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motivo. Os pontapés estavam previstos e não dissipavam a imagem do osso.

Naquele dia a voz estridente de Sinha Vitória e o cascudo no menino mais


velho arrancaram Baleia da modorra e deram-lhe a suspeita de que as coisas não iam
bem. Foi esconder-se num canto, por detrás do pilão, fazendo-se miúda entre
cumbucos e cestos. Um minuto depois levantou o focinho e procurou orientar-se. O
vento morno que soprava da lagoa fixou-lhe a resolução: esgueirou-se ao longo da
parede, transpôs a janela baixa da cozinha, atravessou o terreiro, passou pelo pé de
turco, topou a camarada, chorando, muito infeliz, à sombra das catingueiras. Tentou
minorar-lhe o padecimento saltando em roda e balançando a cauda. Não podia sentir
dor excessiva. E como nunca se impacientava, continuou a pular, ofegante,
chamando a atenção do amigo. Afinal convenceu-o de que o procedimento dele era
inútil.
O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da cachorra, pôs-se a
contar-lhe baixinho uma história. Tinha um vocabulário quase tão minguado como o
do papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de
gestos, Baleia respondia com o rabo, com a língua, com movimentos fáceis de
entender.
Todos o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que lhe mostrava
simpatia. Afagou-a com os dedos magros e sujos, e o animal encolheu-se para sentir
bem o contato agradável, experimentou uma sensação como a que lhe dava a cinza
do borralho.
Continuou a acariciá-la, aproximou do focinho dela a cara enlameada, olhou
bem no fundo os olhos tranqüilos.
Estivera metido no barreiro com o irmão, fazendo bichos de barro,
lambuzando-se. Deixara o brinquedo e fora interrogar Sinha Vitória. Um desastre. A
culpada era Sinha Terta, que na véspera, depois de curar com reza a espinhela de
Fabiano, soltara uma palavra esquisita, chiando, o canudo do cachimbo preso nas
gengivas banguelas. Ele tinha querido que a palavra virasse coisa o ficara
desapontado quando a mãe se referira a um lugar ruim, com espetos e fogueiras. Por
isso rezingara, esperando que ela fizesse o inferno transformar-se.
Todos os lugares conhecidos eram bons: o chiqueiro das cabras, o curral, o
barreiro, o pátio, o bebedouro – mundo onde existiam seres reais, a família do
vaqueiro e os bichos da fazenda. Além havia uma serra distante e azulada, um monte
que a cachorra visitava, caçando preás, veredas quase imperceptíveis na catinga,
moitas o capões de mato, impenetráveis bancos de macambira – e aí fervilhava uma
população de pedras vivas e plantas que procediam como gente. Esses mundos
viviam em paz, às vezes desapareciam as fronteiras, habitantes dos dois lados –
figura. entendiam-se perfeitamente e auxiliavam-se. Existiam sem dúvida em toda a
parte forças maléficas, mas essas forças eram sempre vencidas. E quando Fabiano
amansava brabo, evidentemente uma entidade protetora segurava-o na sela,
indicava-lhe os caminhos menos perigosos, livrava-o dos espinhos e dos galhos.

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