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São Paulo, setembro de 2016

CPI – BRASIL - CATALOGAÇÃO ISBN: 978-85-99138-87-8

Austeridade e retrocesso - finanças públicas e 1.Economia. 2. Desenvolvimento. 3.


política fiscal no Brasil. Finanças públicas. 4. Austeridade econômica. 5.
Michel Temer. 5 Dilma Rousseff.
São Paulo: Fórum, 21; Fundação Friedrich Ebert
Stiftung (FES); GT de Macro da Sociedade Brasi- 1ª edição
leira de Economia Política (SEP); e Plataforma
Política Social, setembro de 2016.

1 volume.
I 5

Índice
Sumário Executivo 7

Introdução 15

1. Superávit primário: a insensatez conduz a política fiscal 17


1.1 Política fiscal: breve perspectiva histórica 19
1.2 Contração fiscal expansionista e o círculo vicioso da austeridade 21
1.3 O regime fiscal brasileiro: pró-cíclico, anti-investimento e anti-planejamento 23
1.4 Sim, há alternativas: propostas para um novo regime fiscal 25

2. Dívida pública e a gestão macroeconômica 27


2.1 A dívida pública não é pecado nem irresponsabilidade 27
2.2 Não há um número mágico para a dívida pública 29
2.3 Dívida líquida: melhoras apesar do fardo dos juros 31
2.4 Dívida Bruta e o nó da gestão macroeconômica 34

3. Gasto público e o perigoso caminho da austeridade 39


3.1 O gasto público e a “crise fiscal” 39
3.2 Gasto Social em um país desigual 41
3.3 Antecedentes do austericídio: o equívoco das desonerações 42
3.4 Austeridade: uma escolha equivocada 45
3.5 O plano Temer de Novo Regime Fiscal: a proposta de Estado mínino
e austeridade permanente 47

4. Reforma tributária progressiva: uma nova agenda 51


4.1 A tributação dos lucros e das rendas no Brasil e no mundo 53
4.2 Uma proposta para o debate 56

Referências 59
I 7

Sumário
Executivo

Apresentação objetivo redesenhar o papel do Estado


para atender interesses velados. No Brasil,
o ajuste econômico ortodoxo, iniciado
Desde o final de 2014, o Brasil vem sendo na gestão Levy, fracassou em retomar o
submetido à retórica que propõe a austeri- crescimento e estabilizar a dívida pública,
dade como único caminho para recuperar a contribuindo para lançar o país no maior
economia. Com o objetivo de melhorar as retrocesso econômico das últimas décadas.
contas públicas e restaurar a competitivi- Não obstante, o ajuste ajudou a criar as
dade da economia por meio de redução de condições necessárias para mudança da
salários e de gastos públicos, a austeridade correlação de forças políticas e para impor
se sustenta em argumentos controversos e ao país, passando ao largo do crivo das
até mesmo falaciosos. Entre os principais urnas, um outro projeto de sociedade.
experimentos internacionais, vem predo-
minando resultados contraproducentes, Nesse contexto, esse documento procede
não resultando em crescimento, tampouco uma análise das finanças públicas e política
equilíbrio fiscal. O que sim é menos contro- fiscal no Brasil, procurando esclarecer as
verso é que tais experimentos têm como principais causas da atual crise fiscal, assim
8 I SUMÁRIO EXECUTIV O

como descontruir simplificações e mitos, para algoz do mesmo.


muitos dos quais baseados em argumentos
econômicos supostamente técnicos que • Como resposta ao cenário de piora
sustentam a austeridade. O documento nos indicadores fiscais provocada pela
também é propositivo ao apontar alterna- queda no crescimento econômico e pelas
tivas fiscais para um projeto de país que desonerações, o segundo governo Dilma
valorize a democracia, a distribuição da tem início adotando a estratégia econômica
renda e da riqueza e a expansão dos direitos dos candidatos derrotados no pleito de
sociais. 2014, ou seja, realizou um choque de preços
administrados e um duro ajuste fiscal e
monetário, na esperança de que o setor
privado retomasse a confiança e voltasse
Da agenda Fiesp a investir. Joaquim Levy foi o símbolo da
implementação da austeridade econômica
ao austericídio no Brasil que consiste em uma política deli-
berada de ajuste da economia por meio
de redução de salários e gastos públicos
• A economia brasileira entrou para supostamente aumentar lucros das
em uma trajetória de desaceleração no empresas e sua competitividade, assim
quadriênio 2011-2014 depois do desem- como tentar estabilizar a trajetória da
penho extraordinário durante 2007- dívida, com resultados contraproducentes.
2010. Há fatores que escapam à política
econômica e explicam essa desaceleração, • O forte ajuste fiscal, em uma
dentre eles a perda de dinamismo de um economia já fragilizada, agravou os
ciclo doméstico de consumo e de crédito problemas existentes e contribuiu para
ou os desdobramentos da crise interna- transformar uma desaceleração em uma
cional. Contudo, é importante apontar depressão econômica. O ajuste fiscal
que a política fiscal praticada pelo governo promovido se mostrou contraproducente,
contribuiu para essa trajetória de queda do pois gerou aumento da dívida pública e do
crescimento. déficit público.

• Enquanto no quadriênio 2007-2010 • Em 2015, por exemplo, os investi-


o espaço fiscal foi canalizado prioritaria- mentos públicos sofreram queda real de
mente para investimentos públicos, no mais de 40% no nível federal, o gasto de
quadriênio 2011-2014 a taxa de investimento custeio caiu 5,3%, e o governo não logrou
parou de crescer e, em compensação, o a melhoria das expectativas dos agentes
governo elevou significativamente os subsí- econômicos que justificaria esse ajuste
dios e desonerações ao setor privado. O com vistas a retomar o crescimento. Pelo
governo fez uma aposta no setor privado e contrário, a economia real só piorou e as
acreditou que promoveria o crescimento expectativas se deterioraram, apesar de toda
econômico via realinhamento de preços a austeridade fiscal manifestada e praticada.
macroeconômicos e incentivos aos inves- Naquele ano, apesar de todo o esforço do
timentos privados – a chamada agenda governo para reduzir as despesas, que
FIESP. Ironicamente, a FIESP passou de caíram 2,9% em termos reais, as receitas
beneficiada das políticas de um governo despencaram e o déficit ficou ainda maior,
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evidenciando o caráter contraproducente a defender um déficit primário recorde no


do ajuste: o austericídio. novo Governo.

• A virada para a austeridade foi um • Como medida de longo prazo, o


remédio equivocado para os problemas governo Temer propõe estabelecer um
pelos quais a economia brasileira passava. “Novo Regime Fiscal” por meio de uma
O tratamento de choque fundado em uma proposta de emenda constitucional (PEC
contração fiscal, um rápido ajuste na taxa 241) que cria por 20 anos um teto para
de câmbio, um choque de preços adminis- crescimento das despesas públicas vincu-
trados e um aumento de juros contribuiu lado à inflação. Enquanto a população e
para criar a maior crise econômica dos o PIB crescem, os gastos públicos ficam
últimos tempos. Contudo, para deter- congelados.
minados interesses políticos, o ajuste se
mostrou funcional ao gerar desemprego, • A proposta apoia-se em argumentos
queda de salários reais e assim mudar a falsos de que nações desenvolvidas usam
correlação de forças para favorecer a impo- regras semelhantes. Desde 2011, membros
sição de outro projeto de país, sem passar da União Europeia estabeleceram um limite
pelo crivo das urnas. para o crescimento da despesa associado à
taxa de crescimento de longo prazo do PIB
e não em crescimento real nulo. Na maioria
desses países já existe uma estrutura conso-
O novo lidada de prestação de serviços públicos,
diferentemente do Brasil onde há muito
regime fiscal maiores carências sociais e precariedades
na infraestrutura.
e a imposição
• Segundos nossas estimativas, a
de outro projeto regra implicaria reduzir a despesa primária
do governo federal de cerca de 20% do PIB
de sociedade em 2016 para algo próximo de 16% do PIB
até 2026 e de 12% em 2036.

• A gestão da política fiscal protago- • Adicionalmente, para que o teto


nizada pelo governo Temer lançou sinais global da despesa seja cumprido – dado
contraditórios com relação à continuidade que algumas despesas como os benefícios
das políticas de austeridade. Para o curto previdenciários tendem a crescer acima
prazo definiu-se o “keynesianismo fisioló- da inflação - os demais gastos (como Bolsa
gico” e para o longo prazo, a “austeridade Família e investimentos em infraestrutura)
permanente”. precisarão encolher de 8% para 4% do PIB
em 10 anos e para 3% em 20 anos, o que
• O afrouxamento da meta fiscal pode comprometer o funcionamento da
para 2016 e 2017 evidencia por um lado máquina pública e o financiamento de
o pragmatismo econômico e, por outro atividades estatais básicas. Essa meta não
lado, hipocrisia dos que argumentam pela parece ser realista.
austeridade e, simultaneamente, passam
10 I SUMÁRIO EXECUTIV O

• A nova regra não prevê nenhum supostamente com o objetivo de reduzir a


mecanismo para lidar com crises econô- dívida e aumentar lucros e a competitivi-
micas ou outros choques. Ao contrário, dade das empresas.
tende a engessar a política fiscal por duas
décadas. • A recomendação de que o Estado
deve cortar gastos em momentos de crise
• Na verdade, o que o novo regime parte de uma falácia de composição que
se propõe a fazer é retirar da sociedade e desconsidera que se todos os agentes
do parlamento a prerrogativa de moldar cortarem gastos ao mesmo tempo, inclusive
o tamanho do orçamento público, que o Estado, não há caminho possível para
passará a ser definido por uma variável o crescimento. A solução mais razoável
econômica (a taxa de inflação), e impor para tratar de um desajuste fiscal em meio
uma política permanente de redução rela- a uma recessão é, portanto, estimular o
tiva do gasto público. crescimento, não cortar gasto.

• Em suma, trata-se da imposição de • No círculo vicioso da austeridade,


um projeto de país que dificilmente passaria cortes do gasto público induzem a redução
no teste de um pleito eleitoral, única forma do crescimento que provoca novas quedas
de garantir sua legitimidade. da arrecadação que, por sua vez, exige novos
cortes de gasto. Esse círculo vicioso só pode
• Quem ganha? Quem não quer ser interrompido por decisões deliberadas
financiar os serviços públicos por meio de do governo, a menos que haja ampliação das
impostos e o grande capital que enxerga exportações líquidas em nível suficiente
o Estado como concorrente quando esse para compensar a retração da demanda
ocupa setores que poderiam ser alvo de interna, pública e privada. Esta exceção é
lucros privados, como saúde e educação. pouco provável diante de uma crise interna-
cional como a que o mundo enfrenta nesta
• Quem perde? A população mais década, com lenta recuperação da demanda
pobre, isto é, aqueles que são os principais e maior competição pelos mercados.
beneficiários dos serviços públicos. Além
disso, aqueles que vislumbram uma socie- • A obsessão alarmista contra qual-
dade mais justa e igualitária. quer elevação da dívida pública esconde
uma agenda política permeada por inte-
resses de grupos econômicos, mas traves-
tida como uma questão meramente técnica,
O falacioso seja ao defender a retração de bancos
públicos, seja ao demandar a redução dos
discurso gastos sociais.

da austeridade • No fundo, a austeridade é principal-


mente um problema político de distribuição
de renda e não um problema de contabi-
• A austeridade é uma política deli- lidade fiscal. Os efeitos da austeridade
berada de ajuste da economia por meio afetam de forma distinta os diferentes
de redução de salários e gastos públicos agentes econômicos e classes sociais de
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forma que os mais vulneráveis, que fazem anticíclico, que viabilize o planejamento e
mais uso dos serviços sociais, são mais que priorize o investimento público.
afetados.
• Há diversas variantes institucionais
• Apesar das inúmeras evidências para um regime fiscal, dentre essas estão as
contrárias à sua eficácia, a austeridade que estipulam metas fiscais ajustadas ao
persiste como ideologia e sempre retorna ciclo econômico, como a meta de “resul-
ao debate político por ser oportuna para os tado fiscal estrutural”. Ou alternativamente,
grupos dominantes de poder. pode-se adotar bandas fiscais de forma
análoga ao que ocorre no regime de metas
de inflação. Ainda há a opção, aplicada em
alguns países, de retirar todo investimento
A insensatez do público do cálculo do superávit primário
(assim como o gasto com juros é excluído
superávit primário desse indicador) e assim incentivar o uso do
investimento público como vetor de desen-
volvimento e abrir espaço para atuação
• O regime fiscal brasileiro é extre- anticíclica do gasto público.
mamente pró-cíclico, ou seja, acentua as
fases de crescimento e de recessão. Assim,
em contextos de baixo crescimento, a busca
pelo cumprimento da meta fiscal por meio Desmistificando
de uma política fiscal contracionista retira
estímulos à demanda agregada e reduz a dívida pública
ainda mais o crescimento econômico e a
própria arrecadação.
• A dívida brasileira é tão grande?
• Um segundo fator a se sublinhar Qual é o parâmetro para definição de
sobre o regime fiscal brasileiro é sua natu- “grande”? Na verdade, poucos economistas
reza “anti-investimento”, porque, diante de se arriscam a definir um parâmetro ótimo
uma estrutura de gastos públicos rígida, os para dívida pública, simplesmente porque
cortes de despesa recaem primordialmente as evidências não parecem indicar que esse
sobre o investimento público, um dos patamar exista. Não há um número mágico
poucos gastos passíveis de contingencia- a partir do qual a relação dívida pública/PIB
mento. O mesmo regime impõe uma lógica torna-se problemática. Isso vai depender
curto-prazista à gestão da política fiscal e das especificidades de cada país.
subordina o planejamento governamental.
• No Brasil, a excessiva preocupação
• Na ditadura do superávit primário, com o patamar da dívida é carregada por
os fins são atropelados pelos meios, e tudo preconceitos ideológicos e por uma visão
se submete à necessidade de cumprir a meta estreita sobre a relação entre Estado, moeda
de curto prazo, inclusive o próprio cresci- estatal e dívida pública. Uma dívida elevada
mento, o emprego e o bem estar da popu- pode custar muito caro, mas um Estado
lação. Portanto, um novo modelo de gestão soberano não quebra por conta de dívidas
fiscal precisa ser constituído, de caráter na sua própria moeda. Por isso, a natureza
12 I SUMÁRIO EXECUTIV O

da dívida pública se diferencia substan- primário, mas principalmente pela acumu-


cialmente da gestão de dívidas privada e o lação de ativos por parte do Estado como
governo não incorre nas mesmas restrições a acumulação de reservas cambiais e de
para gasto e endividamento. O paralelo com créditos junto ao BNDES.
a economia da dona de casa não serve para
as finanças públicas. • Essa estratégia possui méritos
como, por exemplo, a redução da vulnerabi-
• Entre 2003 e 2013 a redução da lidade externa do setor público. Da mesma
relação dívida líquida/PIB foi expressiva, forma a política de expansão dos emprés-
de 54,3% para 30,6%, muito embora as timos do BNDES, em 2009, foi importante
taxas de juros continuassem pesando no para a ação contracíclica que assegurou
orçamento público. a recuperação rápida da economia brasi-
leira na maior crise da história do capita-
• A dívida externa pública, por sua lismo mundial desde a década de 1930. No
vez, caiu e, a partir de 2006 o país passou entanto, não devemos negligenciar seus
a realizar uma política de acumulação de elevados custos.
reservas cambiais, tornando-se credor
externo líquido. Por conta disso, quando • A estratégia de acumulação simul-
em 2008 a crise mundial determinou tânea de ativos e passivos, com grande
forte depreciação da moeda brasileira, a diferencial de rentabilidade entre eles,
acumulação de reservas cambiais propiciou explica boa parte da elevada conta de
significativos ganhos patrimoniais para o juros. Em 2015, somando-se os custos de
Estado brasileiro. oportunidade da manutenção das reservas
internacionais e dos créditos ao BNDES
• No final de 2014, pelo critério da com o resultado das operações de swaps
dívida líquida não havia um cenário de cambiais, chegamos a 4,9% do PIB.
tragédia fiscal, desenhado pelos econo-
mistas da mídia e do mercado. Havia sim, • Em suma, se o objetivo for equa-
condições financeiras para realizar uma cionar a dívida bruta é preciso desatar o nó
política anticíclica que ampliasse o investi- da gestão macroeconômica, reduzir subs-
mento público e o gasto social para impedir tancialmente o gasto com juros e ponderar
que a desaceleração cíclica se transformasse o custo da estratégia de acumulação de
em uma depressão. À época, a necessária e ativos. A ideia que se disseminou no Brasil
esperada desvalorização cambial apenas de que ao governo só compete controlar
contribuiria para reduzir o patamar da os gastos primários, desconsiderando os
dívida líquida, ampliando o espaço fiscal custos e benefícios fiscais das demais polí-
para políticas de estímulo ao crescimento. ticas macroeconômicas, deve ser revista e
amplamente debatida.
• Apesar da redução substancial da
dívida líquida, na última década a dívida
bruta manteve-se relativamente estabi-
lizada e passou a crescer a partir de 2013. Mito da gastança
Diferentemente do senso-comum, essa
dinâmica da dívida bruta não é explicada federal
pela “gastança do governo” ou o resultado
S U M Á R I O E X E C UT I V O I 13

• O diagnóstico convencional do salário mínimo.


da crise pela qual passa o país se traduz
simplificadamente na seguinte narrativa: • Porém, uma visão mais acurada dos
os governos do PT expandiram demais gastos sociais mostra que tampouco nesta
os gastos públicos, encobriram o déficit área houve expansão desenfreada, sobre-
público crescente por meio da chamada tudo frente às demandas sociais brasileiras,
“contabilidade criativa” e das “pedaladas e que a política de valorização do salário
fiscais” e esse tipo de política fiscal expan- mínimo contribuiu para este cenário, mas
sionista e nada transparente destruiu a com impactos sobre a redução da desigual-
confiança do mercado e mergulhou o país dade relevantes. Certamente é possível
na estagflação. discutir excessos e tornar o gasto mais
eficiente, mas as possibilidades de fontes de
• Contudo, a análise dos dados financiamento discutidas neste documento
mostra que, de fato, a despesa do governo evidenciam que este é um debate que deve
vem crescendo a um ritmo elevado e estável envolver toda a sociedade brasileira.
há tempos. As taxas médias de crescimento
real do gasto do governo federal dos últimos • Vale notar que, a despeito de gastos
quatro governos foram: FHC II (3,9%), Lula elevados, o governo conseguiu manter
I (5,2%), Lula II (5,5%) e Dilma I (3,8%). resultados fiscais positivos na última
década e meia pelo aumento da carga
• O principal fator por detrás do cres- tributária (1999-2005) ou pelo crescimento
cimento das despesas na esfera federal não mais acelerado do PIB (2006-2011). Nos
são os gastos com pessoal, como muitos governos Lula, enquanto o país crescia, não
acusam. Estes crescem sistematicamente havia desajuste fiscal apesar do crescimento
abaixo do PIB e tiveram sua menor taxa de do gasto público. Mas a partir de 2012, com a
expansão real justamente no governo Dilma queda do crescimento econômico e com as
I (-0,3%), ao contrário do que ocorre, por desonerações tributárias, houve uma piora
exemplo, nos estados e municípios, onde dos resultados fiscais.
o gasto com salários e aposentadorias de
servidores tem crescido a 5,5% ao ano, inde-
pendentemente da coloração partidária do
governante. Reforma
• O motor do gasto federal tem sido tributária, já!
os benefícios sociais (aposentadorias e
pensões do INSS, benefícios a idosos e
deficientes, seguro-desemprego, bolsa • A estrutura tributária brasileira é
família, etc), que hoje consomem metade extremamente perversa com os mais pobres
do gasto da União (mais de R$ 500 bilhões e a classe média e benevolente com os mais
em 2015) e crescem a taxas sistematica- ricos. Esse sistema singular é reflexo tanto
mente superiores ao PIB pelo menos desde do federalismo brasileiro e da dualidade
1999, por influência principal de fatores tributária (impostos e contribuições sobre-
demográficos, da justa formalização e dos postos), quanto de algumas recomendações
direitos consagrados na Constituição e, de política que o mainstream econômico
adicionalmente, pela política de valorização propagou nas décadas de 80 e 90 e que
14 I SUMÁRIO EXECUTIV O

foram incorporadas de forma bastante de Renda (IRPF) só atingem os “rendi-


acrítica ou peculiar pelo Brasil. mentos tributáveis”, o que não inclui atual-
mente a distribuição de lucros e dividendos
• A agenda de reformas da tributação que são as principais fontes de renda dos
sobre a renda e o patrimônio, que envolve mais ricos. Então, qualquer proposta de
um forte conflito distributivo, permaneceu reforma do imposto de renda que não passe
totalmente embargada nos últimos 20 anos, pela tributação dos dividendos não será tão
não tendo o governo federal apresentado efetiva nos objetivos de contribuir com uma
qualquer proposta de reforma mais subs- maior justiça fiscal e também gerar receitas
tancial que visasse ampliar a progressivi- extras para o governo.
dade ou mesmo corrigir as graves distorções
ensejadas pela atual legislação. • Na atual conjuntura de crise, é
pouco razoável crer na possibilidade de
• O Brasil foi um dos primeiros países um equilíbrio fiscal com baixo cresci-
e até hoje um dos poucos que isentou e mento. Isso implica que, no curto prazo,
continua isentando de imposto de renda deveríamos no mínimo assegurar espaço
os dividendos distribuídos a acionistas, tal fiscal para o investimento público e para
como a pequena Estônia. gastos sociais de elevado impacto sobre o
bem-estar das camadas mais vulneráveis
• De acordo com os dados das da população.
declarações de imposto de renda, as 70
mil pessoas mais ricas do Brasil, repre- • Uma reforma tributária, que
sentando meio milésimo da população combine eficiência e equidade poderia
adulta, concentram 8,2% do total da renda atuar incentivando o crescimento econô-
das famílias, índice este que não encontra mico de longo prazo ao reduzir a tributação
paralelo entre as economias que dispõem do lucro e da produção das empresas, ao
de informações semelhantes. Esse mesmo mesmo tempo em que concentra o ajuste
seleto grupo pagou apenas 6,7% de imposto fiscal de curto prazo sobre uma pequena
de renda sobre esse montante. parcela da poupança dos mais ricos, não
diretamente relacionada ao investimento, e,
• Além de injusta, essa assimetria por conseguinte, vinculada a um maior nível
entre o tratamento tributário dispensado a de emprego e produto. Assim, ganha-se
dividendos e salários tem sido responsável tempo para aprimorar outras propostas
por um fenômeno conhecido por “pejoti- de reformas estruturais das despesas,
zação”, que é a constituição de empresas debatê-las com a sociedade e pactuá-las
por profissionais liberais, artistas e atletas democraticamente
com o objetivo de pagar menos impostos
do que como autônomos ou assalariados.

• Nesse contexto, a proposta de se


aumentar alíquotas do imposto de renda
das pessoas físicas sem revogar a isenção de
dividendos não proporciona uma redistri-
buição de renda tão efetiva uma vez que as
alíquotas progressivas da tabela do Imposto
I 15

Introdução

Todo o debate acerca de qual deve ser a nos direitos universais, garantidos pelo
política fiscal mais adequada para promover Estado. E ainda, intencionalmente ou não,
o crescimento e o desenvolvimento econô- atende a interesses privados daqueles que
mico traz consigo pressupostos teóricos e não querem arcar com o financiamento de
diferentes visões de sociedade. Não poderia serviços públicos e favorece o grande capital
ser diferente com a atual visão que domina que enxerga o Estado como concorrente
o debate público brasileiro, defendendo quando esse ocupa setores que poderiam
a redução do papel do Estado, o corte ser alvo de lucros privados.
de gastos e a privatização do patrimônio
público. Tal visão, predominante nos Estes esclarecimentos iniciais são neces-
grandes veículos de imprensa, traz consigo sários, pois é preciso deixar claro que o
argumentações teóricas e metodológicas debate acerca da política fiscal de um
questionáveis. Além disso, está atrelada Estado como o brasileiro não é apenas uma
a uma concepção de sociedade muito discussão técnica, para ser realizada entre
diferente daquela consagrada pelos brasi- especialistas. A política fiscal e o papel do
leiros na Constituição de 1988, que previa Estado devem ser alvo de um amplo debate
a construção de uma sociedade baseada democrático, visando auxiliar a sociedade
16 I INTRODUÇÃO

nas escolhas que tomará e que definirão a regime fiscal brasileiro e das alternativas
construção de nossa nação nas próximas para reforma do regime fiscal. A seção 2,
décadas. Aos economistas dos mais dife- Dívida pública e a gestão macroeconômica
rentes matizes e tendências, cabe esclarecer trata inicialmente das consequências
a população acerca dos custos e benefí- econômicas da dívida pública e dos mitos
cios de cada escolha, das consequências que envolvem o tema. Em seguida mostra
positivas e negativas de cada medida, dos a evolução recente da dívida líquida e da
interesses e projetos sociais escamoteados dívida bruta no Brasil, apontando seus
atrás de cada debate, sempre deixando determinantes e desmistificando a ideia
transparente seus pontos de partida e de que o superávit primário é a variável
seus pressupostos teóricos. Apenas o central para controle da dívida. Já a seção
debate franco e honesto de ideias, sem a 3, intitulada Gasto público e o perigoso
pretensão de substituir a decisão sobe- caminho da austeridade, aborda a evolução
rana da população expressa pelo resultado do gasto público no Brasil e remonta uma
eleitoral, pode esclarecer aos interessados, narrativa da histórica econômica recente no
“não iniciados” nas veredas da literatura Brasil tendo a questão fiscal como foco. Por
econômica, o verdadeiro significado de fim a seção 4, Reforma tributária progres-
cada conceito e de cada discussão presente siva: uma agenda negligenciada, aponta
nos cadernos de economia. os principais problemas da injusta carga
tributária brasileira, mostra como existem
Nesse contexto, o presente documento alternativas para o financiamento do Estado
tem como um de seus objetivos centrais Social no Brasil, e apresenta uma proposta
desconstruir mitos existentes no debate de reforma tributária centrada na taxação da
público acerca da política fiscal, da dívida distribuição de lucros e dividendos, dentre
pública e de sua relação com a atual crise outras mudanças necessárias na atual estru-
brasileira. Ao fazê-lo, busca expor razões tura tributária complexa e injusta.
teóricas e históricas para fundamentar
uma interpretação diferente daquela Espera-se que ao cabo deste documento, o
oferecida pelo discurso hegemônico acerca leitor possa ao menos ter tido a oportuni-
das variáveis fiscais e sua função em uma dade de questionar alguns conceitos que
economia de mercado. Além de apontar tinha como verdades absolutas, abrindo-se
dados e literatura relevante sobre o tema a explorar um universo de dúvidas que o
para demonstrar seus argumentos, o docu- conduzam para compreender melhor a
mento não se contenta em descontruir o complexidade do objeto econômico,
discurso dominante, oferecendo também ampliando a possibilidade de debate acerca
propostas e soluções para algumas questões dos rumos do Brasil para as próximas
complexas, como o regime fiscal, a gestão décadas.
da dívida e a estrutura tributária no Brasil.

Para isso, o texto se divide em quatro seções:


a seção 1, intitulada Superávit primário: a
insensatez conduz a política fiscal trata do
papel da política fiscal no crescimento, dos
efeitos perversos da austeridade sobre a
atividade econômica, dos problemas do
I 17

1.

Superávit
primário:
a insensatez
conduz
a política fiscal

A política fiscal tem um papel fundamental tem a importante tarefa de contrapor os


na construção de um modelo de desenvol- movimentos acentuados do ritmo de ativi-
vimento social e distributivo. As formas de dade, a chamada atuação anticíclica. Essa
arrecadação e de gasto do Estado são deter- atuação deve ser guiada pelo objetivo de
minantes para o crescimento econômico, sustentar o crescimento econômico e o
para a distribuição da renda e da riqueza, emprego de forma a permitir o avanço das
para a organização dos serviços sociais e transformações estruturais inerentes ao
para a expansão da infraestrutura urbana processo de desenvolvimento. E, para a
e logística. Há, portanto, muitas dimen- sustentação do crescimento, a orientação
sões que articulam a política fiscal com o do gasto público é estratégica, pois se
desenvolvimento. Nessa seção, discute-se trata de uma fonte autônoma de demanda
em um plano teórico e conceitual como agregada.
o regime fiscal brasileiro é um entrave ao
crescimento econômico e como a opção O pressuposto implícito nesta tarefa é
pela austeridade fiscal é inadequada. que o modo de produção capitalista tem
mecanismos cíclicos endógenos e tende a
No plano macroeconômico a política fiscal gerar crises periódicas. Essas crises são da
18 I
1 . S U P E R Á VI T P R I M Á R I O : A I N S E N S A T E Z C O N D U Z A P O LÍ T I C A F I S CAL I 19

natureza do sistema capitalista, cujas deci- do Governo Vargas) são exemplos clássicos
sões de produção são feitas sob incerteza de utilização do orçamento público como
e a realização da produção pode esbarrar forma de reverter um processo de recessão
na insuficiência de demanda. Esse caráter econômica.
cíclico é amplificado pelo setor financeiro
que acelera a acumulação capitalista por Nesse contexto histórico, a política fiscal
meio do sistema de crédito e do mercado passa a assumir um papel de protagonismo
de capitais, ao mesmo tempo em que gera entre as políticas econômicas e a teoria
bolhas de ativos e o aumento da alavan- econômica passa por uma profunda trans-
cagem privada que, no momento de formação que acompanha a nova realidade
reversão cíclica, ampliam a profundidade histórica. Considerado o pai da moderna
e duração da recessão. macroeconomia, Keynes defendia que os
gastos públicos podem e devem atuar como
“estimuladores” da atividade econômica,
uma vez que sua realização cria uma cadeia
1.1 Política fiscal: de contratações e gastos privados que
acelera e multiplica seus efeitos no tecido
breve perspectiva econômico. Em momentos de queda da
atividade, cabe ao Estado promover
histórica investimentos públicos mais vultosos,
estimulando os empresários a retomar
seus investimentos e criando demanda
O debate acerca do papel da política fiscal para os produtores das mais variadas
nas economias capitalistas avançadas atividades. Além disso, ao promover o
sofreu uma grande reviravolta na década gasto público, o Estado estaria atuando
de 1930, como resultado dos esforços de para atenuar o desemprego, fazendo com
contenção dos efeitos da grande depressão. que as famílias tenham mais renda e, desta
Até então, a política fiscal era utilizada forma, sigam consumindo os produtos dos
somente como forma de dar conta das empresários privados.
poucas funções do Estado, como segu-
rança, justiça e educação básica. Obras de Esta concepção de Keynes nunca foi muito
infraestrutura também eram, a depender de bem recebida pelos defensores do libe-
sua viabilidade financeira, tarefa do Estado, ralismo econômico, que acreditam que a
mas sempre vistas como último recurso ao intervenção do Estado na economia apenas
financiamento privado. agrava os problemas, devendo o mercado
autocorrigir seus “desvios”. Keynes, no
Após a crise de 1930, dada a incapacidade do entanto, apontava para o irrealismo das
liberalismo econômico daquele tempo em concepções liberais e mostrava como
recuperar a atividade e o emprego, alguns algumas ações que individualmente podem
governos passaram a se valer do orçamento parecer racionais e adequadas, quando
público como forma de superar os impactos tomadas pelo conjunto da sociedade, se
mais imediatos da crise. A adoção de frentes mostram completamente negativas.
de emprego (no New Deal estadunidense)
ou de políticas de valorização do preço do Um exemplo clássico deste paradoxo
café através de compras públicas (no início (que ficou conhecido como falácia da
20 I 1. SUP ERÁVIT P RIMÁR IO: A INSENSATEZ C OND U Z A P O LÍ T I C A F I S C A L

composição, ou seja, quando se considera ganhos sociais. Além disso, o gasto público
que o todo possui as mesmas propriedades é receita privada, ou seja, de um ponto de
das partes que o compõe) é a atitude vista contábil, o déficit público representa
dos indivíduos diante do avanço de um aumento da poupança do setor privado, o
processo recessivo: com medo de perderem que auxilia os empresários a superarem os
seus empregos, os indivíduos racional- momentos mais graves da recessão.
mente decidem aumentar sua poupança
e reduzir seu consumo, objetivando criar Nos anos após a segunda guerra mundial
uma “reserva” para os tempos difíceis. O forma-se um consenso em torno do papel
problema é que, uma vez que as famílias e ativo da política fiscal e de seu aspecto
empresários decidem poupar, adentra-se anticíclico nas principais economias capi-
em um cenário onde há uma forte redução talistas. Essa política fiscal anticíclica não
da demanda. Com a queda do consumo, os deve ser entendida como temporária, mas
empresários produzem menos, demitem uma forma permanente atuação sobre a
seus funcionários, que passam a consumir demanda agregada de acordo com as fases
cada vez menos e demandar cada vez do ciclo econômico. Na fase ascendente
menos produtos. No final, cria-se uma do ciclo, com aumento das taxas de cres-
espiral recessiva, onde salários e lucros cimento econômico, é possível reduzir o
caem, frustrando coletivamente a tenta- papel do gasto público (para evitar crises
tiva individual de aumentar a poupança. de superprodução ou bolhas de ativos) por
Ou seja, diante de uma crise, se todos meio de uma política fiscal mais contra-
cortarem gastos, inclusive o Estado, não cionista, onde o Estado passe a fazer uma
há caminho possível para o crescimento. poupança mais elevada enquanto os outros
A menos que, diante da desalavancagem do agentes econômicos seguem gastando e
setor público e do setor privado doméstico, investindo cada vez mais; ao revés, nos
o setor externo aumente sua demanda por momentos de baixa do ciclo econômico,
produtos de exportação e promova uma quando as taxas de crescimento desace-
recuperação por meio destas vendas. A leram e ficam até negativas, cabe ao Estado
solução para um desajuste fiscal em usar seu orçamento para contrastar a
meio a uma recessão é, portanto, esti- tendência recessiva, realizando investi-
mular o crescimento, não cortar gasto. mentos e gastos em um cenário onde famí-
lias e empresários lutam desesperadamente
Nesse cenário, seria adequado encontrar para reduzir seu consumo e aumentar sua
uma fonte de demanda que não dependa poupança.
das decisões individuais, uma vez que tais
decisões buscam racionalmente preservar Apenas em meados da década de 1980, com
o nível de renda de cada pessoa. Ou seja, é a ascensão do neoliberalismo, que a política
preciso encontrar uma fonte de “demanda fiscal volta a assumir um papel secundário,
autônoma”, que funcione na contramão de mero estabilizador da dívida pública e
do ciclo econômico, sendo capaz de do nível de preços. Na onda inaugurada
reverter sua tendência descendente. É pelo “monetarismo”, propagou-se a
exatamente para isso que serve a política ideia de que o gasto público é inútil, no
fiscal, estimular uma fonte de gasto autô- longo prazo, como forma de induzir o
noma que não se orienta pelo critério do crescimento econômico. Neste cenário, a
ganho individual, mas sim por razões de política macroeconômica passou a priorizar
1 . S U P E R Á VI T P R I M Á R I O : A I N S E N S A T E Z C O N D U Z A P O LÍ T I C A F I S CAL I 21

a estabilidade de preços e não mais a manu- distorcer o lado da oferta enquanto o


tenção do emprego e do crescimento. No corte de gastos poderia deprimir o lado
entanto, as crises consecutivas do neoli- da demanda, tendendo a elevar o nível do
beralismo, na década de 1990 e em 2008, desemprego e colaborar para a eclosão de
colocaram em xeque estes dogmas, inclu- crises econômicas.
sive dentro do mainstream econômico. A
política fiscal como componente central Na mesma linha, o ex-secretário de tesouro
e anticíclico de uma estratégia macroeco- americano Larry Summers aponta os efeitos
nômica voltou definitivamente ao debate. negativos e contraproducentes da consoli-
dação fiscal em cenários de crise II. Por fim,
A centralidade da política fiscal tem sido economistas Nobel como Paul Krugman
destacada inclusive no centro do sistema e Joseph Stiglitz têm insistido na necessi-
econômico internacional. Embora o dade de colocar a política fiscal no centro
bloqueio ideológico à atuação anticí- de uma estratégia de retomada do cresci-
clica da política fiscal seja uma reali- mento econômico, apontando os ganhos
dade tanto nos EUA, quanto na Europa, não apenas de emprego, mas também de
onde a maioria conservadora existente nos produtividade. Contudo, a despeito das
parlamentos e mesmo dentro dos órgãos inúmeras evidências contrárias, o discurso
de governo buscou limitar a utilização da austeridade segue dominante no Brasil.
do investimento público como forma de
incentivar a atividade econômica, insti-
tuições tradicionalmente conservadoras
sinalizaram visões opostas. O banco central 1.2 Contração
americano, por exemplo, atribuiu recente-
mente à timidez da política fiscal uma das fiscal expansionista
razões para a lenta e insegura recuperação
norte-americana. Na mesma direção, o FMI e o círculo vicioso
tem questionado a austeridade e insistido
na necessidade de ampliação do investi- da austeridade
mento público como forma de contornar
a crise.
A obsessão alarmista contra qualquer
Em artigo de junho de 2016 intitulado elevação da dívida pública esconde
“Neoliberalism: Oversold?”I, economistas uma agenda política a favor dos grupos
do FMI fizeram duras críticas à austeri- financeiros e internacionais travestida
dade fiscal ao afirmar que essas políticas como uma questão meramente técnica,
se tornam um empecilho ao próprio cres- seja ao defender a retração de bancos
cimento econômico e, consequentemente, públicos, seja ao sugerir redução dos
à arrecadação tributária e assim ao alcance gastos sociais. Além disso, tal obsessão
das metas fiscais. Os autores reconhecem pode gerar seu contrário, ou seja, produzir
que não existe um nível de endividamento a própria elevação do endividamento que
público ótimo que poderia servir como uma se queria evitar. Isto tende a ocorrer parti-
meta de política econômica. Não obstante, cularmente em circunstâncias de desace-
os custos de um ajuste fiscal podem ser leração cíclica da economia e das receitas
grandes. O aumento de tributos poderia tributárias.
22 I 1. SUP ERÁVIT P RIMÁR IO: A INSENSATEZ C OND U Z A P O LÍ T I C A F I S C A L

Para evitar que uma desaceleração cíclica da retração da demanda interna, pública
se transforme em uma recessão, pode-se e privada. Esta exceção é menos provável
lançar mão da possibilidade de financiar o diante de uma crise internacional como a
déficit público com dívidas. Se a recessão que o mundo enfrenta nesta década, com
se instalar, o déficit público aumentará de lenta recuperação da demanda e maior
qualquer maneira por causa da contração competição pelos mercados.
do gasto privado e, portanto, da arrecadação
tributária. Portanto, é melhor aumentar o Ademais, para efeitos da sustentabilidade
déficit público para evitar uma recessão da dívida pública não importa o valor abso-
do que experimentá-lo por causa de luto da mesma, mas seu valor relativo ao
uma recessãoIII. PIB. Se o governo contribuir para instalar
uma recessão ao cortar as receitas do setor
Em meio à recessão, se o governo privado, a contração do PIB aumentará a
procurar evitar o aprofundamento do relação dívida pública/PIB independente-
déficit público aumentando impostos mente do esforço de poupar do governo.
ou cortando suas despesas, ele estará Em outras palavras, a dinâmica da dívida
simplesmente piorando a sua situação pública também depende do efeito do
patrimonial e a do setor privado, ou gasto público no conjunto da economia:
seja, cortará ainda mais as receitas do se o gasto público possuir elevado efeito
setor privado exatamente quando elas multiplicador (ou seja, alta capacidade
já estão caindo porque as empresas, no de promover o crescimento econômico e
agregado, procuram cortar despesas para se propagar pelo restante da economia) e
pagar dívidas. No círculo vicioso da houver uma elevada elasticidade-PIB da
austeridade, cortes do gasto público receita tributária (ou seja, se a arrecadação
induzem à redução do crescimento de impostos crescer mais que o crescimento
que provocam novas quedas da arreca- do PIB em momentos de expansão econô-
dação e exigem novos cortes de gasto mica), então o aumento do gasto público
(Figura1). Esse círculo vicioso só tende a ser pode estimular o crescimento a ponto de
interrompido por decisões deliberadas do promover melhores resultados fiscais. Caso,
governo, a menos que haja ampliação das porém, o governo promova uma retração
exportações líquidas em nível suficiente dos investimentos e gastos públicos com
para compensar a causação cumulativa elevado multiplicador com o objetivo de
melhorar sua situação fiscal, é possível
que o corte de gastos se prove, não apenas
Figura 1: CICLO VICIOSO DA AUSTERIDADE contracionista, mas também negativo para
a dinâmica do endividamento público.

A literatura internacional tem se debruçado


sobre este tema, chegando a resultados
bastante diversos a respeito do tamanho
dos multiplicadores, que podem variar
entre valores próximos da unidade até
valores superiores a 3,5. Auerbach e Gorod-
nichenkoIV demonstram que, além de variar
conforme o tipo de gasto executado pelo
1 . S U P E R Á VI T P R I M Á R I O : A I N S E N S A T E Z C O N D U Z A P O LÍ T I C A F I S CAL I 23

governo, os multiplicadores também da dívida, gastos produzem inflação e mais


variam conforme o ciclo econômico, dívida. Como, mediação entre o ajuste fiscal
podendo alcançar valores superiores a 2 e a expansão econômica, os defensores
em momentos de crise. Da mesma forma, dessa teoria argumentam que o aumento
existem muitas evidências que demons- da confiança dos agentes é responsável pelo
tram que o multiplicador dos investimentos aumento do consumo e do investimento
públicos (em infraestrutura e na área social) privados.
é superior aquele verificado no simples
consumo do governoV . Por fim, também No entanto, essa mediação é muito frágil:
cabe ressaltar que existem evidências de (quase) ninguém acredita mais no que
que a elasticidade da arrecadação pública Paul Krugman chamou de “fada da
no Brasil é superior à unidade, ou seja, que confiança” (confidence fairy). Empre-
a arrecadação de impostos varia mais que sários não investem só porque o governo
o PIB, com a amplitude variando conforme fez ajuste fiscal, mas quando há expec-
fatores como formalização, mudanças regu- tativas de lucro e demanda para o seu
latórias e ciclo econômicoVI. Em momentos produto, da mesma forma as famílias
de crise, também é de se esperar que essa não consomem mais por que o governo
tendência se acentue, tendo em vista que a fez ajuste fiscal, mas quando há aumento
queda da atividade promove o atraso/não de renda disponível e estabilidade no
pagamento de impostos e a redução das emprego. Por isso, ao contrário do previsto
importações (fonte importante de receita pela teoria da contração fiscal expansio-
fiscal), reduzindo a arrecadação em um nista, quando uma política brusca de auste-
ritmo maior que a queda do PIB, conforme ridade fiscal é executada para correr atrás
verificado ao longo de 2015. Nesse cenário, de uma meta fiscal irreal, o resultado é um
o corte dos gastos públicos pode promover impulso contracionista que pode jogar a
exatamente o que buscava evitar: a deterio- economia em recessão e, então, acelerar
ração da situação fiscal do Estado brasileiro, o aumento da relação dívida/PIB, derru-
com um aumento da relação Dívida/PIB. bando a arrecadação tributária mais do que
o corte do gasto público, a depender dos
Contra a justificativa keynesiana para a multiplicadores fiscais e da elasticidade da
política anticíclica, economistas neoclás- arrecadação à variação do PIB. Em várias
sicos recorreram à hipótese de expectativas ocasiões históricas analisadas, o remédio
racionais para criticar o aumento do déficit da austeridade agravou o problema que
em quaisquer circunstâncias. O ataque pretendia resolver, forçando o próprio
neoliberal à política fiscal anticíclica foi FMI e outros ex-expoentes da teoria da
levado a seu grau superior com a hipótese “austeridade fiscal expansionista” a mudar
de “austeridade fiscal expansionista”, que de opiniãoVII.
argumenta que, assim como o aumento
do gasto público poderia levar à retração
mais que proporcional do gasto privado, o
corte do gasto público levaria à ampliação 1.3 O regime
mais que proporcional do gasto privado.
Deste modo, a justificativa para a política fiscal brasileiro:
fiscal anticíclica era virada de ponta-cabeça:
cortes produzem crescimento e redução pró-cíclico,
24 I 1. SUP ERÁVIT P RIMÁR IO: A INSENSATEZ C OND U Z A P O LÍ T I C A F I S C A L

opção é a mais ajustada ao regime fiscal


anti-investimento e vigente, no entanto, é a pior dentre elas –
tanto em termos de crescimento quanto
anti-planejamento distributivos.

Em contextos de baixo crescimento, a


No caso brasileiro, a estrutura fiscal cons- busca pelo cumprimento da meta fiscal
tituída a partir do estabelecimento do por meio de uma política fiscal contra-
chamado “tripé macroeconômico” é cionista retira estímulos à demanda
marcada pela pró-ciclicidade. Como a agregada de uma economia já desaque-
meta fiscal é fixa, desconsiderando as alte- cida e reduz ainda mais o crescimento
rações no ciclo econômico, ela potencializa econômico e a própria arrecadação. Da
as altas e baixas da atividade econômica. mesma forma, o regime fiscal brasileiro
se mostra inapropriado quando o cres-
Por definição, o governo tem controle sobre cimento econômico é maior do que o
a sua decisão de gasto, mas não sobre a sua projetado. Nesse caso, não há desincen-
arrecadação, que depende do crescimento tivo para que o excesso de arrecadação se
econômico. Dessa forma, o estabeleci- materialize na expansão do gasto público.
mento de uma meta anual implica que o Esse gasto adicional sobre uma economia
governo se comprometa com um resultado já aquecida pode gerar um excesso de
fiscal com base em uma expectativa de arre- demanda agregada e pressões adicionais
cadação, considerando um crescimento sobre o nível de preços. Em síntese, no
econômico estimado. Trata-se de acertar regime de metas fiscais anuais, não
um alvo em movimento. somente o resultado fiscal é pró-cíclico,
mas a busca pelo cumprimento da meta
No decorrer do ano, o crescimento pode fiscal ao longo do ano acentua o ciclo
não se realizar conforme projetado e econômico.
resultar em uma arrecadação menor do
que a prevista, comprometendo o resul- Um segundo fator a se destacar é a natu-
tado fiscal. Diante disso, o governo pode: reza “anti-investimento” do regime
a) anunciar que não vai mais cumprir a fiscal atual. Isso ocorre pois a estrutura
meta, o que implica em um forte desgaste de gastos públicos no Brasil é bastante
com o congresso e com a sociedade b) rígida, fazendo com que qualquer corte
não anunciar nada e, por meio de medidas de gastos recaia primordialmente sobre
artificiais como as receitas não recorrentes o investimento público, um dos poucos
(receitas extraordinárias, descontos e gastos passível de contingenciamento.
antecipação de dividendos, contabilidade Sendo assim, toda vez que a economia
criativa etc.) ou postergação de pagamentos adentra um período de baixo crescimento,
(por exemplo, as chamadas “pedaladas”), com queda de receitas e dificuldade de
cumprir contabilmente a meta primária;ou obtenção da rígida meta de superávit
c) tomar medidas adicionais para aumentar primário, o primeiro alvo dos cortes são
os impostos ou reduzir os gastos de forma os investimentos públicos, fazendo com
a garantir a meta fiscal do período. Das três que qualquer tentativa de planejá-los no
opções, as duas primeiras são péssimas longo prazo se transforme em um exercício
para a credibilidade do governo e a última de ficção. Ainda que se procure preservar os
1 . S U P E R Á VI T P R I M Á R I O : A I N S E N S A T E Z C O N D U Z A P O LÍ T I C A F I S CAL I 25

investimentos prioritários em estágio avan- tirando o país da recessão e ao mesmo


çado de execução, sabe-se que nesta lógica o tempo apontando para a melhoria das
início de novos investimentos costuma ser contas públicas no médio/longo prazo.
postergado. Afinal, é mais fácil cortar gastos Essas alternativas se contrapõem à proposta
que vão gerar benefícios futuros do que de regime fiscal do governo Temer, que será
aqueles que trazem benefícios presentes. discutida na seção 3.4 desse documento.

Dessa forma, o regime de superávit Portanto, um novo modelo de gestão fiscal


primário impõe uma lógica curto- precisa entrar em vigor: um modelo de
-prazista à gestão da política fiscal, caráter anticíclico, que viabilize o plane-
desprestigiando os instrumentos de jamento e que priorize o investimento
planejamento governamental. Estas público. Neste sentido, três alternativas
características trazem um elevado grau de são aqui indicadas para alimentar o debate
incerteza ao planejador, que se vê sempre público sobre o tema.
subsumido ao regime de metas primárias,
fazendo com que o país abra mão de seu Em primeiro lugar, é necessário repensar
futuro para garantir uma meta presente, que a forma como é estabelecida a meta fiscal
pode aprofundar a recessão e se mostrar atualmente. Ao centrar fogo em uma meta
incapaz de melhorar a situação das contas fiscal rígida de superávit primário, não
públicas. Na ditadura do superávit se leva em consideração a possibilidade
primário, os fins são atropelados pelos de mudanças abruptas ou cíclicas ines-
meios, e tudo se subordina à necessi- peradas no ritmo de crescimento econô-
dade de cumprir a meta, inclusive o mico, tornando a política fiscal uma força
crescimento, o emprego e o bem estar pró-cíclica. Portanto, é de fundamental
da população. importância mudar a forma de calcular
as metas fiscais, ajustando-as ao ciclo
econômico e uma primeira alternativa
é a utilização de um “resultado fiscal
1.4 Sim, há estrutural”, como observado no Chile e
na Alemanha. Ou seja, no conceito estru-
alternativas: tural de resultado fiscal, busca-se retirar o
elemento cíclico do cálculo da meta fiscal.
propostas para um
Alternativamente, uma forma de apri-
novo regime fiscal morar e flexibilizar o regime fiscal
brasileiro é com a adoção de bandas
fiscais de forma análoga ao que ocorre
A reversão da atual crise econômica brasi- no regime de metas de inflação. Dessa
leira depende de um trabalho coordenado, forma o Estado pode implementar uma
de vários fatores políticos e econômicos política anticíclica dentro dos limites da
que superam em muito o escopo deste banda estabelecida. Ou ainda, um regime de
documento. No entanto, a questão que bandas escalonadas pode institucionalizar
cabe colocar aqui é que existem alterna- uma política anticíclica, ao estabelecer para
tivas ao inadequado regime fiscal brasileiro cada patamar de crescimento uma banda
que auxiliam a retomada do crescimento, fiscal específica. Assim, quanto maior o
26 I 1. SUP ERÁVIT P RIMÁR IO: A INSENSATEZ C OND U Z A P O LÍ T I C A F I S C A L

crescimento econômico, mais alto deverá


ser o resultado fiscal e, quanto menor o
crescimento, menor será o esforço fiscal
exigido.

Em terceiro lugar, é necessário que even-


tuais cortes de gastos públicos preservem
o máximo possível os projetos de investi-
mento público, possibilitando que o plane-
jamento destes investimentos não sejam
diretamente afetados pela mudança de
orientação na política fiscal. Neste sentido,
seria importante retirar do cálculo do
resultado primário estrutural a totalidade
dos investimentos públicos, uma vez que
estas decisões são de longo prazo, trazem
retornos sociais e econômicos e não deve-
riam ser paralisadas por decisões curto-
-prazistas. A retirada dos investimentos
públicos do cálculo do primário forçaria
o debate acerca da composição dos gastos
correntes, revelando as eventuais inefi-
ciências destes e centrando fogo nos seus
efeitos dinâmicos.

O princípio da chamada “regra de ouro”


estabelece que os investimentos públicos
proporcionam uma acumulação de ativos
que geram renda e bem estar futuro,
tornando esses gastos em algo intertempo-
ralmente sustentável. Retirar todo inves-
timento público do cálculo do superávit
primário (assim como o gasto com juros
é excluído desse indicador) pode ser uma
alternativa interessante para o regime
fiscal brasileiro, pois incentiva o uso
do investimento público como vetor
de desenvolvimento e abre espaço para
atuação anticíclica do gasto público. 
I 27

2.

Dívida pública
e a gestão
macroeconômica

2.1 A dívida mesma que aponta o mercado como a


esfera virtuosa da sociedade e o Estado
pública não é como a esfera ineficiente. De fato, a
dura aversão a qualquer aumento de
pecado nem dívida pública está na essência da visão
neoliberal, na qual a austeridade cons-
irresponsabilidade titui o remédio amargo e doloroso, mas
necessário para expurgar os excessos
cometidos pelo Estado.
No Brasil, a excessiva preocupação com
o patamar da dívida é carregada por Nesse sentido, essa excessiva preocupação
preconceitos ideológicos e por uma visão com o patamar da dívida é frequentemente
estreita sobre a relação entre Estado, moeda carregada por preconceitos ideológicos e
estatal e dívida pública. A ideia de que por uma visão estreita sobre a relação entre
o aumento da dívida pública é neces- Estado, moeda estatal e dívida pública. Uma
sariamente negativo repousa sobre dívida elevada pode custar muito caro, mas
uma visão moralista da economia, a um Estado soberano não quebra por conta
28 I 2. DÍVIDA PÚBLICA E A GESTÃO MACROECONÔMICA
2. DÍVIDA PÚBLICA E A GESTÃO MACROECONÔMICA I 29

de dívidas na sua própria moeda, e por isso a independentemente do fato de as despesas


natureza da dívida pública se diferencia subs- não-financeiras serem maiores do que
tancialmente da gestão de dívidas privadas, e receitas não-financeiras. Como se sabe,
o governo não incorre nas mesmas restrições enquanto o balanço ou resultado (supe-
para gasto e endividamento. O paralelo com rávit ou déficit) primário exclui o gasto
a economia da dona de casa não serve (“serviço”) oriundo da dívida pública, o
para as finanças públicas. resultado nominal das contas públicas
inclui.
A dívida pública é da natureza do regime
capitalista e deve ser enxergada sem precon- Além de financiar gastos financeiros e
ceitos ideológicos. Trata-se daquilo que o não-financeiros do setor público, títulos
setor público (no Brasil, União, estados públicos também são usados para realização
e municípios) deve na forma de dívida da política monetária, através das operações
contratual ( junto a credores privados, agên- de mercado aberto, voltadas a diminuir
cias governamentais ou organizações multi- (ou aumentar) liquidez no mercado finan-
laterais) ou dívida mobiliária, ou seja, títulos ceiro com a venda (ou recompra) de títulos
públicos. Como instituição, a dívida pública públicos e, desse modo, influenciar a taxa
existe legitimamente em todos os países de juros. Ou seja, além de financiar o gasto
do mundo, pois nem sempre é possível ou público, a dívida pública também tem a
desejável que dispêndios públicos sejam função de operar a política monetária. Neste
financiados com impostos ou com emissão sentido, a dívida pública é um ativo privado
monetária pura e simples. Neste caso, o dos mais importantes, pois é nela que os
gasto público é financiado com dívidas. investidores se direcionam em momentos
É comum que dívidas financiem o inves- de incerteza, servindo como âncora e porto
timento público, que muitas vezes exige seguro da riqueza privada.
dispêndio que excede disponibilidades do
orçamento anual, mas que gera estímulo
ou cria condições para atividades privadas
que vão gerar impostos ao longo do tempo. 2.2 Não há
Do ponto de vista da gestão macroeconô- um número mágico
mica, a possibilidade de financiar gasto
público com dívida pública é importante, para a dívida
seja para manter operando os serviços
sociais, seja para realizar políticas pública
contracíclicas e evitar a contração de
gastos privados e, portanto, impedir uma
recessão que pode prejudicar a própria arre- Em 2011, durante o debate parlamentar
cadação de impostos e aumentar a própria sobre o aumento do limite da dívida pública
dívida pública (em relação ao PIB). nos EUA, um artigo de Carmen Reinhart
& Kenneth Rogoff foi muito influente ao
A dívida pode aumentar também por apresentar dados para argumentar que, a
conta dos juros cobrados sobre a dívida partir do patamar de 90% do PIB, a dívida
anterior, independentemente de défi- pública levaria à queda significativa do
cits primários do setor público, ou seja, crescimento econômico. Pouco tempo
30 I 2. DÍVIDA PÚBLICA E A GESTÃO MACROECONÔMICA

depois, o argumento foi desconstruído (248%). Nesse contexto, a dívida brasi-


mostrando, primeiro, que os exercícios leira é tão grande? Qual é o parâmetro
econométricos tinham especificações e para definição de grande? Na verdade,
procedimentos equivocados IX. Segundo, os economistas não se arriscam a definir
com grande probabilidade, o sentido de parâmetro ótimo para dívida pública,
causalidade era inverso, ou seja, o baixo simplesmente porque ele não existe.
crescimento ou a recessão é que levariam
a um aumento do endividamento público, Mais do que procurar um patamar espe-
seja por desacelerarem o ritmo do cresci- cífico, a análise relevante é a da trajetória
mento da arrecadação tributária, seja por da dívida pública. Considearando esse
ativarem gatilhos automáticos de gasto aspecto, conforme dados do FMI, a dívida
público, como o seguro desemprego ou pública brasileira cresceu nos últimos anos,
certos dispêndios fixados por lei indepen- passando de 64% do PIB em 2007 para 69%
dentemente do comportamento da arreca- do PIB em 2015, mas isso não é uma espe-
dação e da postura de política econômica cificidade brasileira, outros países também
(mais ou menos “austera”) dos governos. contabilizaram aumento de suas dívidas,
o que mostra que os mesmos reagiram aos
De fato, não há um número mágico a efeitos da crise internacional de 2008: como
partir do qual a relação dívida pública/ mostra a figura 2, a Argentina passou de 45%
PIB torna-se problemática. Alguns países para 54% do PIB, a França de 64% para 97% a
tem dívida menor do que a brasileira, Espanha de 36% para 99%. Esses aumentos
por exemplo Argentina (56% do PIB em de dívida não necessariamente implicam
2015), ou Chile (14%), mas outros países em descontrole fiscal. Há, no entanto, duas
tem dívida substancialmente maior como circunstâncias em que o aumento das dívidas
Espanha (99%), EUA (106%) e Japão tende a gerar instabilidade econômica:

Figura 2: DÍVIDA BRUTA DE PAÍSES SELECIONADOS


Fonte: FMI, Elaboração própria.

248

183
178

103 106
97 99

69 68 62
64 64 64
56 54
44
38 36
34
4
2. DÍVIDA PÚBLICA E A GESTÃO MACROECONÔMICA I 31

1) Quando a taxa de juros sobre a dívida cambiais) reduziu seu endividamento


é muito elevada, aumentando o custo externo, tornando o setor público um
dos serviços da dívida e, eventualmente, credor externo líquido.
gerando uma trajetória explosiva da dívida.
O custo fiscal de uma política prolongada Além disso, parte importante da dívida
de juros altos não apenas desloca um externa (ou seja, ativos financeiros de
volume significativo do orçamento propriedade estrangeira) é denominada
corrente para o pagamento de juros, em Reais, o que diminui a vulnerabilidade
mas pode gerar uma trajetória insus- do país a desvalorizações cambiais. Como
tentável, o que em certas circunstâncias as reservas são concentradas em dólares,
pode provocar inflação e desvalorização uma desvalorização do real perante o dólar
cambial. O Japão, por exemplo, tem dívida reduz a dívida pública líquida (a dívida
alta que não representa um problema bruta menos os ativos do setor público,
iminente porque podem refinanciar como as reservas cambiais) e gera ganhos
(“rolar”) a dívida a taxas de juros muito patrimoniais que o Banco Central transfere
baixas, às vezes até negativas. semestralmente para o Tesouro Nacional.
Em 2015, esses ganhos patrimoniais resul-
2) Quando é denominada, vendida e tantes da depreciação cambial (de 47% em
paga em moeda que não é emitida pelo termos nominais em relação ao dólar, ou
Estado endividado. Isso gera fragilidade de 28% em termos efetivos reais) somaram
financeira, pois o país pode ter dificuldade R$ 260 bilhões, algo bem maior do que o
de obter moeda externa ou só obtê-la a prejuízo do BC com operações de seguro
preços caros. Curiosamente, como a Itália cambial oferecido a agentes privados (na
não controla o Banco Central que emite a forma de swaps cambiais), de R$ 90 bilhões.
moeda em que sua dívida é denominada, ou
seja, o Euro, o país sofre um tipo diferente de
vulnerabilidade “externa” (como, em dife-
rentes graus, Espanha, Portugal e Grécia),
pois está sujeito a variações de juros sobre
sua dívida que não é capaz de controlar por 2.3 Dívida líquida:
meio de operações do Banco Central.
melhoras apesar
No caso brasileiro, veremos que a política
monetária é um grande determinante da do fardo dos juros
variação da evolução da dívida pública
interna. No entanto, a dívida e a vulnera-
bilidade externas diminuíram muito desde O comportamento da dívida líquida não
2002. Neste ano, 67,4% da dívida referiam-se depende exclusivamente dos resultados
à dívida interna e 32,6% à dívida externa. Em primário alvejados pela meta fiscal. Sua
2014, a dívida interna total passou a 95,1% evolução é também impactada pelo paga-
e a dívida externa a 4,9%. Essa última caiu mento de juros, pela variação cambial e pela
pois, a partir de 2006, o país acumulou venda ou compra de ativos públicosX. Por
reservas em dólar em excesso aos compro- exemplo, depois da forte redução da dívida
missos de curto prazo, ao mesmo tempo trazida pelo Plano Collor, o alto nível dos
em que a União (proprietária das reservas superávits primários até 1995 e as receitas
32 I 2. DÍVIDA PÚBLICA E A GESTÃO MACROECONÔMICA

com privatizações conteriam o cresci- defesa da política cambial depois do Plano


mento da dívida interna (mesmo com o Real contou, primeiro, com o aumento do
reconhecimento de passivos contingentes diferencial de juros para atrair capitais inte-
ou “esqueletos”), caso o custo fiscal da ressados em títulos de curto prazo denomi-
política monetária não fosse sobredeter- nados na moeda brasileira. É por isso que o
minante da reprodução ampliada da dívida. custo fiscal da política de juros altos mais
Logo, mesmo no período entre 1991 e 1998, que dobrou entre 1993 e 1998, a despeito do
a dívida pública cresceu por causa da capi- efeito favorável sobre a sustentabilidade da
talização do pequeno passivo existente em dívida provocado pelos superávits primá-
1991 com base em juros internacionalmente rios e pelas privatizações. Em segundo
elevadíssimos (de acordo com dados do lugar, o Tesouro Nacional passou a lançar
Banco Central, ver Quadro 1). títulos públicos com cláusulas de variação
cambial, de maneira a assegurar rentabili-
Às vezes se alega que o reconhecimento e a dade em dólar atraente para portadores
assunção de dívidas (passivos contingentes de títulos denominados em Reais ou para
ou “esqueletos”) foram responsáveis fornecer seguro cambial para empresas
pela elevação da dívida pública durante endividadas externamente, dado o risco de
o governo Fernando Henrique Cardoso. depreciação da moeda brasileira. Isso trans-
Cálculos de Pêgo Filho & Pinheiro XI, feria o risco da depreciação cambial para
contudo, mostram que isto equivale a 5% o Tesouro Nacional, o que teria impacto
da variação da dívida entre janeiro de 1996 significativo sobre a trajetória da dívida a
e junho de 2003, e representa apenas 40% partir de janeiro de 1999, quando uma forte
das receitas obtidas com superávits primá- crise cambial determinou a depreciação
rios e privatizações. do Real.

O que determina a trajetória explosiva Entre 1999 e 2002, de fato, embora a média
da dívida no período FHC são os juros dos resultados primários superasse 3%
muito elevados e o lançamento de do PIB, a dívida aumentou por causa da
títulos indexados em dólar para evitar preservação de um patamar elevado de taxa
a crise da âncora cambial. Como se sabe, a de juros (a despeito da mudança do regime

Quadro 1: VARIÁVEIS FISCAIS E DÍVIDA DO SETOR PÚBLICO CONSOLIDADO


– 1991-1998 (% PIB)
Fonte: Banco Central. Elaboração própria.
2. DÍVIDA PÚBLICA E A GESTÃO MACROECONÔMICA I 33

cambial) e do impacto da desvalorização Já entre 2003 e 2013 a redução da relação


cambial sobre os títulos públicos indexados dívida líquida/PIB total foi expressiva,
em dólar (ver Quadro 2). de 54,3% para 30,6% segundo o Banco
Central, muito embora as taxas de juros

Quadro 2: DETERMINANTES DA VARIAÇÃO DA DÍVIDA PÚBLICA LÍQUIDA


(% PIB, 1999-2002)
Fonte: Banco Central. Elaboração própria.

Quadro 3: DETERMINANTES DA VARIAÇÃO DA DÍVIDA PÚBLICA LÍQUIDA


(% PIB, 1999-2002)
Fonte: Banco Central. Elaboração própria.
34 I 2. DÍVIDA PÚBLICA E A GESTÃO MACROECONÔMICA

continuassem elevadíssimas interna- da dívida líquida não havia um cenário


cionalmente (quadro 3). Nesse período, de tragédia fiscal, desenhado pelos
a redução se explica pela permanência de economistas de mercado. Havia, sim,
superávits primários e pelo aumento da condições financeiras para realizar
taxa de crescimento do PIB nominal, mas uma política anticíclica que ampliasse
poderia ser muito maior caso a política o investimento público e o gasto social
monetária não permanecesse extrema- para impedir que a desaceleração cíclica
mente conservadora. se transformasse na maior recessão da
história recente. Contudo, a ofensiva
É verdade que a taxa de juros assumiu pela austeridade fiscal negligenciou a
tendência de queda, mas manteve o patamar dívida líquida como critério de avaliação
de maior taxa do mundo na média do da “solvência” do Estado e privilegiou a
período. Sem embargo, apesar da tendência dívida bruta.
de redução da relação dívida líquida/PIB, a
carga de juros da dívida pública continuou,
antes da crise financeira de 2008, na média
de 7% do PIB entre 2003 e 2007, mais do que 2.4 Dívida Bruta
o dobro dos superávits primários .
e o nó da gestão
A dívida externa, por sua vez, caiu e, a
partir de 2006 o país passou a realizar macroeconômica
uma política de acumulação de reservas
cambiais em excesso aos compromissos
de curto prazo tornando-se credor Alguns dos principais indicadores fiscais
líquido. Por conta disso, quando em se deterioraram muito rapidamente no
2008 a crise mundial determinou forte Brasil desde 2013. Isso vem reforçando a
depreciação da moeda brasileira, a visão do senso-comum, de que o governo
acumulação de reservas cambiais propi- gasta muito e que essa é a principal causa
ciou significativos ganhos patrimoniais do crescente endividamento. Será?
relacionados à dívida externa líquida
(dívida bruta diminuída pelas reservas O tema não é simples. A trajetória da
cambiais), como voltaria a ocorrer no dívida pública responde a uma inte-
período de depreciação cambial iniciado ração muito complexa entre as diversas
no segundo semestre de 2011. políticas macroeconômicas: cambial,
creditícia, monetária e fiscal. Por isso, é
Entre 2011 e 2014, a depreciação cambial importante avaliar o quanto da deterioração
continuou contribuindo para reduzir fiscal está relacionada ao resultado primário
a dívida líquida. O superávit primário – isto é, ao descompasso entre as receitas e
aumentou em 2011 (em relação a 2009 e despesas primárias –, que capta aspectos
2010), mas sua contribuição diminuiu em mais diretos da política fiscal propriamente
2012 e 2013 junto com a desaceleração do dita, e o quanto se deve a questões mais
PIB, até o déficit primário verificado em gerais da gestão macroeconômica.
2014, como mostra o quadro 3.
Antes, vale analisar brevemente a situação
Em suma, no final de 2014, pelo critério fiscal brasileira em termos comparativos
2. DÍVIDA PÚBLICA E A GESTÃO MACROECONÔMICA I 35

para identificar idiossincrasias e também acima de 1% do PIB) e a deterioração nos


aqueles aspectos que se assemelham às resultados nominais está sendo puxada
tendências prevalecentes na maior parte pelas já mencionadas quedas nos resultados
dos países que também estão passando primários. Já no Brasil ocorre um fenômeno
por uma deterioração fiscal na atual fase de muito peculiar: a conta de juros saltou de
grande recessão da economia mundial. O 4,7% do PIB em 2013 para 8,5% do PIB em
que se pode concluir a partir dessa análise? 2015 e responde pela maior parte da dete-
rioração no resultado nominal.
1) A dívida líquida no Brasil alcançou
36,2% do PIB em 2015, que é um valor pouco Tais constatações nos levam a pelo menos
superior à média mundial (33,9% do PIB). dois questionamentos sobre as idiossincra-
Porém, a dívida bruta de 66,5% do PIB é sias brasileiras: o que explica a diferença
elevada em termos comparativos e se dete- entre um nível mediano de endividamento
riorou nos últimos anos, aproximando o líquido e a elevada dívida bruta? Como
Brasil dos 27% países mais endividados no é possível um governo com um nível
mundo. Há uma tendência de aumento das mediano de endividamento líquido vir a
dívidas brutas no mundo como um todo ter uma das maiores contas de juros entre
cuja média passou de 46,5% em 2011 para os países do planeta?
54,3% do PIB em 2015, mas isso ocorreu com
maior velocidade no Brasil após 2013. Para responder ao menos parcialmente
estas questões, será necessário apresentar
2) O Brasil não dista muito das alguns conceitos e mecanismos de inte-
tendências mundiais em termos de resul- ração das políticas macroeconômicas, o que
tado primário. O país ocupa uma posição procuraremos fazer de maneira didática. A
mediana nas comparações internacionais, dívida bruta é o total das dívidas do governo,
apesar da conversão do superávit primário principalmente os títulos públicos emitidos
de 1,7% do PIB em 2013 para déficit de pelo Tesouro Nacional. A dívida líquida
1,9% do PIB em 2015. No resto do mundo corresponde à diferença entre a dívida bruta
também está prevalecendo uma deterio- e os ativos que o governo possui, como
ração nos resultados primários: em média, as reservas internacionais e os créditos
as projeções do FMI apontam para aumento junto às instituições financeiras, ou seja,
dos déficits de 0,7% do PIB em 2013 para o dinheiro que o BNDES, o BB e a Caixa
2,3% em 2015. devem ao Tesouro.

3) O cenário é completamente distinto Quando o governo vai ao mercado de


quando analisamos o resultado nominal, câmbio e troca reais por dólares que
que inclui a conta de juros. O déficit passarão a compor suas reservas ou
nominal no Brasil mais que triplicou de quando empresta recursos ao BNDES a
3,0% do PIB em 2013 para 10,3% do PIB em juros subsidiados para financiar os inves-
2015, quase o triplo da média mundial de timentos privados, como fez amplamente
3,7% do PIB. nos últimos anos, ele aumenta a quanti-
dade de moeda ou liquidez da economia.
4) No resto do mundo, o volume de Pela maneira como opera nossa política
juros está relativamente estabilizado em monetária, o Banco Central vende títulos
um baixo patamar (em média, um pouco públicos do Tesouro Nacional em troca
36 I 2. DÍVIDA PÚBLICA E A GESTÃO MACROECONÔMICA

dessa moeda adicional para enxugar a BNDES e não necessariamente equacionar


liquidez. Isto porque a política de combate os dilemas relacionados à debilidade de
à inflação no Brasil está muito focada no mercado financeiro de longo prazo no
controle da liquidez via compra e venda de Brasil. Negligencia-se a presença de falhas
títulos públicos de curtíssimo prazo pelo estruturais ( juros recorrentemente altos,
Banco Central nas chamadas operações falta de fontes privadas de longo prazo em
compromissadas. Outro caminho seria o moeda local etc.) que exigem que o BNDES
próprio Tesouro Nacional se antecipar e financie não somente projetos de grandes
emitir títulos da dívida pública de melhor externalidades, como infraestrutura e
perfil do que os títulos de curtíssimo inovação, mas também a ampliação geral
prazo que o Banco Central colocaria no de capacidade produtiva. Sem dúvida, o
mercado. De todo modo, o resultado ataque ideológico ao BNDES não poderia
da decisão do governo de ampliar suas vir em momento pior, em que a recessão
reservas internacionais ou capitalizar o exige que o banco sirva de instrumento de
banco público terá como contrapartida estabilização do ciclo de crédito.
o aumento da dívida bruta e dos ativos
simultaneamente. Daí a explicação: o Apesar disso, não podemos negligen-
governo nos últimos anos reduziu ciar os elevados custos dessa política
substancialmente sua dívida líquida, de acumulação de ativos. O país passou a
mas simultaneamente aumentou a dispor de um volume expressivo de reservas
dívida bruta para acumular ativos. internacionais, que alcançou um montante
superior a R$ 1.400 bilhões em 2015 (ou
Essa estratégia possui méritos como, cerca de US$ 360 bilhões) e é remunerado
por exemplo, a redução da vulnera- pelas baixíssimas taxas de juros vigentes no
bilidade externa do setor público, ao mercado internacional, além de cerca de R$
converter sua posição para credor em 500 bilhões de créditos junto ao BNDES,
moeda estrangeira, como já discutido. que paga ao Tesouro algo próximo a 5% ao
Da mesma forma, a política de expansão ano. Sua contrapartida é o aumento equiva-
dos empréstimos do BNDES, em 2009, lente da dívida pública que é captada a um
foi essencial para a ação contracíclica custo médio muito mais alto, ao redor de
que assegurou a recuperação rápida da 13%, e que pouco se modificou nos últimos
economia brasileira em relação à maior anos.
crise da história do capitalismo mundial
desde a década de 1930. A estratégia de acumulação simultânea
de ativos e passivos, com grande dife-
Há que se alertar que o BNDES que tem sido rencial de rentabilidade entre eles,
alvo de enorme confusão ideológica ao se explica boa parte da elevada conta de
tratar das contas fiscais. É nesse contexto juros. As estimativas do custo de opor-
que se inscrevem determinadas propostas tunidade, que consideram os diferenciais
– por exemplo, a antecipação de R$ 100 entre as remunerações dos ativos e de uma
bilhões dos empréstimos que o Tesouro carteira equivalente com a composição
concedeu ao banco e a PEC que pretende média dos títulos da dívida pública, são
retirar a vinculação constitucional de da ordem de 2,7% do PIB em 2015 para
recursos do FAT ao BNDES – com o objetivo manutenção das reservas internacionais e
de reduzir sobremaneira ou mesmo fechar o 0,7% do PIB no caso dos empréstimos ao
2. DÍVIDA PÚBLICA E A GESTÃO MACROECONÔMICA I 37

BNDESXII (Figura 3). àquela do BC. Quando essas posições


somam montantes em torno de US$ 100
Mas ainda estamos longe explicar o custo bilhões, o resultado desses swaps pode
de 8,5% do PIB em juros registrados em impor perdas grandes para um lado ou para
2015 e que reflete as perdas especialmente o outroXIV.
altas que o Banco Central teve no ano
passado com as chamadas operações de Após as eleições de 2014, a nova equipe
swap cambial, que são utilizadas para tentar econômica sinalizou ao mercado uma
controlar a cotação do dólar. mudança na política cambial, que se tornaria
mais flexível. A taxa de câmbio seguiria,
O termo swap significa permuta e, simpli- portanto, o rumo apontado pelo mercado.
ficadamente, o que o Banco Central faz No fundo, o Banco Central sinalizou que
são contratos com os agentes do mercado o mercado poderia apostar contra a sua
em que se compromete a pagar a variação posição e que ele não interviria de forma
da taxa de câmbio e em troca recebe uma incisiva usando o seu poder de market
taxa de juros pós-fixada que é próxima da maker. E foi o que aconteceu, o dólar
Selic. Os swaps cambiais são instrumentos saiu de cerca de R$ 2,60 em dezembro
importantes, mas a condução da política de 2014 para R$ 3,90 em dezembro do
cambial no Brasil foi questionável nos ano seguinte, uma desvalorização de
últimos anos. Quando o Banco Central 50% que resultou em enormes ganhos
vende ou compra dólar futuro por meio de ao mercado e enormes perdas ao Banco
swaps, ele faz muito mais do que “oferecer Central. Assim, o saldo das operações de
hedge para os agentes privados”, como swaps cambiais gerou prejuízos de R$ 89,7
repete o discurso oficial. Essas operações bilhões ou 1,5% do PIB que estão contabi-
permitem aos agentes se posicionarem lizados na conta de juros.
de forma especulativa na posição oposta

Figura 3: – DÉFICIT NOMINAL DO SETOR PÚBLICO. (% DO PIB)


Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do BCB. Nota: Inclui estimativas dos custos de oportunidade
da manutenção das reservas e dos créditos BNDES, além dos passivos junto a bancos e fundos públicos
contraídos em anos anteriores e quitados em 2015.
38 I 2. DÍVIDA PÚBLICA E A GESTÃO MACROECONÔMICA

Vale notar que, para 2015, somando-se Por outro lado, as consequências das altas
os custos de oportunidade da manu- taxas de juros são drásticas, como o elevado
tenção das reservas internacionais e dos custo médio da dívida mobiliária interna.
créditos aos BNDES com o resultado das Uma simulação simples indica que uma
operações de swaps cambiais, chegamos redução de apenas 3 pontos percentuais da
a 4,9% do PIB (Figura 3). É claro que esta taxa de juros geraria uma economia para os
análise é muito simples. A rigor, a avaliação cofres públicos da ordem de 1,9% do PIB na
da política cambial deveria considerar conta de juros.
benefícios indiretos da menor volatilidade
cambial e da redução da fragilidade externa Em suma, é preciso desatar o nó da
da economia brasileira. Assim como os gestão macroeconômica se o verdadeiro
retornos indiretos dos empréstimos ao objetivo for equacionar os problemas
BNDES em termos de dividendos pagos fiscais. A ideia que se disseminou no
ao Tesouro e maior crescimento econô- Brasil de que ao governo só compete
mico . Porém é útil para ilustrar a ordem controlar os gastos primários, não
de grandeza dos valores. Chegamos a mais havendo nenhum limite para os custos
da metade dos 8,5% do PIB da conta de fiscais das demais políticas macroeco-
juros e do déficit nominal de 10,4% do PIB, nômicas, deve ser revista sob pena de
e quase não falamos explicitamente do continuarmos “enxugando gelo”, como
resultado primário ou da política fiscal criticou anos atrás uma certa ex-ministra
propriamente dita. do governo Lula ao se referir à proposta de
ajuste fiscal de um ex-ministro da Fazenda.
Mesmo os 3,6% do PIB restantes de juros Mesmo porque desatar o nó da gestão
também guardam correlação com as polí- macroeconômica envolve, entre outros
ticas macroeconômicas mais gerais porque desafios, remover alguns dos obstáculos
são influenciados pelas altas taxas de juros estruturais ao crescimento da economia
praticadas no mercado interno. Ou seja, a brasileira, como os juros altos e a precarie-
política de altos juros impõe um enorme dade dos mecanismos de financiamento
custo fiscal ao conjunto de políticas do investimento de longo prazo. Sem cres-
econômicas (fiscal, cambial, monetária, cimento fica muito mais difícil promover
industrial). qualquer ajuste fiscal, como argumenta-
remos mais adiante
São diversas as razões para os elevados
níveis de taxas de juros no Brasil. Estas
passam pela estrutura oligopolizada
do mercado financeiro e uma cultura
curto prazista que se formou pelo menos
desde o período de hiperinflação; até o
modus operandi da política monetária,
que utiliza a taxa Selic como principal (e
quiçá o único) instrumento de controle
da inflação. Há de se ressaltar que a taxa
de juros tem um forte viés político, sendo
tanto maior quanto mais refém forem as
autoridades monetárias do setor financeiro.
I 39

3.

Gasto público
e o perigoso
caminho da
austeridade

3.1 O gasto público Em oposição a esse diagnóstico, a seção


que segue reconstrói a história do gasto
e a “crise fiscal” público dos últimos 16 anos a partir das
séries históricas de receitas e despesas do
governo central divulgadas pelo Tesouro.
O diagnóstico convencional da crise pela Esse trabalho mostra o seguinte:
qual passa o país, do ponto de vista econô-
mico e fiscal, traduz-se simplificadamente 1) A despesa do governo vem crescendo
na seguinte narrativa: os governos do PT a um ritmo elevado e incrivelmente
expandiram demais os gastos públicos, estável (acima do PIB) há mais tempo,
principalmente depois da crise interna- antes mesmo da flexibilização fiscal posta
cional, encobriram o déficit público cres- em marcha a partir de 2006, inclusive nos
cente por meio da chamada “contabilidade períodos de ajuste fiscal. As taxas médias
criativa” e das “pedaladas fiscais”, e esse de crescimento real do gasto dos últimos
tipo de política fiscal expansionista e quatro governos, conforme vemos no
nada transparente destruiu a confiança do quadro 4, foram: FHC II (3,9%), Lula I
mercado e mergulhou o país na estagflação. (5,2%), Lula II (5,5%) e Dilma I (3,8%) – já
40 I 3. G ASTO P ÚBLICO E O PER IG OSO C AMINHO D A A U S T E R I D A D E

considerados nesses cálculos os efeitos formalização e dos direitos consagrados


das chamadas pedaladas fiscais (despesas na Constituição e, adicionalmente, pela
pagas por intermédio de bancos e fundos política de valorização do salário mínimo.
públicos) e os subsídios do BNDES que
não transitam pelo orçamento (Quadro 4). 4) A despeito de gastos elevados, o
governo conseguiu manter resultados
2) O principal fator por trás do cresci- fiscais positivos na última década e meia
mento das despesas na esfera federal pelo aumento da carga tributária (1999-
não são os gastos com pessoal, como 2005) ou pelo crescimento mais acelerado
muitos leigos acreditam. Estes crescem do PIB (2006-2011). Contudo, desde 2012,
sistematicamente abaixo do PIB e tiveram com a combinação de baixas taxas de
sua menor taxa real de expansão justamente crescimento econômico e desonera-
no governo Dilma I (-0,3%), ao contrário ções tributárias, os resultados fiscais
do que ocorre, por exemplo, nos estados pioraram significativamente, mesmo
e municípios, onde o gasto com salários e que a taxa de expansão das despesas tenha
aposentadorias de servidores tem crescido inclusive caído um pouco.
a 5,5% ao ano, independentemente da colo-
ração partidária do governante. Isso significa que o gasto não foi elevado
substancialmente nos últimos anos? Não,
3) O motor do gasto federal tem sido não significa. Contudo, as evidências apon-
os benefícios sociais (aposentadorias e tadas servem para relativizar a impressão
pensões do INSS, benefícios a idosos e defi- que se disseminou, mesmo entre os especia-
cientes, seguro-desemprego, bolsa família, listas em finanças públicas, de que o último
etc), que hoje consomem metade do gasto governo teria sido particularmente irres-
da União (mais de R$ 500 bilhões) e crescem ponsável com a expansão do gasto público.
a taxas sistematicamente superiores ao
PIB pelo menos desde 1999, por influência Como argumentaremos adiante, a piora
principal de fatores demográficos, da justa fiscal não passa tanto por quanto o

Quadro 4: TAXAS REAL DE CRESCIMENTO DAS RECEITAS E DESPESAS


PRIMÁRIAS DO GOVERNO CENTRAL, POR PERÍODO DE GOVERNO, CONVER-
TIDAS PELO DEFLATOR IMPLÍCITO DO PIB.
Elaboração própria. Nota: As despesas de 2015 com a quitação dos passivos junto a bancos e fundos
públicos contraídos foram distribuídas de acordo com seu período de competência.
3 . GA S T O P Ú BLI C O E O P E R I GO S O C A M I N H O D A A U S T E R I DADE I 41

governo gastou, mas como gastou e consigo um conjunto de questões sobre seu
também como desonerou. E pela inca- impacto redistributivo e sua importância
pacidade dessa política de evitar a desace- enquanto instrumento de promoção social
leração da taxa de crescimento econômico e ampliação do bem-estar da população
que cai de 4,6% ao ano entre 2007 e 2010 mais carente do país. Apenas as transfe-
para 2,2% entre 2011 e 2014. O efeito da rências sociais diretas, que passaram de
desaceleração econômica sobre os indi- R$ 112,2 bilhões para R$ 343,3 bilhões entre
cadores fiscais é conhecido: as receitas 2002 e 2014, foram responsáveis por quase
caem mais acentuadamente do que a metade da redução da desigualdade de
produção, enquanto as despesas e seu renda (mensurada pelo índice de Gini que
ritmo de crescimento são mais rígidos. diminuiu de 0,594 para 0,523 no mesmo
Resultando em menor receita em proporção período) e um terço da melhoria no indi-
do PIB e maior despesa em proporção do cador de pobreza, quando 6,8 milhões de
PIB. É basicamente isso que explica, como pessoas deixaram a situação de pobreza.
salientamos, porque um superávit primário Os efeitos positivos desses gastos sobre
superior a 2% do PIB em 2011 se deteriorou a sociedade, neste sentido, se mostram
para déficit de 0,57% do PIB em 2014 e ainda relevantes.
maior em 2015.
Aqui cabe destacar não somente a
ampliação de programas de transferências
de renda, mas principalmente a política
3.2 Gasto Social de valorização do salário mínimo (SM). A
vinculação entre o valor do SM e o piso da
em um país maior parte dos benefícios sociais (previ-
denciários, seguro-desemprego etc.),
desigual estabelecida na Constituição Federal, faz
com que a política de valorização acarrete
ganhos distributivos. Além dos impactos no
Argumenta-se que grande parte do dese- mercado de trabalho diretamente sobre o
quilíbrio fiscal advém do crescimento dos piso dos rendimentos do segmento formal e
gastos sociais. De fato, houve um cresci- indiretamente por meio de seu papel sinali-
mento expressivo desse gasto entre 2002 zador, inclusive no mercado informal, e pelo
e 2015, como mostra o recente estudo da custo de oportunidade de um trabalhador
STN sobre o tema XVI. O acréscimo dos permanecer na informalidade. Benefí-
gastos sociais federais, no período de mais cios que não podem ser negligenciados,
de uma década, foi da ordem de 3 pontos ainda que seus custos e limites possam ser
percentuais do PIB, concentrado nas áreas discutidos.
de educação e cultura (0,74 p.p. do PIB),
assistência social (0,78 p.p. do PIB), e previ- O déficit primário de 2016 tem sido apresen-
dência social (0,97 p.p. do PIB), esta última tado como um mal necessário e irrecorrível
com o maior patamar no total de gastos frente à herança do governo Dilma, que
sociais (cerca de 50%). Os dispêndios com deve ser corrigido em 2017. Como o maior
saúde, por sua vez, mantiveram-se estáveis. componente de dispêndio são os benefí-
cios previdenciários e como cresceram,
O aumento dos gastos sociais no Brasil traz ainda que em menor medida, os gastos com
42 I 3. G ASTO P ÚBLICO E O PER IG OSO C AMINHO D A A U S T E R I D A D E

educação e saúde a solução “natural” passa distributivo, como é a previdência.


a ser a contenção destas despesas. O atual
projeto de congelamento em termos reais Em suma, uma visão mais acurada dos
dos gastos primários caminha nesta direção, gastos sociais mostra que tampouco
como discutiremos com maior profundi- nesta área houve expansão desenfreada,
dade na seção 3.4 deste documento. Por ora, sobretudo frente às demandas sociais
vale advertir que, assim que o PIB voltar a brasileiras, e que seus benefícios em
crescer, uma vez adotada esta política, a termos distributivos e na ampliação do
proporção destes gastos no produto cairá bem-estar da população mais carente
gradualmente. Estaremos diante de uma do país não podem e não devem ser
situação em que o país, ao se desenvolver, relegados a um plano secundário. Numa
terá gastos com saúde e educação decres- comparação internacional, o crescimento
centes no tempo, o que não parece compa- dos gastos sociais no Brasil inclusive foi
tível com as atuais e enormes demandas menor do que outros paísesXVII nos últimos
sociais nestas áreas e que tendem a ampliar anos. O déficit habitacional, a ausência
devido ao envelhecimento da população. de saneamento básico em quase 30%
dos domicílios e a precária qualidade da
Como estes são bens públicos fornecidos saúde e da educação tornam evidentes
à população, tal redução resulta em queda a ausência de um Estado de Bem-Estar
dos benefícios indiretos aos trabalhadores. Social no Brasil. Certamente é possível
Excluídos de tais serviços, esses teriam discutir excessos e tornar o gasto mais
que buscá-los no setor privado (tendo que eficiente, mas as possibilidades de
reduzir outros gastos menos essenciais) ou fontes de financiamento discutidas
simplesmente passar a viver com um padrão neste documento evidenciam que este
mais baixo de bem estar. é um debate que deve envolver toda a
sociedade brasileira.
Se o corte em saúde e educação tem um
caráter indireto, as propostas de desin-
dexação da previdência têm um impacto
direto sobre as contas públicas e salário real 3.3 Antecedentes
dos trabalhadores, bem como dos rendi-
mentos de camadas desprotegidas da popu- do austericídio:
lação. Como mais de 50% dos gastos da
previdência são benefícios pagos no valor o equívoco das
de um salário mínimo e sabendo que esta
despesa perfaz algo em torno de 8% do PIB, desonerações
o não reajuste dos benefícios – seja do piso
segundo o mínimo seja do próprio mínimo
pela inflação passada, já representaria uma Quais fatores estariam por detrás da
economia substancial para os cofres do desaceleração econômica a partir de
governo federal. É óbvio que não é desejável 2011? Sem dúvida não podemos negli-
que o ajuste ocorra exclusivamente sobre genciar a conjunção de fatores internos e
essa fração da população, e mais especifi- externos, como a perda de dinamismo do
camente sobre um componente da renda boom doméstico de consumo de crédito,
com grande importância do ponto de vista ou os desdobramentos da crise financeira
3 . GA S T O P Ú BLI C O E O P E R I GO S O C A M I N H O D A A U S T E R I DADE I 43

internacional. A conjuntura desfavorável período pós-Plano Real. Não obstante, há


levou à revisão de projetos de investi- que se ressalvar que o quadriênio 2011-
mentos em escala global e à intensificação 2014 é aquele no qual a economia mundial
da concorrência pelos poucos mercados menos cresceu.
domésticos que permaneceram mais
dinâmicos, o que acentuou as restrições Ainda assim, o argumento da crise inter-
externas ao crescimento que haviam sido nacional não explica todo o diferencial de
relaxadas durante o boom do superciclo desempenho entre os quadriênios 2007-
das commodities. 2010 e 2011-2014. Nos dois períodos, a
economia mundial cresceu, em média, a
Se observarmos o crescimento econômico taxas muito próximas, ao mesmo tempo
do Brasil das últimas duas décadas, como em que a taxa de crescimento da economia
apresentado no quadro 5, verificamos que, brasileira caiu pela metade. O Brasil atra-
exceto no quadriênio 2007-2010, o país vessou relativamente bem a pior fase da
sempre cresceu abaixo da média mundial, crise internacional em 2008 e 2009 e,
em uma posição que varia das 25% a 32% na contramão das tendências mundiais,
piores taxas entre cerca de 180 países com manteve dinamismo econômico ao longo
informações disponíveis no banco de de quase todo o quadriênio 2007-2010,
dados do FMI. A economia brasileira se galgando várias posições no ranking de
notabilizou por uma performance medíocre crescimento dos países. Esse quadro foi
em termos comparativos por quase todo totalmente revertido no último quadriênio

Quadro 5: RANKING DE CRESCIMENTO DO PIB. TAXAS AO ANO DE CRESCI-


MENTO REAL EM MOEDA NACIONAL.
Fonte: Elaboração própria com dados do World Economic Outlook Database do FMI.06/11/2015.
44 I 3. G ASTO P ÚBLICO E O PER IG OSO C AMINHO D A A U S T E R I D A D E

e caminha para ser ainda pior no atual. privado, como os do Minha Casa Minha
Vida e os do BNDES, os subsídios à tarifa
As questões que se colocam nesse contexto de energia elétrica, além das desone-
são: por que o governo não conseguiu rações tributárias (R$ 25 bilhões anuais
evitar que a economia desacelerasse apenas com a desoneração da folha). A
no quadriênio 2011-2014 depois do inflexão no mix da política fiscal tem duas
desempenho extraordinário durante razões: uma pragmática e outra estraté-
2007-2010? A causa principal teria sido gica. A pragmática está relacionada a uma
o aprofundamento do ciclo de expansão percepção de que a execução de investi-
fiscal ou a mal chamada “nova matriz mentos é mais lenta na esfera pública do
macroeconômica heterodoxa”, como que na privada, e em 2011 tivemos o escân-
argumentam alguns economistas? dalo do DNIT (Departamento Nacional
de Infraestrutura de Transportes), que
Nossa perspectiva é que nem as condições agravou essa situação. A estratégica diz
externas nem o expansionismo fiscal em respeito a uma visão de que, oferecendo
si explicam a crise econômica e fiscal em estímulos suficientes ao setor privado, via
sua plenitude. Como vimos, por um lado desonerações ou subsídios, alavanca-se
o cenário externo já era adverso desde a o investimento e o crescimento. Ou seja,
crise de 2008. Por outro lado, o ritmo de a mudança na política fiscal envolveu
expansão do gasto não se alterou muito uma constatação e uma aposta: diante da
nos dois quadriênios, como apresentamos dificuldade de continuar expandindo os
anteriormente no quadro 4. investimentos públicos, o governo acre-
ditou que promoveria o crescimento
Contudo, houve uma mudança crucial na econômico via incentivos aos investi-
condução da política fiscal a partir de 2011. mentos privados – a chamada agenda
Primeiramente, ocorre uma forte contração FIESP, a real matriz macroeconômica
fiscal em 2011 com aumento da meta de que vigorou com apoio do empresariado
superávit, desaceleração do consumo até começar a fazer água.
público e queda do investimento público
na ordem de 12%. Esse ajuste, concomitante Diante da desaceleração do crescimento,
com políticas contracionistas de juros e por que o governo privilegiou as desone-
macroprudenciais, contribuiu para a forte rações fiscais em detrimento da expansão
desaceleração da economia brasileira que do investimento público e outros gastos?
estagnou entre o terceiro trimestre de 2011 Um autor que ajuda nessa reflexão é o
e o segundo de 2012XVIII . economista Michal Kalecki. Em um artigo
seminal de 1943, intitulado “Os aspectos
Em seguida, o padrão de expansão fiscal Políticos do Pleno Emprego”, ele aponta
foi alterado. Enquanto no quadriênio que, nos períodos recessivos, quando
2007-2010 o espaço fiscal foi canalizado se reduz a oposição a um déficit público
prioritariamente para investimentos pelo bloco de interesses do “mercado” e
públicos, que cresceram a taxas reais seus teóricos, também se consolida uma
de 24% ao ano, no quadriênio 2011-2014 visão de que a composição do déficit deve
a taxa de investimento parou de crescer ocorrer preferencialmente por estímulos
e, em compensação, o governo elevou aos investimentos privados. Entretanto,
significativamente os subsídios ao setor Kalecki argumenta que este caminho não é
3 . GA S T O P Ú BLI C O E O P E R I GO S O C A M I N H O D A A U S T E R I DADE I 45

o mais adequado para reativar a economia, discurso – e as políticas – que pertencem


quando comparado com a alternativa de à ortodoxia econômica.
acelerar investimentos públicos e estimular
o consumo das massas. E ainda, possui uma
dificuldade prática porque a reação dos
empresários será incerta. Se a recessão é 3.3 Austeridade:
profunda, os empresários podem formar
uma visão muito pessimista sobre o futuro uma escolha
e as medidas tenderão a ter apenas um
pequeno efeito ou nenhum efeito sobre o equivocada
investimento.

Nesse mesmo texto, o autor retrata que se Como resposta ao cenário de franca
forem efetuadas tentativas de manutenção deterioração fiscal provocado pela queda
de um alto nível de emprego, haverá uma no crescimento e pelas desonerações,
forte oposição conservadora que induzirá o segundo governo Dilma tem início
o governo a retornar à política de corte de adotando a estratégia econômica dos
gastos. Nas palavras de Kalecki: candidatos derrotados no pleito de 2014,
ou seja, realizando um duro ajuste fiscal
[…] mas se forem feitas tentativas e monetário, na esperança de que o setor
de aplicar esse método a fim de privado retomasse a confiança e voltasse
manter o alto nível de emprego a investir. A ideia era a de que a contração
alcançado na subsequente pros- fiscal seria expansionista, passando apenas
peridade, é provável que haverá uma forte por um curto período recessivo necessário
oposição por parte dos ‘líderes empresa- para recuperar a confiança nas políticas de
riais’. Como já foi assinalado, um pleno Estado. Nesta agenda, a recuperação das
emprego duradouro não é absolutamente contas públicas é ponto central, valendo-se
do gosto deles. Nessa situação é provável a de cortes orçamentários e da redução do
formação de um poderoso bloco de grandes papel dos bancos públicos.
empresários e rentistas, que encontraria
mais de um economista para declarar que Mas ao contrário do que muitos econo-
a situação é claramente enferma. A pressão mistas afirmam, o ajuste econômico
de todas essas forças, e em particular das proposto pelo governo vai muito além do
grandes empresas, muito provavelmente “ajuste fiscal”, que aparece como tema
induziria o Governo a retornar central do debate público atual. Joaquim
à política ortodoxa de corte do Levy foi o símbolo da implementação
déficit orçamentário. da austeridade econômica no país que
consiste em uma política deliberada de
Publicado em 1943, a inquietude principal ajuste da economia por meio de redução
do texto permanece atual: o pleno emprego de salários e gastos públicos. Trata-se
não convém ao grande capital. Infelizmente, de reequilibrar os preços relativos, ou get
aprendemos muito pouco com as lições the prices right, como costumam dizer os
do passado, e nossos líderes de esquerda economistas ortodoxos. Seria necessário
muitas vezes contribuem para a dissemi- reajustar de uma só vez os preços admi-
nação do senso-comum ao adotarem o nistrados defasados, liberalizar a gestão da
46 I 3. G ASTO P ÚBLICO E O PER IG OSO C AMINHO D A A U S T E R I D A D E

taxa de câmbio, retirar os incentivos fiscais O desemprego e a inflação disparam sem


setoriais, eliminar o crédito subsidiado recuperar a confiança dos agentes e o
e recolocar a política monetária em seu crescimento econômico. O “ajuste fiscal”
“ponto de equilíbrio”. Vale lembrar que o fracassou, como muitos haviam previsto, e
critério da “eficiência” para o acerto dos faz-se necessário elaborar uma nova estra-
preços relativos não é neutro, a despeito tégia de desenvolvimento para tirar o Brasil
do fato de que muitos dos defensores da da crise que se encontra.
austeridade se abstêm de tecer considera-
ções distributivas. Nesse sentido, o equacionamento dos
problemas fiscais não depende apenas do
Para eles, tal conjunto de “ajustes” estabi- resultado primário e do corte de gastos e
lizaria a economia, permitindo a recupe- a piora dos resultados primários se deve
ração da confiança do setor privado, que em grande parte à profunda desacele-
seria o motor de uma nova fase de cres- ração econômica. Em 2015, por exemplo,
cimento econômico. Por isso mesmo, as apesar de todo o esforço do governo
mudanças foram rapidamente levadas a para reduzir as despesas, que chegou
cabo, promovendo ao mesmo tempo um a queda real de 2,9% do gasto primário
enorme impacto inflacionário e uma grande federal, as receitas despencaram e o
retração da atividade econômica, sob a déficit ficou ainda maior, evidenciando
promessa de que estes efeitos seriam apenas o caráter contraproducente do ajuste: o
passageiros. Como mostra a figura 4, essa austericídio. Ou seja, o corte de gasto em
virada para a austeridade foi um remédio conjunturas como a de 2015 não é garantia
equivocado para os problemas pelos de melhores indicadores fiscais, com
quais a economia brasileira passava. efeito, as contas públicas pioraram com a

Figura 4: DESEMPREGO E INFLAÇÃO NO BRASIL.


Fonte: : IBGE, Banco Central. Elaboração própria
3 . GA S T O P Ú BLI C O E O P E R I GO S O C A M I N H O D A A U S T E R I DADE I 47

interrupção de investimentos públicos e apresenta uma proposta que, muito mais do


contingenciamento de verbas para saúde que uma reforma fiscal, representa a impo-
e educação. sição de outro projeto de país, incompatível
com a Constituição de 1988.
Em 2015, ainda, os investimentos
públicos sofreram queda de 41,4% no O Plano do Governo Temer de estabe-
nível federal, o gasto de custeio caiu 5,3%, lecer um “Novo Regime Fiscal”, por meio
e o governo não logrou a melhoria das de uma proposta de emenda constitu-
expectativas dos agentes econômicos cional (PEC 241) que cria por 20 anos
que justificaria esse ajuste com vistas a um teto para crescimento das despesas
retomar o crescimento. Pelo contrário, a públicas vinculado à inflação, vem sendo
economia real só piorou e as expectativas advogado por muitos ideólogos e analistas
se deterioraram. Assim, austeridade fiscal de mercado como um avanço institucional
manifestada e praticada foi um fiasco. e uma medida necessária para reequilibrar
as contas públicas. Esses mesmos analistas,
de maneira acrítica, chegam a comparar
a iniciativa brasileira aos mecanismos
3.4 O plano Temer de gestão fiscal que outras nações mais
desenvolvidas estão adotando. O próprio
de Novo Regime documento do governo justificando ao
Congresso o “Novo Regime Fiscal” (apeli-
Fiscal: a proposta dado de nominalismo) diz que o teto
será anticíclico por controlar a despesa
de Estado mínino enquanto permite que o resultado fiscal
oscile com o ciclo econômico.
e austeridade
Lamentavelmente, estas e outras afir-
permanente mações sobre o “Novo Regime Fiscal”
são falaciosas, conforme procuraremos
esclarecer aqui. Em primeiro lugar, há que
A gestão da política fiscal protagoni- se esclarecer a enorme diferença entre as
zada pelo governo Temer lançou sinais regras fiscais que os países mais avançados
contraditórios com relação à continui- passaram a aplicar na última década e o
dade das políticas de austeridade. Para “Novo Regime Fiscal”. A União Europeia,
o curto prazo definiu-se o “keynesia- por exemplo, utiliza metas fiscais estrutu-
nismo fisiológico” e para o longo prazo, rais ajustadas ao ciclo econômico e cláu-
a “austeridade permanente”. sulas de escape, que permitem que, em
situações de grave crise econômica como
O afrouxamento da meta fiscal para 2016 e a que vivemos, as restrições fiscais sejam
2017 evidencia por um lado o pragmatismo relaxadas temporariamente.
econômico e, por outro lado, hipocrisia
dos que argumentam pela austeridade e, Complementarmente, desde 2011 os
simultaneamente, passam a defender um membros da UE estabeleceram um
déficit primário recorde no novo governo. limite para o crescimento da despesa
Já como medida estrutural, a gestão Temer associado à taxa de crescimento de
48 I 3. G ASTO P ÚBLICO E O PER IG OSO C AMINHO D A A U S T E R I D A D E

longo prazo do PIB. Assim, se as estima- Se aplicada literalmente, a regra brasi-


tivas indicam que a economia crescerá a leira reduziria a despesa primária do
uma média de 2% ao ano, o gasto não pode governo federal de cerca de 20% do PIB
crescer mais do que isso para garantir que, em 2016 para algo em torno de 16% do
no médio prazo, seja possível reduzir PIB até 2026 ou mesmo 12% em 2026 (ver
o déficit. Na maioria desses países já figura 5)XIX. Na prática, ao estabelecer uma
existe uma estrutura consolidada de política de redução permanente do gasto se
prestação de serviços públicos, dife- está perenizando uma política fiscal contra-
rentemente do Brasil onde há maiores cionista e que não tem nada de “anticíclica”.
carências sociais e precariedades na Diferente do que diz a exposição de motivos
infraestrutura (urbana, econômica e da PEC, a regra é acíclica, pois o gasto será
social). Sendo mais razoável que tais países determinado de forma independente do
desenvolvidos se preocupem em manter o ciclo econômico.
tamanho de seus Estados estabilizados em
relação à economia, ao fixarem uma taxa de Além disso, a nova regra não prevê
crescimento das despesas públicas igual à nenhum mecanismo para lidar com
taxa de crescimento do PIB no médio prazo. crises econômicas ou outros choques.
Ao contrário, tende a engessar a política
Esse regime fiscal europeu é totalmente dife- fiscal por duas décadas e contribuir zero
rente do “nominalismo tupiniquim”, no qual para o crescimento da demanda agre-
é estabelecido que o gasto agregado deve ter gada, puxando para baixo o crescimento
crescimento real nulo, independentemente do PIB.
de quanto cresça o PIB ou a população.
As falácias e perigos embutidos não param

Figura 5: SIMULAÇÃO DAS DESPESAS PÚBLICAS SOB O NOVO REGIME FISCAL


2015-2016
Fonte: Elaboração própria
3 . GA S T O P Ú BLI C O E O P E R I GO S O C A M I N H O D A A U S T E R I DADE I 49

por aqui. O documento do governo O que sim surpreende é uma visão no


ao justificar ao Congresso o “Novo mínimo simplista sobre as práticas políticas
Regime Fiscal”, por exemplo, afirma no nosso país, as quais os integrantes do
que a proposta de “nominalismo” é uma Governo Temer conhecem muito bem.
medida democrática. Isto porque o papel Dada a maneira como, infelizmente, opera
do Poder Executivo seria exclusivamente o nossa estrutura política, o processo deci-
de estabelecer um teto para o gasto global. sório é muitas vezes capturado em favor de
Cabendo à sociedade, por meio de seus grupos mais organizados e de maior poder
representantes no parlamento, alocar os econômico e em detrimento da parcela
recursos entre os diversos programas. Esse mais expressiva da nossa população, que
mesmo princípio democrático serve como são os principais beneficiários dos sistemas
justificativa para o “Novo Regime Fiscal” públicos de saúde e educação. É exata-
contemplar uma mudança na fórmula mente por admitir que os interesses dessa
de cálculo dos pisos de gasto em saúde população mais carente estão subrepre-
e educação, sob o pressuposto de que sentados no dia a dia da nossa política que
as regras constitucionais anteriores que os nossos constituintes preocuparam-se
indexam esses pisos a percentuais da receita em estabelecer regras de gastos mínimos
(ou do PIB) geram ineficiência na aplicação de saúde e educação que evitassem perda
dos recursos públicos. Propõem-se, como de relevância dessas despesas ao longo
alternativa, que os valores reais dos pisos do tempo. Garantir que os gastos com
de gastos em saúde e educação fiquem saúde e educação aumentem conforme o
congelados por duas décadas (apenas país cresce é um dever cívico que o novo
sendo reajustados pela inflação), mas isso, regime fiscal menospreza.
segundo a proposta não impede a socie-
dade, por meio de seus representantes, de Diante desse quadro, não é possível prever
definir despesa mais elevada para saúde e com certeza o futuro dos gastos de saúde
educação, desde que consistentes com o e educação caso, como propõe o governo,
limite total de gastos. os mínimos fiquem congelados em valores
reais (e sejam reajustados apenas pela
Ora, na verdade o que o novo regime inflação). Ainda que o mais crível seja uma
propõe fazer é retirar da sociedade e do convergência gradual para esses mínimos
parlamento a prerrogativa de moldar em prejuízo da população mais carente do
o tamanho do orçamento público, que país. De acordo com um exercício bastante
passará a ser definido por uma variável simplificado de simulação, isso pode signi-
econômica (a taxa de inflação). Impõe-se ficar uma queda dos atuais 4% do PIB gastos
uma política de redução do gasto pelo em saúde e educação para algo próximo de
período de duas décadas e a participação 3% do PIB em 10 anos (ver a figura 5).
democrática no processo orçamentário
fica reduzida a meramente delimitar Além disso, é preciso refletir sobre a
quais gastos e programas serão mais viabilidade prática do teto de gasto
ou menos contidos. Não causa surpresa global, considerando que existem
que tamanha confusão sobre os princípios despesas que inevitavelmente cres-
democráticos venha de um Poder Executivo cerão mais do que a inflação, como é o
que não passou pelo crivo das urnas. caso dos benefícios previdenciários. As
projeções mais otimistas para a reforma
50 I 3. G ASTO P ÚBLICO E O PER IG OSO C AMINHO D A A U S T E R I D A D E

da Previdência indicam que o gasto com tamanho do orçamento público e, de forma


aposentadorias e pensões (40% da despesa antidemocrática, impõe um novo pacto
primária) permanecerá no mínimo estável social - sem legitimidade social - em torno
em proporção do PIB por uma década e de um Estado mínimo.
meia e depois voltará a crescer. Já as proje-
ções mais realistas apontam para cresci-
mento das despesas previdenciárias de 0,8%
a 3% do PIB na próxima década em resposta
a pressões demográficas.

Sob tal cenário, para que o teto global


da despesa seja cumprido, os demais
gastos – os quais compreendem desde
benefícios sociais como a Bolsa Família,
salário de servidores, gastos com ciência
e tecnologia, forças armadas, legislativo e
judiciário, investimentos em infraestru-
tura, etc. – precisariam encolher quase
pela metade em 10 anos (de 8% para 4%
do PIB ou até 3% do PIB em 20 anos),
o que é pouco crível porque compro-
meteria o funcionamento da máquina
pública e inviabilizaria o financiamento
de funções estatais básicas. Essa meta não
parece ser realista, o que leva a crer que o
teto, na prática, é inviável e será flexibilizado.

Por fim, chama a atenção a falta de preocu-


pação em limitar gastos que não aparecem
no orçamento primário, como os elevados
montantes de juros – diante do simplório (e
equivocado) argumento dos defensores da
proposta de que estes cairiam automatica-
mente sob o novo regime fiscal.

Portanto, o novo regime fiscal é desastroso


pois, (i) do ponto de vista macroeconô-
mico, representa um entrave ao cresci-
mento econômico e a atuação anticíclica
do Estado, (ii) do ponto de vista social
significa a destruição da constituição de
1988 e um arroxo nos serviços sociais
especialmente educação e saúde e (iii) do
ponto de vista político esse retira o poder
do congresso e da sociedade de moldar o
I 51

4.

Reforma tributária
progressiva:
uma nova agenda

O Brasil é um dos países em desenvol- 34,1% do PIB nos países da OCDE, mas, ao
vimento com uma das maiores cargas contrário de lá, onde os impostos sobre a
tributárias do mundo, que alcançou 32,7% renda e a propriedade são a principal fonte
do PIB em 2013, fato este que é frequente- de financiamento estatal (em média, 13,4%
mente lembrado por aqueles que criticam do PIB) e a tributação sobre bens e serviços
o tamanho do Estado brasileiro. Contudo, é inferior a um terço da carga (11,2% do
mais preocupante do que o nível da carga PIB), aqui no Brasil quase metade da carga
tributária brasileira, que pode ser justifi- advém de impostos sobre bens e serviços
cado àluz do estado de bem-estar social (15,4% do PIB) e os impostos sobre a renda
que viemos construindo sob inspiração e a propriedade não chegam a um quarto do
das social-democracias europeias, nossa total (8,1% do PIB).
estrutura de tributação é extremamente
perversa com os mais pobres e a classe Além de arrecadarmos pouco sobre a
média e benevolente com os mais ricos. renda e a propriedade, o fazemos de
modo pouco progressivo e também
Coincidentemente, nossa carga tributária ineficiente, por exemplo, tributando
está apenas um pouco abaixo da média de muito o lucro gerado pela empresa e
52 I 4 . REFORMA TRIBUTÁR IA PR OG R ESSIV A: UMA N O VA A GE N D A

isentando os dividendos distribuídos às mais precisam.


pessoas físicas, sócias ou acionistas, justa-
mente quando poderíamos diferenciá-las Além dessa orientação mais geral, as
de acordo com a capacidade contributiva autoridades tributárias brasileiras foram
de cada uma, como ocorre com a tributação muito influenciadas por duas propostas
dos salários. bastante defendidas pelos liberais ameri-
canos durante os governos Reagan e Bush.
Por outro lado, nossa tributação sobre bens e Esses defendiam a redução das alíquotas
serviços é uma verdadeira colcha de retalhos, máximas aplicadas ao imposto de renda das
com tributos nas três esferas de governo, pessoas físicas e a isenção dos rendimentos
alguns se sobrepondo aos outros, outros derivados de dividendos distribuídos, com
incidindo de forma cumulativa na cadeia o argumento de que a poupança e o inves-
produtiva, com custos que em geral são repas- timento privados aumentariam, gerando
sados aos preços e que oneram as rendas da maior crescimento do PIB e das receitas
população de modo regressivo, pesando mais tributárias. No Brasil, essas e outras medidas
sobre o bolso de quem consome tudo que de incentivo aos ditos “investidores” foram
ganha, ou seja, os mais pobres. adotadas nas décadas de 1980 e 1990, num
movimento que o ex-secretário da Receita
Esse sistema singular é reflexo tanto do Federal Everardo Maciel denominou de
federalismo brasileiro e da dualidade “antecipação histórica”.
tributária (impostos e contribuições
sobrepostos), quanto de algumas reco- O Brasil foi um dos primeiros países e
mendações de política que o mainstream até hoje um dos poucos que isentou e
econômico propagou nas décadas de 80 continua isentando integralmente de
e 90 e que foram incorporadas de forma imposto de renda os dividendos distri-
bastante acrítica ou peculiar pelo Brasil. buídos a acionistas, tal como a pequena
Entre esses mantras, destaca-se a visão de Estônia. México e Grécia, que também
que as políticas tributárias deveriam se aplicavam a isenção, voltaram atrás há
eximir de objetivos redistributivos (por alguns anos, enquanto a maioria dos
exemplo, fazer com que os ricos paguem países desenvolvidos (incluindo os
mais impostos do que os pobres, via tribu- Estados Unidos) mantém, com alguns
tação progressiva da renda ou seletiva dos ajustes e modificações, o sistema clás-
bens de consumo), uma vez que medidas sico de tributação do lucro, que prevê a
com essa finalidade poderiam resultar em cobrança em duas etapas, na empresa e
ineficiências econômicas por distorcer os depois na pessoa física.
preços relativos e desestimular os indi-
víduos mais capazes e empreendedores. Ao mesmo tempo em que isentava divi-
Nesse caso, os impostos deveriam ser os dendos, mantinha a alíquota máxima do
mais neutros possíveis, as autoridades imposto de renda da pessoa física (27,5%)
tributárias deveriam se preocupar apenas em um patamar baixo para os padrões inter-
em arrecadar, e o problema distributivo nacionais e permitia uma ampla gama de
deveria ser resolvido pelo lado do gasto deduções no pagamento de imposto de
público, por intermédio do sistema de renda pelas empresas e pessoas físicas, o
proteção social, como as políticas de trans- governo brasileiro passou a lançar mão de
ferência de renda focalizadas naqueles que um conjunto de instrumentos tributários
4 . R E F O R M A T R I BU T Á R I A P R O GR E S S I VA : U M A N O VA A G EN DA I 53

com fins arrecadatórios, como a criação ampliar a progressividade ou mesmo


da Contribuição Provisória sobre Movi- corrigir as graves distorções ensejadas
mentações Financeiras (CPMF) em 1997 pela atual legislação.
e o aumento da Contribuição provisória
para o finaciamento da Seguridade Social Felizmente, a grande repercussão da obra
(Cofins) em 1999. do economista francês Thomas Piketty,
juntamente com a publicização de dados
Neste período de medidas que ampliavam a das declarações de imposto de renda das
carga tributária e a complexidade de nosso pessoas físicas no Brasil, contribuiu para
sistema, iniciou-se o debate nacional em que os temas da progressividade tributária
torno da necessidade de uma reforma e sua relação com a desigualdade social
tributária simplificadora, que passaria pela tenham voltado a pautar o debate público.
fusão de vários tributos (ICMS, ISS, IPI e Contudo, estranhamente nenhuma das
PIS/Cofins) e pela criação de um Imposto medidas anunciadas recentemente pelo
sobre o Valor Adicionado (IVA), a exemplo governo afastado ou pelo governo interino
das economias mais desenvolvidas. Diante tocam no problema principal da tributação
da resistência de estados e municípios a da renda no Brasil, que é a isenção de divi-
perder competência tributária, a proposta dendos distribuídos a acionistas, ponto este
de reforma foi sendo desidratada de seu que passaremos a explicar didaticamente
ímpeto inicial (o IVA) e fatiada em três a seguir.
vetores: a União tentando modernizar a
sistemática de cobrança do PIS/Cofins
(introduzindo um mecanismo de crédito
parcial de insumos para algumas atividades 4.1 A tributação
econômicas), os municípios introduzindo
uma alíquota mínima e ampliando a lista de dos lucros e das
serviços sujeita à tributação de seu imposto,
o ISS, e os estados buscando um acordo até rendas no Brasil
hoje inconcluso para terminar com a guerra
fiscal e corrigir as distorções econômicas e no mundo
geradas pelo ICMS.

Dado o conflito distributivo entre as esferas O sistema clássico de tributação dos lucros e
da federação e entre os setores da economia dividendos que se disseminou no século XX
atingidos por essas mudanças, os avanços se baseia no que se convencionou chamar
concretizados após uma década e meia “dupla tributação”, ou seja, a tributação em
de debates foram mínimos e persistimos duas etapas, do lucro na pessoa jurídica
tendo um sistema tributário incrivelmente (empresa) e, posteriormente, havendo
ineficiente do ponto de vista econômico. Ao distribuição de dividendos aos acionistas,
mesmo tempo, a agenda de reformas da também na pessoa física. Embora o lucro
tributação sobre a renda e o patrimônio, original seja um só, há nesse procedi-
permaneceu totalmente embargada nos mento uma distinção entre o que é renda
últimos 20 anos, não tendo o governo da empresa e o que é renda pessoal e que,
federal apresentado qualquer proposta como tal, pode idealmente ser submetida
de reforma mais substancial que visasse ao princípio da progressividade, ou seja, a
54 I 4 . REFORMA TRIBUTÁR IA PR OG R ESSIV A: UMA N O VA A GE N D A

alíquotas crescentes conforme a capaci- sistema de tributação era simples e, ao


dade contributiva do beneficiário. menos, capturava parte da renda das
pessoas mais ricas, que vivem de dividendos
Esse modelo é o que prevalece ainda hoje de suas empresas. A isenção propiciou um
na maioria dos países desenvolvidos e aumento de renda considerável para essas
em desenvolvimento, embora algumas famílias, contribuindo para consolidar um
nações tenham introduzido mecanismos quadro de elevadíssima e estável concen-
de compensação na pessoa física de parte tração de renda no topo da distribuição.
do imposto pago na pessoa jurídica. Em
média, os 34 países da OCDE tributam De acordo com os dados das declarações
o lucro em 25% na pessoa jurídica e em de imposto de renda, as 70 mil pessoas
mais 24% na pessoa física. No Brasil, a mais ricas do Brasil, representando meio
tributação do lucro varia com o porte milésimo da população adulta, concen-
da empresa e pode a chegar a 34% entre tram 8,2% do total da renda das famílias,
imposto de renda (IRPJ) e contribuição índice este que não encontra paralelo
social (CSLL), mas os dividendos distri- entre as economias que dispõem de
buídos aos acionistas das empresas informações semelhantes. Os dados
(grandes ou pequenos) estão comple- fiscais também revelam que esse seleto
tamente isentos desde 1996. grupo ganhou em média R$ 4,2 milhões
em 2013 e pagou apenas 6,7% de imposto
Antes disso, o país tributava os dividendos de renda sobre esse montante, consi-
de forma linear e exclusiva na fonte, com derando os tributos recolhidos sobre os
uma alíquota de 15%, independentemente rendimentos financeiros e outras rendas
do seu volume. Embora imperfeito, esse tributáveis – carga tributária inferior àquela

Figura 6: PROPORÇÃO DE RENDIMENTOS ISENTOS, TRIBUTÁVEIS E IMPOSTO


DEVIDO POR FAIXAS DE SALÁRIOS MÍNIMOS – BRASIL - 2013
Fonte: Receita Federal do Brasil, elaboração própria.

Salários Mínimos
4 . R E F O R M A T R I BU T Á R I A P R O GR E S S I VA : U M A N O VA A G EN DA I 55

paga pela maioria dos assalariados de classe à da recriação da CPMF e com efeitos
média alta do país. A figura 6 retrata essa menos deletérios sobre a atividade
distorção. econômica e a inflação XX.

Outra peculiaridade relevante no Brasil Em contrapartida, a proposta de se


que reduz o potencial arrecadatório e aumentar alíquotas do imposto de
redistributivo do imposto de renda são os renda das pessoas físicas sem revogar
elevados volumes de subsídios na forma de a isenção de dividendos não propor-
deduções aos gastos privados em saúde e ciona uma redistribuição de renda tão
educação. Tais deduções no IRPF chegaram efetiva. Por um motivo óbvio: as alíquotas
a R$ 69,35 bilhões em 2013 ou 60% do progressivas da tabela do IRPF só atingem
imposto devido total. os “rendimentos tributáveis”, o que não
inclui atualmente os dividendos, nem os
Além de injusta, a assimetria entre o rendimentos de aplicações financeiras que
tratamento tributário dispensado a divi- são as principais fontes de renda dos mais
dendos e salários tem sido responsável ricos. Então, qualquer proposta de reforma
por um fenômeno conhecido por “pejoti- do imposto de renda que não passe pela
zação”, que é a constituição de empresas tributação dos dividendos não será tão
por profissionais liberais, artistas e efetiva nos objetivos de contribuir com
atletas com o objetivo de pagar menos uma maior justiça fiscal e também gerar
impostos do que como autônomos ou receitas extras para o governo.
assalariados. Isso é possível em virtude
de regimes tributários especiais aplicados a É claro que o êxito seria maior se a tribu-
micro e pequenas empresas, que reduzem a tação dos dividendos fosse complemen-
tributação total a no máximo 16% do fatura- tada por medidas adicionais de tributação
mento e, conjugado com a isenção de divi- progressiva sobre a renda e o patrimônio,
dendos, garante uma expressiva vantagem como a revisão das alíquotas do IRPF e
na comparação com a alíquota máxima do imposto sobre herança (ITCMD) ou
do imposto de renda das pessoas físicas mesmo a instituição do imposto sobre
(27,5%). Ao mesmo tempo que significa a grandes fortunas (IGF). Tais medidas são
perda de receitas, esse fenômeno precariza positivas em seus objetivos, mesmo que
as relações trabalhistas. seus impactos arrecadatórios possam ser
mais modestos.
Nesse contexto, qualquer proposta de
reforma do imposto de renda que não Nossas alíquotas do imposto sobre herança,
passe pela tributação dos dividendos por exemplo, estão desalinhadas na compa-
não será tão efetiva nos objetivos de ração internacional. A alíquota no Reino
promover justiça fiscal e gerar receitas Unido é de 40%. Em outros países, ela é
extras para o governo. De acordo com variável: nos Estados Unidos, a média é de
estimativas de Gobetti e Orair, a tribu- 29%; no Chile, 13%. No Brasil a cobrança de
tação dos dividendos pode gerar uma ITCMD varia em cada estado, com faixas
receita adicional entre R$ 43 bilhões e díspares entre 1% e 8%. Países como Argen-
R$ 58 bilhões, dependendo das alíquotas tina, Colômbia, França, Índia, Noruega,
a que seriam submetidos, cuja ordem de Suécia e Uruguai adotam o Imposto sobre
grandeza é mais ou menos equivalente Grandes Fortunas (IGF), com alíquotas
56 I 4 . REFORMA TRIBUTÁR IA PR OG R ESSIV A: UMA N O VA A GE N D A

que estão entre 0,4% a 4,8%. O Brasil sequer em 2014. Além disso, em mais da metade
regulamentou esse imposto previsto na dos países da OCDE os pacotes tributários
Constituição de 88. incluíram algum tipo de medida ampliando
a taxação sobre os mais ricos, inclusive os
Tampouco passa despercebido que, no dividendos, com o objetivo deliberado de
Brasil que é um país extenso, conformado fazer com que o ônus dos ajustes fiscais se
por vastas áreas rurais, a participação do concentre mais no topo da distribuição,
Imposto Territorial Rural (ITR) tenha inci- embora alguns também tenham reduzido
dência insignificante, de 0,01% do PIB. De a tributação sobre o lucro da empresa para
maneira mais geral, praticamente todos os compensar. A agenda da progressividade
impostos sobre a propriedade no país (ITR, voltou à ordem do dia no mundo desenvol-
IPTU, ITCMD, IPVA etc.), em maior ou vido. Infelizmente, o tema tem sido apenas
menor grau, são caracterizados pelo baixo tangenciado no Brasil.
grau de progressividade e pela existência
de um potencial de arrecadação pouco
explorado.
4.2 Uma proposta
Some-se a isso um conjunto de isenções e
benefícios tributários aos rendimentos do para o debate
capital que poderiam ser revistos (isenções
do IRPF para Letras de Crédito do Agro-
negócio, Letras de Crédito Imobiliário e A crise fiscal colocou no centro do debate
rendimentos com ações com valor mensal nacional a necessidade de se promover
transacionado abaixo de R$ 20 mil, entre reformas estruturais que possibilitem
outras). reequilibrar as contas do governo no médio
prazo, o que envolve medidas tanto no
Em resumo, há uma ampla gama de medidas campo das despesas quanto das receitas.
que poderiam ser adotadas para ampliar a Contudo, a crise política e social acentuou
arrecadação sobre a renda e o patrimônio em amplos setores da população, sobretudo
dos mais ricos. da classe média, o grau de intolerância com
propostas que façam qualquer referência
Sobre este ponto, vale destacar que a expe- a aumento de impostos. O sentimento
riência recente dos países desenvolvidos disseminado é de que a sociedade não
mostra que a tributação da renda e da aceita “pagar o pato” por uma crise que
propriedade dos mais ricos pode ser uma teria sido produzida exclusivamente
alternativa interessante de consolidação pela incompetência e corrupção do
fiscal em episódios de crise como o que governo, e esse clamor tem sido opor-
vivemos. Um dos principais desdobra- tunisticamente galvanizado por setores
mentos do período da grande recessão, após que são corresponsáveis pela crise, como
a crise internacional de 2008, foi o de que a FIESP, e que na prática tentam trans-
a maioria dos países da OCDE promoveu ferir o ônus para as camadas sociais mais
mudanças tributárias discricionárias para vulneráveis e sem voz.
ampliar suas receitas e, em resposta, a
média da carga tributária desses países Portanto, esse cenário exige o enfren-
saltou de 32,7% do PIB em 2009 para 34,4% tamento desse argumento falacioso
4 . R E F O R M A T R I BU T Á R I A P R O GR E S S I VA : U M A N O VA A G EN DA I 57

mostrando que, em primeiro lugar, os falando, o PIS/Cofins coexiste hoje com dois
grandes empresários têm sido historica- regimes, um cumulativo e outro não-cumu-
mente beneficiados pelo nosso sistema lativo, além dos regimes especiais.
tributário ao pagarem menos imposto
relativamente à renda do trabalhador Uma simulação dos impactos dessa
da classe média que um trabalhador da reforma tributária sugere que os ganhos
classe média e que, no período recente, de arrecadação oriundos da tributação
receberam do governo bilhões de reais em dos dividendos pelas alíquotas progres-
subsídios e desonerações. Em segundo sivas do IRPF e do fim das deduções dos
lugar, é importante que se esclareça que JSCP seriam suficientes para financiar a
nossa carga tributária não cresce desde redução imediata da tributação do IRPJ/
2005, tendo oscilado entre 32% e 33% do CSLL dos atuais 34% para 29% e ainda a
PIB há mais de uma década. Fenômeno redução gradual da alíquota do PIS/Cofins,
que se explica, por um lado, pelo compor- começando por 9% em 2016 e a partir daí
tamento extraordinário da massa salarial caindo 0,5 ponto porcentual por ano, até
formalizada que impulsionou a arrecadação chegar aos 6% em 2022, convertendo-se
(algo que já dá sinais de esgotamento), e, na em um imposto sobre valor adicionado com
direção contrária, pela política agressiva de pleno aproveitamento de créditos e regime
desonerações tributárias do nível federal. único. Segundo esse exercício, teríamos
inicialmente um incremento da arrecadação
Nesse contexto, quais seriam os contornos em R$ 47,1 bilhões ou 0,91% do PIB, mas
de uma reforma tributária que amplie a progressivamente esse aumento da carga
progressividade? Em primeiro lugar, a expe- tributária se dissiparia até se tornar nulo.
riência das economias mais desenvolvidas
mostra que a tributação sobre dividendos Evidentemente, trata-se de um exercício
pode ser ampliada no Brasil, mas que nosso simplificado, mas útil para ilustrar a gran-
país tributa em níveis muito altos o lucro deza dos valores. Tanto a redução do IRPJ
na empresa. Então, um caminho evolutivo ao nível da empresa, quanto a simplificação
natural seria discutirmos no Brasil a imple- e redução do PIS/Cofins tendem a propi-
mentação de uma reforma do imposto ciar uma situação muito mais favorável ao
de renda que passasse por três pontos: mundo dos negócios. Além disso, teremos
a redução das alíquotas do IRPJ/CSLL, um sistema tributário menos regressivo no
o fim da dedutibilidade dos chamados consumo e mais progressivo na renda, o que
Juros Sobre Capital Próprio (JSCP) e a também tende a contribuir para o cresci-
retomada da tributação dos dividendos mento econômico e distribuição da renda.
recebidos pelos acionistas. Essa reforma
do imposto de renda também pode ser Uma proposta de reforma como essa,
acompanhada de uma reforma gradual que garante que o aumento da carga
do PIS/Cofins desde que seja resguar- tributária será provisório e servirá para
dado o financiamento da seguridade financiar não só o déficit fiscal atual mas
social. Esse é um tributo extremamente a transição para uma estrutura tribu-
complexo, ineficiente do ponto de vista tária mais justa e eficiente, tem muito
econômico e regressivo, ou seja, que mais chances de ter apoio na socie-
onera proporcionalmente mais a renda dade e ser aprovada no Congresso. Por
do pobre do que do rico. Resumidamente certo, existem outras medidas tributárias
58 I 4 . REFORMA TRIBUTÁR IA PR OG R ESSIV A: UMA N O VA A GE N D A

importantes que podem vir a ser adotadas, fiscais ineficientes e de privilégios injusti-
como aquelas listadas na seção 4.1 que ficados. Porém, deve-se manter o objetivo
ampliam a progressidade da tributação democrático de construir e aperfeiçoar o
sobre patrimônio, bem como a tão sonhada Estado Social, ao contrário das medidas em
uniformização dos impostos sobre o valor discussão que visam sua descontrução e a
adicionado, mas essa última integra uma deturpação da Constituição de 1988.
agenda de mais longo prazo, cuja concre-
tização depende de que seja dado um
primeiro passo como o apontado aqui.

O que se deve ter em mente é que, na atual


conjuntura de crise, é pouco razoável
crer na possibilidade de um equilíbrio
fiscal com baixo crescimento. Isso
implica que, no curto prazo, deveríamos
no mínimo assegurar espaço fiscal para
o investimento público e para gastos
sociais de elevado impacto sobre o
bem-estar das camadas mais vulneráveis
da população.

Uma reforma tributária, combinando


eficiência e equidade, tal qual deli-
neamos nessa seção, poderia atuar nessa
direção, incentivando o crescimento
econômico de longo prazo ao reduzir a
tributação do lucro e da produção das
empresas, ao mesmo tempo em que
concentra o ajuste fiscal de curto prazo
sobre uma pequena parcela da poupança
dos mais ricos, não diretamente rela-
cionada ao investimento, e, por conse-
guinte, vinculada a um maior nível de
emprego e produto. Assim, ganha-se
tempo para aprimorar outras propostas
de reformas estruturais das despesas,
debatê-las com a sociedade e pactuá-las
democraticamente. Diferentemente de
propostas precipitadas de reformas do
gasto que hoje estão no debate público e
almejam suprimir direitos consagrados
constitucionalmente sem sequer passarem
pelo crivo das urnas. É claro que isso não
impede que, desde já, o governo promova
reavaliações de programas e benefícios
I 59

Referências

I - Jonathan D. Ostry, Prakash Loungani e Davide Reinvestment Act on Employment and Economic
Furceri. Output from October 2011 through December 2011.
CBO, Washington, DC.
II- Fatás, A. & Summers, L.H. The Permanent
Effects of Fiscal Consolidations, NBER, working VI - IPEA (2009) O que explica a queda recente
paper 22374, junho de 2016. da receita tributária federal? NOTA TÉCNICA
DA DIMAC-IPEA.
III - Como discutido no livro “Austeridade Para
Quem?” organizado por Belluzzo e Bastos VII - Ver, por exemplo, (i) Guajardo et al.,
(2015). “Expansionary Austerity: New International
Evidence”. IMF
IV - Auerbach & Gorodnichenko (2011), Fiscal
Multipliers in Recession and Expansion. NBER Working Paper 11/158, julho de 2011, (ii) Batini
Working Paper No. 17447. et al. (Successful Austerity in the United States,
Europe and Japan), (iii) Mark Blyth (Auste-
V - Ver, por exemplo, CBO (2012). Esti- rity: The history of a dangerous idea. NY:
mated Impact of the American Recovery and Oxford University Press, 2013) e (iv) Perotti
60 I

(Fiscal policy in recessions. What have we XVI - Ver Secretaria do Tesouro Nacional “Gasto
learn? Macroeconomic policy after the crisis. Social do Governo Central de 2002 a 2015”.
Cambrigde, MA: MIT Press, 2014) .
XVII - O mesmo estudo da STN indica que,
VIII - Carmen Reinhart & Ken Rogoff (2010), segundo dados do FMI, entre 2002 e 2013,
Growth in a Time of Debt. Working Paper 15639, houve aumento de mais de 11% do gasto social
National Bureau of Economic Research. em todos os grupos de países selecionados,
com exceção da Ásia emergente.
IX - Herdorn et al. “Does High Public Debt
Consistently Stifle Economic Growth? A Critique XVII - Ver Serrano e Summa “A desaceleração
of Reinhart and Rogoff”, Peri Working Papers, rudimentar da economia brasileira desde 2011”.
2013. Em: Earp, F. S.; Bastian, E.; Modenesi, A. M.
Como vai o Brasil? Rio de Janeiro, 2013.
X - Para maiores detalhes ver Bastos (2016),
“Crescimento da dívida pública e política mone- XIX - Sob um cenário bastante otimista de
tária no Brasil (1991-2014)”, Texto para Discussão retomada do crescimento econômico a 2,5% ao
do Instituto de Economia da Unicamp. ano a partir de 2018, ainda que inferior à média
de crescimento do PIB dos últimos 20 anos
XI - Ver Pêgo Filho & Pinheiro Os passivos próxima de 3%. É claro que essas estimativas
contingentes e a dívida pública no Brasil: dependem de hipóteses sobre a evolução do
evolução Recente (1996-2003) e perspectivas PIB e inflação, entre outras variáveis incertezas.
(2004-2006). Planejamento e Políticas Públicas,
n. 26, jun./dez. 2003. XX - Sergio Gobetti e Rodrigo Orair, “Progres-
sividade Tributária: a agenda negligenciada”
XII - Ou déficit de 1,1% do PIB em 2015 quando Texto para Discussão do IPEA, no2190.
excluímos o pagamento extraordinário de
passivos de anos anteriores junto a bancos e
fundos públicos.

XIII - Vale notar que esses cálculos não incor-


poram os efeitos positivos da acumulação
de reservas, que aumentam a confiança na
economia brasileira, e dos empréstimos do
BNDES, que produz um efeito multiplicador
sobre os investimentos financiados.

XIV - Sobre os swaps e a política cambial ver


Pedro Rossi (2016) “Taxa de câmbio e Política
Cambial no Brasil”, Editora FGV.

XV - Ver, por exemplo, BNDES (2015) “Custo


Líquido dos Empréstimos do Tesouro ao
BNDES”. Nota Conjunta APE e AF-BNDES,
Agosto de 2015.
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