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A Origem da Escrita

Introdução: do neolítico às primeiras civilizações.

A história da escrita pode ser dividida nas seguintes fases:

1 1 O surgimento da escrita logográfica, a partir de figuras, na Mesopotâmia,


Egito, China, Paquistão e, posteriormente e independentemente, na América.
2 2 O surgimento das escritas fonéticas (representando sons) no Oriente Médio.
3 3 O surgimento dos primeiros alfabetos: o grego, o latino e o brahmi indiano.
4 4 A expansão da escrita para além dos focos de origem: Japão, Coréia, Europa,
Rússia, Sudeste Asiático.
5 5 O surgimento da imprensa na Europa, facilitado pela simplicidade do alfabeto
latino, e a expansão desse alfabeto pela colonização européia dos continentes.

As primeiras escritas: escrita cuneiforme sumeriana (3.200 aC.); escrita do vale do Indo
(Paquistão, 3.500 a.C.) e a tabueta de proto-escrita egípcia mais antiga conhecida (3.300
a.C):

A escrita propriamente dita surgiu no Oriente Médio e na China há cerca de 5.500 anos.
Destes dois focos principais (pois o americano, surgido independentemente há apenas 1.300
anos, e o do Vale do Indo, que durou de 3.500 a.C. até 1.200 a.C., não deixaram
descendência moderna)1[1], a escrita se irradiou para diversas outras partes da Eurásia. No

1[1]
Os meso-americanos, como os maias, astecas e zapotecas, se extinguiram com a Conquista castelhana e
com eles se foram os segredos de suas escritas, até hoje majoritariamente indecifradas; a escrita do Vale do
Indo permanece também indecifrada, apesar de algumas tentativas não comprovadas - uma delas dizendo que
essa escrita era alfabética.
Oriente Médio, originaram-se dois principais sistemas de escrita: o cuneiforme 2[2], utilizado
por diversos povos e línguas da Mesopotâmia e Pérsia de 3.000 a.C. até 300 d.C., e o
hieroglífico, desenvolvido no Egito e lá utilizado somente para a língua egípcia por mais de
quatro mil e quinhentos anos (4.900 a.C até 300 a.C). Tanto as primeiras escritas
cuneiformes quanto a hieroglífica eram de natureza fonético-pictográfica. Isso significa que
os símbolos usados tanto representavam os sons de uma palavra quanto a forma do objeto
que ela representava. Este sistema não era muito diferente do utilizado pelo Chinês, o único
dos primeiros que continua em uso até hoje, chamado normalmente de ideográfico.
Cientificamente, a escrita cuneiforme sumeriana e a ideográfica chinesa são denominadas
logográficas. Isso significa que cada palavra (“logo”) é representada por um símbolo
(“graphos”). Os hieroglifos egípcios e as escritas cuneiformes assírias e acadianas
(posteriores à sumeriana) são de natureza logo-silábica: há símbolos para palavras e outros
para sons isolados. É por isso que a denominação “ideográfica” (=escrita de idéias),
consagrada para o chinês, é imprecisa, já que os “ideogramas” chineses não representam
idéias, e sim palavras.

Embora separadamente, as escritas da


China, do Indo e do Oriente Médio ( e
posteriormente na América) surgiram a
partir de desenhos neolíticos, que foram
cada vez mais simplificados até se
tornarem bem estilizados.
Primeiramente, se desenhavam objetos,
animais e pessoas, o que equivalia a
uma cena, ou estória em quadrinhos; em
seguida, passou-se a inventar símbolos
para noções abstratas e ações, e depois
se procurou representar graficamente as palavras na mesma ordem e forma em que
apareciam na língua falada - foi aí que surgiu a verdadeira escrita. A distinção entre escrita
e desenhos de cenas jaz, portanto, no fato de que a escrita realmente representa a língua de
seus falantes (posição de palavras, gramática, pronúncia) e não apenas suas idéias em forma
de figuras.

China e Oriente Médio: dois caminhos diferentes.

A escrita da China evoluiu diferentemente da do Oriente Médio devido a diferenças na


morfologia das línguas. Na parte ocidental da Eurásia, as línguas faladas apresentavam
muitas formas gramaticais, como conjugações e declinações, exigindo que a escrita fosse
mais clara quanto à pronúncia - o que não acontecia no chinês, cujas palavras são
invariáveis. Por exemplo, em chinês moderno (que não é muito diferente do chinês
arcaico), a palavra “gong” carrega em si o conceito geral de “trabalho”, podendo significar
2[2]
O termo “cuneiforme” (=em forma de cunha) designa tão somente a forma dos caracteres, podendo ser
aplicado a qualquer sistema de escrita. Até mesmo certos alfabetos fonéticos chegam a ser designados
cuneiformes, como o do antigo persa. Na falta de termo melhor, a denominação será usada aqui, mas deve-se
ter cautela em seu emprego.
“trabalho”, “trabalhar”, “trabalhista”, etc., dependendo do
contexto, sendo que não há variação no plural nem conjugação
verbal.
Era desnecessário, portanto, indicar com precisão a pronúncia da
palavra “gong”, bastando designar-lhe um logograma. Com o
tempo, porém, surgiu a necessidade de se escrever conceitos mais
complexos, para os quais não havia pictograma. Criaram-se então
caracteres mistos, compostos de um ideograma bem conhecido que
auxiliava na pronúncia e outro que lembrava o conceito. Por
exemplo, se em chinês “andorinha” é “wong”, o ideograma
designado seria o para pássaro (que lembra o conceito) mais o de
outra palavra qualquer que rimasse com “wong”, como “wang”
(parede). O leitor então se perguntaria: “qual o pássaro que rima
com wang? - “Wong!”. (o exemplo é inventado)

® Amostra evolutiva da escrita chinesa: coluna esquerda, antiga;


direita, moderna (de cima para baixo: homem, mulher, ouvido ,
peixe, sol, lua, chuva, caldeirão, poço, em cima, em baixo). Veja
agora caracteres chineses modernos em fileira (originalmente
escritos de baixo para cima e da direita para a esquerda, mas hoje também
horizontalmente da esquerda para a direita, como abaixo):

agh m q m ie yr t as bas alJ W JEN RI 8 2 874 /A , W9 1 J I


RE AS6 387Q HJ3MNt dJ U8` 0 2 J W US74 NS N M AJ 3 87
W. lpa5 7.
Cada símbolo representa uma palavra. “ 8”, por exemplo, representa “guo” (país), “ l” representa “xin”
(coração). As palavras em chinês têm apenas uma sílaba e não variam. Palavras que têm o mesmo som, mas
significam coisas diferentes, têm ideogramas diferentes.

Nas línguas do antigo Oriente Médio, como o acadiano, o persa e o egípcio, havia, como no
português, uma série de formas que as palavras podiam assumir de acordo com a
conjugação verbal ou a função na oração, sem que seu significado se alterasse (como no
português: eu> mim; tu> ti, amar> amo, amas; casa> casas, casinha). Era então
necessário que se desenvolvesse um sistema de escrita que mostrasse a pronúncia
diferenciada de cada forma das palavras. Os primeiros sistemas, que funcionavam à base de
logogramas, mostraram-se conseqüentemente imprecisos, sendo desenvolvidos depois
caracteres-sílaba que não possuíam significado e serviam apenas para registrar os
diferentes sufixos, prefixos, partículas sem significado próprio e desinências gramaticais.
Surgia assim a escrita logo-silábica, misturando caracteres puramente logográficos (que
eram desenhos estilizados das palavras que representavam) e caracteres fonéticos (servindo
apenas para indicar a pronúncia). Os hieroglifos egípcios eram claros exemplos desse
sistema.
E, assim como o chinês, o egípcio precisou criar representações para conceitos complexos,
utilizando-se de truques para tal fim. Era como se usassem um hieroglifo composto das
palavras “cama” e “leão” para escrever “camaleão”.
Exemplo de escrita hieroglífica egípcia - 2.300 a.C. (1 a. linha: escrita em papiro -
“hierática” -, 2a. linha: escrita em monumentos):

Fenícios, gregos e hindus: inovações

Por volta de 1.200 a.C., os fenícios desenvolveram uma escrita mais simples, a partir das
escritas logo-silábicas, devido à necessidade de uma forma prática de escrita para que seu
império comercial de então pudesse funcionar melhor. Nesse sistema, cada símbolo
representava uma consoante, sendo que as vogais tinham que ser lembradas pelo leitor. Para
cada consoante, foi escolhido um símbolo que previamente era um logograma
representando uma palavra de uso comum, e foi-lhe dado um valor puramente fonético, de
acordo com seu som inicial. Por exemplo: beth (casa) foi escolhido para o fonema /b/,
‘aleph (boi) foi escolhido para o fonema /’/, a parada glotal3[3] típica das línguas semíticas.
Esse tipo de proto-alfabeto, denominado cientificamente de “alfabeto consonantal”, foi a
origem imediata dos atuais alfabetos hebraico e árabe, que ainda deixam de marcar as
vogais, talvez do alfabeto da Índia, e do alfabeto grego, que apresentou a novidade de
designar símbolos às vogais. Surgia com os gregos, portanto, o verdadeiro alfabeto,
denominado de “alfabeto vocálico-consonantal”.

Exemplo de letras hebraicas e árabes (muito similares às fenícias e delas derivadas;


escreve-se da direita para a esquerda, sem vogais):

àèò ùìó úíçá ãõï öäë èàò âôî ôê


ìù ‫ذ‬
‫جذىذيذسًُْشيىصصطغح عىل ؤئج جذذىً ي‬
‫ي‬

Os árabes e os hebreus nunca sentiram a necessidade de marcar as vogais devido à peculiar


estrutura morfológica de suas línguas, que são do grupo semítico, assim como os antigos
fenício e aramaico. Nas línguas desse grupo, as conjugações se dão através do correto
preenchimento de um esqueleto de três consoantes por um certo grupo de vogais4[4],
3[3]
Esse som, que existe também em árabe mas se perdeu no hebraico moderno, é similar à parada que se faz
entre as palavras “casa azul”, mas com um leve roçar na garganta.
4[4]
A morfologia (= estrutura das palavras, forma das palavras) das línguas semíticas (hebraico, fenício, árabe,
egípcio, assírio, acadiano) é baseada no sistema das raízes de três consoantes. Consiste de consoantes
esqueletais que carregam um conceito geral e que são preenchidas por certos esquemas de vogais e às vezes
portanto pelo contexto pode-se deduzir estas claramente. Já o grego, uma língua indo-
européia5[5] como o português, não tem paradigmas vocálicos tão fixos como o das línguas
semíticas, o que levou à criação das letras para as vogais, adaptadas a partir de consoantes
fenícias que não tinham utilidade para o grego. Por exemplo, o ‘aleph, que representava em
fenício o som da parada glotal, foi reaproveitado para a vogal “a” (alpha, em grego6[6]), já
que na língua helênica não havia tal fonema. Além disso, outra mudança do grego foi a de
escrever da esquerda para a direita, pois o fenício, assim como o árabe e o hebraico
modernos, se escreve da direita para a esquerda. Inicialmente, contudo, os gregos se
utilizavam do sistema denominado “boustrophédon” (arado), em que uma linha ia da
esquerda para a direita e a seguinte da direita para a esquerda e assim por diante.

Exemplo de escrita grega antiga (400 a.C.):

’ΕΠΙ ΤΟ ’ΑΚΡΟΝ ’ΑΝΕΒH


ΧΕΙΡΙΣΟΦΟΣ ΠΡΙΝ ΤΙΝΑ ’ΑΙΣΘΕΣΘΑΙ
ΤΩΝ ΠΟΛΕΜΙΩΝ.
Lê-se: epí to ákron anébe kheirisóphos prin tína aisthésthai ton polemíon. (Kheirisophos subiu ao pico antes
de qualquer inimigo perceber).

Na Índia, por volta de 700 a.C., surgiu, para a língua sagrada dos brâmanes, o sânscrito,
uma escrita silábico-alfabética, chamada brahmi, que deu origem a várias escritas indianas
como o devanágari (“escrita divina”, 1000 d.C.), além de escritas do Sudeste Asiático.
Devido ao fato de o sânscrito ser uma língua indo-européia como o grego (embora nem os
gregos nem os indianos se reconhecessem como aparentados na época, pois as pesquisas
lingüística de indo-europeística têm apenas 200 anos), o os hindus 7[7] também sentiam a
necessidade de marcar todos os sons na escrita com precisão. Só que eles foram muito mais
além, criando um alfabeto extremamente rico e complexo, capaz de representar qualquer
som. Esse sistema utiliza-se de formas teóricas de letras que são então combinadas de
forma complexa umas às outras para formarem sílabas e então palavras, sendo denominado
afixos (= sufixos e prefixos) para assumir um significado mas específico dentro daquele conceito geral. Por
exemplo, em árabe, a raiz K-T-B possui o conceito geral de escrita e coisas do tipo. Preenchida com o
conjunto apropriado de vogais e, às vezes, afixos, pode se tornar um verbo (kataba= ele escreveu; aktub= eu
escrevo), alguns substantivos (kitab= livro; maktub= escrito, carta) e outras coisas (em hebraico essa raiz é K-
T-V, mas livro é "sefer", e "kitav" é "um escrito"). Os preenchimentos vocálicos são geralmente os mesmos
para todas as raízes, então você viu que K-T-B ganhou o prefixo ma- +1a.consoante+2a. consoante+u+3a.
consoante, e virou "maktub"= escrito, carta. Pois então a raiz K-L-M (falar, dizer) se tornaria "maklum" (dito,
falado), além de outras formas possíveis como "kalma" (palavra).
5[5]
A família indo-européia de línguas inclui um grupo de línguas extenso que inclui o persa, as línguas da
Índia (arianas), o armênio, o grego, o latim e descendentes, o alemão, o inglês, o sueco, o russo, o polonês e as
línguas célticas. Elas se caracterizam por uma riqueza de formas flexionais. A relação entre essas línguas foi
notada por lingüistas no final do séc. XVIII e comprovada cientificamente no séc. XIX.
6[6]
Os nomes das letras fenícias, que se preservaram para o hebraico moderno, passaram adaptados para o
grego: aleph > alpha; beth > beta; gimel > gama; daleth > delta - muito embora em grego nada mais
significassem.
7[7]
A denominação “hindu” foi dada aos indianos pelos árabes, sua auto-denominação nativa era “védico”.
“alfabeto silábico”. O resultado são algumas das escritas visualmente mais harmoniosas do
mundo.

Exemplos de escritas derivadas do brahmi: devanágari em sânscrito (desde a Idade Média


até hoje) e tailandês:

srã~hg~jZwg TPZ C~,


VB~N”éMíOIUï ’~kr
”~E~ hZ@~#Z
%~sèéyeZ. a~opZ
qu~K a~Nu MíOIUï.
®ãò ùñµ õæåôÂâ
§ÅÆÑ£ÅÑÓÉ¢
áÐäöü
O devanágari ainda é utilizado hoje, com poucas modificações, por dezenas de línguas da
Índia e pelo bengalês, de Bangladesh. Contudo, ainda se discute a verdadeira origem de sua
escrita-mãe, o brahmi, pois, apesar de provavelmente ser de inspiração semítica, é um
mistério o fato de ela já ter surgido pronta, desde os mais antigos manuscritos, como se já
tivesse sido criada perfeita pelos deuses!8[8] O tailandês, outro exemplo de escrita de base
brahmi, está em uso até hoje também.

8[8]
Discute-se desde 1998, com algumas novas descobertas, se a escrita silábica teve origem verdadeiramente
na Índia, na civilização do Vale do Rio Indo (Mohenjo Daro, Harapa) e daí se espalhado para o Oriente
Médio. Mesmo assim, é pouco provável que a escrita brahmi seja derivada da escrita do Indo, pois esta já
estava extinta há séculos quando aquela apareceu.
Etruscos e latinos: a escrita se expande

Os etruscos foram os antecessores dos romanos no domínio da península itálica. Mesmo


Roma lhes foi subalterna. Dos gregos, os etruscos tomaram muitas coisas, entre elas o
alfabeto. Discute-se ainda hoje que tipo de língua era o etrusco, se indo-européia ou não,
mas, a essa altura, isso não importava mais: o alfabeto vocálico-consonantal já havia sido
inventado pelos grandes gregos e era de fácil adaptação a qualquer língua. A Etrúria se
extinguiu, Roma se ergueu, levando das cinzas etruscas, ligeiramente modificado, o seu
alfabeto - mais do que apropriado para se escrever a língua latina, indo-européia por
excelência e de fonética similar à do grego. Com o Império Romano, a escrita foi divulgada
por uma extensão territorial enorme, inclusive por regiões não romanas, dando origem,
ainda na Idade Antiga, por exemplo, à escrita rúnica dos víquingues e a escrita céltica, entre
outras.

Exemplo de escrita romana monumental (150 a.C.):

TAENARIA ETIAM FAVCES ALTA OSTIA DITIS ET


CALIGANTEM NIGRA FORMIDINE LVCVM
INGRESSVS MANISQVE ADIIT REGEMQVE
TREMENDVM NESCIAQVE HVMANIS PRECIBVS
MANSVESCERE CORDA AT CANTV
Lê-se: tainaria etiam faukes alta ostia ditis et caligantem nigra formídine lucum ingressus manísqüe adíit
reguémqüe tremendum neskiáqüe humanis prékibus mansueskere corda at cantu.
A escrita munumental se usava em inscrições de monumentos e edifícios, e é a base da forma atual das
nossas letras de fôrma. Para escrever textos, porém, os romanos se utilizavam de formas mais
“garranchadas” das letras, muitas vezes sem espaço entre as palavras.

Como se pode ver, a letra “V” representava o som /u/, e o som /v/ não existia em latim
clássico. A letra e o som “j” não existiam, nem tampouco o “w”. O alfabeto latino era
portanto assim: A, B, C, D, E, F, G, H, I, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, V, X, Y, Z, sendo que
as letras K, Y e Z serviam apenas para grafar palavras de origem grega. A letra C
representava sempre o som /k/: Ave Caesar era pronunciado “áue cáissar”. Não é à toa que
“imperador” em alemão até hoje é “Kaiser” - as tribos germânicas ouviram o termo há
2.000 anos e mantiveram sua pronúncia, enquanto nas línguas latinas a palavra evoluiu para
“César” em português, “Cesare” /tchézare/ em italiano, etc. Mesmo uma palavra como
“cerevesia” (cerveja, em latim clássico) era pronunciada /kereuéssia/. Conclui-se, já que o
alfabeto latino fora adaptado a partir do grego exclusivamente para o latim, que cada letra
mantinha sempre seu valor básico, não importa em que posição.

Veja na tabela a seguir a evolução de cada letra desde o fenício até o latim clássico:
fenício grego latim
nome significado original letra nome pronúncia (400 letra nome pronúncia
e pronúncia a.C.) (150a.C.)

‘aleph boi /’/ Α alpha /a/ A a /a/


beth casa /b/ Β beta /b/ B be /b/
gimel camelo /g/ Γ gamma /g/ G, C gue, ke /g//k/
daleth porta /d/ Δ delta /d/ D de /d
he ? /h/ Ε e psilon /e/ E e /e/
waw ? /w/ Υ, u psilon, /ü/ V, F, Y ue, ef, /u//f//ü/
F digamma ypsilon
heth muro /h’/ Η eta /é/ dialetal:/h/ H ha /h/
yodh mão /y/ Ι iota /y/ I i /i/
kaph mão /k/ Κ kapa /k/ K ka /k/
lamedh ? /l/ Λ lambda /l/ L el /l/
mem água /m/ Μ mu /m/ M em /m/
nun peixe /n/ Ν nu /n/ N en /n/
ayin olho /;/ Ο o mikron /o/ O o /o/
pe boca /p/ Π pi /p/ P pe /p/
qoph macaco /k’/ Q qoppa /k/ Q ku /k/
resh cabeça /r/ Ρ rho /r/ R er /r/
sin dente /sh/ Σ sigma /s/ S es /s/
taw marca /t/ Τ tau /t/ T te /t/
samekh peixe /s/ Ξ ksi /ks/ -
zayin espada /z/ Ζ zeta /dz/; /zd/ Z zeta /dz/
Havia outras letras fenícias, mas X khi /kh/ X eks /ks/
não foram utilizadas pelo grego.
As letras gregas ao lado foram
Ω o mega /ó/
inovações. A forma das letras Φ phi /ph/
fenícias era similar à das Θ theta /th/
descendentes gregas.
Ψ psi /ps/
Notas: o “ayin” fenício era pronunciado como um “aleph” mais forte; o “qoph” como um “kaph” mais
forte; a letra grega “Q” se extinguiu muito cedo, mas antes passou ao etrusco e daí ao latim, onde era usada
para o mesmo som da letra “C” mas apenas se seguida de “V”/u/ e outra vogal (qua, que, qui, quo). A letra
grega “H” (eta) tinha primeiramente dois valores dependendo da região (e, h). O valor “h” se extinguiu,
mas antes foi para o etrusco, donde nosso “H”.
As letras gregas acima estão em sua forma padrão, havia outras formas manuscritas na época; por exemplo,
o “pi” (Π) era escrito às vezes com a segunda perna curta, os etruscos e latinos apenas a curvaram para
dentro, deixando o “P” igual ao “rho” grego (P).
As letras “khi”, “psi”, “o mega” (=o grande) e “phi” foram inovações gregas; o “theta” talvez tenha
origem brahmi. Originalmente, o “phi” e o “theta” eram escritos “ΠH” e “ΤH”, o que revela a pronúncia
aspirada: “phi” não era /f/ e sim /p/ seguido de /h/, e “theta” não era como o “th” inglês, e sim /t/ seguido
de /h/.
A letra grega “khi” (também pronuncidada /k/ seguido de /h/) representava em alguns dialetos também o som
/ks/, daí o “X” latino.
O “waw” e o “yodh” hebraicos soavam como “w” no inglês “water” e “y” no inglês “yes”, sendo
consideradas consoantes (consoante=soa junto). Os gregos lhes deram os valores consonantais fenícios (y,
w) mas também valor vocálico completo (i, u). O digamma (F) soava como “w” também, mas se extinguiu no
grego sem antes deixar de passar ao etrusco, e depois ao latim, onde assumiu o valor /f/.

Idade Média: as grandes línguas clássicas morrem mas suas escritas não.

O Império Romano chegou a um fim por volta de 340 d.C., e suas línguas oficiais - o grego
clássico e o latim - deixam de ser falados. Surgem o grego medieval e as línguas neo-latinas
(português, castelhano, catalão, francês, italiano, provençal, romeno, etc.), marcadas agora
pela dominação da Igreja Católica Ortodoxa (grega) e Romana. As línguas neo-latinas
ainda demorariam a ser escritas, pois preferia-se ainda o latim, que não era mais falado, só
escrito, mas agora já diferia do latim clássico. A esse latim cristão dá-se o nome de latim
medieval, usado até hoje pela Igreja de Roma.
Mas nas secretas bibliotecas monásticas, os monges copistas cuidadosamente reproduziam
as grandes obras da Antigüidade para garantir que sobrevivessem ao tempo. Esses monges,
em nome da praticidade e influenciados pela estética medieval obscura, desenvolveram as
escritas cursivas, manuscritas, em que as letras se ligavam umas às outras de modo a
agilizar a cópia. Essa escrita cursiva deu origem às letras minúsculas latinas e gregas,
desconhecidas na Antigüidade, quando só se usava as maiúsculas. Nossa atual escrita à
mão, obviamente, também tem essa origem.

Textos medievais grego e latino:

‘Ο μηδέν είδως εξαμαρτάνει. Μηδένα


φίλον ποιού πριν άν ‘εξατάσις πως
κέχπεται τόις πρότερον φίλοις.
Lê-se (1.200 d.C.): O míden ídos eksamartáni. Midéna filon piú prin an eksatásis pos kékhpete tis próteron fílis.
(400 a.C.): ho méden eidos eksamartánei. Medéna philon poiú prin an eksatássis pos kékhpetai tois próteron philois.

Pater Noster qui es in caelo sanctificetur nomen tuum. Fiat voluntas tua.
Adveniat regnum tuum, sicut in terra et in caelis.
Lê-se (1.200 d.C.): pater nóster qüi es in tchélo, sanctifitchétur nomen tuum. Fiat voluntas tua. Advêniat
regnum tuum, sicut in terra et in tchélis.
(160 a.C.): páter noster qüi es in kailo, sanctifikétur nomen tuum. Fíat uolúntas tua. Aduêniat regnum tuum,
sicut in terra et in káilis.

Assim formava-se a escrita atual, composta de minúsculas e maiúsculas. No início, não


havia padronização quanto ao uso das maiúsculas, mas com o tempo, e dependendo da
língua, elas passaram a ser utilizadas como iniciais de parágrafos e palavras importantes.
Em muitas línguas, todos os substantivos, próprios ou comuns, se iniciavam com
maiúscula, mas hoje apenas o alemão conserva essa excentricidade. A invenção da vírgula,
do ponto final, de exclamação e interrogação data do final da Idade Antiga, mas somente na
Idade Média, especialmente em seu final, se padronizou seu uso tanto no alfabeto latino
quanto no grego. Uma curiosidade: no grego, o ponto de interrogação é igual ao nosso
ponto e vírgula (;).
No final da Idade Média, as outras línguas da Europa passaram a ser escritas também. No
entanto, os alfabetos latino e grego não eram perfeitos para os sons de todas as línguas. Por
exemplo, o som grafado em português “ch” não existia nem em grego nem em latim,
portanto não havia uma letra para ele, o que causou a necessidade de se usar “dígrafos” -
combinações de duas letras - para esse e outros sons específicos de cada língua. Para o
nosso som “ch”, em inglês, usa-se o dígrafo “sh”; em alemão, o trígrafo “sch”; em sueco,
“sj”; em polonês, “sz”, e assim por diante. Nas línguas dos povos ortodoxos, como os
russos, os búlgaros, os ucranianos, os sérvios e os romenos, foi utilizado um alfabeto novo,
inventado a partir do grego, chamado “cirílico”, que foi incrementado com letras hebraicas
para os sons “ch”, “tch”, “ts” e ainda com letras inéditas (mas o romeno, língua neo-latina,
adotou o alfabeto latino no século XIX). O alfabeto grego permaneceu em uso apenas para
o próprio grego. Na Geórgia e na Armênia, os dois primeiros países a se tornarem cristãos
(cerca de 400 d.C.), foram inventados alfabetos próprios para cada língua, cujas letras
tinham formas totalmente diferentes da das greco-latinas mas funcionando no mesmo
sistema. Assim se criaram os alfabetos da Europa moderna: o latino (em suas dezenas de
variantes) , o cirílico (com variações regionais também) , o grego moderno, o armênio e o
georgiano.
Com o tempo, o alfabeto latino, que era aquele utilizado por mais línguas, necessitou ser
acrescido de sinais especiais para melhor indicar a pronúncia de cada idioma, como
acentos, crase, cedilhas, e vários outros, a exemplo do que já vinha acontecendo no grego
medieval e no hebraico litúrgico. Esses sinais adicionais se chamam diacrícticos.

Exemplos de escritas européias modernas (na ordem: sueco, alemão, francês, polonês,
tcheco, russo, georgiano e armênio) :

Jag vet det så bra, att du ska vilja köpa


skjörten.
/iá vêt de so bra, at dü ska vília tchêpa chêrten/
“eu sei muito bem que você vai querer comprar a camiseta”
Das Mädchen hat den Knaben geküßt.
/das métrren rat den knaben gueküst/
“a garota beijou o garoto”
Moi, je suis le professeur d’histoire, mons
elèves.
/moá, je süi le prrofesêrr distoárr, mon zelév/
“eu sou o professor de história, meus alunos”
Czy nie przeczytałeś całą niemiecką książkę?
/tchi nie pchetchitáuech tsáuã niemiétskã kchonchke/
„você não leu o livro alemão inteiro?”
Zdeněk a jeho otec vůbec nemají čas, řekla
jsi.
/zdéniek a iérro otets vulbets nêmaii tchas, rjekla si/
„Zdenek e seu pai contudo não têm tempo, ela disse“
Юри Гагарин, первый космонавт всех
стран
/iúri gagárin, piérvi kasmanáft vsiérr stran/
“Iuri Gagárin, o primeiro cosmonauta de todos os países”

Fga kuqtb mapenbfe aijneha ah


paoskem jauyeuwi iabvn rt=aa Ooa
Exemplos de letras georgianas e armênias

Mas essa onda de mudanças não varreu somente a Europa: na Ásia, as diversas escritas
clássicas passaram a ser usadas para as novas línguas emergentes, e para outras línguas que
jamais haviam sido escritas.
Na Índia, o alfabeto devanágari passou por modificações superficiais para se escrever o
hindi, o gujarati, o bengalês, o nepalês, o caxemiro e outras. O Tibete, a Tailândia, a
Birmânia, o Laos e o Camboja, assim como certas línguas do sul da Índia, adotaram escritas
de inspiração brahmi, devido à influência do budismo.
Os árabes solidificaram sua escrita de origem fenício-aramaica 9[9] por volta de 650 d.C.,
com o surgimento do islamismo. Sua escrita passou para línguas de povos convertidos
como o persa - que já estava abandonando a escrita cuneifome mesmo- e o turco, que,
contudo, veio a adotar a escrita latina em 1923. O egípcio morreu definitivamente como
língua falada com a conquista árabe no século VII, mas então já se desenvolvera no Egito
uma escrita alfabética de inspiração grega denominada alfabeto cóptico - preservada até
hoje pela Igreja Cóptica.10[10]
Na China, a escrita, como a língua, sofreu poucas mudanças, pois sua civilização foi a
única da Antigüidade a sobreviver até hoje. Mas seus ideogramas foram adotados pelos
coreanos e japoneses, que, contudo, desenvolveram depois alfabetos silábicos para designar
elementos gramaticais e conjugações, para uso complementar aos ideogramas, já que essas
línguas têm uma estrutura completamente diferente da chinesa. A escrita silábica coreana
(hangul) é de inspiração devanágari ou brahmi, enquanto que a japonesa (hiragana e
katakana) consiste de sílabas fixas derivadas de ideogramas simplificados. O japonês e o
coreano são, portanto, escritos de maneira logo-silábica.
A Etiópia permanece como o único país africano negro a desenvolver uma escrita própria
para sua língua, o amárico, desenvolvida no século VI e usada até hoje. Tanto a língua
amárica como seu alfabeto são originados do Oriente Médio, mais precisamente de uma
escrita do Iêmen pré-islamico já extinta, a chamada escrita sul-arábica, que não marcava as
vogais. Mas os etíopes desenvolveram sinais para as vogais, o que os destaca como
inventores de um alfabeto.

9[9]
A versão da escrita aramaica que, misturada com letras fenícias e outras, deu origem à escrita árabe, era
alternativa, razão pela qual o árabe difere tanto do fenício que tinha letras quadradas e deu origem ao alfabeto
grego.
10[10]
A Igreja Cóptica foi uma das primeiras do mundo (200d.C.), e nem a invasão muçulmana do século VII a
exterminou. Hoje 10% dos egípcios pertencem a essa igreja, mas a língua cóptica, descendente do antigo
egípcio, foi completamente substituída pelo árabe no séc. XVII, sendo hoje utilizada somente pelos sacerdotes
coptas.
A invenção da imprensa e a expansão colonial européia: universalização do alfabeto
latino.

Gutenberg inaugurou a era da imprensa, mas só o fez porque morava na Europa. A


praticidade e simplicidade do alfabeto latino facilitou em muito o conceito de imprensa. Na
China, séculos antes do Ocidente, já houvera tentativas de se usar tipos móveis para a
impressão repetida de livros, mas o caráter complexo dos milhares de ideogramas eram
uma barreira intransponível para essa técnica funcionar. Nem mesmo os silabários dos
semitas e hindus eram muito práticos para a imprensa de tipos móveis.
Aliada ao Renascimento, a imprensa contribuiu para o expansionismo colonial europeu que
iria levar o alfabeto latino aos confins inexplorados da Terra. Muitos povos que não tinham
qualquer escrita - como era o caso da maioria dos africanos - adotaram o alfabeto ocidental,
sem contar os que trocaram seus alfabetos de então pelo latino, como muitos povos que já
haviam tomado emprestado um alfabeto estrangeiro. Foi assim com os malaios e os
indonésios, que escreviam com o alfabeto árabe, e os vietnamitas, que usavam ideogramas
chineses.
Apesar de que, com a revolução russa, o alfabeto cirílico passasse a ser utilizado por muitas
línguas de regiões sob influência soviética (cazaque, quirguiz, turcomeno, uzbeco,
mongol11[11]), foi o alfabeto latino que se estabeleceu como alfabeto universal, sendo
ensinado hoje em todas as escolas de todos os países, ao lado da escrita local.

Exemplos de escritas não européias a usarem o alfabeto latino (na ordem: zulu, suaíli,
turco e malaio12[12]):

Uweta uphakamisani? Eqinisweni kodwa.


/uêta uprrakamissani? e'inisuêni kódua/
O «q» zulu representa um «clique», como o som usado para chamar cavalos (tló, tló). O zulu tem outros dois
cliques, representados pelas letras «c» e «x».
Nimefurahi sana kukutana na wewe!
/nimefurárri sana kukutana na uêuê/
«muito prazer em conhecê-lo»
Çoğu Belçikalılar. En küçük. Çarşı devamlı.
/tcho-u beltchicalãlar. En küçük. Tchársã deuâmlã/
palavras em turco moderno
Selamat pagi. Sampai bertemu lagi.
/selamát págui. sâmpai bertêmu lágui/
Bom dia. Até logo.

Númerais: além da língua.

11[11]
O quirguiz, o turcomeno e o uzbeco, línguas aparentadas ao turco faladas nas ex-repúblicas soviéticas da
Ásia Central, já completaram a transição à escrita latina de base turca; o cazaque, da mesma família, está em
transição; o mongol. contudo, não abandonará o cirílico tão cedo.
12[12]
O zulu é uma língua do sul da África; o suaíli, da África Oriental (Quênia e Tanzânia); o turco abandonou
a escrita árabe em 1923; o malaio o fez há uns dois séculos.
Não somente de letras, logogramas e silabários se faz a escrita humana. Desde os
primórdios, centenas de outros símbolos vêm sido usadas para se registrar o conhecimento
humano. As quantidades, por exemplo, desde cedo eram representadas não pelas palavras
que as designavam na língua falada, mas por símbolos especiais. Nada de mais para as
escritas logográficas, em que tudo tinha um símbolo especial. Mas nas línguas escritas
alfabeticamente, as quantidades e cálculos permaneceram a ser caracterizadas por simbolos
especiais, geralmente uma letra do alfabeto. Os numerais romanos, exemplos desse sistema,
com sua notória precariedade - quem diria - são utilizados por nós até hoje. Os romanos
derivaram seu sistema dos gregos, que o adaptaram dos fenícios e judeus. Mas se não era
tão difícil expressar quantidades simples com esse sistema alfabético de numeração,
calcular somas, divisões e multiplicações era uma tortura, um desafio para os gênios.
Imagine dividir MCCVIII por MMMCCXVIII... Muito mais fácil dividir 1208 por 3218,
não? Pois é, a diferença entre esses dois sistemas é nada. Isso mesmo, nada. Zero. O zero, a
noção abstrata de vazio, foi um desenvolvimento fundamental para o pensamento humano.
No ocidente, esse sistema é tradicionalmente denominado “arábico”. É verdade que ele foi
introduzido na Europa pelos árabes na Idade Média (cerca de 910), mas estes apenas o
conheceram dos indianos, seus verdadeiros inventores.

Os nossos algarismos atuais são, portanto, os últimos vestígios de escrita logográfica- na


verdade, poderiam ser chamados de ideogramas, já que representam o conceito de número e
não apenas palavras, servindo para qualquer língua.

A relação entre línguas e escritas: erros comuns.

Intimamente ligada à língua, a escrita, contudo, em sua evolução, não pode ser tomada
como sinônimo do idioma que a utiliza. Se nós vemos, por exemplo, ‫ جذىذذيذسًُْش ششيىص‬escrito em
algum lugar, dizemos “olha lá aquilo escrito em árabe”. Mas na verdade, a menos que
conheçamos a língua árabe e saibamos lê-la, não podemos afirmar ser aquilo árabe. Só
temos certeza de que se trata de letras árabes. O persa, por exemplo, que é uma língua tão
diferente do árabe quanto o português, é escrito com o mesmo alfabeto consonantal. Saiba,
portanto, distinguir entre escrita e língua. O exemplo arábico acima, por exemplo, não está
escrito em nenhuma língua, é apenas um amontoado de letras.
O mesmo vale para a evolução da escrita. Na escola, nada nos é ensinado sobre a evolução
das línguas, e pouco se fala sobre a escrita: surgiu no Oriente Médio, passou aos gregos e
daí aos romanos. Até aí nada de errado, mas essa simplificação acaba por nos levar a crer
que as línguas seguiram o mesmo curso que as escritas. Nada poderia estar mais longe da
verdade. Os povos do antigo Oriente Médio eram todos semitas (na verdade o nome
científico é camito-semítico), à exceção dos persas e sumérios. Os persas, hindus e
europeus eram (e são) indo-europeus. A escrita nasceu, portanto, com um povo que não era
nem semita nem indo-europeu: os sumérios, que, até onde se saiba, não pertencem a
nenhum grupo maior.
Mas o que significa “povo semita” e “povo indo-europeu”? Na verdade, essas
denominações não se aplicam a raças, e sim às línguas que cada povo fala. Nós, brasileiros,
somos “indo-europeus”, pois falamos português. Os judeus são considerados “semitas”,
pois originalmente falavam hebraico. Mas qual a importância? Bem, para a história da
escrita basta saber que a estrutura da língua influencia na maneira com que elas são escritas,
como se pôde ler no capítulo sobre fenícios, gregos e hindus.
Os indo-europeus são, hoje, os europeus (exceções: finlandeses, húngaros, estonianos,
lapões e bascos), os persas (ou iranianos), os curdos, os indianos (excetos alguns do sul),
paquistaneses, afegãos e bengaleses. Pressupõe-se que as línguas faladas por esses povos
tenha vindo a partir de uma tribo que há uns 6.500 anos começou a se espalhar do sul da
atual Rússia levando consigo sua língua até a Europa e Ásia, onde começaram a se cindir
em diferentes tribos e dialetos à medida em que se distanciavam uns dos outros e
encontravam outros povos no caminho. Há 3.800 anos, já haviam se formado os principais
troncos lingüísticos derivados do antigo indo-europeu: Na Itália, o itálico; Na Grécia, o
grego; na Europa Oriental, o eslavo; no norte da Europa, o germânico; na Pérsia, o
irânico; na Europa Ocidental, o celta; no norte da Índia, o ariano e, no Cáucaso, o
armênio. Do itálico, depois se desenvolveram o latim e descendentes; do eslavo, o russo,
polonês, servo-croata, tcheco, búlgaro e ucraniano; do germânico, o alemão, o holandês, o
inglês e as línguas escandinavas (exceto finlandês); do irânico, o persa antigo e moderno e
o curdo; e, do céltico, o gaulês antigo, e os modernos irlandês, escocês e galês.
Portanto é outro erro assumir que todas as línguas modernas derivam do latim. O alemão, o
russo, o inglês e o polonês na verdade são sobrinhas do latim, vindas de suas irmãs antigas.
O latim, por sua vez, é irmão do grego, pois ambos derivam do antigo indo-europeu.
Os primeiros indo-europeus a aprenderam a escrita o fizeram através dos semitas, como os
hindus (arianos) e gregos. Mas suas línguas não derivam das línguas semíticas - de fato,
diferem tanto delas que tiveram que inventar as letras para as vogais.
No caso do Extremo Oriente, também deve-se estar avisado que as línguas de lá diferem
mais entre si do que os da Europa e Oriente Médio. Para efeito prático, pressuponha apenas
que todas as línguas do Extremo Oriente são 100% diferentes umas das outras. Mas então
como tanto os japoneses quanto os chineses escrevem “y”” para “lua”? É que se trata de
um logograma sem relação com a pronúncia, pois em chinês “lua” é “yue” e em japonês
“tsuki”.

Conclusão: razões e conseqüências.

Depois de se ler tantos fatos sobre essa invenção fundamental da humanidade, pode-se
perguntar qual a importância de se conhecer a história da escrita. Bem, para começo de
conversa, a invenção da escrita equivale à invenção da civilização. É difícil precisar qual
proporcionou qual. Por onde quer que tenha passado, a escrita mudou para sempre os povos
e a maneira como levavam sua vida.
No início, a escrita possuía um aspecto religioso e político: era exclusiva das classes
dominantes, para que fossem os detentores do conhecimento e do poder. Além disso, as
escritas antigas eram complexas pois sua finalidade não era prática, e sim ritualística,
religiosa. Escrevia-se o conhecimento como um auxílio às práticas orais e aos rituais, e para
ensinar as tradições às novas gerações. Eles deixavam de simplificar a escrita não por
incapacidade, mas sim para evitar que o conhecimento se transferisse da memória para o
papel, papiro ou pedra. Como diziam os antigos hindus, “todo conhecimento em livros é
inútil e perdido como dinheiro emprestado”. A escrita, portanto, nasceu com a finalidade
de manter as estruturas sociais e não a de alterá-las.
À medida que o mundo se tornava mais complexo e surgiam rotas de comércio e impérios
vastos, tornou-se necessário desenvolver uma escrita prática. Os fenícios, pioneiros em
finanças internacionais, é que deram o golpe definitivo no elitismo da escrita: com apenas
vinte e poucas letras, podiam pôr todo o conhecimento humano à disposição de quem
quisesse e pudesse. Os gregos apenas deram um toque de racionalidade no alfabeto
consonantal fenício, adicionando vogais à escrita e dando-lhe um aspecto linear, quase
como uma linha de montagem, sem o qual a grande folosofia grega talvez não se
desenvolvesse. Escreve Marshall McLuhan, em seu “Understanding Media” (“Os meios de
comunicação como extensões do homem”, cap. 9):

“O mito grego sobre o alfabeto era que Cadmus, o rei mítico que teria introduzido as
letras fonéticas na Grécia, semeou os dentes de um dragão, e deles brotaram homens
armados. Como qualquer outro mito, este encapsula um processo prolongado em um
‘insight’ instantâneo. O alfabeto significava poder, autoridade e controle de estruturas
militares a distância. Quando combinado com papiro, o alfabeto singificou o fim das
burocracias paralíticas dos templos e do monopólio religioso do conhecimento e do poder.
Diferentemente da escrita pré-alfabética, que com seus inúmeros signos era difícil de
dominar, o alfabeto podia ser aprendido em algumas horas. A aquisição do conhecimento
tão extenso e da habilidade tão complexa que a escrita pré-alfabética representava,
quando aplicada a materiais tão pouco práticos como tijolos e pedra, assegurava à casta
dos escribas o monopólio do poder religioso. O alfabeto mais simples e o papiro barato,
leve e transportável, postos juntos, efetivaram a transferência do poder dos religiosos aos
militares. Tudo isso implicava no mito de Cadmus, incluindo a queda das cidades-estado, o
surgimento de impérios e de burocriacias militares.”

O alfabeto vocálico-consonantal é uma devastadora arma cultural, sacrificando mundos de


significado logográficos em nome da praticidade. A China, mantendo a escrita logográfica
através dos séculos, preservou sua estrutura social até o século XIX, quando classes cultas
conheceram a escrita alfabética estudando no ocidente e causando ultimamente a queda do
império chinês e depois a revolução comunista de 1949. Na Índia, que, com suas escritas
silábicas, era mais dinâmica que a China, o alfabeto vocálico-consonantal que chegara com
os europeus causou menos mudanças, mas alterou a cultura daquele país milenar para
sempre - hoje a Índia é a maior democracia do mundo.
Individualidade, continuidade linear e uniformidade de códigos são a marca do homem
civilizado, e sua origem está aqui, bem nestas letras que você está lendo agora.

Mas agora o mundo é outro. No século vinte, a cultura visual está ameaçando a cultura do
alfabeto fonético. A eletricidade e a informática nos dão novos meios de conhecer a
realidade e de armazenar nossos pensamentos além da escrita. Logotipos, ícones, gráficos,
filmes, vídeos, jingles, músicas ameaçam tirar (se é que já não tiraram) o monopólio do
alfabeto como meio de registrar a cultura. Na China e no Japão, que nunca saíram da
cultura visual-intuitiva por causa de seus logogramas, a nova cultura visual-eletrônica é
absorvida com mais naturalidade do que na Europa alfabética, e não é à toa que esses povos
e outros do Oriente são vistos como os que dominarão o futuro.
Mas, no planeta Terra, o alfabeto vocálico-consonantal ainda parece dominar, pois é com
ele que se escreve a língua internacional: o inglês. Contudo, uma análise um pouco mais
profunda mostra que o inglês concilia o visual com o fonético, o linear com o caótico, e o
lógico com o ilógico. Por exemplo, o grupo de letras “ough” é pronunciado de maneira
diferente nas palavras tough /tãf/, thought /thót/, though /dhôu/ e through /thru/. Não há
consistência na relação letra-fonema na ortografia inglesa. Você simplesmente, em muitos
casos, tem que olhar para a palavra e se lembrar de sua pronúncia. O inglês é quase uma
língua de escrita logo-silábica, pois algumas palavras têm pronúncia arbitrária e outras,
lógica. Algumas palavras têm a mesma pronúncia, mas significando coisas diferentes e
portanto tendo escritas diferentes (cf. chinês, sumeriano): “write” (escrever), “right”
(direito) e “rite” (rito), todos pronunciados /ráit/.
É claro que a comparação da escrita inglesa com as logo-silábicas ou silábicas é exagerada,
mas serve para mostrar que a nova cultura visual do mundo de hoje aceita o sucesso do
inglês, em parte, por causa da visualidade e arbitrariedade de sua ortografia, ativando, como
logotipos e logogramas, nossos sensos visuais mais do que qualquer outra língua de escrita
vocálico-consonantal. Alia, pois, a linearidade industrial do alfabeto à intuitividade da
cultura visual - que língua mais perfeita para o mundo de hoje!

Bibliografia

“A aventura das línguas”, Hans Joachim Störig, 3a. edição, Ed. Melhoramentos, ©1990
“Deuses, Túmulos e Sábios”, C.W. Ceram, 6a. edição, Ed. Melhoramentos, ©1953
“Ancient Iraq”, Georgers Roux, 3a. edição, Penguin Books ©1964
“Understanding Media”, Marshall McLuhan, 1a. edição, Routledge, ©1964
“O Legado de Babel”, Ricardo C. Salles, 1a. edição, Ao Livro Técnico, ©1993
“Teach Yourself Ancient Greek”
“Modern Hebrew Grammar”
“Teach Yourself Sanskrit”
“Teach Yourself Latin”
“Essentials of Hindi Grammar”
“Reading and Writing Chinese”

Internet:

“Ancient Scripts of the World” e links:


http://alumni.eecs.berkeley.edu/~lorentz/Ancient_Scripts/

Tabela do alfabeto fenício:


http://www.phoenicia.org/tblalpha.html

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