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A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA

DO TRABALHO “INFORMAL”
O caso dos catadores de recicláveis*

Antônio de Pádua Bosi

Introdução (b) construção de “novos sujeitos” (Couto, 2000;


Adissi, 2003; Gorbán, 2004) e (c) saúde pública
Notadamente, as reflexões geográficas regis- (Ferreira, 2001; Porto et al., 2004). No campo das
tradas em revistas e livros acadêmicos têm consi- ciências humanas e sociais, as duas primeiras abor-
derado os catadores como parte de três temas mais dagens têm sido predominantes e, não raras vezes,
amplos, relacionados a debates sobre (a) formas são apresentadas articuladamente a partir de uma
alternativas de geração de renda para trabalhado- visão que percebe o trabalho dos catadores como
res ditos “excluídos” (Santos, 2002; Dias, 2002), “marginal” ao processo de acumulação de capital
(Cesconeto, 2002). Essa interpretação geralmente
* Este artigo é resultado parcial da pesquisa “A organiza- tende a apreender o catador como um “trabalha-
ção capitalista do trabalho ‘informal’: um estudo sobre dor por conta própria” que negocia livremente o
os catadores de recicláveis do Extremo Oeste do Pa- produto de seu trabalho.1 Algumas dessas aborda-
raná”, desenvolvida com o apoio material e financeiro
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi-
gens, quando lidam com o trabalho dos catadores
co e Tecnológico — CNPq. Na fase do levantamento organizados em cooperativas, chegam a conceituá-
e da produção de dados, essa pesquisa contou com as lo como alternativo à economia de mercado e à
contribuições dos alunos inscritos na Iniciação Cientí- lógica da produção capitalista, enxergando-o como
fica: Cíntia Fiorotti, Sônia Pelisser, Maralice Maschio, uma nova expressão da resistência e da sobrevi-
Fernando Henrique de Souza Paz e Francisco Voll. vência de uma numerosa população trabalhadora
Artigo recebido em outubro/2007 socialmente excluída e que vive na informalidade
Aprovado em janeiro/2008 (Rodrígues, 2002).

RBCS Vol. 23 n.o 67 junho/2008


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Este retrato acerca dos catadores parece es- matizar as dimensões constitutivas desse tipo de
tar bastante difundido, embora, num âmbito tam- trabalho, tais como a natureza da composição da
bém relativamente disseminado das ciências huma- renda e do tempo gasto nessa atividade.
nas e sociais, haja uma discussão que interroga a Investindo noutra direção, concordo em defi-
relevância e a validade teórica da distinção entre nir a cata de recicláveis como trabalho capitalista e
trabalho (e mercado de trabalho) “formal” e “infor- o lixo reciclável como mercadoria, desde que isto
mal” (Noronha, 2003; Tavares, 2004) e, num plano seja encarado como problema, do qual se parte
ainda mais complexo, as noções de “inclusão” e para a investigação, e não como um dado que anteci-
“exclusão” social (Ribeiro, 1999). A despeito desse pa os resultados da pesquisa e da reflexão. Partindo
questionamento, a cata de recicláveis geralmente tem das experiências dos catadores de recicláveis, discu-
sido apreendida como uma modalidade de trabalho tirei a relação entre o trabalho considerado informal
“autônomo”, uma “invenção” do próprio trabalha- e o processo de acumulação de capital relacionado
dor, uma “oportunidade” em meio às reconhecidas com o setor de reciclagem no Brasil. A principal hi-
mudanças no mundo do trabalho responsáveis pelo pótese a ser explorada indica que o trabalho dos ca-
encolhimento do número de empregos “formais”. tadores de recicláveis no Brasil está integrado ao
O extremo desta abordagem é sintetizado por Rey- processo acumulação de capital e que a suposta si-
nals, que traduz a cata de recicláveis como “uma tuação de exclusão dos catadores (desempregado,
atividade que não exige capital ou contatos prévios, baixa escolaridade, faixa etária elevada) o qualifica
podendo ser iniciada a qualquer momento” (Rey- para esse tipo de ocupação. Além disso, apesar da
nals, 2002). Numa vertente moderada desta visão, ausência de contratos de trabalho e de pagamento
encontramos ainda reflexões sobre a construção de em forma de salário na rotina dos catadores, torna-
uma nova identidade mais assentada no espaço se importante indagar quais as articulações existentes
do que no trabalho, conforme sugere Gorbán: entre o trabalho dos catadores e o capital envolvi-
do no empresariamento da reciclagem, de modo a
Como conseqüência, um número cada vez maior de revelar como são realizadas e reproduzidas histori-
pessoas perdeu suas fontes tradicionais de remuneração, camente as condições do trabalho dos catadores.
encontrando-se diante da necessidade de buscar alterna-
tivas. Neste contexto, a rua constituiu-se como um
espaço dentro do mercado de trabalho que parecia abrir
suas portas aos trabalhadores desempregados. Assim, o O surgimento da cata de recicláveis
trabalho dos catadores aparece como uma das diversas
formas que hoje fazem da rua seu lugar de trabalho A existência de pessoas que vivem do lixo
(2004, pp. 10-11). não é recente no Brasil. Elas estiveram presentes no
registro do poeta Manuel Bandeira, em 1947, quan-
Portanto, no conjunto desses raciocínios, o do escreveu “O Bicho”, denunciando o fato de
trabalho do catador não tende a ser apreendido e pessoas viverem “catando comida entre os detri-
interpretado como trabalho explorado, que gera tos” (Bandeira, 1993, p. 222). Entretanto, os per-
mais-valia e que é organizado e articulado, em larga sonagens de Bandeira não eram catadores de reci-
medida, em função do processo de acumulação cláveis. Eles reviravam o lixo a procura de comida
de capital. e não de material descartado que pudesse ser rea-
Por outro lado, a perspectiva que vê o traba- proveitado como mercadoria. Cerca de trinta anos
lho do catador integrado ao circuito de acumula- depois, o dramaturgo Plínio Marcos retomaria a
ção de capital tem recebido investimentos tímidos denúncia de Bandeira escrevendo a peça de teatro
e exageradamente abstratos (Gonçalves, 1999; Leal “Homens de Papel” (Marcos, 1978). Nela, salien-
et al., 2003), já que o esforço de teorização presente tou os conflitos entre Berrão, que comprava e re-
nesses estudos termina por esmorecer a parca den- vendia papel para reciclagem, e diversos catadores
sidade da investigação empírica que os escoram. que recolhiam o material em sacos. Na rotina diária
Soma-se a esse aspecto a ausência de qualquer exa- da catação de papel, os catadores tentavam dispu-
me sobre a rotina da cata de materiais recicláveis tar com Berrão o controle sobre o trabalho.
que tome o catador no contexto das relações soci- Os catadores mencionados por Plínio Marcos
ais vivenciadas por ele, ou que sirva para proble- já atuavam como trabalhadores, pois recolhiam
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materiais recicláveis para outra pessoa, que os re- ção ao crescimento dessa força de trabalho no Brasil,
vendia para as recicladoras. Porém, ainda não ti- pode-se projetá-lo retrospectivamente para a déca-
nham se espalhado por todo o país. Concentravam- da de 1980, se computarmos como evidência a
se nas grandes cidades, restringindo-se à cata de criação de diversas associações de catadores nas
papel, de garrafas de vidro e de sucata de metal, capitais e em algumas grandes cidades. Portanto,
estando longe de se constituírem como uma das quando os catadores tornaram-se realidade como
populações trabalhadoras mais numerosas da atuali- força de trabalho por volta da segunda metade da
dade do mundo do trabalho. Sua presença parecia década de 1980, sua posição não foi de comple-
ser percebida apenas pelos poetas e dramaturgos. mentaridade, tal como eram definidos os trabalha-
Na década de 1970, as pesquisas acadêmicas não dores autônomos na década de 1970. De outro
lhes tinham ainda capturado como objeto de es- modo, a expansão histórica desse setor guarda re-
tudo. As parcelas desocupadas da força de traba- lação estreita com a ampliação da população de
lho – ou precariamente ocupadas – eram apresen- catadores, tornando-se possível e viável como ne-
tadas como um fator complementar ao capitalismo gócio lucrativo somente quando encontrou nume-
brasileiro e não compunham, como hoje, mais da roso contingente de trabalhadores, desocupados ou
metade da população economicamente ativa do país semi-ocupados, convertível em catadores.
(IBGE, 2004). Eram trabalhadores que atuavam no A estruturação do setor de reciclagem no de
custo da alimentação e em bens e serviços propria- lixo. Neste caso, três fatores tornariam a reciclagem
mente urbanos, tais como quaisquer tipos de servi- pouco atraente para a lógica do capital: a produ-
ço autônomo que ajudassem na reprodução da for- ção e a assimilação de um novo comportamento
ça de trabalho empregada, no sentido de barateá-la diante do lixo (o que tem sido chamado de “cons-
(Oliveira, 1976). Eram sapateiros, técnicos em ele- ciência ecológica”), o desenvolvimento de uma le-
trônica, vendedores ambulantes de utensílios domés- gislação ambiental voltada para tal questão e o inves-
ticos e todo tipo de trabalhadores que reparavam timento em todo o país para que as empresas
bens de consumo. Os serviços e os artigos produ- (públicas ou privadas) recolhessem seletivamente o
zidos por esse tipo de trabalhador encontravam lixo (Von Zuben, 2005). Além disso, os programas
mercado entre trabalhadores assalariados e de em- pioneiros de coleta seletiva datam de meados da dé-
prego fixo, colaborando de modo indireto para o cada de 1980, mas não se generalizaram antes de mea-
aumento da taxa de mais-valia (Prandi, 1978). Con- dos da década de 1990. Portanto, essas condições
tudo, não foram essas as características que defini- não foram estabelecidas antes do ingresso de mi-
ram a existência dos catadores de recicláveis como lhares de trabalhadores na cata de recicláveis.3 Quan-
força de trabalho numericamente expressiva em to à periodização acerca da consolidação do setor
meados da década de 1980. de reciclados no Brasil, os dados indicam os últi-
Quando os catadores fizeram-se visíveis nas mos 25 anos, em Brasil, desde o seu início, teve
grandes cidades, era possível quantificá-los em mi- como base de sustentação os próprios catadores,
lhares. Estima-se que, no ano de 2005, a população de porque não encontrou uma solução mais barata de
catadores no Brasil tenha ultrapassado 1 milhão recolhimento e seleção dos materiais recicláveis. Para
de trabalhadores (UnB, 2005).2 O crescimento des- que a reciclagem pudesse se estabelecer sem a pre-
sa força de trabalho foi bastante intenso nos últi- sença dos catadores teria sido necessário que a se-
mos quinze anos. Se considerarmos, por exemplo, paração de resíduos fosse realizada por meio de
que no ano de 1999 existiam cerca de 300 mil tra- uma coleta seletiva de lixo em ampla escala. Isto
balhadores envolvidos com a cata de recicláveis, o poderia ter sido feito pelas empresas que recolhem
aumento percebido em relação ao ano de 2005 foi o lixo, desde que as residências ou as empresas que
superior a 240%. O surgimento e o crescimento participassem dessa coleta tivessem separado anteci-
dessa força de trabalho encontram paralelo nou- padamente os tipos especial a partir de meados da
tros países da América Latina. Na Argentina, exis- década de 1995. Como rápida exemplificação, vale
tem cerca de 30 mil catadores somente na cidade lembrar que o Brasil assumiu, em relação a esse
de Buenos Aires (Gorbán, 2004). Na Colômbia, período, posição de destaque tanto à quantidade
estimam-se aproximadamente 300 mil catadores do material reciclado, como ao volume do fatura-
espalhados pelo país (Rodrigues, 2002). Com rela- mento atingido nesse negócio. No caso de plásticos
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(principalmente PET), em 2003, o índice de reci- xo custo, isto é, realizável por trabalhadores cuja
clagem (quantidade de plástico consumida que é remuneração compensasse investimentos de tecno-
reciclada) do Brasil (16,5%) só foi menor do que logia para o surgimento do setor de produção de
os apresentados pela Alemanha (31,1%) e pela Áus- material reciclado. Qualquer que fosse a organiza-
tria (19,1%). Naquele mesmo ano, o faturamento ção desse tipo de trabalho, sua taxa de lucro deveria
atingido com os plásticos girou em torno de 1,22 competir com preços determinados, por exemplo,
bilhão de reais (Cempre, 2005c). Contudo, como pelo mercado mundial responsável por derivados
alerta Varussa, “os ‘campeonatos’ vencidos pelo Brasil de petróleo (PET, PVC e demais embalagens plás-
não são em todas as áreas da reciclagem, voltando- ticas) e pela produção de alumínio e de celulose.
se para as áreas mais rentáveis, como pode ser con- Nestes termos, explica-se por que essa força de tra-
cluído se observarmos os baixos índices de re- balho surgiu composta de trabalhadores sem con-
ciclagem de resíduos orgânicos”, setor em que “o trato e com uma produtividade que pudesse ser
país continua incipiente: menos de 1,5% é reutiliza- definida pelo pagamento por produção: uma po-
do na produção de fertilizantes e 8% dos resíduos pulação desancada do mercado de trabalho e sem
sólidos urbanos são reciclados, bem abaixo, por atributos para retornar às ocupações formais. Estes
exemplo, dos Estados Unidos da América que re- fatores garantiram, em grande parte, o crescimento
ciclam 59,3%” (Varussa, 2006, p. 18). do setor de reciclagem de modo a tornar os preços
Por outro lado, além desse fator que eviden- dos materiais reciclados cada vez mais próximos dos
cia os termos históricos da relação entre a recicla- materiais não reciclados, o que efetivamente pôde
gem e os catadores, também cabe ressaltar que não ser verificado nos últimos anos da década de 1990.
é razoável determinar a composição dessa força Compreendidas sinteticamente a dinâmica e as ca-
de trabalho pela existência de tecnologias disponí- racterísticas da expansão do setor de produção de
veis para a reciclagem de materiais descartados dia- reciclados no Brasil, e sua dependência de uma força
riamente em toneladas. Tais tecnologias já estavam de trabalho fundamental no recolhimento e na se-
disponíveis no mercado (talvez não do ponto de leção dos materiais recicláveis, cabe compreender,
vista do custo-benefício do investimento a ser rea- de maneira mais aprofundada, o surgimento dessa
lizado). Havia, desde a década de 1970, know-how força de trabalho na década de 1980.
para a reciclagem (em grande escala) de papel, pa-
pelão e de resíduos plásticos, fundamentalmente
embalagens plásticas, PET e PVC (Neto et al., 2005; A formação da “superpopulação relativa
Faria e Forlin, 2002). No caso do alumínio e dos de trabalhadores” na atualidade
plásticos no Brasil, é verdadeiro que só houve o
que reciclar após, principalmente, a substituição de A primeira formulação sobre a “superpopu-
vasilhames de vidro pelos confeccionados de PET lação relativa de trabalhadores” expressou-se empi-
e de alumínio, o que ocorreu em meados da déca- ricamente a partir do exame histórico e sociológi-
da de 1980. Porém, os recursos técnicos e tecnoló- co acerca da formação do capitalismo na Inglaterra.
gicos para a transformação desses tipos de resíduos Karl Marx percebeu a constituição de um contin-
em matéria-prima para novos vasilhames já exis- gente importante e numericamente expressivo de
tiam. Nos Estados Unidos, as latas de alumínio co- trabalhadores sem ocupação fixa que seria parte
meçaram a ser recicladas em 1968, apenas cinco integrante do funcionamento do capitalismo (Marx,
anos após a sua introdução no mercado (Cempre, 1988). Esta superpopulação relativa tendia a aceitar
2005b). Assim, ao contrário do que se pode pen- condições de trabalho e de remuneração sempre mais
sar, foi uma força de trabalho numerosa de cata- rebaixadas do que as praticadas em fábricas e em-
dores que tornou tais tecnologias viáveis para se- pregos regulares. Este fator integrou-se à lógica do
rem empregadas, possibilitando a expansão do capitalismo agindo como elemento central na acu-
negócio da reciclagem no Brasil. mulação de capital porque não só fornecia o con-
Pelo que é possível concluir desses dados, a tingente requerido pelo capital (quando necessário
reciclagem no Brasil só tornou-se possível em grande fosse), mas também porque mantinha os custos
escala quando o recolhimento e a separação dos com a força de trabalho a níveis próximos e até
resíduos se mostraram uma tarefa viável e de bai- abaixo de sua simples reprodução. Contrariando
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argumentos de que essa população resultava de cri- que se caracterizam, principalmente, pela generali-
ses conjunturais da economia capitalista, Marx de- zação dos traços mais comuns do trabalho infor-
fendeu a idéia de que eles estavam completamente mal (ausência de direitos trabalhistas, flexibilização
integrados à acumulação de capital (Idem, p. 191). da jornada etc.) para grande parte do mundo do
Assim, tal conceito fixou-se nas experiências dos trabalho. Em apertada síntese, é o que afirma Nun,
desocupados industriais ou que afluíam para as ci- ao retomar o tema da massa marginal à luz das
dades em busca de empregos tipicamente indus- atuais dinâmicas do capitalismo:
triais. Por esse motivo, tornou-se mais comum e
recorrente nas análises acadêmicas o termo “exér- [. . .] em face dos diversos processos de acumulação que
cito industrial de reserva” do que “superpopulação ora se superpõem e se combinam e que já não podem
relativa de trabalhadores”. Também por esse mo- ser concebidos como meros momentos de transição
rumo a um único grande processo no qual todos acaba-
tivo, tornou-se mais importante examiná-la naquilo
riam por se dissolver, os mecanismos de geração da
que ela tivesse de funcional em relação à produção superpopulação relativa se pluralizam e varia também
capitalista, ora ocupada, ora desocupada. Nesse a funcionalidade de seus efeitos conforme o setor. É
contexto histórico, perdeu sentido e força o aspec- assim que os desocupados são o componente mais dra-
to destacado por Marx, de uma superpopulação mático e visível desse processo, mas de modo algum o
relativa de trabalhadores que pudesse ser ocupada único (Nun, 2000, p. 49).
em tarefas que não exigissem qualificação técnica.4
Essa dimensão da utilização da força de tra- Desse prisma, o aumento da informalidade
balho foi discutida e aprofundada nas décadas de no trabalho (e nas relações que o regem) não impli-
1960 e 1970, tendo como terreno histórico o capi- cou sua retirada do circuito de acumulação capita-
talismo na América Latina, a partir do qual foi de- lista, nem tampouco alterou substancialmente sua
senvolvido o conceito de “massa marginal” (Nun, subordinação ao capital. Muitos estudos vêm apon-
1978). Os trabalhadores caracterizados como massa tando isso em relação à chamada “reestruturação
marginal comporiam um extrato estagnado da su- produtiva” que atingiu muitas profissões conside-
perpopulação relativa, sem qualificação ou ocupa- radas “estáveis”, tais como bancários (Laranjeira,
ção definida. Seu perfil era informado principal- 1997; Segnini, 1999), operários calçadistas (Navar-
mente pelo trabalho “por conta própria” e “pelos ro, 1998) e metalúrgicos do setor automotivo (Mar-
assalariados dos setores menos modernos, onde as celino, 2004). Revelando uma dinâmica diferente, a
condições de trabalho são mais rigorosas, as leis articulação entre “formal” e “informal” nesse pro-
sociais têm escassa aplicação e as remunerações cesso levou a que certas funções produtivas fos-
oscilam em torno do nível de subsistência” (Idem, sem externalizadas, terceirizadas e recontratadas
p. 130). Comparativamente ao período de 1985 a (Martins e Ramalho, 1994), sem perderem sua fina-
2005, quando os catadores se tornaram numerica- lidade de gerar valor para o capital.5 Essa articula-
mente significativos no Brasil, a massa marginal, ção foi ainda mais acentuada no contexto das mu-
considerada nas décadas de 1960 e 1970, era de danças na legislação trabalhista brasileira, realizadas
fato notadamente minoritária no âmbito da confi- durante a década de 1990, que suprimiram e rela-
guração da força de trabalho. Todavia, essa propor- xaram muitos direitos ligados ao trabalho (Bosi,
ção foi alterada ao longo das duas décadas seguin- 2003). Até certo ponto, essas medidas foram res-
tes. Do ponto de vista da estruturação do mercado ponsáveis pela introdução de traços da informali-
de trabalho no Brasil durante essas décadas, o cres- dade no setor considerado formal (Hirata, 1993;
cimento de uma superpopulação relativa de traba- Antunes, 1999; Alves, 2000), ao mesmo tempo em
lhadores deu-se tanto como segmento “estagnado”, que formalizaram antigas relações de trabalho consi-
voltado para ocupações sem qualificação profissio- deradas ilegais. As costureiras informam um desses
nal, como no sentido de um exército de reserva. casos mais visíveis. Desde a década de 1970, muitas
Compondo um mesmo processo histórico, esta du- mulheres costuraram para confecções (geralmente
pla expansão não teve (e não tem) razões demográ- micro e pequenas empresas terceirizadas por médias
ficas, mas se relaciona com nítidas mudanças no e grandes empresas) sem nenhum tipo de contrato
padrão de produção e de acumulação capitalistas – de trabalho (Abreu, 1986). Na maioria dos casos,
identificadas desde meados da década de 1970 – e essa situação de trabalho “informal” e “ilegal” foi
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legalizada à medida que essas trabalhadoras passa- das pela precariedade das ocupações, o que se de-
ram a ser empregadas por intermédio de cooperati- veu basicamente à falta de qualificação para o traba-
vas de mão-de-obra (Piccinini, 2004), isentadas de lho urbano ou à perda desta. Grande parte desses
muitos encargos trabalhistas que foram flexibilizados catadores nasceu e cresceu no campo. O aprendi-
ao longo da década de 1990. Tem razão, neste senti- zado para o trabalho seguiu a agricultura, a suino-
do, Francisco de Oliveira, quando observa que “hoje, cultura e, em menor escala, a pecuária, indepen-
o trabalho informal — que já perdeu como con- dentemente se tinham a propriedade da terra ou se
ceito sua capacidade heurística — não é o ‘outro’ eram empregados. Os que migraram para a cidade
do trabalho formal ou com carteira: ele é agora o fizeram-no saindo, na maioria dos casos, ainda na
modelo para o que ainda resta de trabalho com infância ou no final da adolescência. Portanto, quan-
relações formalizadas” (Oliveira, 2004, p. 11). do chegaram a uma dessas quatro cidades, desem-
Na conformação desse processo é preciso penharam todo tipo de ocupação que não exigia
contabilizar também a contínua conversão de ho- qualificação profissional e cuja aprendizagem dis-
mens, mulheres, velhos, jovens e crianças em força pensasse a escola.
de trabalho. Longe de desaparecer, o trabalho orga- Sobre isso, apesar da instrução ser valorizada
nizado pelo capital tem sido uma condição de so- por muitos catadores como um meio de garantir
brevivência cada vez mais universal, principalmente, melhores condições de vida para seus filhos, ne-
conforme indicado acima, se forem percebidas as nhum dos entrevistados alentou a expectativa de
articulações entre ocupações informais e formas retomar os estudos para tentar outro tipo de ocupa-
modernas e globalizadas de produção, consideradas ção. Com relação à catação de recicláveis, o conhe-
formais. Assim, ao lado do crescimento e da externa- cimento mais útil referiu-se às operações matemá-
lização de “velhas” ocupações por meio da terceiri- ticas básicas para a conferência da pesagem e do
zação, subcontratação e jornadas temporárias, sazo- pagamento do material recolhido. Assim, quantifi-
nais e parciais, alinham-se ao surgimento de “novas” cadas as informações sobre a escolaridade dos
ocupações, tais como teleoperadores6 (Braga, 2006), catadores, o quadro formado é fortemente mar-
moto-táxi e sacoleiros (Cardin, 2006), igualmente cado por uma baixíssima instrução. Dos 91 entre-
marcadas pela “informalidade” do trabalho7 . vistados, 14 catadores nunca freqüentaram a esco-
Os catadores que formaram uma força de la, 33 deles não completaram o primeiro ciclo do
trabalho cada vez mais visível em todo o país a ensino fundamental, 25 não chegaram a completar
partir de meados da década de 1980 estão inseridos o segundo ciclo do ensino fundamental e apenas 2
nesse processo. Não foram catadores desde sem- catadores concluíram o ensino médio.
pre, e esta ocupação não foi resultado de uma livre Entretanto, essa formação escolar tipificada
escolha. A maioria dos catadores teve uma profis- como insuficiente não explica sozinha o processo
são (ou mais de uma), a qual não pôde mais ser pelo qual os entrevistados se tornaram catadores.
exercida, fosse pela determinação do mercado, fosse Para muitos deles, outros fatores influenciaram esse
por incapacidade física em função de seu envelhe- processo, tais como o envelhecimento ou a perda
cimento como força de trabalho. Nesse sentido, os parcial e acidental da capacidade física para ser
catadores que foram entrevistados em quatro cida- empregado. Nesse sentido, a trajetória ocupacional
des do Oeste do Paraná,8 entre os anos de 2002 e de Dulce Schimidt, 58 anos, é ilustrativa. Nasceu
2005, apresentaram trajetórias ocupacionais bastante no município de Lageado, no Rio Grande do Sul,
comuns no que se refere ao ingresso na catação de e lá morou com a família até os 12 anos. Antes de
recicláveis como única possibilidade de trabalho, se tornar catadora, Dulce trabalhou como bóia-
seja para sobreviver exclusivamente dela, seja enca- fria no Estado do Rio Grande do Sul e em Casca-
rando-a como atividade fundamental na comple- vel/PR, onde se casou e começou uma família de
mentação da renda. oito filhos. Mudou-se para Realeza/PR e depois
para o Paraguai, onde morou durante 21 anos tra-
Trajetórias ocupacionais dos catadores balhando como bóia-fria e cuidando dos filhos.
Fixada em Marechal Cândido Rondon há mais de
No conjunto dos casos pesquisados, os cata- dez anos, Dulce começou a catar recicláveis em 2000,
dores constituíram trajetórias ocupacionais marca- depois de não conseguir mais se empregar no campo
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ou no trabalho de doméstica, atividade que ocupou A curta trajetória de Geni Solange revela uma
quando mais nova. alta rotatividade ocupacional atribuída às necessida-
A idade de Dulce é representativa de grande des da família e à baixa escolaridade, que é vista
parte dos catadores entrevistados. Cerca de 70% como um impedimento para conseguir trabalho.
destes concentram-se entre 31 e 60 anos. Conside- Geni foi doméstica, operária de granjas terceiriza-
rando uma faixa de idade mais avançada, entre 41 das da Sadia, voltou a ser doméstica e finalmente
e 60 anos, encontramos quase 50% dos catadores começou a catar recicláveis. Neste percurso ainda
entrevistados. Com alguma cautela é possível suge- inacabado, é relevante o fato de que, tanto seu tra-
rir, a partir desses dados, que a força de trabalho balho nas granjas da Sadia como o de catar reciclá-
envolvida com a catação de recicláveis de fato mos- veis relacionam-se diretamente com as indústrias
tra-se envelhecida. Este fator, mesmo ponderando alimentícia e de reciclagem. Neste sentido, a tra-
que muitos desses trabalhadores se tornaram cata- jetória de Geni Solange indica como diversas ocu-
dores antes dos 40 anos de idade, pode ter sido pações tomadas por “informais” estão articuladas
decisivo no momento do ingresso nessa ocupação. a complexas redes de produção de mercadorias, o
À idade, adicionam-se os casos dos trabalhadores que já foi constatado por outros estudos (Martins
que já exerceram alguma profissão e que o ingres- e Ramalho, 1994).
so na cata de recicláveis é atribuído a algum tipo de De maneira geral, os depoimentos indicam
perda de capacidade física exigida no antigo empre- que o despreparo dos catadores para ocupações
go. Questionado sobre sua trajetória ocupacional, urbanas guarda relação com os antecedentes rurais
Izaltino Fuzi, 45 anos de idade, autodenominado que lhes formaram como trabalhadores até então,
primeiro catador de Marechal Cândido Rondon, evidenciando um processo de acumulação de ca-
responsabilizou sua condição de catador a um aci- pital regional que tem deixado profundas marcas
dente sofrido quando trabalhava no Paraguai como nas vidas de muitos trabalhadores no Oeste do
serralheiro. Aposentado por invalidez com cerca Paraná nas duas últimas décadas do século XX.
de 30 anos de idade, foi assim que Izaltino deci- Trata-se de uma rápida, continuada e brutal con-
frou sua vida: centração fundiária regional, que tem provocado o
desaparecimento de pequenas propriedades rurais
Eu nasci em Paraíso do Norte/PR e vim pra Rondon e, com isso, a perda das condições de sobrevivência
com seis meses de nascido, vou fazer 46 anos agora dia de centenas de famílias. Seja em função da inacessi-
dezesseis. Mas trabalhei em firma, na Copagril (coope-
bilidade às tecnologias que dominam a produção
rativa agrícola), né? Trabalhei na Caramuru veículos,
num monte de firma. Aí, depois, comecei a catar pape- agrícola na região atualmente, seja pela desapropria-
lão. Depois que fui acidentado comecei a catar papelão. ção das terras causada pela barragem de Itaipu
(Souza, 1998), a perda da propriedade e dos mo-
Há também casos de catadores jovens que dos de vida que lhes eram correspondentes é de-
tiveram uma trajetória ocupacional caracterizada terminada por escolhas econômicas fora da alçada
por atividades temporárias, informais e sem exi- das famílias, forçando-as a buscar trabalho nou-
gência de escolaridade. A situação narrada por Geni tros lugares. Muitos relatos dos catadores entrevis-
Solange, entrevistada em 2002, quando tinha 34 tados apontam para esta situação. É o caso de Iral-
anos, é emblemática: do Miller, 60 anos, nascido em Sobradinho, no Rio
Grande do Sul. Quando tinha três anos de idade,
Moramos em Cascavel, moramos em Chaparral, fazen- migrou para o município de Toledo. Iraldo relata
da, né? Moramos em Vila Nova, moramos em bastante que o pai comprou uma colônia (alguns hectares
interiorzinho, né? Depois viemos pra cidade (Toledo). de terra vendidos por colonizadora que atuou no
[. . .] É por falta de estudo que eu não tenho, que eu não
trabalho. Porque eu estudei pouco, porque logo que a
Oeste do Paraná) e lá montou uma pequena fábrica
mãe acidentou eu fui trabalhar pra cuidar dela. Eu de pré-moldados (mosaicos, tanques, caixas-d’água),
trabalhava de doméstica, né? Trabalhava nas granjas que eram vendidos noutras cidades do Paraná e do
assim, né? Na Granja da Sadia ali embaixo, daqui pra estado de São Paulo. Quando seu pai estava “em-
quem vai pra Ouro Verde. Eu trabalhei ali muito tem- balado” no negócio, desentendeu-se com o sócio e
po com uma mulher, pra pagar o aluguel dela [sua mãe], montou um alambique ilegal que funcionou por
pra pagar as continha dela.
quatro anos. A dificuldade de manter ilegalmente o
108 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 67

negócio fez com ele vendesse a colônia e se mu- Nesta perspectiva, quando os catadores são
dasse com toda a família para Porto Mendes/PR. pensados como força de trabalho, eles apresentam
Lá comprou outro pedaço de terra e organizou a um perfil caracterizado pela baixa escolaridade, idade
produção de leite, além da criação de porcos e da avançada e por uma qualificação profissional con-
plantação para subsistência, período que durou até siderada inadequada para grande parte dos empre-
o alagamento de Porto Mendes pelo lago de Itai- gos existentes tanto do setor industrial como do
pu, quando recebeu indenização pela perda de suas setor de serviços. Contudo, estes três fatores não têm
terras. Ao que parece, a indenização não foi sufi- transformado tais catadores (entendidos como for-
ciente para adquirir outra propriedade, fato que ça de trabalho) em “excluídos” do mundo do tra-
motivou a separação da família. Esgotada a possi- balho. Tampouco os converteu em desnecessários
bilidade de sobreviver com os pais e irmãos, Iral- para o capital. Ao contrário, é noutra direção que
do casou-se e iniciou sua história longe do pai: apontam os dados problematizados nesta análise,
ao revelarem como a estruturação do negócio da
Lutei pra ver se conseguia um emprego. Não consegui. reciclagem necessitou estritamente de trabalhado-
Não tinha emprego, nem em Marechal, Toledo e Casca- res cada vez mais expropriados ao longo de suas
vel. Daí a única alternativa era ir pro Paraguai. Terra
trajetórias ocupacionais. No processo histórico em
sobrando, lutei, consegui terra e fui lutando. A gente
tinha pra viver e tal. Mas também chegou uma época que esses trabalhadores perderam suas condições
que os grande, já apoderando, né?, vinha incomodando de trabalho (uns mais rapidamente do que outros),
o pequeno, comprando aqui, comprando lá. No fim foram concomitantemente “qualificados” para a
acabei perdendo. Sabe, o grande ele comprou, pagou. catação de recicláveis. Juntos com outros trabalha-
Se não pagou, não paga mais. Daí foi indo. A doença dores presentes na região que expressam um perfil
me surpreendeu né?. E daí tive que vender meio ba-
ratinho as coisas pra pagar as contas. Daí eu vi que não
semelhante (carpidores de jardins e lotes, chapas, dia-
tinha mais saída, porque não tinha mais o ganho pra ristas, carroceiros etc.), os catadores têm formado
sobreviver lá. Daí me baldeei pra cá [Marechal Cândido uma “superpopulação relativa de trabalhadores” que,
Rondon]. atualmente, é recrutada e ocupada aparentemente sob
a forma de “trabalho por conta própria” ou “autô-
A história de Iraldo evidencia a expropriação nomo”. Isto significa dizer que são acionados para
sofrida com a intensidade histórica que caracteriza ocupações cujo trabalho, embora não seja vendido
o Oeste do Paraná e que foi verificada também em sob a forma de salário e de uma jornada sistemáti-
outros depoimentos. Estes elementos relacionados ca, tem sua organização realizada pelo capital.
com a trajetória ocupacional desses catadores indi-
cam que seu envolvimento na cata de reciclável
aconteceu depois de uma razoável experiência com A organização capitalista
outras ocupações, em tentativas incessantes de em- do trabalho dos catadores
pregar-se, bem como após a perda parcial ou com-
pleta das condições de sobrevivência ligadas, em Nas quatro cidades pesquisadas, não há indús-
sua maioria, ao trabalho no campo. Nesse sentido, trias de reciclagem instaladas. Todo o material reci-
no que se refere aos catadores entrevistados, a “re- clável recolhido é prensado e encaminhado para as
estruturação produtiva” observada no Brasil não empresas que reciclam papelão, papel, alumínio,
os afetou diretamente. Poucos catadores experi- vidros e plásticos. No caso do Paraná, são cinco as
mentaram relações de trabalho menos instáveis, com recicladoras de papel cadastradas no Cempre (Com-
registro em carteira e jornada de trabalho sistemá- promisso Empresarial para Reciclagem). Se este
tica. Entretanto, o fato de que se tornaram traba- número for comparado à constatação de que a
lhadores informais, como grande parte da popula- catação de reciclável é uma realidade em mais de
ção economicamente ativa do país durante esses 200 municípios paranaenses que estão relacionados
últimos trinta anos, reflete uma dimensão extrema- ao Projeto “Paraná Ambiental”,9 caminha-se para
mente relevante do processo de mudanças no atual uma caracterização dessas recicladoras como for-
mundo do trabalho, visível no exame sobre as traje- madoras de um oligopsônio.
tórias ocupacionais desses catadores: eles tornaram- Uma evidência disso pode ser encontrada na
se trabalhadores sob o signo da informalidade. seriação dos valores praticados por programas de
A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO TRABALHO “INFORMAL” 109

coleta seletiva no período de fevereiro de 2000 a por tonelada limpa e prensada de latinhas de alu-
fevereiro de 2005, em algumas cidades do país. O mínio em São Paulo (a única referência que nos
Gráfico 1 foi construído a partir dos valores pagos permitiu a realização de uma seriação).

Gráfico 1
Valores Pagos por Alumínio Reciclável (São Paulo)*

* Valores pagos por toneladas limpas e prensadas.


Fonte: Dados recolhidos no site http://www.cempre.org.br/ (acessado em 17 nov. 2005).

Os dados indicam uma curva ascendente até nacional do alumínio e as variações no seu preço
o ano de 2003, que se estabilizou nos três anos se- provocadas, principalmente, pela atual política cam-
guintes, até outubro de 2005. A partir de 2000, bial brasileira. A mais recente variação foi registrada
quando o valor pago por tonelada de alumínio re- em meados de 2005, quando a baixa do dólar em
ciclável era de R$1.750,00, houve aumentos de 8,5% relação ao Real tornou a compra do alumínio es-
em 2001, de 15,8% em 2002 e de 36% em 2003, trangeiro (bem como de papel e de plásticos) mais
permanecendo este preço congelado até 2005. vantajosa do que o alumínio reciclado no país. Esse
Contudo, se deflacionados os valores referidos ao movimento gerou uma reação das recicladoras de
período de 2003 a 2005, verifica-se uma queda alumínio, que diminuíram o preço de compra de
nesses preços pagos pelo alumínio reciclável. latas de alumínio limpas e prensadas em até 40%
Um dos determinantes que pode explicar a (Zero Hora, 2005). Este tipo de oscilação, que geral-
queda dos preços a partir de 2003 é o aumento, já mente é logo percebida pelos catadores, atinge tam-
observado e discutido, do contingente de catado- bém os compradores de recicláveis conhecidos
res no país que, cada vez mais, viu-se compelido como “sucateiros”, isto é, pessoas que compram
pela concorrência a disputar espaço no mercado material recolhido e selecionado pelos catadores em
de alumínio descartado. Esta disputa, além de sig- pequena quantidade e revendem-no em grandes
nificar menos material reciclável per capita para o quantidades para as recicladoras. Sobre essa variação
catador, tem sido agravada pelo fato de que a ra- ocorrida em 2005, Leonardo Ávila, 21 anos, proprie-
zão entre latas de alumínio produzidas e latas de tário de um ferro-velho na cidade de Porto Alegre,
alumínio recicladas está chegando ao seu limite. lamenta que “baixou tudo. Estão pagando menos”.
Dados da Associação Brasileira de Alumínio (Abal) Como explicação, afirma que “os compradores nos
destacam que, em 2003, o índice de reciclagem das dizem que estão pagando menos porque perde-
latas de alumínio foi de 89%, o maior do mundo, ram o interesse no produto, mas na real a gente
atingindo 95,7% em 2004. sabe que é por causa do preço do dólar” (Idem).
Outro fator que determina esse tipo de declí- Avaliando esses dados, uma das conclusões
nio é sazonal e tem relação com o mercado inter- possíveis reforça o caráter oligopsônico dos preços
110 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 67

pagos pelos recicláveis, fato que restringe quase que alimentícios, o recolhimento do material feito pelo
completamente a margem de manobra que os comprador (alguns catadores acondicionam os re-
catadores (associados em cooperativas ou não) cicláveis em suas próprias moradias como forma
teriam para negociar o preço de seu trabalho. Além de “economizar” tempo na entrega desse material)
disso, existem situações em que o material recolhi- e a cessão do carrinho de recicláveis. Porém, mes-
do percorre mais de um comprador que, prova- mo esse tipo de procedimento não é visto como
velmente, reduz ainda mais o preço pago aos vantajoso por todos os catadores. Muitos recusam
catadores com o objetivo de manter a margem de tais vantagens quando se vêem diante das contra-
lucro sobre os recicláveis comprados. É o caso, por partidas cobradas pelos compradores como, por
exemplo, de José Américo, um dos compradores exemplo, defasar em até 20% o valor que já fora
na cidade de Guaíra: adiantado ao catador, referente ao material re-
ciclável. Nessas situações, podem-se tomar tais
Eu revendia [papel] pros Polaco de Umuarama (PR). fatores menos como vantagens para os catadores e
Ferro-velho eu vendia pro Marcinho, um senhor lá de mais como recursos desenvolvidos pelos compra-
Umuarama também. Aí esse parou de mexer com fer-
dores para definir um contingente fixo e freqüen-
ro-velho, só mexia com carro batido. Aí eu passei a
vender pro João Tokato, de Assis (PR). [. . .] O alumí- te de trabalhadores. Sendo este o contexto, é mais
nio eu vendo pro Toninho de Maringá (PR), e a recicla- do que plausível afirmar que a organização do tra-
gem de plástico e papel eu vendo pro Valdir lá de Ron- balho dos catadores é determinada a partir dos
don (outro comprador). preços pagos pelos recicláveis, fator que sugere a
adoção de uma abordagem sobre a jornada e a ren-
José Américo, que já foi catador, revela um da dos catadores absolutamente articulada ao pre-
trajeto relativamente complexo percorrido pelos re- ço dos recicláveis.
cicláveis até o destino das recicladoras. Tal trajeto As informações sobre os rendimentos dos
parece confirmar que a compra de recicláveis por catadores obtidas nas entrevistas foram levantadas
parte das recicladoras é realmente realizada em gran- a partir de indagações feitas a eles considerando,
des quantidades, fato que exclui pequenos depósi- inicialmente, a possibilidade de que houvesse mais
tos e sucatas das negociações diretas com as reci- de uma fonte na composição de tais rendimentos.
cladoras. Cabe registrar que esta dispersão geográfica Com essa preocupação de não perder componen-
do circuito de comercialização dos recicláveis é a tes da sobrevivência dos catadores, a adoção de
forma pela qual se materializa uma cadeia produti- um conceito amplo de rendimentos auxiliou so-
va complexa e estruturada que garante a extração bremaneira esta tarefa.10 Dessa forma, tornou-se
do trabalho dos catadores a preços baixíssimos. E possível definir a renda média dos catadores con-
este processo de depreciação dos preços pagos pelo seguida com a cata de recicláveis, sem deixar esca-
material recolhido é percebido pelos catadores, par outras atividades e recursos que compusessem
como fica explicitado no relato do próprio José os seus rendimentos.
Américo. Analisando os dados da Tabela 1, a primeira
informação relevante indica que 65 catadores con-
Hoje nós tá na fase mais fraca do mundo, mais fraca seguem uma renda inferior ao salário mínimo,11 o
que teve até hoje. Já cheguei a pagar pelo papel 0,22 que representa 71,4% do universo dos entrevista-
centavos pro pessoal, pros carrinheiros [catadores]. Mas
conforme eles [outros compradores] baixa pra mim eu
dos. Com relação aos catadores que recebem valo-
tenho que baixar pra eles [catadores], senão não sobre- res superiores ao salário mínimo, é preciso consi-
vive. derar que, em sua grande maioria, esse segmento
trabalha acompanhado de seu cônjuge ou filho,
Nesse contexto, praticamente não há concor- possuindo, não raras vezes, dois ou mais carrinhos.
rência de preços entre os compradores de reciclá- É o caso de Izaltino Fuzi, que consegue aproxima-
veis. Assim, se em alguns casos os catadores pare- damente R$700,00 mensais (pouco mais de 2 salá-
cem escolher entre um ou outro comprador, o rios mínimos). Ele aluga três carrinhos para cata-
motivo não se deve a um preço melhor pelo reci- dores e tem outros três, que são conduzidos por
clável, mas se explica por outros fatores tais como ele, a mulher e um dos filhos. Mas este caso não é
o adiantamento de dinheiro na forma de gêneros representativo da maioria.
A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO TRABALHO “INFORMAL” 111

Tabela 1
Rendimento Médico da Cata de Recicláveis

Renda Média* Catadores Percentual

Até 100,00 8 8,8


De 101,00 a 200,00 17 18,8
De 201,00 a 300,00 40 43,9
De 301,00 a 400,00 4 4,4
De 401,00 a 500,00 10 10,9
De 501,00 a 600,00 2 2.2
Acima de 601,00 8 8,8
Não soube dizer 2 2,2
Total 91 100%

* Os valores estão em Reais. Na época da aplicação dos questionários sobre renda o Salário Mínimo equivalia a R$300,00. Os
dados contidos na tabela não expressam a renda média per capita, pois muitos dos catadores entrevistados trabalham em família.
Essa foi uma das principais dificuldades que tornaram nossas tentativas de quantificação per capita da renda impraticáveis.

No geral, a renda média dos catadores en- as situações mais comuns são outras. Entre os cata-
trevistados não supera o salário mínimo. Entre os dores que trabalham uma média de 8 horas diárias,
entrevistados há os que computam a aposentado- Juruema Nulwin, 46 anos, casada e mãe de seis fi-
ria ou pensão como renda e que se tornaram lhos, é um caso emblemático. Ela consegue entre
catadores porque o benefício recebido do INSS R$150,00 e R$200,00 mensais catando, principal-
não era suficiente para suas despesas. Seu Ivo Ram- mente, papel e papelão, o que representa recolher
bo ilustra esta situação. Com 63 anos de idade, aproximadamente mais de uma tonelada de reci-
mora com um filho e a nora. Depois de aposenta- clados por mês.12 Nesse sentido, a percepção de
do recorreu à cata de recicláveis. Há também situa- muitos catadores indica que a tendência nos próxi-
ções em que a cata de recicláveis alinha-se a outra mos anos será a de intensificar o trabalho devido a
ocupação. A esse respeito, Amélia Alves, 40 anos, uma concorrência que só faz aumentar. Sobre isso,
moradora de Foz do Iguaçu, disse que é catadora e o relato de Dulce Schimidt é exemplar:
artesã. Maria Taborda, 43 anos, também de Foz
do Iguaçu, identificou-se como lavadeira e catado- Naquele tempo em que eu comecei catar papel [1999]
tinha menos catador de papel. Daí era vantagem por-
ra. Além de tudo isso, muitos dos catadores entre-
que a gente tirava mais e agora, hoje, tá menos, né? A
vistados contam com programas sociais, federais e gente tira menos porque tem mais gente passando. [. . .]
municipais, de complementação de renda tais como Naquele tempo tirava mais porque a gente andava pouco
bolsa escola, vale gás e cestas básicas distribuídas tempo e já tinha bastante papel no carrinho.
pelas prefeituras.
A renda conseguida apenas com a cata de Enfrentando essa realidade, os catadores es-
recicláveis foi indicada por muitos catadores. Con- forçam-se de diversas maneiras para atingir uma
siderando o catador e seu carrinho, poucos atingi- renda com capacidade de suprir suas necessidades,
ram ou superaram o salário mínimo. Quando isto o que permite concluir que a quantidade per capita
aconteceu, verificaram-se condições de trabalho de trabalho despendida diariamente é determinada,
baseadas em extensas jornadas trabalhadas e numa principalmente, pela necessidade de renda. Mesmo
clientela definida (moradores que guardam mate- contabilizando outras fontes de renda tais como
riais recicláveis para determinado catador). Porém, aposentadoria, pensão, bolsa escola, vale gás, cesta
112 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 67

básica, quando indagados sobre a jornada diária de tinizada e semelhante ao trabalho assalariado, exe-
trabalho destinada à catação de recicláveis, os cata- cutado em jornadas diárias superiores a 6 horas,
dores apontaram para uma ocupação bastante ro- conforme se pode interpretar na Tabela 2.

Tabela 2
Jornada de Trabalho

Horas trabalhadas por dia Catadores Percentual

Menos de 5 horas 6 6,7


De 6 a 7 horas 23 25,2
De 8 a 9 horas 30 32,9
De 10 a 11 horas 15 16,5
Mais de 12 horas 15 16,5
Não soube dizer 2 2,2
Total 91 100%

Mais de 90% dos catadores trabalham jorna- choveu. Bem na hora que nós ia saí começou chover.
das acima de 6 horas diárias e mais de 65% traba- Hoje também não deu pra ir. Vamos ver amanhã.
lham jornadas superiores a 8 horas diárias. Questio-
nados sobre a freqüência dessas jornadas de trabalho, As difíceis condições para a cata de reciclá-
mais de 80% responderam que trabalham seis dias veis são marcadas também por uma concorrência
da semana. Indagados sobre por que não traba- quase insuportável para os catadores. Além de não
lham menos tempo, as respostas se uniformizaram: se realizar nos dias chuvosos, a produção de cada
não se recebe o suficiente. Além de ter sua exten- catador depende, principalmente, (a) de um bom
são determinada pela quantidade de material reco- relacionamento com moradores das cidades, (b)
lhido, a jornada trabalhada tem sua distribuição, ao do conhecimento dos pontos mais promissores
longo do dia e da noite, norteada por variáveis que para a cata e (c) de se anteciparem aos seus próprios
não são controladas pelos catadores. Juruema Nul- pares e ao caminhão do lixo. A concorrência de
win oferece um panorama bastante complexo dessa alguns lojistas também afeta a rotina de trabalho
jornada de trabalho: dos catadores, na medida em que as lojas passam a
vender papel e papelão diretamente para os inter-
Você tem que sair primeiro do que o lixeiro [gari], né? É mediários. Esta situação foi destacada, dentre mui-
que os rapaz sai cedo, 6 e meia ocê acorda e o lixeiro já tos catadores, por Alberto Nering, 62 anos, cata-
tá passando, aí ocê vai catar o que? Já pegou tudo né? dor em Guaíra:
Ocê não acha papelão, ocê não acha litro, ocê não acha
nada. [. . .] Que nem hoje é quarta-feira, né? Hoje era Eu reclamei com ele [seu Zé, empresário que compra
dia de ir pro lado do Primavera [bairro de Marechal os recicláveis em Guairá], porque antes eu entregava na
Cândido Rondon], que daí tem o Lixo Bom [programa base de três, quatro mil quilos. Mas só que agora, nos
de coleta seletiva municipal], tem o lixeiro, né? Ocê mercado, nas loja, o povo tão tudo segurando pra ven-
tem que passar bem antes dele, desse caminhão passar. der pro seu Zé, e os mesmos doze centavos que ele ta
Aqui ele passa na segunda, aí ocê tem que passar antes pagando pra nóis, ele paga pra eles (comerciantes e
das 2 horas pra catar, porque senão ele cata e ocê não lojistas). Eu falei que enquanto ele estiver comprando
acha nem agulha no lixo, né? [. . .] Quando chove, daí das lojas, é claro que não vai sobrar nada pra gente. Ele
tem dias que não dá pra saí. Daí aquele dia ocê não fez me falou que no fim do mês ainda dá pra comprar uma
nada. Ontem de manhã só fiz uma carga. De tarde carninha, então eu falei que dava, mas daí, a gente só ia
A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO TRABALHO “INFORMAL” 113

conseguir tirar uns trinta conto por mês. Imagine, vai quando essas hipóteses são apresentadas como as
ficar ainda mais difícil. únicas chaves (mesmo referidas às dinâmicas da acu-
mulação de capital como “pano de fundo”) para
Pressionados por esse quadro, os catadores a compreensão dos significados do trabalho dos
tendem não só a estenderem suas jornadas de tra- catadores, perdem-se as articulações e os nexos com
balho como também a intensificá-las. Desse modo, o mundo do trabalho e com as dimensões mais
o árduo e prolongado trabalho dos catadores en- amplas deste que alcançam e envolvem todos os
contra sua principal razão de ser na composição de trabalhadores, como tentei problematizar.
uma renda mensal que seja suficiente para sua so- Nesse sentido, deslindar os fios que ligam ca-
brevivência. Esta conexão entre jornada e renda pital e trabalho nas suas formações históricas atuais
revela que a organização dessa modalidade de tra- ainda contém forte poder de explicação acerca do
balho obedece a uma lógica que tem sido histori- mundo dos trabalhadores e das mudanças ocorri-
camente determinada, em larga medida, pelos com- das nele, tão discutidas e realçadas pelas ciências
pradores e pelas recicladoras que se apropriam humanas e sociais nesses últimos trinta anos. Desse
indiretamente do trabalho dos catadores. Este fato modo, não se trata apenas de reconhecer a organi-
tende a garantir, do ponto de vista do capital que zação capitalista do trabalho “informal”, mas de
controla o negócio de recicláveis, o sistemático e perceber como esse tipo de organização também
cada vez mais intenso retorno dos catadores para “resignifica” e condiciona as experiências e as prá-
as ruas em busca de papel, papelão e alumínio. Em ticas dos diversos sujeitos implicados nesse proces-
síntese, pode-se afirmar que os catadores realizam so. Uma visão assim orientada, não deixará de cali-
seu trabalho em contextos de permanentes pressões brar a autonomia dos catadores a partir de como
exercidas por diversos sujeitos sociais como os atra- eles percebem e vivenciam, por exemplo, certas
vessadores, os lojistas, as recicladoras, além da pró- pressões como aquela exercida pela necessidade da
pria concorrência enfrentada devido ao “excesso” renda. Afinal, as ocupações tidas como “informais”
de trabalhadores envolvidos na cata de recicláveis. vêm ganhando relevância no mundo do trabalho
exatamente porque têm sido acionadas como for-
ma de produção preferencial do capital e não como
Conclusão escolha exclusiva dos trabalhadores. A estruturação
do setor de reciclagem no Brasil a partir do apro-
A realidade dos catadores aqui examinada e veitamento de uma numerosa população trabalha-
discutida ajuda a esclarecer sobre a natureza do seu dora excedente – que num aparente paradoxo teve
trabalho. Subordinado, integrado e requerido pelo suas qualidades recusadas pelo “mercado” – é um
processo de acumulação de capital, o trabalho dos traço constitutivo das atuais relações de trabalho e
catadores traz, como força produtiva, a marca das uma evidência importante desse processo. Por isso
relações capitalistas de produção. Sua organização mesmo, a informalidade, bem como seu crescimen-
acontece determinada pelo capital envolvido no to funcional, precisa ser percebida como um resul-
negócio da reciclagem, embora a relação social de tado, ainda inconcluso, das relações de forças his-
exploração sobre o trabalho não apareça formali- toricamente estabelecidas em torno da organização
zada em contratos que fixem jornadas e salários. do trabalho.
Nesse contexto, a autonomia dos catadores identi-
ficada noutros estudos (Couto, 2000; Cesconeto,
2002; Dias, 2002; Rodrígues, 2002; Adissi, 2003; Notas
Gorbán, 2004) precisaria ser, no mínimo, relativi-
zada. É evidente que o trabalho dos catadores pro- 1 Cabe salientar que o próprio conceito de “trabalhador
move mudanças no cenário urbano, imprimindo por conta própria” e sua alegada independência e auto-
nomia em relação ao processo de acumulação de capi-
disputas em torno do recolhimento dos materiais tal já foram solidamente criticados (Oliveira, 1976;
recicláveis (Schamber et al., 2002), motivando rea- Prandi, 1978).
ções dos poderes públicos que tentam contê-lo ou
2 É importante frisar que essa força de trabalho está pre-
discipliná-lo (Adissi, 2003; Dias 2002) e “resignifican- sente em quase todas as cidades do país. Recente pesqui-
do” espaços tais como a rua (Gorbán, 2004). Mas sa divulgada pelo Ministério das Cidades referente ao
114 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 67

ano de 2004 indica que existem catadores de materiais BIBLIOGRAFIA


recicláveis em aproximadamente 85% das cidades que
compuseram a amostragem estudada (Brasil, 2006).
3 Diferentemente do Brasil, nos Estados Unidos não se ABREU, Alice R. P. (1986), O avesso da moda: traba-
estabeleceu uma força de trabalho especializada na co- lho a domicílio na indústria de confecção. São Paulo,
leta e seleção de material reciclável. Esse trabalho deve- Hucitec.
se às campanhas e aos programas de coleta seletiva que
mobilizam cerca de 10 milhões de habitantes dos Esta- ADISSI, Grissel. (2003), “El fenômeno ‘cartoneros’
dos Unidos (Cempre, 2005b). em los médios gráficos portemos: la construc-
4 A este respeito é elucidativa a reflexão de Marx sobre a ción de un nuevo sujeto/objeto histórico”.
razão que motiva a escolha da mecanização da produ- Disponível no site http://www. urbared.ungs.
ção ou da utilização de quantidades expressivas de for- ar/textos/ (acessado em 12 ago. 2005).
ça de trabalho. Onde há excesso de força de trabalho, a
introdução de tecnologia poupadora de trabalho geral- ALVES, Giovanni. (2000), O novo (e precário) mundo
mente é retardada (Marx, 1988, p. 20). do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindi-
5 Cabe ressaltar também que, em regra, a externalização calismo. São Paulo, Boitempo.
dessas funções produtivas é marcada pela precariza- ANTUNES, Ricardo. (1999), Os sentidos do trabalho:
ção dos contratos de trabalho — cujos principais traços
são a diminuição dos encargos sociais e a quebra do
ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São
vínculo empregatício direto e da isonomia salarial. Paulo, Boitempo.
6 Trata-se de uma força de trabalho geralmente jovem, BANDEIRA, Manuel. (1993), “O bicho”, in
com escolaridade superior (completa ou em curso), _________, Estrela da vida inteira, Rio de Ja-
“disponível” para jornadas de 6 horas extremamente neiro, Fronteira.
intensificadas, distribuídas num dia de trabalho corres-
pondente a 24 horas, sete dias por semana, o que impli- BEYNON, Huw. (1999), “As práticas do trabalho
ca um fortíssimo turnover. em mutação”, in Ricardo Antunes, Neoliberalis-
7 A ocupação de moto-táxi é preenchida por jovens, ge- mo, trabalho e sindicatos: reestruturação produtiva no
ralmente com baixa escolaridade, mas proprietários de Brasil e na Inglaterra, 3 ed., São Paulo, Boitempo.
motocicletas, “disponíveis” para longas jornadas de tra-
balho que cruzam o dia e a noite. Já a ocupação de BOSI, Antônio P. (2003), “Flexibilização trabalhis-
sacoleiro é preenchida, na maioria dos casos, por ho- ta e sindical no Brasil contemporâneo”. Ca-
mens e mulheres de diversas profissões, que perderam derno de Resumos do I Seminário Internacional de
suas condições no mercado de trabalho legal.
História, Departamento de História, Univer-
8 Foram entrevistados 91 catadores, entre 2004 e 2005, sidade Estadual de Maringá.
pertencentes a quatro cidades: Marechal Cândido
Rondon (41.339 habitantes), Guairá (28.348 habitan- BRAGA, Ruy. (2006), “O trabalho do teleopera-
tes), Toledo (100.715 habitantes) e Foz do Iguaçu dor: infotaylorização e degradação da rela-
(279.620 habitantes). ção de serviço”. Revista Electrónica Internacional
9 Projeto estadual que prevê, dentre outras medidas vol- de Economía Política de las Tecnologías de la Infor-
tadas para a “recuperação do meio ambiente”, a separa- mación y Comunicación. Disponível no site http:/
ção do lixo reciclável a partir de convênios estabeleci-
/www.eptic.com.br/ (acessado em 9 nov.
dos com prefeituras com o objetivo de instalar a coleta
seletiva em determinados bairros (Cesconeto, 2002, pp. 2006).
69-71). BRASIL. (2006), “Diagnóstico do manejo de resí-
10 Esse conceito foi tomado emprestado da sociologia do duos sólidos urbanos – 2004”. Programa de
trabalho: “Os rendimentos são o conjunto dos meios, Modernização do Setor Saneamento. Disponível
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11 O Salário Mínimo equivalia a R$300,00 no período da BURSZTYN, Marcel. (2005), Depoimento em
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12 Este cálculo foi realizado a partir de informações dos emergenciais dos futuros prefeitos”. Dispo-
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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS 191

A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA THE CAPITALIST ORGANIZA- L’ORGANISATION CAPITALISTE


DO TRABALHO “INFORMAL”: O TION OF “INFORMAL” WORK: DU TRAVAIL “INFORMEL”:
CASO DOS CATADORES DE THE RECYCLED GARBAGE LE CAS DES RAMASSEURS
RECICLÁVEIS PICKERS CASE DE DÉCHETS RECYCLABLES

Antônio de Pádua Bosi Antônio de Pádua Bosi Antônio de Pádua Bosi

Palavras-chave: Catadores; Trabalho Keywords: Recycled garbage pickers; Mots-clés: Ramasseurs; Travail infor-
informal; Trabalho precarizado; Reci- Informal work; Precarious work; mel; Travail précaire; Déchets recyclables;
cláveis; História social do trabalho. Recycled; Social work history. Histoire sociale du travail.

Este artigo discute o trabalho dos ca- This article discusses the work of re- Cet article aborde le travail des ramas-
tadores de recicláveis no Brasil no perío- cycled garbage pickers in Brazil be- seurs de déchets recyclables au Brésil dans
do de 1985 a 2005. O material analisado tween 1985 and 2005. The research was la période de 1985 à 2005. Le matériel
compõe-se de fontes bibliográficas e da- done using bibliography sources and analysé se compose de sources bibliogra-
dos levantados nas cidades de Foz do statistics information from the follow- phiques et de données des villes de Foz
Iguaçu, Toledo, Guaíra e Marechal Cân- ing cities: Foz do Iguaçu, Toledo, do Iguaçu, Toledo, Guaíra et Marechal
dido Rondon, localizadas no Oeste do Guaíra and Marechal Cândido Rondon. Cândido Rondon, situées à l’ouest de
Paraná. Contrariamente às leituras que These cities are located in the west of l’État de Paraná. Contrairement aux
geralmente mostram o trabalho dos Paraná state. Contrary to the most interprétations qui, généralement, mon-
catadores como uma atividade “infor- common view that shows these work- trent le travail des ramasseurs comme une
mal”, não subordinada diretamente a ers as informal workers or autonomous activité “informelle”, qui n’est pas di-
patrão ou empresa, as informações le- workers, not under a boss or a business, rectement subordonnée à un patron ou
vantadas e problematizadas nesta pesqui- the collected information to this re- une entreprise, les informations obtenues
sa indicam que a organização desse tra- search indicates that the organization et analysées dans cette recherche indi-
balho é realizada a partir dos interesses of this kind of work is done from the quent que l’organisation de ce travail est
do capital mobilizado na compra, na interests of the capital in the purchase, réalisée à partir des intérêts du capital
reciclagem e na comercialização de todo recycling, and trade of all materials mobilisé dans l’achat, le recyclage et la
material recolhido por esses catadores. A collected by these workers. Thus, top- commercialisation de tout le matériel ra-
hipótese aqui desenvolvida sugere que o ics such as income and working hours massé. L’hypothèse que nous dévelop-
trabalho dos catadores de recicláveis no are not determined exclusively by the pons ici suggère que le travail des ra-
Brasil está integrado ao processo acumu- workers. The idea developed in this ar- masseurs de déchets recyclables au Brésil
lação de capital e que a suposta situação ticle suggests that the work of recycled est intégré au processus d’accumulation
de exclusão dos catadores o qualifica para garbage pickers in Brazil is linked to de capital et que la supposée situation
esse tipo de ocupação. the accumulation of capital and that d’exclusion des ramasseurs les qualifie à
the social exclusion of these workers ce genre d’occupation.
(unemployment, low-education, high
age group) qualify them for this kind
of occupation.

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