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Vida cotidiana e subjetividade de meni

meandros de opressão, exclusão e resis


nas e meninos das camadas populares:
tência
Nara Maria Guazzelli Bernardes
Dra. em Psicologia e professora da PUC-RS
N
este estudo busco desvelar a vida (Rosemberg, 1976), o que permite visua- mulher. O tamanho das famílias apresen-
cotidiana de meninos e meninas lizar uma outra opressão, que é a opressão tava o limite inferior de quatro membros
das camadas populares, que habi- de idade. e o limite superior de onze membros,
tam a periferia urbana, para ten- Tais considerações possibilitam-me sendo que 50% delas possuiam quatro ou
tar compreender aspectos da entender a criança das camadas popu- cinco membros. A renda familiar mensal
construção de sua subjetividade. Preten- lares que habita a periferia urbana como estava assim distribuída: 48% ganhavam
do, igualmente, por meio desta pesquisa, um ser humano que sofre múltiplas de um a três SM (salários mínimos), 32%
produzir conhecimentos que questionem opressões no processo de construção de recebiam de quatro a cinco SM e 20%,
estereótipos e preconceitos sobre essas sua subjetividade. Entendo a subjetivi- de seis a oito SM.
crianças, derivados, muitas vezes, da dade como "atributo do sujeito humano, Em relação à escolaridade dos adul-
ignorância científica sobre suas vivên- enquanto expressão genérica de seu tos (mãe, pai, padrasto, tia), 60% das
cias e significações, o que faz com que mundo de objetivar-se no mundo" mulheres era analfabeta ou não havia
elas, via de regra, sejam percebidas ou (Arendt, 1989). Tentar compreender completado as séries iniciais do primeiro
avaliadas na perspectiva da negativida- como esse modo próprio de o sujeito se grau. As demais atingiram um nível de
de, ou seja, do que não conhecem ou não expressar e se pôr-no-mundo se dá a ver escolarização que variava desde o primei-
sabem fazer (Bernardes, 1989). num determinado momento de sua exis- ro grau incompleto até o início do segun-
Como ponto de partida teórico, esta tência, tem como pressuposto a idéia de do grau. Entre os homens, 50% eram
reflexão concebe a criança como um ser que a subjetividade não está constituída analfabetos ou não haviam completado
que se constitui sujeito-com-os-outros, no momento do nascimento mas se cons- as séries iniciais do primeiro grau; 36%
aberto-ao-mundo e no-mundo (Merleau- trói permanentemente no seu existir como tinham o primeiro grau incompleto e os
Ponty, 1945; Rezende, 1990). A criança ser-aberto-ao-mundo e no-mundo-com¬ demais possuiam o primeiro grau com-
nasce num mundo de objetos ou artefatos os-outros. pleto ou haviam iniciado o segundo grau.
mas também num mundo de instituições Esta pesquisa, portanto, problemati- Na época da realização da pesquisa,
sociais, de valores e normas comparti- za a construção da subjetividade de meni- 62% das mulheres não exerciam tra-
lhados, de símbolos (Rafky, 1973). Ob- nos negros e não-negros e meninas negras balho remunerado fora de casa; 31%
jetos, instituições, valores, normas, sím- e não-negras das camadas populares que dedicavam-se a atitivdades extra-lar que
bolos compõem o mundo da vida da habitam a periferia urbana, tendo pre- reproduzem o trabalho doméstico, tais
criança. Estar no mundo e aberto ao sente que há uma relação recíproca e como: copeira, empregada doméstica,
mundo é, simultaneamente, estar com o assimétrica entre a orientação da criança servente; 7% trabalhavam como comer-
outro. O sujeito e o outro se descobrem em direção ao mundo adulto e a pene- ciarias. Dos homens, 13% estavam
inseridos "num mundo de intercâmbio tração do mundo adulto no mundo da aposentados ou desempregados, 42% tra-
simbólico amplamente expresso pela criança. balhavam na construção civil como pe-
palavra" (Merleau-Ponty, 1945, p. 26). Em decorrência, elegi como ponto de dreiro, mestre de obras, pintor, etc.; 30%
O modo de o sujeito ser-aberto-ao-mun- partida empírico, a experiência vivida eram funcionários públicos, motoristas
do e no-mundo é corporeidade. Como desses sujeitos bem como dos adultos ou metalúrgicos e os demais, vendedores
acentua Merleau-Ponty (1945), eu estou que fazem parte de seu mundo da vida, ambulantes ou vigilantes.
no meu corpo, eu sou meu corpo. O desdobrada em vivências e significações. Os procedimentos metodológicos
corpo, portanto, é mediação entre a cons- Para captá-las, convivi durante aproxi- utilizados nesta pesquisa definem-se
ciência e o mundo e, pelo corpo, com os madamente dez meses com um grupo de como uma análise compreensiva de base
outros, o sujeito está aberto ao mundo e vinte e oito crianças negras e não-negras, fenomenológica (Bernardes, 1991). Esta
engajado no mundo. das camadas populares, cujas idades si- opção alicerça-se no pressuposto que a
Ser-no-mundo e aberto-ao-mundo- tuavam-se entre nove e doze anos com- fenomenologia permite descrever o que
com-os-outros significa que o sujeito pletos, que habitavam uma vila localiza- se passa efetivamente no mundo da vida
coexiste com outros sujeitos com os quais da num município da região metropoli- dos sujeitos do ponto de vista daquele
compartilha posições de classe social, de tana de Porto Alegre. Elas frequentavam que vive as situações concretas. A ex-
gênero, de raça, de idade. Numa perspec- a terceira e quarta séries do primeiro grau pressão da experiência vivida pelas cri-
tiva macro-social, em nosso país, estas numa escola pública municipal. anças e pelos adultos, que se deu a ver por
posições podem ser pensadas em termos Tomando-se como critério a presença meio da linguagem da palavra, da lin-
de uma sociedade que se organiza e permanente do homem adulto no recinto guagem do corpo ou da linguagem do
funciona segundo a lógica de sistemas de doméstico na função de companheiro da olhar, mostra como estas pessoas estão
dominação e exploração. Tais sistemas mulher (pai ou padrasto), independente- vivendo, percebendo e interpretando a si
podem ser concebidos como um sistema mente da presença de outros parentes próprios, ao outro e ao mundo, ou seja,
único de dominação-exploração deno- adultos no domicílio, estas crianças en- suas vivências e significações.
minado patriarcado-racismo-capitalismo contravam-se inseridas em grupos fami- Os procedimentos para iraoencontro
(Saffioti, 1987). Esta lógica faz também liares que se organizavam de modo di- do mundo da vida dos sujeitos consisti-
com que nossa sociedade se mostre co- versificado: família conjugal, família con- ram em ações da pesquisadora que foram
mo uma sociedade-centrada-no-adulto jugal recomposta, família chefiada por efetuadas, de modo mais intenso, a esco¬
la mas também no âmbito das casas e de
outros espaços da vila: observação da
convivência entre adultos e crianças e
entre crianças, diálogos informais, con-
versas com grupos de crianças e/ou adul-
tos, entrevistas formalizadas, visitas,
passeios e festas.

Desvelamento
da vida cotidiana
das crianças
O primeiro ponto a destacar diz res-
peito à riqueza e à complexidade das
vivências e do universo de significações
que constituem a vida cotidiana das cri-
anças da vila.

Ser criança/ser adulto

Meninas e meninos apresentam uma


imagem homogênea do ser criança, po-
larizado com o ser adulto, embora nem
todas (os) se auto-percebam nitidamente
como crianças. Alguns sujeitos consi-
deram que deixaram de ser crianças devi-
do às responsabilidades que assumiram
em suas casas e em razão de não mais se
envolverem com jogos e brinquedos in-
fantis; pensam, contudo, ser prematuro
visualizarem-se como adolescentes ou
jovens. No pólo da positividade, o ser
criança se constitui pela competência e
capacidade nas esferas do lúdico e do
amor. No pólo da negatividade, o ser
criança se constituí pela incompletude e
incompetência em domínios relevantes
do mundo adulto: saber, fazer, movi-
mento no espaço público, trabalho.
A incompletude e a incompetência
das crianças que geram sua dependência
do adulto são razões que justificam uma
relação de poder/ autoridade/ controle
entre os adultos da família/ escola e a
criança; no caso da família, esta relação
é afirmada por meio da punição física. O
contraponto em termos das ações e não
apenas das significações, revela que a
obediência da criança não é incondicio-
nal e pacífica. A seu modo e de múltiplas
formas, meninas e meninos, questionam
esta relação de poder/ autoridade/ con-
trole e a ela se opõem.
Trabalho doméstico
O trabalho doméstico, um dos eixos
que dá sentido ao fazer cotidiano desses
sujeitos; inclui uma multiplicidade de
ações realizadas pelas crianças e/ou pe-
los adultos da família. Este trabalho,
atribuído à responsasbilidade dos adul-
tos, é percebido como obrigação das
crianças e ajuda para os adultos.
Para adultos e crianças, as atividades
consideradas serviço da casa (limpeza,
arrumação, alimentação e higiene pes-
soal) são essencialmente atribuídas à
mulher. Esta significação, contudo, não
impede a participação dos homens e,
particularmente, dos meninos nestas
tarefas, independentemente do tipo de
famíliaou da raça. Crianças e adultos, de
modo geral, valorizam a competência do
homem para realizar tarefas atribuídas à
mulher, especialmente em situações de
emergência.
Ao homem compete responsabilizar-
se e executar atividades ligadas a conser-
vação e construção da casa bem como de por elas, sejam adultas, adolescentes ou Estar na escola
seu espaço externo. Meninos e meninas crianças maiores. Para os moradores da
também participam da execução destas periferia, a liberação da mulher de tais Outro eixo ao redor do qual se dá a
tarefas. incumbências encontra obstáculos devi- dinâmica do fazer cotidiano das crianças
Nas famílias conjugais ou conjugais do à escassez de equipamentos sociais é a experiência de estar na escola. Nesta,
recompostas, o trabalho doméstico que tipo creche ou pré-escola; paralelamente uma das questões cruciais que, a meu
se realiza no espaço público - adminis- a estes entraves objetivos, a avaliação ver, se colocam para a construção da
tração da casa e aquisição de bens - negativa que a maioria das famílias faz subjetividade das crianças é a da apropri-
mostra padrões variados em termos da deste tipo de serviço dificulta ou mesmo ação do conhecimento.
atribuição de responsabilidade e execução impede que o cuidado das crianças se A este respeito, estudos de sociologia
de tarefas: cabe mais aos homens ou às transforme numa tarefa social coletiva e da educação como os realizados por
mulheres ou é compartilhado. Nas não permaneça a cargo exclusivo da Tomaz T. da Silva (1988) fornecem re-
famílias chefiadas por duas mulheres família, particularmente, das mulheres. flexões importantes para compreender
pode também ser assumido por uma delas Na esfera do trabalho doméstico, como opera a determinação de classe
ou ser conjunto. Quando se trata dos portanto, a opressão de gênero parece social que discrimina e exclui as crianças
adultos, esta modalidade de trabalho incidir com maior vigor no que tange ao da classe trabalhadora. A vivência de
doméstico, portanto, não se vincula ao cuidado das crianças, pois em outros escolarização dessas crianças das cama-
gênero de modo estereotipado. No caso aspectos nota-se uma participação mais das populares não lhes permite experien¬
das crianças aparece uma distinção entre nítida dos homens; nos serviços da casa, ciar mais do que uma relação subordi-
meninos e meninas, independentemente esta participação se qualifica de coope- nada com o conhecimento: a elas se
da raça ou do tipo de família: as possibi- ração, pois a responsabilidade perma- ensina um simulacro do conhecimento,
lidades de circulação no espaço público nece ainda atribuição da mulher. ao mesmo tempo em que, os sinais exte-
em locais mais distantes da residência riores e os rituais escoalres fazem com
mostram-se, de modo geral, mais aces- que o status legítimo de um conhecimen-
síveis aos meninos. to que lhes é negado seja gradualmente
aprendido. Estas crianças estão se cons-
A responsabilidade pelo cuidado das truindo como futuro trabalhador ma-
crianças e execução de tarefas pertinen- nual através da privação dos bens cultu-
tes são igualmente percebidas, por adul- rais e da privação de credenciais à medi-
tos e crianças, como atribuição da mu- da em que tais privações se encontram na
lher, sendo assumidas mais intensamente
Lúdico
O lúdico, outro eixo que dá sentido ao
fazer cotidiano, é significado por todas
as crianças como desejado e prazeroso.
Contém vivências e significações que
são comuns aos meninos e às meninas e
outras que trazem a marca da distinção
de gênero, principalmente no que se
refere a jogos e brinquedos.
O espaço para jogar e brincar cir¬
cunscreve-se ao espaço doméstico, par-
ticularmente no caso das meninas. Meni-
nos e meninas mostram preocupação
quanto à adequação de jogos e brinque-
dos ao gênero. Algumas revelam estar
cientes de que esta determinação é cul-
tural e nada tem a ver com interesses e
capacidades das crianças; contudo, aca-
bam se submetendo a ela em função do
controle social dos adultos e, principal-
mente, de seus pares.
Certas vivências lúdicas acentuam
oportunidades diferenciais dos meninos
raiz da divisão mental/ manual do tra- e das meninas se lançarem no mundo
balho. exterior, se expressarem afetivamente,
Embora as ações dos adultos da esco- incrementarem a convivência mais ínti-
la bem como das crianças não tenham se ma, ficarem limitados à domesticidade.
revelado explicitamente discriminatórias
em relação à raça negra, pode-se consid- Nesta esfera não apareceram dis-
erar que a opressão opera sob outras tinções determinadas pela raça. As de-
formas. terminações de classe social, entretanto,
fazem com que as crianças sejam excluí-
Conforme estudiosos da questão da das do que diz respeito a bens de consu-
raça negra (Gonçalves, 1987), o ritual mo e abens culturais, como por exemplo,
pedagógico de escolas públicas de primei- livros, cinema, teatro.
ro grau, entre outros, exclui dos currícu-
los a história de lutas dos negros na
sociedade brasileira e impõe às crianças
negras um ideal de ego branco. Este Sexualidade
ritual funciona não pelo que é dito mas
pelo que silencia. Em decorrência, uma A esfera da sexualidade, no que se
das formas pelas quais a discriminação deu a ver, apresenta diferenciações de
racial se expressa na escola consiste na gênero bem nítidas em alguns aspectos.
tentativa de construir a igualdade entre Devido ao controle que a família
os alunos a partir de um ideal de demo- exerce sobre a criculação no espaço pú-
cracia racial que desconsidera a particu- blico, particularmente das meninas e
laridade cultural, isto é, o direito do devido às restrições a relações com pes-
negro se reconhecer a partir de sua dife- soas que não pertencem ao círculo fami-
rença. Neste sentido, a discriminação liar, a convivência com pessoas de outro
ocorre ao se impedir que as crianças sexo e gênero ocorre, de forma privile-
negras se apropriem do patrimônio cul- giada na escola. Portanto, a escola se
tural da população negra brasileira. Luiz constitui num espaço de aprendizagem
Alberto O. Gonçalves (1987) denuncia do saber escolar mas também num es-
que este processo silencia a criança negra paço onde, independentemente do dese-
a curto prazo e o cidadão a longo prazo. jo dos adultos, de seu controle ou de sua
cumplicidade, criam-se situações que
permitem às crianças experienciar vivên- O controle em relação à manipulação
cias e signfiicações da esfera da sexua- dos genitais mostra-se mais nítido quan-
lidade. do se trata da menina, enquanto que o
A postura da família em relação ao menino sofre uma alienação maior do
namoro, configura padrões distintos para corpo como um todo e da expressão livre
o menino e para a menina. O primeiro dos sentimentos.
consente e incentiva, o segundo interdita Sobre a sexualidade do homem e
e desestimula. No caso do menino o particularmente da mulher opera uma
temor familiar incide sobre a ameaça do estratégia do silêncio que representa uma
homossexualismo e, no caso da menina, das formas da sociedade exercer con-
sobre a ameaça da gravidez na ado- trole sobre o corpo da pessoa. Ao mesmo
lescência. tempo, a estratégia da passividade faz
A repressão sexual atua de modo com que a mulher participe de situações
diversificado sobre o corpo do homem e na qualidade de vítima, coloque-se na
o corpo da mulher. Um dos aspectos que posição de esperar e aceitar e dilua seu
se destaca nas vivências dos meninos e desejo no desejo do outro.
das meninas diz respeito às manifestações A educação sexual idealizada pelas
de carinho via linguagem do corpo que famílias tem como pressupostos, entre
são mais comuns entre meninas ou entre outros, a sexualidade como genitalidade,
meninos e meninas e invisíveis entre a sexualidade como instinto e a assime-
meninos. tria do desejo sexual da mulher e do
O padrão hegemônico familiar reve- homem. Destina-se de modo mais ou
la que expressões de carinho por meio da menos explícito a transmitir informações
linguagem do corpo costumam envolver de natureza biológica, a veicular ou re-
a criança e o adulto mulher, são mais forçar atitudes repressoras que possuem
raras entre as crianças e seus pais e, de um cunho conservador e moralista, a
modo geral, não são frequentes. Parale- prevenir ocorrências indesejáveis
lamente, a linguagem do corpo é usada (doenças sexualmente transmissíveis,
com mais intensidade para reprimir trans- gravidez precoce). Metas pessoais mais
gressões das normas estabelecidas pelos abrangentes como o desenvolvimento da
adultos. sexualidade como afirmação de si e como
auto-expressão, vinculando-a à emanci- uma vez que o atributo mais significativo As significações associadas à esco-
pação da mulher, à igualdade entre do ser mãe e do ser pai diz respeito à lha profissional mostram aspectos que
homem e mulher e à busca do prazer na esfera afetiva: ser doador (a) de amor/ são compartilhados pelos meninos e pe-
vida sexual parecem estar ainda distan- amigo (a). Para muitas crianças, as las meninas (valorização do aspecto das
tes da concepção de educação sexual fronteiras do ser mãe e do ser pai são relações pessoais e do prazer), assim
desejada pelas famílias das crianças da tênues ou podem mesmo, se superpor. como outros que são peculiares a um dos
vila, independentemente do tipo de Embora o cuidado das crianças seja visto gêneros (meninos mostram preocupa-
família ou da raça. como atribuição essencial da mulher, ção com a estabilidade e continuidade do
como se viu na questão do trabalho do- trabalho).
méstico, as significações das crianças O prosseguimento da escolaridade
Projeto de vida sobre a paternidade distanciam-se da revela-se como meta almejada pelas
perspectiva tradicional que vê o pai como famílias tanto para seus filhos como para
O projeto de vida das crianças não o provedor por excelência, distante e suas filhas uma vez que consideram-no
apresenta diferenças marcantes que pos- indiferente em suas relações afetivas indispensável para terem acesso a uma
sam ser vinculadas ao gênero ou à raça. com os demais membros da família. boa profissão. A crença no poder da
De modo geral, meninos negros e O trabalho remunerado também escolaridade para possibilitar o acesso a
não-negros, assim como meninas negras compõe o projeto de vida tanto dos meni- um trabalho remunerado futuro mais
e nâo-negras constroem seu projeto de nos como das meninas. Distinções de compensador, financeiramente, do que
vida em torno dos temas da família e do gênero aparecem nas escolhas profis- aquele exercido pelo pai e/ou mãe, apa-
trabalho. sionais de algumas crianças pois meni- rece com muita nitidez entre adultos e
Na concepção das crianças, a mater- nos desejam exercer profissões manuais crianças.
nidade e a paternidade apresentam e meninas profissões que se incluem na Apesar de o trabalho remunerado da
maiores semelhanças do que diferenças prestação de serviços. mulher ser concebido por adultos e cri-
anças como sendo essencialmente uma
ajuda ou colaboração prestada ao homem
que tem a responsabilidade da ma-
nutenção econômica da casa e da família,
todos valorizam a profissionalização da
mulher. São poucos os adultos que atri-
buem outros significados ao trabalho
remunerado da mulher tais como asse-
gurar um certo grau de independência
em relação ao homem, representar um
modo de fugir à rotina da domesticidade,
preencher outras necessidades.
Ambiguidades e sentimentos ambi-
valentes manifestados por adultos em
relação ao exercício do trabalho remu-
nerado da mulher não os impede de
desejar que, assim como os meninos, as
meninas não apenas pretendam consti-
tuir uma família mas também uma tra-
jetória profissional promissora e recom-
pensadora em termos financeiros. No
seu entender, o sucesso deste projeto
profissional depende intrinsecamente da
permanência das crianças no sistema de
educação formal.

Ser mulher/ser homem


Entre as crianças, a imagem do ser
mulher não é homogênea. As meninas
negras e algumas meninas não-negras
valorizam as ações da mulher nas esferas
do trabalho doméstico e do trabalho re-
munerado, sua inteligência e competên-
cia para cuidar de si e suas possibilidades
de movimentar-se no espaço público.
Em decorrência, expressam sua identifi¬
cação positiva com seu gênero. Ao con- determinações de gênero à medida que
trário, a maioria das meninas não-negras questionam com mais clareza vivências
percebe limitações do ser mulher quando e significações suas e dos meninos bem
confrontado com o ser homem, no que como se permitem atravessar a fronteira
concerne às possibilidades, à competên- do domínio masculino.
cia e à legitimidade para circular no Ambiguidades e resistências podem
espaço público. Em decorrência, mani- ser vislumbradas, também, na esfera do
festam o desejo de ser homem. Os meni- trabalho. Por um lado, a participação das
nos valorizam assimetricamente o ser crianças, nas atividades domésticas, par-
homem comparado ao ser mulher e, sem ticularmente das meninas, pode ser en-
exceção, preferem permanecer homens, tendida como uma inserção precoce no
A maioria das meninas não-negras vê mundo do trabalho quando comparada à
a mulher como sendo discriminada em experiência vivida de crianças de outra
relação ao homem, principalmente fora classe ou camadas sociais e que, muitas
do espaço doméstico. Isto não ocorre vezes, reproduz a divisão sexual do tra-
quando se trata das relações de poder/ balho. Por outro lado, pode significar
obediência entre a mulher e o homem: a uma experiência de divisão de tarefas no
maioria das crianças valoriza uma re- recinto doméstico, de conflitos e nego-
lação igualitária. ciações, de solidariedade e compartilhar
em relação a um fazer que é necessário
para todos os moradores da casa. Pode
Considerações finais significar, portanto, uma experiência
(mesmo que não deliberada e conscien-
O desvelamento da vida cotidiana te) no sentido da ruptura com a lógica
revelou que o modo próprio de as cri- particularista dos sistemas sociais de
anças se expressarem e estarem no mun- dominação e exploração.
do é complexo e polissêmico. Vale a
pena lembrar o que escreveu Jamusz
Korczak (1983, p. 172) no início do
século e que, a meu ver, permanece
apropriado para o seu final: "Cem cri-
anças? Não, cem homens, não no futuro,
num prazo mais ou menos distante, mas
desde agora. Seu mundo não é um "pe-
queno mundo", mas o seu mundo, com
seus sonhos, qualidades, aspirações dese-
jos. Nada neste mundo particular é ridí-
culo, ingênuo ou afetado, porque é próprio
da essência da humanidade".
Na coexistência com pessoas da
família e da escola, as condutas, ações e
significações das crianças negras e não-
negras configuram, de modo geral, um
contidianum de obediência e resistência
ao poder/ autoridade/ controle dos adul-
tos.
Na esfera do lúdico, as meninas pare-
cem estar mais propensas a resistir às
Em outras esferas, contudo, parece Meninas e meninos estão se constru-
que os mecanismos de opressão e ex- indo sujeitos aos quais se limitam ou se
clusão operam com maior eficiência. impedem vivências e significações mais
Meninos negros e não-negros assim plenas e emancipatórias na esfera da
como meninas negras e não-negras estão sexualidade, particularmente no que
se construindo sujeitos aos quais se ne- tange a apropriação do corpo vivido e
gam as possibilidades de se apropriarem significado como desejo, afeto e prazer.
do conhecimento socialmente legitima- As reflexões que elaborei sobre a
do. Meninos negros e meninas negras construção da subjetividade de meninos
estão sendo impedidos de se apropriar negros e não-negros e meninas negras e
do patrimônio cultural da raça negra. Se não-negras das camadas populares cor-
considerarmos que a cidadania é um roboram a idéia de que a condição de
direito inalienável desde a infância, estas possibilidade de as crianças se constituí-
crianças já estão existindo como cidadãos
e cidadãs excluídos e silenciados, antes
rem sujeitos com direito à cidadania e ao
pleno desenvolvimento de si como Bibliografia
mesmo de se tornarem adultos. homem ou mulher emancipados não re-
Meninas negras e não-negras estão se sulta apenas de mudanças nas relações
construindo sujeitos aos quais se atribui autoritárias de convivência mas da trans- ARENDT, Hannah. A condição hu-
formação das múltiplas relações de mana. 4a ed. Rio de Janeiro: Forense
a responsabilidade e execução quase Univesitária, 1989.
exclusiva do cuidado das crianças, no opressão presentes em nossa sociedade.
presente e no futuro, e cujo trabalho Respeitar a infância como um tempo BERNARDES, Nara M.G. Análise
remunerado, quando adultas, significa vivido tão importante, em todos os seus compreensiva de base fenomenológi¬
ajuda ao homem, predominantemen- aspectos, quanto a maturidade e com- ca e o estudo da experiência vivida de
te. Sujeitos aos quais se limitam as pos- preender a criança a partir de seu próprio crianças e adultos. Educação, Porto
sibilidades de se movimentarem no referencial, pode significar um movi- Alegre, v. 14, no20,p. 15-40,1991.
espaço público. mento nesta direção. Idem. Crianças oprimidas: autono-
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o longo dos últimos anos, o nas expectativas de se formar um vínculo

A profissional liberal no Brasil vem


sofrendo uma crise de identi-
dade como resultado do que
poderíamos chamar de uma
metamorfose em seu status na sociedade.
Ontem parte da elite atuante e pen-
sante do país, graças aos seus anos de
criativo e não-alienante com a sociedade.
Nos últimos anos, setores que eram
considerados independentes são atingidos
pela lógica do capital.
Segundo Bertaux (1979), "a própria
revolução científica e tecnológica con-
tribui para um vasto movimento de pro¬
estudo, ele hoje corre o risco de se ver letarização dos empregados, e começa a
reduzido a um mero comerciante de seus tocar setores reputados como rebeldes,
talentos e habilidades. tais como Ensino e Saúde".
Isto se deve às transformações ma¬ "Na medida em que o capital se inte-
croestruturais ocorridas no sistema resse por estes setores, re-estrutura-os
econômico e na estrutura de ensino, prin- segundo sua lógica: cisão de atividade,
cipalmente no ensino superior. decomposição de tarefas produtivas, cri-
Como Rouanet assinalou, a política ação de camadas operárias e de uma
educacional do regime autoritário é um pequena elite, que exerce, por conta do
dos pontos mais culminantes do irracio¬ capital, o domínio do conjunto do pro-
nalismo brasileiro, pois se extirpou me- cesso. A entrada de mais jovens no siste-
todicamente dos currículos tudo que ma educacional superior não significa
tivesse a ver com idéias gerais e valores mobilidade social ou o fim da proletari-
humanitários. Assim, enfatizou com uma zação, mas o seu prolongamento, sob
visão prática e funcional. O movimento, suas formas mais recentes".
ao invés de ser contra-cultura, fenômeno Esta nova situação provoca perple-
observado em outros países, tornou-se xidade e desorientação. O ápice é a des-
uma in-cultura engendrada politica- personalização e a desvitalização do in-
mente. A consequência disto foi um sis- divíduo em relação à sua ideologia, sua
tema educacional deficitário que trans- ética e todo seu esquema referencial. A
formou o não-saber em norma de vida e relação com a sua prática e seu modo de
em modelo de relação humana. ser com o outro, no cotidiano profissio-
Mas, que paradoxo! Um sistema edu- nal, é drasticamente alterado.
cacional que deixa o protagonista princi- O resultante desequilíbrio - entre o
pal em segundo plano, enfatizando sua sistema educacional e o mercado de tra-
relação apenas de um modo funcional, balho - torna a educação uma fábrica de
abolindo toda conscientização do seu mão-de-obra, que atinge profundamente
vínculo com a sociedade. a identidade profissional de um dos últi-
Freud (1930), em "Mal-Estar naCivi- mos setores livres da sociedade capita-
lização", assinalou a importância do tra- lista.
balho como fator primordial do vínculo Como consequência dessas transfor-
do homem com a sociedade. É através do mações, houve alterações na relação do
trabalho que as relações do indivíduo indivíduo com o seu trabalho. Alterações
com a comunidade se estreitam e justifi- sérias, pois implicam destituição da iden-
cam sua existência na sociedade. Isto é a tidade profissional.
razão pela qual a relação indivíduo-so¬ A perda progressiva de status e poder
ciedade chegou a um impasse. aquisitivo dos profissionais brasileiros
Este impasse evidencia que, social- de nível superior ainda não foi clara-
mente, o valor do trabalho está se trans- mente elaborada. Embora atuante sobre
formando e com sérias consequências estes profissionais, seu significado não

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