel, haverá um mínimo existencial diferenciado de acordo com as respectivas
possibilidades alocativas de recursos. Economia e direito encontram-se indissociados.
53
À luz desse conceito, o que se pretende demonstrar é que a decidibilidade jurídica sobre
direitos fundamentais prestacionais, ao ocultar a natureza trágica de decisões alocativas
(descurando, por conseguinte, da análise econômica do direito), serve à reprodução de
assimetrias estruturais a preceitos isonômicos. Importa abalizar conforme Gilmar Mendes
(2002, p.9) que:
O postulado da igualdade pressupõe a existência de, pelo menos, duas situações que
se encontram numa relação de comparação. Essa relatividade do postulado da
isonomia leva, segundo Maurer, a uma inconstitucionalidade relativa (relative
Verfassungswidrigkeit) não no sentido de uma inconstitucionalidade menos grave. É
que inconstitucional não se afigura a norma “A” ou “B”, mas a disciplina
diferenciada das situações (die Unterschiedlichkeit der Regelung).
Nessa linha, cumpre assinalar que para se observar o postulado da igualdade 67 direitos
prestacionais não se tratam, pois apenas do direito de um indivíduo em face do Estado, mas
também em face dos direitos dos outros indivíduos e grupos. Direitos prestacionais além
serem relações triádicas68, são estruturalmente tripolares. Ou seja, a realização por parte do
Estado (S) de dada prestação social a um indivíduo a implica, devido à escassez de recursos, a
não (⌐) realização da mesma prestação a um outro sujeito b. Sinteticamente: Sah ↔ ⌐Sbh. A
impressão de seu caráter bilateral decorre única e exclusivamente de uma cultura jurídica
individualista e ultrapassada que não contempla o impacto da decisão judicial no todo social;
que fecha os olhos às escolhas trágicas do direito. Os tribunais não devem se limitar a,
67
Tal qual a proporcionalidade, a isonomia ocupa uma posição jurídica privilegiada. Pode-se dizer que seu teor
perpassa estruturalmente todo o sistema jurídico, entrelaçando-se com a própria noção de direito. É digno de
nota que a representação mitológica da justiça (seja Diké, seja Têmis) acompanha sempre uma balança.
68
Como visto às fls.14, em que um indivíduo a tem em face do Estado (S) a obrigação que este realize dada ação
h; o que implica que o Estado (s) tem, em função de a, o dever de realizar h. Sinteticamente: Sah.
69
Embora rara, a coletivização das demandas em matéria de direitos prestacionais (no caso direito à saúde)
encontrou eco na Suspensão de Liminar nº 228-STF (RÉ, 2011). Nesse processo, a União interpões recurso
contra concessão de tutela antecipada da Justiça Federal para a transferência de todos os pacientes necessitados
de tratamento intensivo (UTI), localizados da região de Sobral-CE, para hospitais públicos ou particulares em
que houvesse vagas. O STF, in casu, manteve a decisão do TRF-5. Neste julgado o Supremo assentou a
necessidade de verificação de existência (ou não) de política estatal que tenha como objeto a prestação pleiteada,
bem como a averiguação se a falta da prestação de corre de verdadeira omissão ou efetiva decisão legislativa.
54
Em alguns casos, satisfazer as necessidades das pessoas que estão a sua frente, que
têm nome, que têm suas histórias, que têm uma doença grave, que necessitam de um
tratamento específico, pode, indiretamente, sacrificar o direito de muitos outros
cidadãos, anônimos, sem rosto, mas que dependem igualmente do sistema público
de saúde. Não raro escutamos de gestores do sistema a seguinte frase: ‘O juiz me
mandou internar um paciente, imediatamente, numa unidade de Tratamento
Intensivo, mas não me disse qual paciente retirar para dar lugar ao novo!’.
Uma “escolha de Sofia” há, portanto, de ser realizada. Pode-se dizer que o jurista,
chegado a este extremo limite, vê cheio de espanto, que a lógica também toma a
forma curvilínea desses limites e se enrola a si própria, como a serpente que morde a
própria cada – tem a visão de uma nova forma de conhecimento, o ‘conhecimento
trágico’, de que não pode suportar o aspecto” (NIETZSCHE, 2004, p.96).
70
No particular, de especial relevância reveste-se o RE 56647-1/RS a ser julgado pelo STF em sede de
repercussão geral, que tem como objeto a distribuição de medicamentos de alto custo não contemplado em lista
de distribuição do governo federal (RÉ, 2011).
55
Esse esprit d’antan tem como protótipo, como já se teve oportunidade de comentar, uma
relação jurídica bilateral simples, de conteúdo puramente obrigacional. Nesse prisma, direito
subjetivo corresponde ao binômio direito-dever entre particulares. Na ordem pública,
entretanto, esse binômio encontra-se relacionado ao próprio corpo social. Logo, trata-se de
uma demanda a prestações limitada em face dos recursos escassos da sociedade. Ou seja, no
plano juspublicista, direitos subjetivos são relações, torna-se a dizer, além de triádicas,
tripolares, logo, recíprocas: devem levar em conta necessariamente o todo social. Nesse orbe,
em deferência ao postulado da isonomia, apenas quando universalizável, determinado direito
fundamental é passível de tutela, afinal,
Pode-se utilizar aqui a mesma conclusão que chegou a Suprema Corte Americana no célebre
caso Brown v. Board of Education of Topeka em 1954: “esse tipo de oportunidade, na qual o
Estado tomou para si a responsabilidade de provê-lo é um direito o qual deve ser tornado
disponível a todos em termos isonômicos72” (GOMES, 1999, p.307). Caso contrário, estar-se-
ia criando um díscrimen desrazoável entre aqueles que podem e aqueles que não podem
ingressar no Judiciário73.
72
Tradução livre do original: “Such an opportunity, where the state has undertaken to provide it, is a right
which must be made available to all on equal terms”.
73
Restam notórias as dificuldades por que passa a Defensoria Pública, apesar da qualidade de seus quadros e
esforços de seus membros, para consecução de um ideário de acesso amplo à justiça.
74
De acordo com Professor Saulo Casali, estudo a esse respeito foi realizado na França, avaliando que, para
consecução de um modelo integral de proteção à saúde, seria necessária mais de uma dezena de PIBs franceses.
Anotações em sala de aula. Programa de Pós Graduação em Direito da UFBA.
75
Os Estados mais ricos da concentram 47% das ações contra o Ministério da Saúde (BAHIA, 2012).
57
Nesse orbe, a citada autora aponta fortes indícios de fraude em casos como o Mandado de
Segurança nº 0305453-68.2012.8.05/BA deferido judicialmente que trata do tratamento de
grave doença de pele em diversas crianças no Estado da Bahia. Sucede que, a suposta prova
de imprescindibilidade de dado medicamento é elaborado pelo próprio Laboratório que o
produz. No pleito, convenientemente omite-se a existência de terapias alternativas, menos
dispendiosas, inclusive com maiores taxas de sucesso, reconhecidas por associações médicas
internacionais. Ademais, algumas das procurações contidas nos autos antecedem
cronologicamente a emissão de atestados médicos solicitando o tratamento pleiteado, o que
deduz certo direcionamento terapêutico.
Outro exemplo eloquente das distorções engendradas por uma postura jurídica normativista
estrita, indiferente ao custo dos direitos, é o caso de Rafael Notarangeli Fávaro. Acometido de
uma forma raríssima de anemia, Rafael é amparado pelo SUS por força de decisão judicial,
fazendo jus ao “tratamento mais caro do planeta76” (SEGATTO, 2012); algo em torno de
$400.500,00 dólares/ano (em valores de 2010), ou seja, aproximadamente oitocentos mil reais
(HERPER, 2012). A patologia acometida por Rafael, pode ser curada por um transplante de
medula óssea, de valor médio de cinquenta mil reais. Em 30% dos casos há, porém
possibilidade de complicações e, como toda intervenção cirúrgica, risco de vida. A não
assunção desse risco garantiu, em um exercício extremo de ativismo judiciário cego, o custoso
tratamento vitalício, vez que, sem se submeter ao transplante, não há cura possível e a
medicação deverá ser ministrada indefinidamente.
A absurdidade do julgado salta aos olhos quando se confronta o total de repasse anual do
governo federal em matéria de saúde aos municípios brasileiros. O valor do tratamento a um
único cidadão em termos absolutos supera dezenas de municípios baianos (SENADO
FEDERAL, 2012). O orçamento destinado a toda sorte de tratamento médico de emergência,
intervenção cirúrgica, campanhas de vacinação, profilaxia de doenças, simplesmente é
tragado ao tratamento de um indivíduo singular. Quadra aqui a discrepância que aniquila o
postulado da isonomia. Centenas de milhares de pessoas terão restringidos seu direto
igualmente fundamental à saúde devido à ausência de recursos públicos defenestrados por
decisões judiciais dessa lavra.
Sob o pretexto de se fazer justiça social e pretensamente salvar uma vida, ceifa-se, em
verdade, muitas outras. A linha que separa a aspiração heroica da pecha de carrasco como se
vê, deveras, é demasiadamente tênue.
76
A medicação chama-se Soliris, produzida pelo Laboratório Farmacêutico Alexion.
58
A dimensão trágica dos direitos prestacionais deve ser trazida à tona na decidibilidade
jurídica. A questão colocada por Ingo Sarlet (2011, p.325) de que a denegação de serviços
essenciais de saúde equipara-se a uma “‘pena’ de morte para alguém cujo único crime foi de
não ter condições de obter com seus próprios recursos o atendimento necessário” resta
completamente inócua por se limitar a um prisma individualista. A metáfora da pena capital
não parece ser adequada por intuir ser possível evitar decisões trágicas, por uma postura
voluntarista do Estado (in casu, o magistrado). Aparenta que se pode evitar “escolhas de
Sofia” por uma espécie de “sursis” da “pena”. Mas a que custo? A “sursis prestacional”, ao
contrário de sua homóloga penal, ao salvar uma vida, põe em risco outras. Oblivia-se o
aspecto consequencial, a inexorável dimensão econômica dos direitos (enquanto posição
jurídica definitiva). É esse tipo de cegueira normativista e livresca, que grassa a cultura
jurídica brasileira, hipertrofiando um ativismo inconsequente.
Marta Torres (2012) elenca outro exemplo emblemático das consequências nefastas de uma
postura ativista inconsequente, sem o devido cuidado com o lastro probatório subjacente aos
autos. No particular, a autora traz a lume decisões judiciais determinando, tanto
provisoriamente como em decisão definitiva, o custeio pelo Sistema Único de Saúde de
tratamentos individuais de doença autoimune com dispendiosa medicação cujos efeitos são
atualmente reconhecidos pela comunidade científica como inócuos77. “Nem os custos, nem os
alertas da Anvisa, nem o fato de o medicamento ter saído do mercado internacional foram
ponderados [...]. E geralmente esses fatores não são analisados na maioria das decisões
judiciais que envolve o direito à saúde” (TORRES, 2012, p.24).
77
Trata-se da medicação Xigris, produzido pelo Laboratório Eli Lily.
59
Após essas considerações, a tecnologia do sopesamento (ALEXY, 2008) pode ser aqui
refinada. Nesses termos, suponha-se que um objetivo Z, perseguido pelo princípio P1, pode
ser alcançado pelas medidas M1 e M2, sendo ambas, portanto, a ele adequadas. Para avaliar
se são necessárias, correspondentes à adoção do meio mais suave, deve-se necessariamente
levar em consideração os custos de sua realização. Desse modo, diga-se que, entre as opções
possíveis, M1 seja a medida factivelmente mais apropriada para consecução de P1. Ainda
aqui, não se trate de uma posição jurídica definitiva, posto que contemplada a possibilidade
(reserva do possível) fática, resta necessário ponderar as possibilidade (reserva do possível)
jurídica, para efetivação do objetivo Z.
O orçamento público não pode ser considerado um fim em si mesmo. O orçamento sempre é
um meio para realização de determinados valores “caros” à comunidade política, (em sua
acepção dúplice tanto de “queridos”, como “custosos”). O sopesamento entre P1 como acesso
60
Desse modo, pode-se superar o “curto-circuito” (tanto em sua acepção de “pouco extensão”
como no sentido “consequência imprevista”), realizado por grande parte dos juristas, que a
leva à desconsideração dos custos do direito e de seu impacto total na sociedade. Utilizando-
se da escala racional de afetação dos direitos fundamentais em três níveis 78: leve (l), sério (s) e
moderado (m), pode-se ilustrar melhor essa problemática. Tradicionalmente, avalia-se que, de
um lado, a não efetivação P1 sob as condições fáticas de escassez (C) levaria a uma
intensidade de afetação (I) extremamente elevada (s). Esse seria o caso do pedido de
tratamento médico experimental cujo não deferimento poderia ensejar a morte ou grave risco
à saúde do indivíduo. Essa estrutura pode ser descrita pela fórmula dogmática IP 1C: s.
Todavia, como se disse, essa é uma relação aparente, ilusória. O equívoco não se encontra no
método, mas na apreciação das premissas. Como antedito, P2 consiste materialmente na soma
total (∑) de direitos dos cidadãos (Pn ...Pz) que podem ser afetados pela realização de P1.
Tratando-se de recursos da saúde, é razoável admitir que os recursos destinados ao tratamento
de diversas pessoas seriam comprometidos em benefício de um único indivíduo. Pode-se
considerar, logo, que a afetação da posição jurídica desse conjunto de pessoas é sério (s).
Destarte, a fórmula de colisão mais apropriada pode ser assim descrita: IP 1C: s / W ∑ (Pn
...Pz)C: s. Em vista que a intensidade de afetação, tanto concreta como abstrata,
correspondem-se, poder-se-ia alegar que se recai no espaço de discricionariedade estrutural do
78
Classificação às fl. 25-26, as quais remetemos o leitor.
79
A título de exemplo, o Ministério da Saúde assegurou orçamento de R$ 91,7 bilhões para 2012 (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2012). Nesse plano, até mesmo o “tratamento mais caro do mundo”, como o de Rafael Favar torna-
se “ínfimo”. Ilusão.
61
intérprete. Esse raciocínio, contudo, não merece prosperar por duas razões. Primeiro, porque
em situações como essa de indefinição, deve prevalecer o princípio formal de deliberação
legislativa. Segundo, porque se trata de um impasse aparente. Sendo os graus de afetação
similares, ambos anulam-se reciprocamente: IP1C: s / W ∑ (Pn ...Pz)C: s. Desse modo, a
ponderação deve se inclinar à posição jurídica que se reveste proporcionalmente de maior
peso na colisão. Tendo em vista que P2 corresponde a um plexo de posições jurídicas ∑ (Pn
...Pz), necessariamente a solução dogmática in casu, deve ser em sua direção. Posição em
sentido contrário afrontaria a máxima da proporcionalidade e a isonomia.
Goethe
A análise dos custos trágicos dos direitos prestacionais não pode descurar que a definição dos
direitos fundamentais envolve uma não desprezível parcela de incerteza conteudística. Há
certa zona de penumbra sobre o campo de incidência das modalidades deônticas de
permissão, vedação e obrigatoriedade. Nesse quadro gris, “os direitos sociais aparecem
envoltos em quadros pictóricos onde o recorte jurídico cede lugar a nebulosas normativas”
(CANOTILHO, 2008, p.100). Na lição de Robert Alexy (2010), essa incerteza pode ser de
natureza empírica ou normativa. No plano empírico, a incerteza refere-se aos prognósticos
sociais decorrentes do conteúdo de um dado direito, se positivos ou negativos. Esse é o caso,
por exemplo, da discussão sobre a (des) criminalização da cannabis sativa81. No plano
normativo, a incerteza refere-se à busca de um ponto de equilíbrio entre interesses
fundamentais contrapostos. Esse é o caso, por exemplo, da discussão acerca da flexibilização
da legislação trabalhista82. Nesse ambiente de incerteza cognitiva, há uma precedência
deliberativa ao Parlamento, enquanto representante do Povo, detentor da soberania no Estado
de Direito (art. 1º, §1º CF). Logo, pode-se falar que há, na democracia, um princípio formal
de discricionariedade sistêmica ao legislador na definição dos direitos fundamentais83.
80
“Duas almas, oh! Moram dentro do meu peito; e aí lutam por um indivisível reino”.
81
Não é certo se a legalização dos entorpecentes em geral ocasionaria uma redução dos índices de criminalidade
(e aumento do bem-estar social daí decorrente) ou o mero incremento de modalidades delitivas não associadas ao
tráfico. O potencial aumento do número de usuários e o consequente impacto no sistema público de saúde
também são apontados como efeitos colaterais possíveis e indesejáveis.
82
Não é claro se essa flexibilidade pode servir à dinamicidade da atividade economia (interesse da classe
patronal) que compense eventual degradação das condições de laborais (o que os trabalhadores têm interesse em
evitar).
83
O âmbito de discricionariedade cognitiva remete a uma dimensão pré-jurídica de tez eminentemente
legislativa. Corresponde a um campo de incerteza sobre o qual se perfilam decisões políticas nodulares que
expressam o entendimento histórico-singular de dada sociedade. Não se identifica com a discricionariedade
decisória kelseniana ou a discricionariedade estrutural decorrente da colisão de princípios. Vide,
respectivamente, notas de rodapé n. 18 e n.28, supra.
63
O campo de discricionariedade cognitiva, nos termos de Robert Alexy (2008), pode ser
matizado a partir de dois modelos teóricos. No primeiro, há uma precedência absoluta desse
princípio formal, sendo as deliberações parlamentares infensas ao controle jurisdicional. Esse
modelo, não parece ser o mais adequado a uma ordem constitucional que se queira vinculante.
Nessa linha, os direitos fundamentais poderiam fenecer diante de maiorias eventuais, o que é
insustentável; afinal, “são posições tão importantes que [...] não podem ser simplesmente
deixada para a maioria parlamentar simples” (ALEXY, 2008, p.446).
O poder judiciário deve exercer, portanto, um múnus contramajoritário; não se trata de uma
usurpação de competência legislativa, mas decorrência da própria ordem democrática. O
segundo modelo contempla essas considerações. Nesta perspectiva, a precedência legislativa é
mantida, porém, relativizada. Nesse quadro, quanto maior a afetação a dado direito
fundamental, maior deve ser a certeza das premissas que a sustenta; ou seja, maior o ônus
argumentativo a ser superado. Destaca-se que o principio formal não tem força para afastar
um princípio material de direitos fundamentais, salvo se em parceria com outros princípios
materiais, espécie de “lei de conexão” (ALEXY, 2008).
84
Decerto, o poder do Estado é uno e indivisível, exercido, porém, por órgãos distintos para o cumprimento de
funções específicas. Usa-se o termo no plural por consagrado ser seu uso na dogmática constitucional.
64
No particular, Hans Kelsen (2002) leciona que “a revisão judicial de legislação é uma
transgressão evidente diante do princípio de separação de poderes” (p. 385). Não quer Kelsen,
com isso, negar o exercício da jurisdição constitucional, mas redimensionar o conceito de
separação de Poderes. O citado jusfilósofo aduz serem apenas duas as funções primordiais da
organização política do Estado: criação e aplicação do Direito; sendo impossível realizar
compartimentalização estanque entre ambas (KELSEN, 2002). Isso decorre da própria
concepção normativo-hierárquica do modelo kelseniano. Com efeito, a legislação em relação
à Constituição é aplicação do direito; em relação as espécies normativas a ela subordinadas é
criadora; bem como o decreto em relação à sentença e assim sucessivamente (KELSEN,
2007).
85
Carl Schimdt, em célebre polêmica travada com Kelsen no início do século XX referendava que cabia ao
Executivo, por sua força representativa, ser o guardião da Constituição (KELSEN, 2007). Sabem-se bem as
consequências últimas do pensamento de Schmidt, com a consubstanciação do Führerprinzip nacional-socialista
e consequente ocaso da ordem de Weimar.
65
A solução para esse problema é uma “tarefa traiçoeira” (ALEXY, 2008); de certo modo, a
interpretação dos direitos fundamentais prestacionais encontra-se às voltas de um labirinto.
Esse espaço de conformação entre Judiciário e Legislativo dá espaço a um verdadeiro “jogo
de xadrez86”, para aludir à metáfora de Klaus Lowenstein (1964). É necessário, portanto,
relativizar a precedência deliberativa formal do legislador e avançar para uma vinculação de
conteúdo substancial (ALEXY, 2008). Essa vinculação é interpretada aqui em sentido
valorativo restrito, o que garante discricionariedade legislativa, cabendo ao tribunal apenas
definir seus contornos. Nesse sentido, um tratamento arbitrário não deixa de ser arbitrário
apenas em virtude da melhor razão, mas de razões plausíveis. Existe, é claro, o risco de o
Tribunal restringir de maneira não fundamentada as competências do legislador (de onde
decorre uma necessidade de autocontenção -self restraint- do Judiciário). Mas esse é um risco
que vale a pena ser corrido em prol da tutela de direitos fundamentais.
86
A metáfora de jogo de xadrez é utilizada no sentido que lhe dá Klaus Lowenstein (1964) e não à concepção
utiliza por Alf Ross (2007), embora, no particular, pareça pertinente certa comunicabilidade entre ambos os
conceitos. Se o xadrez constitucional refere-se à disputa entre Poderes Legislativo e Judiciário sobre quem ser o
intérprete do Direito, parece que essa disputa (ou jogo) opera-se em um contexto de direito vigente, conquanto
“um conjunto abstrato de ideias normativas que serve como um esquema interpretativo para os fenômenos do
direito em ação” (ROSS, 2007, p.41). A peculiaridade da metáfora enxadrecista de Hart remete uma concepção
“deliberadamente direcionada no sentido de suscitar dúvidas no que tange à necessidade de explicações
metafísicas ao conceito de direito” (ROSS, 2007, p.42). Desse modo, pode-se situar a discussão acerca da
separação de poderes no plano de vista político-dogmático como parece ser a posição de Lowenstein (1964),
imunizando os impulsos jusnaturalistas de corifeus de um utopismo jurisdicional ativista pautado em ideários
transcendentais.
66
Vale dizer que esse controle de constitucionalidade vis à vis a relação interpoderes se
aproxima no Brasil mais ao modelo americano de checks and balances87 do que o modelo se
sepáration de pouvoirs88. No que se refere ao modo de sua operacionalização, a dogmática
constitucional brasileira adota um modelo híbrido, entre o modelo americano de controle
concreto-difuso89 e o padrão austríaco de controle abstrato-concentrado90. De qualquer sorte,
independente do modelo adotado, por sem dúvida a realizabilidade dos direitos fundamentais
exige a superação do “efeito paralisante” (KRELL, 2002) de um ideário de separação (estrita)
em prol de uma colaboração de poderes; máxime diante da tensão inerente da escassez de
recursos diante de uma “prodigalidade constitucional” (GALDINO, 2005). Aponta-se,
portanto, à necessidade de “diálogos institucionais” (SARMENTO, 2010) entre o Tribunal o
Parlamento. O que se propugna aqui é uma postura mais proativa do Judiciário, não no
sentido de intervencionismo arbitrário, mas sim o uso criativo de instrumentos dogmáticos em
direção ao princípio da máxima eficiência dos direitos prestacionais. Isto posto, o magistrado
deve exercer uma função “sócio-terapêutica” de viés prospectivo (MOREIRA, 2011).
87
O modelo americano de “pesos e contrapesos” fora consagrado pela Suprema Corte americana no célebre caso
Marbury v Madison. A importância desse case está na imposição ao Poder Legislativo de um limite fundado na
superioridade dos preceitos constitucionais. Derrotado pelo Presidente Thomas Jefferson, o então presidente
John Adams nomeou diversos de seus correligionários como juízes federais, entre os quais se encontrava Willian
Marbury. Já com Jefferson presidente, seu novo secretário de justiça James Madison, se negou a intitular
Marbury. Em decorrência disso, Marbury apresentou um writ of mandamus perante a Suprema Corte Norte-
Americana exigindo a entrega do diploma. O processo foi relatado pelo Presidente da Suprema Corte, Juiz John
Marshall, em 1803, e concluiu que a lei federal que dava competência à Suprema Corte para emitir mandamus
contrariava a Constituição Federal de modo que não caberia a ela decidir o pedido. Não obstante a questão
flagrantemente prejudicial, Marshall invertera a ordem do julgamento, pronunciando-se anteriormente a favor à
do writ para apenas então declinar competência para o julgamento do mesmo. Destarte, firmara-se posição de
que à jurisdição constitucional exercida pela Corte cabia a função de refrear repressivamente atos dos demais
poderes que eventualmente contrariassem a Constituição.
88
O controle de constitucionalidade à francesa possui teor preventivo, sendo protagonizado pelo Conseil
Constitutionnel, órgão de tez eminentemente política. Tendo como membros de direito ex-presidentes o aludido
Conselho guarda forte deferência às decisões do Parlamento. Entre as causas desse fenômeno encontra-se a
receio da burguesia revolucionária diante dos quadros da magistratura proveniente, em sua maioria da nobreza.
O próprio Montesquieu exercera por título nobiliárquico a magistratura.
89
Forma de controle de constitucionalidade incidenter tantum com efeitos decisórios interpartes. Essa
modalidade de controle pode ser realizada indistintamente por qualquer juiz ou tribunal, sendo ampla a
legitimidade ativa para o reclame de inconstitucionalidade. (SILVA NETO, 2010).
90
Nesse caso, o controle de constitucionalidade não figura elemento incidental, mas objeto da demanda, tendo os
efeitos decisórios da decisão judicial na matéria efeitos erga omnes. Seu exercício é restrito ao STF (ou aos
Tribunais de Justiça no caso das Constituições Estaduais) possuindo um rol restrito de legitimados ativos
indicados no art. 103, I,/IX CF (SILVA NETO, 2010).
67
No quadro de tensão desse xadrez constitucional que se travam as discussões sobre ativismo
(judicial activism), referente a uma atuação mais proativa do Judiciário na concretização de
direitos fundamentais, em face (ou em detrimento) do Legislativo. A discussão acerca dos
limites ao ativismo judicial contrapõe teses procedimentalistas e substancialistas. As primeiras
buscam restringir o controlo judicial à análise de regularidade apenas do aspecto formal de
deliberação parlamentar. As segundas remetem à tutela judicial de um plexo axiológico, telos
material da Constituição. Antes de aprofundar o tema, mister se faz necessário situar, as
razões jurídico-estruturais dessa tendência jurisdicional proativa hodierna.
91
Neste fulcral leading case reputou-se inconstitucional a segregação racial em estabelecimento escolar,
superando-se a concepção dogmática de isonomia pautada pelo ideário “separados, mas iguais” (separate but
equal), passando a Suprema Corte a sufragar o ideário de “tratamento como iguais” (treatment as an equal).
92
Nesse case, a Suprema Corte negou provimento a writ movido por Dred Scott, escravo sulista, no qual
reivindicava sua liberdade, por ter vivido em Estado do Norte abolicionista.
93
Nesse case, a Suprema Corte considerou que não socorria direito a criança negra matricular-se em escola só
para brancos (all white school) próxima de sua residência, sendo “válido exercício do poder legislativo”
(TAVARES, 2009) a discriminação escolar por idade, sexo e, in casu, raça.
68
Nos termos de Gunther Teubner (1987), esse novo ideário estatal direciona um processo de
“juridificação” (Verrechlichug) da esfera social, através de uma “poluição legal” (legal
pollution) no plano legislativo e uma “burocratização do mundo” (bureaucratization of the
world) no orbe executivo.
94
Na Europa, o desenvolvimento desse modus de controle substancial tomou forma pós II Guerra, em especial
na Alemanha e Itália, refletindo uma “enorme desconfiança na democracia de massas” (VIEIRA, 2008, p.443),
decorrente do trauma nazifascista.
95
O Judiciário exerce atividade de Legislador (negativo) ao anular as leis inquinadas de inconstitucional; ou no
estabelecimento de precedentes que vinculam ulteriores julgados a partir de standards jurisprudenciais.
69
Nesse sentir, entre as causas remotas dessa expansão jurisdicional encontra-se uma reação dos
operadores do direito à lógica mecânica do formalismo jurídico catalisado por uma nova
concepção de Estado. A isso se acrescenta a incorporação de conteúdos normativo não mais
meramente condicionais, mas finalísticos. Trata-se de “pretensões a conformação do futuro”
(Zukunftgestaltung), espaço de deliberação tradicionalmente político (MENDES, 2002).
Contudo, a “orgia legislativa” do welfare state, apesar de bem intencionada, terminou “por se
revelar causa de perversões econômicas com custos enormes e socialmente perniciosos”
(CAPPELLETTI, 1999, p.45). A crise fiscal do estado coloca “no banco dos réus está a
célebre política do déficit spending: endividamento do Estado, com a finalidade de financiar a
despesa pública, sobretudo a despesa social” (CANOTILHO, 2008, p. 253). A pretensa
autossuficiência do dirigismo constitucional fenece diante da complexidade da realidade
social. Vítima de seu próprio sucesso, o “flagelo do bem-estar” engendra a bancarrota do
Estado (CANOTILHO, 2008). A prodigalidade das promessas prestacionais paulatinamente
cede lugar a uma perversa sensação de frustração constitucional e desfuncionalidade
normativa. O estado social alicerçara expectativas que não possuía condições a adimplir.
Entrementes, as prestações sociais, contudo, ainda estão lá, positivadas em textos
constitucionais. Questio quid juris?
96
Tradução livre do original: “the ‘flood of laws’ cannot be stemmed by dykes and dams; at best it can be
channeled”.
70
Nesse plano, sob os escombros do welfare state, o Judiciário parece tentar desfraldar a
bandeira que fora rendida pelos demais poderes estatais. Se o Judiciário acompanhara por
último o desenvolvimento anterior dos demais Poderes em face do ímpeto interventivo
consubstanciado pelo Estado-Providência como alude Mario Cappelletti (1999), parece
compreensivo que seja igualmente o último a perceber as contingências da realidade e as
insuficiências manifestas do Estado provedor. O ativismo judicial realizado a despeito das
condições econômica do corpo social, ao fechar os olhos aos aspectos consequenciais por
vezes trágicos das decisões judiciais, se fiando em um “tudo é possível”, parece ser o legítimo
herdeiro de um ideário intervencionista já morto.
O afã regulador encerrara uma “obstrução” (overload) da própria atividade legislativa e suas
pretensões prestacionais cedem lugar a uma espécie de desencantamento do Parlamento.
Grassa, portanto, um sentimento mais acentuado de desconfiança 97 em relação ao Legislativo.
Como bem frisa Henri-Benjamin Constant (1985, p.6), “o perigo da liberdade moderna está
em que, absorvidos pelo gozo da independência privada e na busca de interesses particulares,
renunciemos demasiado facilmente a nosso direito de participar do poder político”. A
contemporaneidade é testemunha histórica das considerações percuciente do autor franco-
suíço. O ativismo judicial ganha então força diante da crise de representatividade
democrática; o Judiciário é tentado a “bypassar” as (em geral inertes) instâncias legislativas
(CANOTILHO, 2008).
A Ágora parlamentar encontra-se esvaziada em face do cidadão; o qual, em seu lugar, recorre
ao fórum. Entrementes, esse é uma arena inadequada para comportar todos os matizes do
espetáculo democrático. Por mais que se haja participação popular, com as possibilidades de
ações coletivas e amici curiae, o tribunal é um substituto “pobre” ao Parlamento. As
manifestações das partes, sempre limitadas aos pólos processuais são em regra intermediadas
por um corpo de especialistas: os juristas; a exercer um métier jurídico-dogmático e não
vocacionado às deliberações políticas. Uma democracia juridificada perde seu ethos; torna-se
um excerto de democracia, um simulacro.
97
Essa desconfiança, a rigor, não é nova. Hans Kelsen (2002) alude a ela, antes dos estertores do Estado social
derivando-a da “característica da monarquia constitucional, que surgiu da restrição do poder do monarca”
(KELSEN, 2002, p. 401).
71
Segundo preleção do citado autor, as “enfermidades” pelas quais padece a criação judiciária
do direito pode ser perlustrada (e superadas) pelos seguintes eixos críticos:
O terceiro aspecto (3) alude à incapacidade técnica do Judiciário para auferir subsídios
decisórios no campo de discricionariedade cognitiva do direito. No particular, o Judiciário
padeceria de incompetência institucional, sendo uma espécie de “legislador aleijado” (LORD
DEVLIN, 1976), sujeito mais às argumentações dos advogados que ao desenvolvimento do
direito. Contudo, parece correto asseverar que essa dificuldade judicial (contornada em geral,
por exemplo, pelo recurso a perícias técnicas e amici curiae) não é privilégio do Judiciário.
Com efeito, interesses por vezes imediatistas e populistas dos poderes representativos acabam
por fazer naufragar as pretensões de cientificidade que embasam adoção de determinada
decisão administrativa ou política legislativa.
O quarto eixo (4), e mais decisivo, refere-se ao déficit democrático do Judiciário. De fato, “é
uma grande tentação alçar o Judiciário a uma elite que ultrapassará os caminhos
congestionados do processo democrático98” (LORD DEVLIN, 1976, p.16). Mario Cappelletti
(1999), contudo, observa que o próprio processo representativo democrático se sujeita a
lobbies, não podendo ser “mistificado”. Ademais, maiorias eventuais (democraticamente
98
Tradução livre do original: “It’s a great temptation to cast the judiciary as a elite which will bypass the traffic-
laden ways of the democratic process”.
72
legítimas) podem igualmente fazer naufragar a nau democrático (como sói a ocorrer em
Weimar), de onde denota a relevância de um poder o caráter contramajoritário. Outro aspecto
a ser levado em consideração é a nomeação dos magistrados das cortes superiores pelo chefe
do Executivo ad referendum do Parlamento, impingindo, de certo modo, uma forma de
controle democrático do Judiciário. Por derradeiro (e mais importante), a necessidade de
fundamentação pública e racional das decisões judiciais, possibilita um controle democrático
das decisões judiciais.
Nesse quadro, não haveria restrições ao revestimento de matiz aditivo 99 às decisões judiciais,
possibilitando a majoração do orçamento público via Jurisdictionis, sem necessidade de
deliberação parlamentar democrática. Em outras palavras, “a reserva do possível não pode ser
uma objeção ao Supremo Tribunal Federal para proferir sentenças normativas que possam
gerar despesas públicas” (PELICOLI, 2007, p.44). A principiologia da Carta seria: “‘tratar a
todos! E se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas’” (KRELL,
2002, p. 52).
99
As decisões aditivas implicam a possibilidade de o tribunal adicionar elementos, originariamente não
explícitos na norma, com o fim de alcançar situações não previstas, ou permitir a constitucionalidade de uma
norma (FREIRE JÚNIOR, 2005).
75
Como se vê, busca-se uma saída voluntarista do labiríntico jogo de xadrez constitucional,
através de uma espécie de Fiat justitia, pereat mundus. Nessa linha, há quem defenda que, na
hipótese da Administração decidir em construir um campo de futebol no lugar de um
estabelecimento de ensino, “ao atendimento do art. 208, I da CF, não se pode vislumbrar outra
solução constitucional que não seja permitir o juiz possa impedir a construção do estádio e
determine [...] construir a escola” (FREIRE JÚNIOR, 2005, p. 68). Tendo em vista os grandes
investimentos destinados à infraestrutura esportiva para Copa do Mundo é surpreendente que
não tenha havia (ainda) decisões nesse sentido. Em última instância seria possível “sustentar
que os gastos com publicidade governamental não poderão ser superiores aos investimentos
em saúde ou educação” (MOREIRA, 2011, p.208). Este último posicionamento dogmático
tem a inegável vantagem de mitigar a imprevisibilidade de uma microjustiça casuística,
reconduzindo a discussão ao todo orçamentário, mas deve ser manejada com cautela.
100
Cappelletti (1999) vai além de aduz estas regras reitoras da atuação jurisdicional serem “de antiga sapiência”,
espécie de “justiça natural” (sic).
76
“tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado dos Poderes Legislativo e
Executivo. Se estivesse unido ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos
cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador”. Eis o nó górdio da tripartição funcional
de competências. “Apenas um sistema equilibrado de controles recíprocos pode, sem perigo
para a liberdade, fazer coexistir um legislativo forte, com um executivo forte e um judiciário
forte” (CAPPELLETTI, 1999, p.54). “Nesse sentido, o jogo de xadrez há de ser jogado”.
(BRASIL, 2006, p.54).
“O ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da solução, e não do problema. Mas ele é um
antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado. Em dose excessiva, há risco de
se morrer da cura. [...] Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes”.
(BARROSO, 2011, p.19). “Em suma, o Judiciário quase sempre pode, mas nem sempre deve
interferir”. (BARROSO, 2011, p.17). Logo, é de se asseverar a necessidade de independência
e harmonia entre os Poderes, de modo a “impedir a desadministração pública” (BRITTO,
2001). Não se pode olvidar que, em concreto, “se o Direito é a ciência do dever ser, parece
intuitivo que o domínio de suas regras seja o poder-ser [afinal] o Direito não deve normatizar
o ‘inalcançável’” (AMARAL, 2010, p.5).
78
Esse “poder-ser”, logo, não remete a uma pretensa onipotência que a norma tudo pode, mas
sim ao que efetivamente pode ser feito no campo do real. Há restrições à “interpretação
engajada”; (AMARAL, 2010). Deve-se, portanto, evitar-se um fervor messiânico pautado em
justificações artificiosas como as que asseveram que “nunca [sic] os interesses do Estado
foram encontrados (forjados) para beneficiar tão poucos quanto em nossa época [...] o ato de
votar transformou-se em um ritual simbólico de legitimação formal”. (FREIRE JÚNIOR,
2005, p. 31). Não se questionam, deveras, as notórias insuficiências do modelo democrático-
representativo tal qual adotado no país hoje. Não obstante, daí a considerar que em épocas
anteriores de nossa conturbada história política essas insuficiências foram menos graves ex vi
o “cabresto” da República Velha ou o bipartidarismo ditatorial-militar, queda enorme
distância. Inferências com essa refletem um padrão de valor muito ativista que gera certo
desconforto em face do gap necessário entre expectativas subjetivas e mundo objetivo
(PARSONS, 1974). Em ultima instancia, atribui-se a culpa desse descompasso à geração
atual, como se houvesse uma fase anterior no passado em que tais valores supostamente foram
realizados. Um idílio, quando não uma falácia utilizada para afastar a legitimidade do
Parlamento e justificar um decisionismo judicial. Ao Judiciário não cabe a dimensão
funcional de “válvula de escape” (RÉ, 2012), de realização a qualquer custo dos direitos
fundamentais, mas sim (se a metáfora permite) de mecanismo de redirecionamento
hidrostático dos vasos comunicantes de um democracia representativa
Nesse prisma, “melhor que negar o aspecto político da jurisdição constitucional é explicitá-lo,
para dar-lhe transparência e controlabilidade” (BARROSO, 2009, p.286). O assunto gira em
torno de dois princípios constitucionais: o direito fundamental à informação pública e o
princípio da publicidade102 da administração, que propiciam o controle da atividade estatal
pelos cidadãos. Nos termos do STF, “a prevalência do princípio da publicidade administrativa
outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto
forma de governo103” (BRASIL, 2012, p. 4). Não é outro o espírito da recente Lei de Acesso à
Informações (LO nº 12.527/2011) que regula o art. 5º, XXXIII, art. 37, § 3º, II e art. 216, § 2º,
todos da Constituição Federal. Deveras, a transparência é um postulado inderrogável da
ordem republicana; reveste-se de teor formal, permeando o plexo deontológico da
Constituição, exercendo, sobre este, papel legitimador (TORRES R., 2012).
Desse modo, faz-se necessária “uma virada institucionalista [...] requer o que poderíamos
ousar chamar de publicização de escolhas [...] não apenas divulgar, mas tornar público o
processo de escolha”. (AMARAL, 2010, p.180). Destarte, ainda que negada certa tutela
prestacional pleiteada in concreto, resta imprescindível a máxima transparência acerca de
como se dão os gastos públicos.
101
Não se pode perder de vista que certo grau de desperdício é realidade inexorável de qualquer Administração
Pública.
102
Ainda que tangencialmente, essa temática encontra-se no precedente mais antigo que se tem notícia do STF: o
HC 3536 (1893), no qual figurava como impetrante (e paciente) o então Senador Ruy Barbosa. Na ocasião, o
Pretório Excelso garantiu a veiculação de discurso de protesto realizado no Senado Federal proferido por Ruy
Barbosa, proibido pelo governo, à luz não apenas das prerrogativas funcionais do parlamentar, mas também pela
publicidade da administração (BRITO, 2007).
103
Locução contida na Suspensão de Liminar nº 323 – DF, exarada em 11 Jul. 2012 sobre a divulgação ampla e
irrestrita da remuneração de servidores públicos federais.
80
pela manifestação de suas opiniões” (CONSTANT, 1985, p.7). A cidadania “conquista-se não
através da estalização da sociedade [ou judicialização das deliberações políticas], mas sim
através da civilização da política” (CANOTILHO, 2008, p.122). Afinal, a democracia não se
desenvolve em um modus operandi de delegação de responsabilidades, mas “por meio de
formas refinadas de mediação do processo público e pluralista da política e da práxis
cotidiana” (HÄBERLE, 2002, p.36).
104
O seguinte fato noticiado pela imprensa baiana, caracteriza muito bem a praxe administrativa brasileira: o
advogado Oliveira Chagas durante a greve de professores, “ao tentar buscar informações sobre o número de
REDAs (regime especial de contratação) e terceirizados na Secretaria da Educação do Estado [...] logo depois de
uma assessora do secretário da administração Manoel Vitório ter se recusado a dar acesso ao processo
0200120087044-0, e ter negado a emissão de uma declaração ou certidão a respeito da recusa, o Corregedor
[Geral do Estado da Bahia] o chamou e reiterou a negativa” (GALDEA, 2012).
82
Essa relação é bem ilustrada pelo uso da clássica locução “poderes administrativo”
(DALLARI, 1999). A soberania sabe-se bem, configura a possibilidade de definir exceção;
soberania subordina, não se encontra subordinada. Essa noção, como pode se intuir, não se
adéqua bem ao ideário de prestação de contas em uma sociedade democrática. Por isso, não
raras vezes, a autoridade administrativa daí derivada incide em autoritarismo. Nessa
perspectiva, “subsiste a dominância da razão hierárquica, com completa indiferença, e até
ignorância, relativamente aos destinatários” (CANOTILHO, 2008, p. 258). Contra essa
cultura da ineficiência que deve se dirigir a proatividade do Judiciário. Cabe à magistratura
não substituir o administrador ou o legislador, mas romper esse círculo vicioso, trazendo ao
espaço público as “escolhas de Sofia” da comunidade política em prol da máxima eficiência
na alocação de recursos escassos para realização de direitos prestacionais. Afinal, “a lógica da
divisão de poderes só faz sentido se a separação funcional garantir ao mesmo tempo a
primazia da legislação democrática e a retroligação do poder administrativo ao comunicativo”
(HABERMAS, 2003, p. 233).
Queda aqui salientar que a inversão probatória restringe-se tão somente à gestão orçamentária
por parte do Estado e não à demonstração de imprescindibilidade da tutela pleiteada. Cabe,
portanto, à parte demandante atestar devidamente nos casos vg de direito à saúde, a
imprescindibilidade do tratamento que solicita pelo Estado, bem como a ausência de
alternativas terapêuticas menos dispendiosas ao erário. A veracidade dessas informações deve
perpassar por escrutínio pormenorizado pelo magistrado que, caso constate fraude de
profissional médico subscritor de atestados referendando a imprescindibilidade de dado
tratamento, encaminhe os autos ao parquet para que seja iniciada perquirição criminal. Busca-
se, desse modo, evitar as nefastas consequências da “indústria de juridificação da saúde”
denunciada por Marta Torres (2012).
84
O que se busca são “guideliness de boas práticas”, espécie de “clinical governance” pelo
Estado (CANOTILHO, 2008). Em suma, trata-se de incorporar mecanismos de accountability
já reconhecidos internacionalmente (PIOVESAN, 2008) na tutela de direitos que pode
fomentar a eficiência da gestão da coisa pública:
6 CONCLUSÃO
Para realizar esse mister, cabe ao Judiciário trazer à tona toda tragidicidade do direito,
fazendo emergir das catacumbas obscuras das “razões de Estado”, quais escolhas foram feitas
pelos representantes do povo; avalizar se estas foram eficientes e proporcionais. A atribuição
(e o peso) da escolha não cabe apenas a uma espécie de demiurgo Legislativo, embora sua
precedência deliberativa formal seja inegável. A pedra de toque da ordem democrática não
consiste na delegação em branco de poderes ao Parlamento supostamente onisciente e
infalível. Nesse orbe, o “Juiz Pilatos” (FREIRE JÚNIOR, 2005) não pode dar lugar ao “Juiz
Messias”, para ficar na alusão bíblica. O magistrado deve ser arauto da eficiência da alocação
de recursos em um ambiente de escassez. Para tanto, não deve ater-se a uma indiferença
solipsista, consubstanciada no ato de “lavar as mãos” diante de uma pretensa irreversibilidade
das decisões alocativas do legislador.
87
Contudo, tampouco cabe iludir-se diante de uma prodigalidade utópica, alicerçada na ilusão
de poder “multiplicar os peixes” de modo a subtrair-se da angústia de que a decisão
juridicamente mais adequada pode ocasionar, em seu extremo, a morte de um indivíduo.
Decisões como esta são inexoráveis. O magistrado terá de carregar esse peso para o resto de
sua existência. Esse é o fardo dos que julgam, os quais não podem eximir-se de sua
responsabilidade.
A justiça envolve escolhas trágicas, sendo seu traço indelével a insatisfação consigo mesma,
uma perpétua condição aporética “pelo que ainda não existe” (noch nicht geworden), nos
dizeres de Zygmunt Bauman (1998). Destarte, a publicização das escolhas e alocações
orçamentárias através do processo judicial permitem uma maior difusão das opções políticas
do corpo social, fomentando a participação em foros democráticos. O poder há de ser
exercido “sem máscara” (BOBBIO, 1986).
REFERÊNCIAS
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