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Sábato, Ernesto- Abaddon, el exterminador.

Barcelona: Seix- Cadernos de História


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Argentina, ditadura e terror

Governo do Estado do Rio Grande do Sul - Germano Rigotto


Secretaria Estadual da Cultura - Victor Hugo Alves da Silva
Memorial do RS - Voltaire Schilling
35
Argentina, Ditadura e Terror Bibliografia
A partir da deposição da presidenta María Estela de Perón
pelas Forças Armadas, num golpe ocorrido no dia 24 de março de Amorín, José – Montoneros. La buena historia. Buenos Aires:
1976, a Argentina mergulhou num dos mais brutais e sanguinários Editorial Catálogos, 2005.
episódios da sua história. Quando a ditadura militar, denominada
de Processo de Reorganização Nacional, deu-se por encerrada, Di Tella, Guido – Perón-Perón. Buenos Aires: Hyspamérica, 1985.
em 1983, contabilizou-se o desaparecimento de mais de 8 mil
pessoas de ambos os sexos, estimando-se, ainda, que o total de Dromi, María Laura San Martín de – Argentina Contemporánea;
vítimas teria alcançado um tanto mais de 30 mil civis. de Perón a Menen. Buenos Aires: Ediciones Ciudad Argentina,
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Tempos difíceis (gravura de R. Carpani) Martínez, Thomas Eloy – La Santa Evita. Barcelona: Seix-Barral,
1995
Civilização e Barbárie
Martínez, Thomas Eloy – La novela de Perón. Buenos Aires:
Editorial Planeta, 1985.
Seguramente aqueles foram os sete anos mais cruéis e
infelizes da vida nacional Argentina, no século XX. Anos de sangue Mason, Alfredo – “24 de Marzo de 1976” (reflexiones a casi 30
e chumbo que tornaram quase que inofensivas todas as ditaduras años) Bitarana Global, 2005.
anteriores que o país padecera, inclusive a do tirano Rosas. O

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Apocalipse. ódio que embalou os militares contra a guerrilha peronista e
Acolhendo-se isso, de que sua obra é uma premonição marxista envolveu-os num carrossel de matanças, movidas pelo
do horror que estava por vir, ele assume a posição que os grandes mútuo desejo de extermínio. Violência desmedida que ultrapassou
autores trágicos gregos, tais como Ésquilo ou Sófocles, exerceram qualquer parâmetro de possível racionalidade ou compreensão,
no passado clássico por ocasião dos festivais teatrais nos quais merecedora de figurar como um dos piores capítulos da história
as mazelas e os temores da sociedade, expressos dramaticamente universal da infâmia. Até os nossos dias, a ciência política jaz
por personagens famosos do passado histórico ou mitológico, perplexa frente ao que aconteceu no mais próspero dos países
eram expostos de maneira sutil frente a uma coletividade latino-americanos.
participante. Um dos aspectos mais chocantes do massacre ocorrido,
tratando-se de uma nação profundamente identificada e inserida
na tradição ocidental, foi o fato de que o genocídio foi levado
adiante numa sociedade que se orgulhava da sua cultura e do
seu notável padrão civilizatório.
Buenos Aires - a Paris do Rio da Prata - por décadas fora
palco de notáveis e impressionantes apresentações, as mais
variadas. Praticamente todos os grandes nomes das artes
passaram por lá: do tenor italiano Enrico Caruso à dançarina norte-
americana Isadora Duncan; do poeta espanhol García Lorca ao
escritor indiano Rabindranath Tagore. Quem foi relevante no
mundo dos espetáculos e do entretenimento algum dia fez-se
presente no Teatro Colón ou no Luna Park.

Entre os Galões e o Sindicato


Todavia, nada desse refinamento e da orgulhosa
urbanidade portenha livrou-os da tragédia. O país parecia sofrer
de um tipo especial de esquizofrenia, fazendo com que a apurada
vida cultural nada tivesse a ver com a vida política, império dos
brutos. Durante quase cinqüenta anos - do golpe perpetrado em
1930 contra o presidente Yrigoyen, até a retirada final do poder
castrense, na esteira da derrota na Guerra das Malvinas, ocorrida
em 1982 - a Argentina viu-se envolvida num permanente confronto,
quase que sem tréguas, entre a Farda (as Forças Armadas) e o

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Macacão de trabalho (a classe operária representada pela CTG), Exército Francês durante a guerra de independência da Argélia,
em meio a uma classe média atarantada. ou o Vietnã na época da invasão norte-americana, isto é, um
O resultado prático disso – da intermitente guerra civil não território inimigo a ser ocupado palmo a palmo.
declarada entre a oficialidade e as lideranças sindicais - é que o país Milhares de civis foram detidos, estimam em cem mil ou
foi governado, naquele meio século, por nada menos do que 17 mais. Deles, 30 mil foram mortos, sendo que de muitos nunca
generais-presidente, cabendo, a cada um deles, uma média de três mais se soube nada. Poucas famílias não tiveram alguém atingido
anos de poder. de alguma forma pela repressão que se abateu sobre a nação. O
O engessamento das posições ideológicas das partes em país durante aqueles sete anos de chumbo foi ocupado por suas
luta, o sectarismo e o radicalismo delas fizeram com que o liberalismo próprias forças armadas. Generais tornaram-se reitores de
e a tolerância praticamente desaparecessem do convívio nacional. universidades, majores e capitães, diretores de colégios, e assim
Não deixa de ser significativo ter cabido a um egresso dos quartéis, por diante.
ao coronel Juan Domingos Perón, implantar um regime, proclamado O inesperado de tudo foi a entrada em ação das avós da
Justicialista ou Peronista, voltado preferencialmente para a classe Plaza de Mayo que, não satisfeitas com as escusações e
trabalhadora, atuar como uma síntese entre as duas corporações tergiversações das autoridades, começaram a exigir em público,
em pugilo. com coragem quase que suicida, a devolução dos seus netos e
uma satisfação que fosse a respeito do sumiço dos filhos e filhas.
Por isso, chegaram a serem chamadas de “Las locas de la Plaza
Peronismo como Equilíbrio Autoritário de Mayo”.

Sábato e o Prenúncio da Catástrofe


De certo modo, quem intuiu a proximidade do desastre
que se abateu sobre a Argentina dos anos 70 foi o escritor Ernesto
Sábato. A trilogia dele, “O Túnel” (1949), “Sobre Heróis e Tumbas”
(1961) e “Abaddon o Exterminador” (1974), cuja escolha dos títulos
é suficientemente simbólica do mal estar que acometia a sociedade
rio-platina, indica a aguda e sensível percepção do artista de que
por debaixo daquele país próspero e com uma população
Perón e Evita, desfile da posse (1951) relativamente bem instruída e culta, pulsava algo daninho,
neurótico, crescentemente perigoso, um ódio ideológico que com
Durante dez anos, de 1945 a 1955, Perón e sua mulher, o passar dos anos transformou-se em algo potencialmente
Evita, mantiveram, por meios autoritários, similares aos do autodestrutivo. Chama a atenção o derradeiro título, aquele que
fascismo italiano, um equilíbrio entre a Farda, a Igreja e o Sindicato, encerrou sua obra, praticamente às vésperas do golpe de 1976,
situação mantida até que, após um grave desentendimento entre visto que Abaddon é o anjo satânico que vem anunciar o

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A Polêmica Sobre os Demônios o Peronismo e o alto clero, a Farda, tomando as dores dos
sacerdotes, derrubasse o regime pelo cruento golpe deflagrado
em 16 de setembro de 1955, quando quase 400 peronistas foram
mortos. A assim autodenominada Revolución Libertadora, liderada
pelo general Eduardo Leonardi e, em seguida, pelo general Pedro
Aramburu, deu, então, andamento ao processo de
“desperonização” do país. O novo regime, uma Junta Consultiva
formada por militares e seis outros partidos políticos, ainda que
de abertura democrática, tinha como meta banir para sempre o
Peronismo da vida política nacional.
Refugiado primeiro no Paraguai e, depois, na Espanha, o
General Perón ficaria por 18 anos ausente do poder. Mesmo assim,
o Grande Exilado continuou sendo a figura política mais influente
do país. A situação ficou deveras confusa. O regime semiliberal
Um dos tantos cartazes dos desaparecidos
implantado pelas Forças Armadas, ainda que promovesse a
abertura política e tratasse de dar apoio aos civis, particularmente
Até hoje os argentinos continuam divididos quanto à
aos do Partido Radical, criara um impasse de difícil, senão de
responsabilidade sobre o que aconteceu. Para o ex-presidente
impossível solução. Mesmo promovendo eleições e assegurando
Raúl Alfonsín, tratou-se do demônio de duas cabeças, uma delas
ampla liberdade de organização partidária, os peronistas –
representada pela repressão militar e a outra pela subversão
majoritários no país - se eleitos, não podiam assumir os cargos
guerrilheira, ambas igualmente com as mãos sujas, envolvidas
devido ao veto militar que pesava sobre eles.
em seqüestros e assassinatos. Para o poeta Juan Gelman,
A democracia conquistada pelos argentinos em 1955,
defensor da teoria perversa dos “dois demônios”, foi a cumplicidade
paradoxalmente excluía o maior partido de massas do país.
dos dirigentes sindicais e da alta hierarquia católica para com a
Evidentemente que tal situação favorecia a volta da ditadura militar.
Junta Militar, liderada pelo General Videla, que permitiu o mergulho
Então, em 1966, inspiradas no sucesso dos militares brasileiros
no desatino.
no ano de 1964, as forças armadas argentinas também declaram
Poderiam ter seguido o bom exemplo da Itália, no seu
encerrada a experiência democrática. Assumiu o poder supremo
enfrentamento com o bando extremista das Brigadas Vermelhas,
o General Onganía que, no lugar da constituição, governou
quando as autoridades jamais se deixaram levar pela sedução do
apoiado no autoritário “Estatuto de la Revolución Argentina”, cujos
terrorismo de Estado. Mas não. Sem haver uma voz de advertência
e moderação que freasse os ímpetos mais cruéis e os instintos poderes concentravam-se no Chefe do Executivo.
mais primitivos das partes envolvidas, deixaram que a carnificina
desatada tivesse prosseguimento.
Desimpedida, a alta hierarquia militar agiu como se a
Argentina fosse um campo de batalha, tal Argel e Oran para o

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A Esquerda Revolucionária Entra em Cena Um Testemunho do Horror
“A cúpula militar que havia promovido o golpe decidiu usar
a desculpa do extermínio da guerrilha para impor um terror poucas
vezes visto até então.”
A Argentina foi devastada por prisões arbitrárias, violações
de domicílios e execuções nas ruas. Foram instituídos locais de
tortura e assassinatos secretos. Milhares de pessoas começaram
a desaparecer. A violação das instituições não respeitava nenhum
limite, porque não apenas se profanava a Constituição, como foi
redigido um Ato Institucional paralelo à Constituição, ao qual os
funcionários tinham que jurar obediência. Os pais temiam falar
com seus filhos, para não dizer algo que pudesse virar em tragédia.
Multiplicaram-se as delações em todos os níveis, muitas delas
falsas, movidas pela tortura.
Mario Roberto Santucho, fundador do ERP Os militares golpistas incharam-se de soberba. Auto-
intitularam-se “salvadores da pátria”. Consideravam-se infalíveis
Seguramente, foi a entrada em cena da esquerda e treinados para qualquer função. Não apenas ocupavam os
revolucionária – seja em seu viés marxista ou neoperonista - que cargos do governo, como também as reitorias e direções das
precipitou a catástrofe da Argentina entre os anos de 1970 e 1980. universidades, os meios de comunicação, cargos diplomáticos, a
Para explicar o surgimento dela, é preciso recompor, ainda que direção de sindicatos, a direção de empresas. Podiam decidir entre
brevemente, o clima da época. Che Guevara, um dos líderes da a vida e a morte de qualquer pessoa.
Revolução Cubana de 1959-1961, era argentino. A aventura em Quando, ao cabo de seis anos, começaram a
que ele se envolvera, auxiliando a Fidel Castro na derrubada da compreender que haviam perdido as simpatias iniciais e que
tirania de Fulgêncio Batista, deu-lhe uma aura de herói continental. aumentavam as denúncias internas e externas de seus crimes,
Como era de se esperar, milhares de jovens buscaram eles apelaram para o recurso gasto de exacerbar o sentimento
inspiração nele, aderindo à luta pela revolução social latino- patriótico, com a Guerra da Malvinas. Na mesma Praça de Maio
americana e pela “autodeterminação dos povos”. Desprezando a onde dezenas de milhares de pessoas se reuniram para aplaudir
democracia e os partidos tradicionais, tanto os democráticos o ditador Galtieri por ter ordenado o desembarque nas ilhas.
quanto os comunistas, muitos deles, ainda estudando nas Mas essa guerra foi o começo do fim. Em 10 de dezembro
universidades ou recém egressos delas, acreditavam que a de 1983, a última ditadura argentina foi sepultada pela entusiástica
transformação da sociedade somente poderia vir por meios recuperação da democracia.”
extremados, radicais, pela “ponta do fuzil”. Era através da luta (Marcos Aguinis: Do golpe e de instituições
armada, tal como se dera em Cuba e como ainda ocorria no Vietnã, Folha de São Paulo,: 19/03/2006)

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Estado Exterminador. Para lá foram levados, aos magotes, os e não pelos procedimentos parlamentares, é que a América Latina
subversivos suspeitos onde eram submetidos a um tratamento se veria livre do atraso social e do subdesenvolvimento,
brutal. A tortura era justificada, inclusive pelos capelães militares, representado pela aliança da Oligarquia (interna) com o
como um instrumento válido para arrancar informações o mais Imperialismo (externo). Como então diziam: “Las revoluciones
rápido possível. Quanto menor fosse o tempo de resistência do no se hacen con votos”.
preso, maiores eram as possibilidades de se capturarem outros e Acreditavam, pois, que deviam seguir “os passos de Che”
de se impedir a continuidade dos atentados. e criar “focos revolucionários”, rurais ou urbanos, de onde partiriam
A ESMA, todavia, era apenas o centro de detenção mais para a luta final contra as forças do capitalismo monopolista,
notório, visto que existiam ainda uns 240 outros espalhados pelo apoiadas pelas Forças Armadas. Além disso, o mundo ocidental
país. Entre eles La Casilla (no Campo de Maio), La Casona (Na viu-se profundamente abalado pela rebelião estudantil dos anos
base aérea de El Palomar), inúmeros quartéis, bases navais e 60, que se alastrou para grande parte dos países da Europa e da
aéreas, comissarias policiais, casas e sótãos clandestinos, prisões América Latina.(*)
militares, etc. A geração engajada de 1968 tinha certeza de que o país
Decisão tomada, os presos selecionados recebiam em que viviam perdera a independência e que cabia a eles, aos
injeções ou comprimidos tranqüilizantes e eram levados para os autênticos revolucionários (e não aos inoperantes quadros do
aeródromos de onde decolavam os “vôos da morte”. Aviões de partido comunista), resgatar a soberania humilhada pela presença
transporte ou mesmo helicópteros foram utilizados na operação da potência norte-americana e seus acólitos internos. Era pelas
de jogar os subversivos lá do alto, tanto no rio da Prata como no armas e pelo sangue que as coisas se dariam
Riachuelo. Os que se encontravam na periferia de Buenos Aires Sem a existência desse cenário internacional de apelo à
ou nas casas clandestinas do interior do país foram mortos a tiros política da pólvora, de contestação geral às instituições e aos
e depois inumados nas áreas reservadas aos indigentes nos costumes, fica difícil entender como jovens preparados,
cemitérios locais. geralmente inteligentes e cultos que compunham os quadros da
Como muitos dos capturados tinham filhos pequenos ou suas guerrilha Argentina e do Uruguai, seu vizinho, deixaram-se levar
companheiras estavam grávidas, tomou-se como princípio pela idéia de subverter os regimes sócio-econômicos dos países
entregar as crianças e os recém-nascidos às famílias de militares do Prata, justamente aqueles mais bem providos de tudo e que
para que os criassem como bons católicos, imunes à “sífilis da desconheciam as mazelas da pobreza, tão comum logo acima
revolução”. das suas fronteiras, no Brasil, na Bolívia e no Peru.
Nem mesmo políticos e militares que estavam exilados na
Argentina escaparam da fúria vingativa das Forças Armadas em (*) Na França, a rebelião dos jovens, desencadeada em maio de
conluio com colegas vizinhos, como foi o caso do ex-senador 1968, chegou a forçar a saída do presidente Charles De Gaulle
uruguaio Zelmar Michelini e do seu colega Héctor G. Ruiz, dos do poder, no ano seguinte. No Brasil, provocou o recrudescimento
generais Juan José Torres, ex-presidente da Bolívia, e Carlos Prats, do regime militar por meio do Ato Institucional nº 5, de dezembro
ex-comandante supremo do exército do Chile. Todos mortos no de 1968. No México, por obra do governo, deu-se uma matança
moedor de carnes montado a partir de março de 1976. de 352 estudantes na praça de Tlatelolco, em outubro de 1968.

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A Argentina dos anos 60 tinha tudo o que precisava para Os Instrumentos do
ser uma nação feliz e despreocupada. Seus campos pródigos,
além de exportarem trigo, criavam um gado que tinha as mais Estado Exterminador
reputadas carnes do mundo, bem como possuíam imensos
rebanhos de ovelhas, cuja qualidade da lã era internacionalmente “Videla governa, eu mato!”
apreciada. Além de um assado, não faltava nem pão nem um
bom vinho na mesa da maioria da população. As indústrias de (General Mario Menéndez)
automóveis que lá se instalaram, Fiat, Renault, Peugeot, e outras
mais, na mesma altura que o fizeram no Brasil, podiam estar certas
de que jamais escassearia o combustível para os veículos, visto
que o país era auto-suficiente em petróleo.
Por que, então, a Esquerda insistir em implantar, naquele
país, que estava bem longe da miséria escandalosa do terceiro
mundo, um regime comunista ou seu equivalente? Teria sido tudo
uma alucinação de uma utopia sangrenta?
Platão assegurou, certa vez, que, por mais irracional que
fosse a situação em que uma sociedade estivesse atravessando,
a razão, ainda que expulsa, de alguma forma conseguia manter-
se no alto da acrópole, assistindo tudo lá de cima, apenas
esperando a hora para baixar e retomar seu lugar entre os homens.
Desnecessário dizer que na Argentina dos anos 70, até a cidadela
da razão, a esperança da inteligência, viu-se assaltada e destruída
pelo ódio dos contendores.
Os supliciados da ESMA (León Ferrari)

Os dispositivos militares foram acionados a partir da


divisão das quatro Zonas de Defesa, formadas pelo I Corpo de
Buenos Aires; o II Corpo de Rosário; o III Corpo de Córdoba, e o
IV corpo de Bahía Blanca, sendo que a cada comandante de
zona coube a responsabilidade por executar a repressão na sua
respectiva área.
Dada a sua localização, ironicamente situada na Avenida
do Libertador, próxima à Avenida General Paz, no bairro de Núñez,
na área central da cidade de Buenos Aires, a Escola de Mecânica
da Armada, a famosa ESMA, tornou-se a principal instalação do

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acumpliciados com a subversão. A possibilidade do aniquilamento Mapa da Argentina
físico, antecedido por seções brutais de torturas –
eufemisticamente designadas como “meios especiais de
interrogatório” - aplicadas tanto no Campo de Maio, na capital,
como no Campo da Ribeira, em Córdoba, devia paralisar
completamente a ação dos grupos de combate e suas unidades
de apoio.
Simultaneamente, era preciso depurar as instituições que
de alguma forma alimentaram a subversão naqueles anos todos,
tais como a universidade, os grêmios secundaristas, os sindicatos
mais combativos, as associações dos profissionais mais salientes,
tais como a dos jornalistas e advogados, e, é claro, os
psicanalistas. Quem tivesse colaborado no campo teórico, mesmo
das idéias puras, teria que assumir as mais pesadas
conseqüências.
Nem a conservadoríssima Igreja Católica argentina
deveria ficar a salvo, visto que, a contragosto, dera abrigo aos
padres terceiro-mundistas que, embalados pela Teologia da
Libertação, haviam-se mostrado simpáticos ao apelo às armas
para que o Reino dos Pobres fosse afinal introduzido aqui na terra.

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A Terceira Guerra Mundial suportaria o fuzilamento público de cinco mil ou mais militantes
que estavam então nos cárceres.
No entender das Forças Armadas, formadas nos quadros
fixos da Guerra Fria, a retórica revolucionária e os grupos de ação, A Pedra na Água
ainda que não tivessem ciência, estavam a serviço do poder
soviético. O cenário mundial encontrava-se dividido entre o Mundo O procedimento utilizado pela repressão militar durante o
Livre, composto pelas nações ocidentais e cristãs, e o Totalitarismo Processo de Reorganização Nacional (1976-1983) para extirpar
Ateu, predominante no Leste Europeu e na Ásia. Os jovens nada a subversão lembra uma pedra jogada dentro de um lago. A partir
mais eram do que peças teleguiadas da subversão internacional, do lugar de onde o cascalho mergulhou, pequenas ondas em
força maligna manipulada por Moscou ou por Pequim, que já círculo vão se formando, estendendo-se parelhas conforme sua
deitara mãos sobre a ilha de Cuba, de onde pretendia saltar para dimensão e peso. Cada ativista do ERP ou dos Montoneros tinha
dentro do restante da América Latina. Além disso, desejavam um parentes, filhos, companheiros, amigos, colegas de serviço e
projeto de transformação social “contrário ao ser nacional e à simpatizantes. Nenhum deles poderia ficar imune ou impune.
ordem social natural”. Ninguém poderia sentir-se a salvo, pois, como assegurou o
Fora o próprio Che Guevara quem insuflara a juventude tenente-coronel artilheiro Hugo Pascarelli, “a luta que travamos
de esquerda a criar “dois, três Vietnãs” para levar a guerra de não conhece limites morais, ela se realiza mais além do bem e do
guerrilhas para todas as partes e fazer, assim, os Estados Unidos mal.” A repressão deveria criar um vácuo ao redor do subversivo
se desgastarem num combate mundial. Para a maioria dos caçado para que ele não pudesse recorrer a nenhum tipo de
comandos militares, não só argentinos, mas latino-americanos santuário e nem quarto escuro algum lhe servisse de esconderijo.
em geral, essa subversão não seria detida pelos pruridos de um Ninguém mais chegaria sequer perto dele. Esse procedimento
Estado de Direito, mas exatamente pela supressão dele. Como levou depois o escritor Ernesto Sábato a afirmar: “temos a certeza
circulou por um dos comunicados da época, era preciso realizar de que a ditadura militar produziu a maior tragédia da nossa
“La destrucción total..., inmisericorde y completa” do inimigo, história, a mais selvagem” (Nunca Más – Informe de 1984).
apondo-os com Deus, Pátria, Família e Exército. Tal prática faz recordar a empregada pelos nazistas contra
A democracia latino-americana, planta de natureza os inimigos do Terceiro Reich durante a invasão da URSS,
fragilíssima, viu-se, nos anos 60 e 70, impugnada tanto pelos denominada Nacht und Nebel, decreto expedido por Hitler em
revolucionários da extrema esquerda, como pela corporação militar setembro de 1941, que exatamente visava os mesmos fins, isto
que lhe deu combate. A tal ponto chegou à irrelevância dela, na é, autorizar a SD (Sicherheitsdienst) e a Gestapo a darem sumiço
América do Sul, que, por volta de 1973-6, somente a Colômbia e nos comissários comunistas e outros suspeitos, sem que houvesse
a Venezuela mantinham-se obedientes a constituições liberais. impedimentos jurídicos protocolares.
Todos os demais países passaram a ser governados por regimes O terror desencadeado pelo Estado Exterminador tinha
militares mais ou menos discricionários. um efeito expansivo. O seu objetivo maior era introjetar o medo
em cada um dos indivíduos, estivessem eles, ou não,

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civilizado das nações: “Somos blancos y occidentales” como diria Marxistas e Peronistas
mais tarde Nicanor Costa Méndez, um dos chanceleres do regime
militar. O poder castrense não poderia simplesmente executar em
praça pública os subversivos, pois teria que enfrentar o clamor
mundial e as organizações internacionais dos direitos humanos.
A conseqüência de tais reparos os conduziu à idéia da formação
do Estado Clandestino, à adoção de um estratagema pelo qual o
governo não se considerava responsável diretamente pelas prisões
e pelo que ocorria com os inimigos. Capturados e levados aos
centros de triagem e detenção, sob o ponto de vista formal ou
jurídico, eles não figuravam nem mesmo como detidos. Jamais
ainda como executados, mas sim como desaparecidos que se
tornavam “ausentes para sempre”. Simplesmente se evaporavam. Escudo dos Montoneros
Nem o Ministério do Interior, muito menos o da Defesa, acusavam
qualquer responsabilidade com o que ocorria, muito menos a A primeira organização extremista com proposta de travar
Justiça que, sempre cega, parecia não ver nem saber de nada. um combate até as suas derradeiras conseqüências foi o PRT
(Partido Revolucionario de los Trabajadores), fundado em 1965
A Solução Final por Mário Santucho, Rodolfo Matarollo e Enrique Gorriarán Merlo,
o trio que iria compor a futura Junta de Coordinación
Revolucionária. Tratava-se de uma agremiação trotsquista, filiada
Num depoimento recente prestado à jornalista Maria à IV Internacional. Todavia, após algumas tentativas frustradas
Soema, o general Videla, então em prisão domiciliar, assegurou- de ação guerrilheira, foi somente em 1970, na esteira dos violentos
lhe que a decisão de exterminar com os subversivos encarcerados eventos sucedidos em Córdoba contra a ditadura do General
na ESMA (Escola Mecânica da Armada) e em outras dependências Onganía, que o PRT decidiu lançar mão do seu braço armado, o
foi tomada pelo Alto Comando Militar em vistas à proximidade da ERP (Ejército Revolucionario del Pueblo). Era uma versão platina
Copa do Mundo, disputada na Argentina em 1978. É possível que dos grupos radicais de extrema esquerda que então proliferava
temessem, na ocasião, a má repercussão de uma fuga espetacular na Europa e na América Latina (*), cuja fundação deu-se no V
ou um ato intempestivo qualquer da parte dos aprisionados que Congresso do PRT, realizado em 1970, como “uma organização
viesse a desmerecer o país aos olhos da imprensa internacional. de massas para a guerra civil dirigida contra o Estado burguês e
A grande festa das multidões não poderia ser empanada por seu exército”, os odiados “gorilas”.
incidentes desagradáveis, ao contrário, ela serviria como uma
cortina para ocultar um projeto clandestino genocida que livraria
(*) Brigadas Vermelhas, na Itália; os Tupamaros, no Uruguai; Grupo
para sempre o país dos males da subversão armada. Como o
Baader-Meinhoff, na Alemanha Ocidental; Var-Palmares, no Brasil,
próprio General Videla observou, a sociedade argentina não
etc.

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os que lhe faziam contestação. Não se tratava de um choque de
A Radicalização do Peronismo idéias, mas de uma luta de vida e morte entre distintas e hostis
concepções ideológicas. O que para os integrantes do ERP e dos
Aproveitando-se da fragilização da ditadura militar, abalada Montoneros era uma guerra de libertação nacional, para os
pelo El Cordobazo (levante de metalúrgicos e estudantes ocorrido generais, almirantes e brigadeiros argentinos era uma cruzada
entre 14 a 29 de maio de 1969, numa cidade do interior, sede de contra a subversão comunista.
grandes indústrias de automóveis), a juventude peronista também Daí a decisão contida na Ordem de Batalha de 24 de
decidiu-se pelas armas. A inspiração ideológica veio-lhes de um março de 1976, emitida pelos integrantes do triunvirato e do Estado
ex-deputado chamado John William Cooke (apesar do nome, era Maior Conjunto no sentido de visar “a destruição das organizações
argentino), um teórico dos anos 60, ligado a Che Guevara, que subversivas mediante a eliminação física dos seus membros”. Os
promovera o Justicialismo ao mesmo patamar de outros contatos obtidos nos interrogatórios pelos oficiais junto aos
movimentos de emancipação nacional daquela época, tal como o integrantes da guerrilha capturados pela polícia ou pelo exército
Fidelismo, em Cuba, ou os vietcongs, no Vietnã, exigindo que se haviam-nos convencido de que os militantes eram indivíduos
convocasse as massas para a insurgência. Cooke, num abuso “irrecuperáveis”. Tratava-se de “rebeldes patológicos”, de fanáticos
teórico, cometera a proeza de reorientar uma organização política marxistas ou terceiro-mundistas, possessos similares aos
aparentada com o fascismo e o populismo no sentido de alinhá-la personagens de “Os Demônios”, já denunciados um século antes
com a esquerda revolucionária. na novela de Dostoievski.
Atendendo-lhe o chamamento, vários bandos guerrilheiros Eram dirigentes subversivos obcecados pela mística da
formaram-se na ocasião. Entre eles, as Fuerzas Armadas “revolução mundial” e da liquidação da burguesia que jamais
Peronistas (FAP), as Fuerzas Armadas Revolucionarias (FAR) e, voltariam a ser integrados à sociedade argentina.
o mais famoso de todos, Los Montoneros, fundada por Mário Não havia como convertê-los ao redil da lei e da ordem,
Firmenich e Hugo Vaca Narvaja.(*) como também era inútil mantê-los nos cárceres, visto que a prisão
tinha um efeito psicológico contrário ao esperado. Encaravam-na
como um martírio obrigatório. Afinal, para eles, passar pela
masmorra equivalia a ganhar uma medalha de revolucionário
autêntico. Se soltos, voltavam tranqüilamente a pegar em armas.
Frente a tal situação concreta, com o país varado de balas e
entontecido pela seqüência de intermináveis extorsões, atentados
à vida e à propriedade, com cadáveres aparecendo em todos os
(*) O termo “montonero” deriva dos tempos da Argentina crioula, cantos, era evidente para as Altas Patentes militares que um
quando um caudilho, nas épocas de guerra civil, era seguido por governo que respeitasse os direitos humanos era ineficaz. Ao
um “montón” de gaúchos. Em síntese, são os seguidores do terrorismo da guerrilha do ERP e dos Montoneros precisavam
caudilho, no caso Juan Domingo Perón, que se encontrava exilado contrapor o Estado Exterminador.
na Espanha. Todavia, ponderaram, a Argentina fazia parte do concerto

11 24
O Seqüestro e Assassinato do
General Aramburu
A estréia deles ocorreu de modo espetacular quando a
célula “Camilo Torres” (padre terceiro-mundista colombiano,
integrante do ELN, Ejército de Liberación Nacional, morto em
1966), comandada por Mario Firmenich, seqüestrou e assassinou,
no dia 1º de junho de 1970, o General Pedro Aramburu – o
responsável pelo golpe dado contra Perón em 1955.

A junta militar e o apoio católico ao golpe de 1976


(fotomontagem de León Ferrari)

A Ordem de Batalha
“Primeiro mataremos todos os subversivos, logo mataremos os
seus colaboradores, depois os seus simpatizantes, em seguida
os que permanecem indiferentes e finalmente os tímidos.” General Pedro Aramburu,
cujo assassinato deu início ao banho de sangue.
(General Ibérico Saint-Jean, Governador de Buenos Aires)

Com tal propósito em mente, o General Jorge Videla e Os tiros disparados contra um sexagenário oficial das
seus colegas, o Almirante Emilio Massera e o Brigadeiro Orlando Forças Armadas – ídolo do Exército – abriram caminho para uma
Agosti, assumindo a totalidade do controle sobre o País, crudelíssima guerra aberta entre as agrupações esquerdistas
implantaram um terrorismo de estado como jamais vira-se na (marxistas e peronistas) e as Forças Armadas. A partir daquele
história. A Argentina, para o alto comando militar, estava no centro crime, as comportas que ainda continham Nêmesis, a Deusa da
de uma batalha infernal entre os valores ocidentais e cristãos e Vingança, escancararam-se. Os radicais, ao assassinarem um

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alto chefe militar, perderam o métron - o senso da medida - fazendo todos, cadáveres destroçados por balas ou parcialmente
com que atraíssem sobre si as fúrias das forças castrenses. incinerados, muitos com marcas de espancamento ou tortura. Uma
Na primeira fase da guerra, de 1970 a 1973, os das suas vítimas mais famosas foi o sacerdote terceiro-mundista
extremistas pareciam ter levado vantagem, visto que o General Carlos Mujica. Não escolhiam somente militantes revolucionários
Onganía, afastado do comando pelos seus companheiros de “infiltrados” no peronismo, mas saíram atrás igualmente de artistas,
armas, foi sucedido pelo General A. Lanusse, militar sensível à jornalistas, acadêmicos ou escritores que manifestavam simpatias
questão da pacificação do país. Ele entendeu, contra a opinião pela esquerda e pelos Montoneros. Muitos deles não tinham
de boa parte dos seus colegas de farda, que não haveria modo posição política.
de acalmar a sociedade, senão agilizando eleições que Deu-se o recomeço da diáspora deles, aos quais se
conduziram a um “peronismo sem Perón”, algo aceitável aos juntaram eruditos professores universitários e psicanalistas
militares. Atentados ocorriam a toda hora, a vida ficara um inferno famosos que foram abrigar-se no exterior porque a situação interna
na Argentina dos começos da década de 1970. Mesmo assim, tornara-se insuportável.
foram poucos os que previram a hecatombe que estava ainda por Foi o segundo momento do longo êxodo da inteligência
vir. argentina, visto que o verdadeiro começo dela se dera por ocasião
A resposta fardada ao assassinato de Aramburu ocorreu, da “La Noche de los Bastones Largos” (algo como a “Noite dos
em 22 de agosto de 1973, com o fuzilamento de 16 integrantes Cassetetes”) ocasião em que o General Onganía ordenou em julho
das agrupações terroristas (PTR-ERP-FAR-Montoneros). O local de 1966, que as forças policiais invadissem as universidades
das execuções foi uma base aeronaval perto da prisão de Trelew, argentinas.(*)
situada no sul, na província de Chubut, na Patagônia, por ocasião
da tentativa de uma fuga em massa das lideranças presas. Ainda
que Mário Santucho, fundador do ERP, e alguns outros
conseguissem escapar em um avião seqüestrado para o Chile
(na época governado pelo socialista Salvador Allende), a maioria
foi recapturada pelo Capitão Sose que, após um incidente confuso,
decidiu passá-los pelas armas.
De certo modo, o horror provocado no país pelo
fuzilamento dos presos, ocorrido 87 dias antes do retorno de Perón,
acelerou a devolução do governo aos civis – isto é, a alguém do
Partido Justicialista - pois os militares sabiam que qualquer
candidato apoiado pelo chefe exilado, que eles denominavam de
“tirano prófugo”, venceria facilmente as eleições na Argentina. (*) A perseguição aos psicanalistas e psicólogos argentinos tomou
corpo depois do golpe de 1976, em razão da percepção,dos
militares, de que a terapia e a psicanálise em geral, enfraqueciam
os valores da família católica.

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do todo povo em luta e utilizando os mais variados métodos de A Matança de Ezeiza
ação...” Mario Santucho, num comunicado do ERP de setembro
de 1973, o seguiu, prometendo somente poupar a polícia, mas
continuar em guerra contra os oficiais das forças armadas.
Defendiam a esdrúxula tese do assalto oblíquo ao poder.
Atacando diretamente integrantes da hierarquia militar, que
passaram a ser baleados e mortos nas ruas ou saindo das suas
residências, esperavam provocar as três armas para que dessem
um novo golpe. Acreditavam que assim - com os militares
derrubando María Estela e voltando a empalmar o governo - as
massas argentinas, enfurecidas, se rebelariam. Lideradas, então,
pela vanguarda armada, conduziriam a nação à revolução social.
A derradeira, aquela que implantaria uma sociedade socialista.
Neste cenário, com a violência desdobrando-se em mil
faces, as lideranças sindicais moderadas, naturalmente temerosas
de se virem afastadas por uma nova insurgência fardada,
decidiram apoiar a iniciativa do ministro López Rega de O clima de guerra em Ezeiza (20 de junho de 1973)
empreender uma operação de extermínio contra o ERP e os
Montoneros, extensiva a todos aqueles que os apoiavam. Outro momento significativo da catástrofe deu-se por
Possivelmente cogitaram que se eles – a direita sindical de López ocasião do desembarque de Juan Domingo Perón, quando
Rega, recorrendo ao serviço de “los matones” - fizessem o trabalho retornou definitivamente ao país após 18 anos de ausência.
sujo, isto é, liquidassem o maior número de esquerdistas e seus Seguramente, nunca se viu algo assim. Nem na Argentina, nem
simpatizantes, talvez evitassem a volta dos generais ao poder. na América Latina. Parecia que a nação, como um todo, pobres e
ricos, burgueses e trabalhadores, homens e mulheres, havia se
Os Assassinatos Seletivos irmanado no intento de ir ao aeroporto internacional acolher o
herói nacional.
A base para a ação dos assassinatos seletivos seria o Calculou-se que três milhões e meio de pessoas
Ministério do Bem-Estar Social, o antigo palácio de Evita Perón, espalharam-se pela auto-estrada que liga a capital federal ao
situado na Plaza de Mayo. Nos seus gabinetes foram feitas as aeródromo. Era o regresso do Messias, o mágico que salvaria a
listas negras daqueles que deviam ser eliminados, enquanto que pátria do caos anunciado. Muitos viram na ocasião daquele
dos porões partiam os esquadrões da morte, os pistoleiros daquela encontro do povo com o seu caudilho uma reedição dos
que ficou tetricamente conhecida como a Triple “A” (Alianza acontecimentos de 17 de outubro de 1945, data mitológica do
Anticomunista Argentina) com missões de “limpeza do terreno”. Peronismo, ocasião em que as massas operárias saíram às ruas
Apareceram então pelas ruas de Buenos Aires, à vista de para exigir dos militares, o retorno de Perón ao poder, lançando,

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então, os fundamentos do Movimento Justicialista. que dividiam a Argentina, explodiram. Uma violência desbaratada
Todavia, o que se assistiu no dia 20 de junho de 1973 não preencheu o vazio deixado pela morte do caudilho. Um turbilhão
foi a euforia da conciliação nacional, mas a explosão de uma de atentados, seqüestros e assassinatos tomou conta do país.
bárbara desavença entre a Burocracia Sindical peronista e os
Montoneros. Um tiroteio destemperado e doido espalhou-se pelos A Triple “A
arredores do aeroporto, dividindo os peronistas em dois campos
jurados de morte. Velhas lideranças do sindicalismo, situadas
ideologicamente à direita, capitaneadas por José López Rega,
personagem mal-afamado e suspeito, um dos mais próximos
colaboradores de Perón (segundo alguns, o mordomo dele),
determinaram-se a impedir a aliança dos jovens Montoneros com
El Jefe, que desembarcava como o inquestionável líder da
FRENTE CÍVICO DE LIBERACIÓN NACIONAL.
Os direitistas não hesitaram em abrir fogo, em meio àquela
multidão, contra “as formações especiais” de Mario Firmenich,
que estavam se aglomerando perto do palanque montado para o
discurso de chegada de Perón. Balaços zuniram por todos os
lados. As 18 mil pombas que tinham sido levadas para a ocasião,
a fim de realizarem um vôo da paz, tiveram de se esquivar dos
tiros que cortaram os céus, enquanto que os músicos da orquestra José Lopes Rega, fundador da Triple A
do teatro Colón, convidados para tocar o hino nacional, tiveram A direita peronista composta pela Burocracia Sindical,
de se jogar no chão com instrumentos e tudo para escapar do formou, então, um verdadeiro cinturão ao redor de María Estela,
fogo cruzado. a Isabelita. Os principais chefões dos grêmios laborais tornaram-
O cenário de confusão geral e violência foi o prenúncio se íntimos da Casa Rosada, levando para lá suas práticas de
de que coisas ainda piores, inomináveis, estavam por vir. O retorno gangsterismo, favoritismo e truculência. A economia parou e os
de Perón - que desembarcou em um outro aeroporto dada a tumultos multiplicaram-se por todo o país.
insegurança de Ezeiza – no qual foram depositadas tantas Em 1975, um ano antes do golpe, 700 pessoas haviam
esperanças de reconciliação nacional, foi um fiasco. Contabilizou- tombado vítimas de crimes políticos, enquanto o custo de vida
se, sem muita precisão, a perda de 13 mortos e 380 feridos (na aumentou em 335%. Os extremistas peronistas e marxistas, cada
verdade nunca se soube o total de vítimas daquele dia fatídico). vez mais sectários, continuaram no seu aberto desafio aos
Para piorar o quadro, os Montoneros (ofendidos pela militares. Mario Firmenich, em nome da FAR-Montoneros, fez
acolhida à bala que tiveram em Ezeiza) juraram continuar na “luta circular, em 9 de junho de 1973, a decisão de que “Nossa
armada”, ainda que com Perón no poder. Marcando posição, estratégia segue sendo a de guerra integral, quer dizer a que se
durante a Operação Traviata, assassinaram ninguém menos do faz por todas as partes...e por todos os meios com a participação

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ex-colegas de farda que o odiavam e fazê-los engolir Isabelita que o secretário-geral da CGT, o peronista José Ignacio Rucci,
como sua vice-presidenta, já que vetaram a candidatura de Evita que apareceu crivado de balas, em 25 de setembro de 1973. Ele,
no passado. que estava há tempos marcado para morrer, dissera numa
Queria passar seus derradeiros dias na Argentina, sua entrevistas que “não existia um só argentino que não se
pátria, e não como um dos tantos políticos latino-americanos que aborrecesse com a indignidade que simbolizavam aqueles que
faleciam longe de casa, no exílio, esquecidos, apartados de tudo matavam para fazer prevalecer suas razões”.(*)
e de todos, como acontecera com o libertador San Martín e com o Na mesma linha de aberta provocação, seguiu o PRT-
tirano Juan Manoel Rosas. Quando ainda na Espanha, abrigado ERP (machucado pelas perdas de Trelew),que acelerou, ainda
pelo ditador Francisco Franco, ele apoiara e encorajara a rebeldia mais, suas ações de terror, atacando as comissarias de polícia,
e a ousadia violenta dos seus seguidores mais jovens contra a assaltando bancos, seqüestrando diplomatas, extorquindo
ditadura militar; agora via o resultado voltar-se contra ele próprio. executivos de corporações multinacionais, alguns dos quais
Como disse sobre os eventos: Yo ya estoy amortizado. apareceram mortos após terem passado pelos “cárceres do povo”,
O rompimento entre Perón e os radicais peronistas não bem como, dando prosseguimento aos assassinatos de líderes
tardou. Em pronunciamento feito no balcão da Casa Rosada no sindicais moderados, dos altos oficiais e almirantes, além de
dia 1º de maio de 1974, irritado, admoestou-os publicamente, multiplicarem os atentados a bomba.
chamando-os de “imberbes, estúpidos”, expulsando-os da praça. Alargando o fronte de guerra, os grupos de ação do ERP
Possivelmente, como ato de provocação direta às Forças Armadas visaram diretamente os arsenais militares, indústrias bélicas e
e ao governo peronista, os Montoneros, em setembro daquele diversos quartéis, chegando ao cúmulo de atentarem contra a
ano, decidiram profanar a tumba do General Aramburu para Central Nuclear de Atucha, em março de 1973. No ano seguinte,
roubar-lhe o cadáver. em 1974, abriram um foco de guerrilha rural na província de
Para consternação nacional, Juan Domingo Perón veio a Tucumã. Imaginaram, no seu delírio, fundar ali um “território
falecer exatamente dois meses depois da expulsão dos independente” que pudesse ser reconhecido pela ONU.
extremistas da Plaza de Mayo, em 1º de julho de 1974. Com ele
também se sepultaram as derradeiras possibilidades de
conciliação.
Ainda por ocasião das homenagens fúnebres, pareceu
que o país inteiro, reconciliado, acompanhou o féretro, sepultando-
o como um herói nacional. Outra ilusão. Constitucionalmente, ele
foi sucedido por sua viúva, María Estela de Perón, a Isabelita.
Despreparada para o cargo, ela se deixou manipular pelo
tenebroso José López Rega, “el brujo”, que agia nos bastidores (*) Este assassinato iria fazer com que, logo em seguida, em ato
do governo como uma espécie de Rasputin, a alma maligna do de vingança, a CGT apoiasse a Triple “A” (organização clandestina
peronismo. que visou a eliminação física dos montoneros e dos esquerdistas
Pelos anos seguintes, as paixões políticas e ideológicas, em geral).

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El Tío, como carinhosamente apelidavam-no os
Perón de Volta ao Poder peronistas, ficou apenas 49 dias no governo. Logo foi constrangido
a transferi-lo para Juan Domingo Perón, após uma nova rodada
eleitoral na qual o velho general alcançou um percentual de apoio
ainda mais impressionante: 62% dos votos foram para a chapa
Perón&Perón, isto é, Juan Domingo e sua esposa María Estela,
ou Isabelita, êmula de Eva Perón, a heroína do Movimento
Justicialista, falecida em 1952.

Processo Eleitoral do
Retorno do Peronismo

Data Chapa Majoritária e percentual de votos


11/05/73 Héctor Cámpora-Solano Lima: 49,59%
Cartaz de boas vindas a Perón (1973)
21/09/73 J.D.Perón- María Estela de Perón: 62%
Para não entregar o poder diretamente a Perón, os
militares, num primeiro momento, vetaram seu nome na eleição
geral marcada para o dia 11 de maio de 1973. De pouco adiantou. A Morte do Caudilho e o Caos Nacional
Atendendo ao slogan “Cámpora al gobierno, Perón al poder”, os
argentinos foram às urnas dando vitória ao candidato da FREJULI
O governo de Perón causou uma profunda decepção na
(Frente Justicialista de Liberación), um lugar-tenente dele chamado
esquerda marxista e nos Montoneros. A expectativa que eles
Héctor Cámpora, que recebeu 49,59% dos votos. A primeira
tinham – como fiéis discípulos de John William Cooke - é que
medida do novo presidente foi aprovar a lei de anistia e indulto,
poderiam arrastar o caudilho para a causa da “libertação popular”.
estendida tanto a Perón, que ainda se mantinha na Espanha, como
Esperavam fazer dele um novo Fidel Castro, quiçá um Mao-Tse-
aos chefes do terrorismo encarcerados.
Tung, um líder terceiro-mundista disposto a tudo para enfrentar a
O fato de este presidente-tampão ter aberto as portas
Oligarquia e o Imperialismo. Pura fantasia. Com 78 anos de idade,
das cadeias para que vários acusados de assassinato de oficiais
sentindo-se cansado daquilo tudo, o caudilho não tinha mais ânimo
das forças armadas delas saíssem, quase lhe custou a vida (três
para levantar bandeiras revolucionárias, muito menos as da
anos depois, por ocasião do golpe de 24 de março de 1976,
extrema esquerda e dos peronistas radicais. Tanto assim que logo
Cámpora teve de se exilar na embaixada do México antes que os
chamou para o seu lado a velha Burocracia Sindical que ele havia
pelotões militares o matassem).
formado em tempos passados. Aceitou voltar para desaforar seus

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