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HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL Império: a corte e a modernidade nacional privada no Brasil toe: por Tevi ria Carvalo, ra do iapletan LUNION DES ‘CHARGEURS, ~ LINHA REGULAR’ DE PAQUETES — ; FRANCEZES " ENTRE O HAVRE E ONIODE JANEitO, :o francez, _ te remboras. jaichan. © vende 30 ‘Be Foo MEG KM os be > kununon POTTER S&S roummms pe pacts BRITO, ae ome VIDA DESANTA THERESA, Uda os Sees mace S GS pees tol tans os Tree Speers & Connizras. o SNE RE RAIMI DIS FLORES SS RUA DO OUVIDOR. 73 P Na bence e. 19 vendsse sons omanerate ede, levveal, 0 57000 « srroba. 40 COLLETE DE Gur, UA DA AJUDA N, 4 iA Dy WMASCA ADO. cm ea ect Mme. Camille tem a honra tiga casa mui- Ourives n. 17 pa- die fetnes heen cee conhecida do és SOM aca ransas Ga: aug acaba de zeceber aa ow Clerot. Mu- os vidor n. 136, on- costura e de =e sit = ise da ruados *% de continua aalu- Fa senhor Hor fsbriea de Partet@ Yori) sssber:: 4 Marie Stuatt, dito- de puxar i barbatana 6/4 pre Joniones Ravine neln font = HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2. Conselho editorial Lilia Moritz Schwarcz — presidente do conselho Fernando A. Novais— coordenador da colecao Laura de Mello e Souza — organizadora de volume Luiz Felipe de Alencastro — organizador de volume Nicolau Sevceako — organizador de volume Fernanda Carvalho — consultora de iconografia ioe Apoio cultural: eae jrd HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 Império: a corte e a modernidade nacional Coordenador-geral da colegio: FERNANDO A. NOVAIS. Organizador do volume: LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO COMPANHIA Das CETRAS Copyright © 1997 by Os Autores Projeto grifico e capa: Hilo de Almeida sobre foto de Joao Ferreira Villela, “Ama escrava e menino Augusto Gomes Leal’, Acervo da Fundagio Joaquim Nabuco, Recife, c. 1860 Guardas: Anioncios do Jornal do Commeércio Editoragdo eletrénica: Acqua Estiiio Grifico Secretaria editorial Fernanda Carvalho Assistente de coordenagio ¢ pesquisa iconogrifica: Pedro Puntoni Indice remissivo: ‘Maria Claudia Carvalho Mattos Preparasio: Marcia Copola Revisio: Beatriz Moreira Ana Maria Barbosa Dados lternacionis de Catalogo ma Pblcasao (cn) (Cémara Braseea do Lr, Brasil) ‘bia de wi pads mo Beas Inpéie / coon seal ‘oly Femando A. Nomis; erginizador do voiome Uae Felipe de ‘Alencasta — So Paulo: Compania das Las 1987, vated ‘i pias no Bra 2) biogrtia 3 978-85-7164451-3 (oes comple 1 ra ~Civiasd 2 Beal - Hira -Impevi, 182-1889 3, Bra = Uss ¢ costumes. Novis, Femando A. 1983.4 Aenea, Le Flip dem. Ste 7.208 ov-981 Indie para catlogostnematicn: 2. Bra: Vida pena Cviiago : Hsia $1 am Todos os direitos desta edi¢do reservados & ee Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 — Sao Paulo — sp ‘Telefone: (11) 3707-3500 11) 3707-3501 ‘www-companhiadasletras.com.br aA PF Y NL n SUMARIO Introducao. Modelos da historia e da historiografia imperial — Luiz Felipe de Alencastro, 7 Vida privada e ordem privada no Império — Luiz Felipe de Alencastro, 17 O cotidiano da morte no Brasil oitocentista — Joao José Reis, 95 A opuléncia na provincia da Bahia — Katia M. de Queirés Mattoso, 143 Imagem e auto-imagem do Segundo Reinado — Ana Maria Mauad, 181 Senhores ¢ subalternos no Oeste paulista — Robert W. Slenes, 233 Caras e modos dos migrantes ¢ imigrantes — Luiz Felipe de Alencastro e Maria Luiza Renaux, 29] Lagos de familia e direitos no final da escravidaio — Hebe M. Mattos de Castro, 337 O fim das casas-grandes — Evaldo Cabral de Mello, 385 Epilogo — Luiz Felipe de Alencastro, 439 Notas, 441 Apéndice, 469 Obras citadas, 487 Créditos das ilustragdes, fontes e bibliografia da iconografia, 50! Indice remissivo, 513 INTRODUCAO MODELOS DA HISTORIA. E DA HISTORIOGRAFIA IMPERIAL A tardia formaliza¢ao do ensino de hist6ria nas universi- dades brasileiras deu lugar a improvisos. Felizmente, deu também destaque a autores que elaboraram obras audacio- sas, livres da estreiteza académica, pluridisciplinares, cuja marca constitui um trunfo de nossa historiografia. Gilberto Freyre é um desses autores, e Sobrados e mucambos uma des- sas obras impares. Livro fundador do estudo da vida privada no Brasil ¢ ensaio pioneiro na bibliografia internacional sobre o assunto, Sobrados e mucambos — publicado em 1936, mas esquemati- zado desde 1922 — atravessa as barreiras da intimidade pa- triarcal e penetra no cotidiano da sociedade do Império.' Mais do que Casa-grande & senzala (1933), clissico de longas revoadas no tempo € no espago, Sobrados e mucambos aproxi- ma-se das regras de ouro do grande livro de historia: uma tematica definida com base no conhecimento de uma con- juntura especifica (a urbanizagao da familia patriarcal rural), uma periodizagao conforme ao tema (0 Império, teatro da mudanca da casa-grande para os sobrados citadinos) e, en- fim, fontes congruentes com a problemitica e a época (dia- rios, correspondéncias, narrativas dos viajantes, jornais e te- ses universitérias oitocentistas). De quebra, Gilberto Freyre granjeia a histéria oral, a memoria relatada por testemunhos dos tempos do Império. Gente da mais diversa condicio — de ex-escravos 4 vitiva de Joaquim Nabuco — foi por ele inquirida nos anos 1920-30, quando a maioria dos brasileiros ainda tinha um pé na roca. Quando, nas suas proprias pala- vras, a residéncia em apartamentos limitava-se ao Rio de Ja- neiro € a Sao Paulo, enquanto o resto do pais vivia em casas B+ His) SRIA DA VIDA FR'VADA NO BRASIL 2 plantadas em cidades meio campestres. O que Ihe permitia concluir, em 1936: “o privatismo patriarcal ou semipatriarcal ainda nos domina; mesmo que a casa seja mucambo”? Por isso mesmo, por causa do jeito como a sociedade brasileira veio a ser, Sobrados e mucambos as vezes confunde tanto quanto ilumina. Para o historiador que busca articular seqiiéncias e rupturas da vida cotidiana ao movimento cali- brado pelo tempo e pelos eventos, fica dificil seguir pelo pats afora os tracos intermitentes das intuicdes freyrianas. Desse modo, o segundo volume da Historia da vida privada no Bra- sil leva em conta, junto com o inventario de Sobrados e mu- cambos — livro que deve ser mais admirado do que imita- do —, as pesquisas recentes dos autores dos capitulos, os segredos dos ntimeros amanhados pela administrago impe- rial e agora sistematizados pela informética. Gracas a esses recursos, 0 primoroso Atlas do Império do Brazil (1868), do ge6grafo e jurista maranhense Candido Mendes de Almeida, primeira visualizagao completa do territ6rio nacional de que dispuseram os brasileiros da época, pode ser digitalizado para combinar-se com os dados espacializados do recensea- mento geral de 1872. Deliberadamente, procedeu-se ao amélgama de “vida privada” e “vida cotidiana”, Com efeito, nao ha por que sepa- rar-se os dois géneros de historia, na medida em que “coti- diano” refira-se 4 intimidade, aos modos de vida, ao dia-a- dia da existéncia privada, familiar, publica, as formas de transmissao dos costumes e dos comportamentos. Tenho para mim que os motivos que levaram Ariés e Duby a distin- guir, alids de modo pouco explicito, o privado e o cotidiano, decorreram, entre outras circunstancias, da necessidade de apartar os estudos por eles organizados na Histoire de la vie privée (Paris, Le Seuil, 1985) da colecao La vie quotidienne en... iniciada pela editora parisiense Hachette nos anos 1940 e contando com titulos prestigiosos. Na Alemanha, onde nao existia esse impasse editorial, o corte historia privada/histéria do cotidiano nao ganha relevo entre os especialistas da Allta- gsgeschichte (histéria do cotidiano).° Inserido de permeio a Colénia e a Republica, este volu- me adequou-se a certos parimetros. Em conjunto, procura- mos esbocar uma evolucao cujo recorte tematico seguia 0 enfoque regional. Além do mais, nao se pretendia analisar cada uma das regides do Império. Mas 0s modos de vida que tiveram continuidade e, mais precisamente, os niicleos cons- titutivos da sociabilidade brasileira contemporinea. Desde logo, nao ha estudo das cidades, vilas e povos de uma regido importante na Colonia — 0 Maranhao e o Pari —, ou seja, a Amaz6nia atual, cujo impacto na sociabilidade nacional per- manece restrito no século xix e em boa parte do século xx. Inversamente, a cidade de Sao Paulo, contando apenas com 25 mil habitantes em 1870 — depois inflada e revolvida de maneira descomunal pela imigracio estrangeira e as migra- g6es nacionais —, s6 vai guardar um ténue vinculo social com seu passado oitocentista. Mais do que na capital, é no este da provincia, em Campinas, com 34 mil habitantes em 1870, que se revela a continuidade histérica engendrada pela sociedade paulista. Continuidade fundada na mescla de es- cravos e imigrantes, de patriarcalismo ¢ coergio econdmica. Desse processo nasceram os costumes das frentes agricolas ¢ pecuérias, depois espalhados pelo Norte do Parana, e pelo Centro-Oeste e Norte do pais. O contexto social da agricultu- ra de fronteira movida por migrantes de dentro e de fora do pais distingue-se dos nticleos coloniais fixos, 1a maioria dos casos formados por alemies e italiano, [nicialmente implan- tados no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, esses m cleos deram lugar a uma sociedade consistente que se tornou um componente importante da diversidade cultural brasilei- ra. Bahia e Pernambuco, principais provincias de uma drea que constitui o pélo de maior difusdo demogrifica e cultural do pais, aparecem de maneira distinta e complementar. A vida familiar baiana foi analisada mediante 0 cruzamento entre os documentos € as estatisticas extraidas dos testamen- tos da época, enquanto o cotidiano pernambucano emerge do estudo da biografia e do diario intimo de dois senhores de engenho. Enfim, as outras provincias do Império tém sua caracteristica social de maior relevo visualizada nos mapas informativos elaborados com os dados do censo de 1872. Na seqiiéncia dos capitulos, os autores explicitam as mudancas sociais que definiram o perfil da vida privada no Império. 10+ STORIA DA VIDA PRIVADA NO BRAS 2 Naturalmente, o Rio de Janeiro, a corte da monarquia, 0 centro cultural, politico e econémico do territério nacional — desfrutando no século xix de uma preeminéncia que ne- nhuma outra cidade brasileira jamais vird a ter —, mereceu um tratamento especifico no quadro do volume. E no Rio de Janeiro que se desenrola 0 “paradoxo fundador” da histéria nacional brasileira: transferida de Portugal, sede de um go- verno parlamentar razoavelmente bem organizado para os parametros da época, capital de um império que pretendia representar a continuidade das monarquias e da cultura eu- ropéia na América dominada pelas republicas, a corte do Rio de Janeiro apresentava-se como 0 polo civilizador da nagao. ‘Tal era o motor do centralismo imperial em face das muni cipalidades e das oligarquias regionais. Tal era o suporte da legitimidade monarquica diante das reptiblicas latino-ameri- canas. No entanto, é justamente na corte que o escravismo, na sua configuracao urbana, assume o seu cardter mais extrava- gante, tornando emblemitico o desajuste entre 0 chao social do pais e o enxerto de praticas e comportamentos europeus. No tocante a iconografia, também houve uma opcio prévia. Apesar de iniciativas editoriais recentes, o Império é quase sempre representado por meio de pinturas, aquarelas e gravuras dos grandes e pequenos artistas oitocentistas. O que talvez tenha contribuido para agregar — na cultura marcada- mente visual dos brasileiros de hoje — o periodo imperial ao passado colonial, empurrando 0 “arcaismo” monérquico para longe da “modernidade” republicana. Por esse motivo, ao lado de pinturas e desenhos, foram privilegiadas ilustra- oes extraidas da vivacissima imprensa nacional e fotografias da época. Redimensionando a distancia que nos separa do passado, as fotos imperiais ajudam a aproximar as represen- tages, a estabelecer uma nova periodizacao, uma nova tem- poralidade na nossa histéria nacional. Luiz Felipe de Alencastro 1 VIDA PRIVADA E ORDEM PRIVADA NO IMPERIO Luiz Felipe de Alencastro 12. + HIsTORA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 BUROCRACIA DE ARRIBAGAO transferéncia da corte trouxe para a América portu- guesa a familia real e 0 governo da Metropole. Trouxe também, ¢ sobretudo, boa parte do aparato admi trativo portugués. Personalidades diversas, funcionarios ré- gios continuaram embarcando para o Brasil atras da corte, dos seus empregos e dos seus parentes, apés 0 ano de 1808. Con- cretamente, além da familia real, 276 fidalgos e dignitarios régios recebiam verba anual de custeio e representacao, paga em moeda de ouro e prata retirada do Tesouro Real do Rio de Janeiro.' Luccock calculava em 2 mil 0 ntimero de funcio- narios régios e de individuos exercendo fung6es relacionadas com a Coroa. Juntem-se ainda os setecentos padres, os qui- nhentos advogados ¢ os duzentos “praticantes” de medicina residentes na cidade.’ Terminadas as guerras napolednicas, oficiais e tropas lusas vem da Europa para a corte fluminense. Segundo o almirante russo Vassili Golovin, que fez duas esta- dias na cidade, em 1817 havia no Rio de Janeiro de 4 mil a5 mil militares.* No total, pelo menos 15 mil pessoas transferiram-se de Portugal para o Rio de Janeiro no periodo.t Para melhor medir a forga desse empuxo burocratico, convém lembrar que em 1800, quando a capital dos Estados Unidos mudou-se de Filadélfia para a recém-construida Washington, 0 contin- gente de funcionérios do governo federal americano nao ex- cedia o milhar, contando-se desde o presidente John Adams aos cocheiros do servigo postal. VIDA FRIVADA E ORDEM PRIVADA NO IMPERO * 13 1. Esposa do entao principe d. Pedro ¢ futura primeira imperatri do Brasil, d. Carolina Leopoldina desembarcou no Rio de Janeiro em 1817, Fitha do imperador da Austria, 4. Carolina foi cedida em casamento depois de urn minucioso tratado luso-austriaco, no qual Jodo VI pagavea ao sogro de seu flho dotes ¢ contradotes avultados que © obrigavam a hipotecar as rendas da Casa de Braganca. O casamento assegurava aas Braganga 0 apoio do império austriaca. (Charles Simon Pradier, Desembarque da arquiduquesa d. Carolina Leopoldina no Rio de Janeiro, 1818) De resto, administradores e colonos de outras partes do Império portugués, notadamente Angola e Mogambique, também migram para o Rio. Em seguida, Portugal atravessa uma fase de instabilidade politica que contribui para manter no Rio de Janeiro, até meados do século, uma parte dos inte- resses lusitanos anteriormente transferidos para o Brasil. De seu lado, setores mais comprometidos da monarquia espa- nhola saem dos paises sul-americanos tomados por revolu- oes republicanas e mudam-se para o Rio de Janeiro, unico reftigio da legalidade monarquica no Novo Mundo. ‘A parciménia de dados disponiveis nao permite que se mea precisamente 0 fluxo migratério em direcao a nova corte sul-americana. Mas é possivel captar as mudangas com- parando os dados dos censos efetuados na cidade em 1799 e 1821. Entre uma e outra data, a populago urbana, excluidas portanto as freguesias rurais do municipio, subiu de 43 mil para 79 mil habitantes. Em particular, o contingente de habi- tantes livres mais que dobrou, passando de 20 mil para 46 mil individuos. Nao foram sé6 reinéis e monarquistas latino-americanos que aportaram na corte fluminense. O enxerto burocratico suscitou uma procura de moradias, servicos e bens diversos, atraindo para o Rio mercadorias e moradores fluminenses ¢ mineiros. Enfim, chegam mais africanos, dado que a bafa de Guanabara convertera-se, desde o final do século xvi, no maior terminal negreiro da América. Embora a maioria des- 14 + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 2. Divisio eciesiéstica do Impéria: 0 catoicismo era a religido oficial eas sedes das paréquias _funcionavain come cartérios ‘em que os pérocos — funcionérios piiblicos — exerciam as atividades cartorérias. Note-se que 0 mape, como todos os subseqiientes, nao inclui zonas do Norte brasileiro ¢ 0 Acre, pasteriormente incorporados ao territério nacional. (Atlas do Império do Brazil, Candido Mendes, 1868) ses individuos se destinasse & zona agricola, um mimero cres- cente de escravos sera retido no meio urbano para atender a demanda de servicos: entre 1799 e 1821 a percentagem de cativos no municipio salta de 35% para 46%. A RUPTURA DO CIRCUITO DE COMERCIO CONTINENTAL Enquanto a corte se ajeitava no caos pré-urbano do Rio de Janeiro, importantes mudangas atravessavam 0 territério colonial. Movido a ouro em pé, o mercado do poligono mineiro formado por Minas Gerais, Goias e Mato Grosso acambarca- va toda a América portuguesa no século xvii. Comprava bens europeus e escravos pela Bahia e pelo Rio de Janeiro, mulas € gado do Rio Grande do Sul e dos currais do Sao Francisco. Através dos rios Madeira, Mamoré e Amazonas, as minas de Mato Grosso conectavam-se a Belém e ao Atlantico. De ma- neira descontinua, emergira a mais longa rede de comunica- goes terrestres e fluviais do continente americano. Nas vere- das do ouro medravam fazendas, rocas, vendas e vilas que desenhavam um mapa extenso de povoamento e um circuito de comércio continental. Entretanto, a partir dos anos 1770, a produgao no poligono do ouro declina, desativando a imantagao mercantil irradiada pelo centro do territério. Gra- Gas ao ressurgimento da agricultura de exportagao — agora impulsionada pelo algodao, o arroz e o café, além do acticar € do tabaco —, as atividades litoraneas e 0 comércio maritimo de longo curso mantém-se num patamar elevado.* Contudo, rompe-se o circuito de comércio continental. Parte de Minas amplia suas atividades na agricultura, na pe- cuaria e no laticinio, fornecendo alimentos para o Rio de Janeiro. Mas Sao Paulo, o Sul, o Norte e 0 Nordeste desligam- se pouco a pouco do centro mineiro. Trocas litoraneas de cabotagem deslocam e desmancham as trocas sertanejas. Dessa maneira, a Independéncia traz a autonomia politica a um territ6rio esgargado pelo deslizamento do comércio ter- restre interiorano para as zonas costeiras. Investidos de representatividade instituidora apés a In- dependéncia —, quando a legitimidade do governo do Impé- rio sediado no Rio de Janeiro ainda nao se encontrava assen- tada —, as camaras e os juizados municipais catalisam os VIDA FRIVADA £ ORDE FRVADA NO INeERO + 15 16 © HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 interesses lncais contrariados pelos novos rumos do comér- cio brasileiro. Desse modo, 0 primeiro confronto institucio- ral entre o privado ¢ 0 ptiblico imperial desenrola-se no ambito do municipio. Por tris dessas pendengas, algumas delas descambando nas guerras civis conhecidas como “revolugdes regenciais”, perfilha-se uma questio central na historia politica das na- ges do Novo Mundo, um debate doutrinério de primeiro plano que viu Hamilton opor-se a Jefferson apés a Revolugao ‘Americana Qual 0 alcance do poder exercido por autorida- es locais deitas pelos proprietarios rurais? Qual 0 escopo do governo central? Estavam em jogo diferentes concepgdes da Iiberdade individual, do pacto politico no Estado constitu- cional moderno. Tudo isso ganha maior complexidade nos paises americanos — particularmente nos Estados Unidos e no Brasil —, onde existia um sistema escravista de permeio a uma comunidade que professava, ou buscava atingir, os prin- cipios liberais predominantes na economia, na politica e na sociedade da Europa Ocidental. (0 PRIVILEGIO FRIVADO Nos confins da lingua latina e do direito romano, a pala- vra privus (perticular) deu origem a duas variantes, privatus (privado) ¢ privus-lex ou privilegium (lei para um particular, privilégio). Essas variantes fundem-se de novo num s6 signifi- cado no contesto do escravismo moderno, no qual o direito — 6 privilégio — de possuir escravos incide diretamente sobre a concepgao da vida privada, Como na Colénia, a vida privada brasileira confunde-se, no Império, com a vida familiar. Resta que, no decorrer do processo de organizacao politica e juridica nacional, a vida privada escravista desdobra-se numa ordem privada prenhe de contradiges com a ordem piiblica.’ Mani- festa-se a cualidade que atravessa todo o Império: o escravo é um tipo de propriedade particular cuja posse e gestio deman- dam, reiteradamente, 0 aval da autoridade publica. Tributado, julgado, comprado, yendido, herdado, hipote- cado, o escravo precisava ser captado pela malha juridica do Império. Por esse motivo, 0 Direito assume um cardter quase constitutivo do escravismo, e 0 enquadramento legal ganha uma importancia decisiva na continuidade do sistema: ao VIDA PRIVADA fim e ao cabo, a escravidio desaba de um dia para 0 outro — de 13 para 14 de maio de 1888 —, quando uma lei de quatro linhas revoga seu fundamento juridico. Hevia, portanto, uma ordem privada especifica, escravista, que devia ser endossada nas diferentes etapas de institucionalizagao do Império. Os condicionantes histéricos desse proceso configuraram dura- douramente o cotidiano, a sociabilidade, a vida familiar e a vida puiblica brasileira. Nesse sentido — e esta € a idéia que fundamenta todo o capitulo —, 0 escravismo nao se apresen- ta como uma heranca colonial, como um vinculo com 0 pas- sado que o presente oitocentista se encarregaria de dissolver. Apresenta-se, isto sim, como um compromisso para o futuro: © Império retoma e reconstréi a escravidao no quadro do direito moderne, dentro de um pais independente, projetan- do-a sobre a contemporaneidade. A PRIVACIDADE E © PODER MUNICIPAL E PROVINCIAL Desde 1828, o Primeiro Reinado comeca 2 erodir o auto- nomismo municipal, restringindo a competéncia das cima- ras as matérias econdmicas locais e proibindo que os verea- dores deliberassem sobre temas politicos provinciais ou gerais. A regionalizagio instaurada pelo Ato Adicional (1834) cria as assembléias provinciais, mas a tendéncia antimunici- palista prossegue. Nesse movimento, o governo central sub- trai a autonomia das municipalidades e, sobretudo, a compe- téncia juridica e policial dos juizes de paz eleitos em cada cidade e dos juizes municipais indicados pelas cémaras: Ora, 0 exercicio do poder pablico por autoridades desig- nadas pelos presidentes de provincias, ou seja, pelo governo central — em detrimento das autoridades locais escolhidas pelos proprietarios, eleitores qualificados da regio —, afigu- rou-se como uma ameaca a ordem privada, isto é, a ordem em geral. Esse embate pode ser ilustrado pelo levante ocorri- do nos sertées do Maranhao, a Balaiada (1839-41), conflito tipico de uma regido desconjuntada pelo recuo do comércio interno, pelo novo desenho da geografia econdmica do pais. Retrato da instabilidade social da area, causa e efeito de um Povoamento pouco gregirio, 0 Maranhao apresentaré no censo de 1872 a maior proporsao de solteiros do Império: trés quartos de seus habitantes respondiam a essa situagao.” ‘ORDEM PRIVADA NO IMFERIO + 17 CODIGO CRIMINAL ho Supend do Braid. Mo De NEMO, 3. Organiizando a legislago nacional, (© Cédigo Criminal do Império do Brasil (1830) adaptow a escravidao 4 modernidade oitocentista. (Codigo Criminal éo Império do Brasil, 1831) 18 + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASII 4.A ordem privada escravisia O homer: branco é 0 senhor, dono, proprietirio dos cinco outros homens nnegros e mulatos. Est na frente, na posigio de autoridade e dominio, Os outros se encontram atrds. O primeiro a esquerda do senkor € muilato,esté bem vestiddo. AO contririo dos outros, deixou 0 cabelo ‘meio liso crescer, penteou-o, fez uma risca no lado esquerlo, come 0 seu senhor. Mas nio pode usar sapatos, privilégio e marca distintiva dos livres e libertos. Tirar fotografia era uma operagio demorada. Ninguém podia se mexer durante quase dois minutos. Outras tentativas jt ‘podiam ter falhado. O forégrafo Militdo, que jez essa foto em Sao Paulo, deve ter reclamado, Por isso (ou por outras razdes mais secrtas, 0 senhor esté zangado, de cara amarrada. O escravo situado & sua direita, assustado, encolhew-se. Na extrema esquerda, 0 homem com a varinha na mito — pastor de cabras ow de vaca leiteira na cidade — tem wm othar altivo, talvez porque traga nas ris 0 objeto de sew ofico, que 0 distingue dos outras cativos, paus ‘para toda obra. Na extrema direita, ‘ohomem de branco se mexeu: cestragou a foro da ordem escravista programada pelo seu senhor. Vai ‘apanhar. No seu rosto fora de foco vislumbra-se 0 medo. Vai apanher, (Foto de Militdo Augusto de Azevedo, Sao Paulo, c. 1870). Meses antes da insurreigio, o presidente da provincia, falando na Assembléia maranhense, explicava o papel dos novos “prefeitos de comarca” e justificava a reducao das com- peténcias dos juizes de paz, expressao do poder senhorial nas municipalidades: “E impossivel que deixeis de conhecer to- dos os excessos cometidos pelos juizes de paz (...] arbitrarie- dades e perseguicio contra os bons, inaudita protegio aos maus, e porfiada guerra as autoridades”, Posta nesses termos, a acusagao nao deixava diividas sobre os propésitos centrali- zadores da politica imperial. Nomeado pela Coroa, o “prefei- to de comarca” — cuja autoridade estender-se-ia sobre varios municipios — estaria encarregado de instaurar a ordem im- perial no interior do pats. Reagindo a iniciativa, 0 jornal Bemtevi, 6rgao do auto- nomismo maranhense, vai direto ao ponto: a autoridade no- meada pelo Rio de Janeiro ‘desagregaria a ordem privada, subvertendo a organizacao social vigente. Um prefeito tem espalhados tantos quantos oficiais de policia, espides, ele quer, para saber do que se passa fora e dentro das casas! Adeus sagrado das familias! Os pre- feitos chamario e corromperao nossos escravos para di- zerem tudo que em nossas casas se faz ¢ se diz, ¢ acres- centarem o mais que nem se faz, nem se diz! Com uma autoridade tio absoluta quem se julgar seguro! Quem os podera ter mao! Mil maldiges pesem sobre a cabega de quem pediu e sancionou uma tal lei! O escravismo entranhava nos lares, no amago da vida privada, um elemento de instabilidade que carecia ser estrita- mente controlado. Em conseqiiéncia, o poder, a seguranga publica, devia tirar seu fundamento da esfera publica de do- minacao mais compacta, mais imediata, mais préxima: a municipalidade. Contudo, governo central absorvia 0 espa- ¢o do poder municipal. Eventualmente manipulado por con- tririos, o representante do governo do Rio de Janeiro poderia transformar os escravos domésticos em espides, trazendo a inseguranga para dentro das casas, para “o sagrado das fami- lias” dos proprietirios. Em todo 0 caso, o Império nao deu mais margem para 0 incremento do poder municipal. Na verdade, a disputa sobe para outro patamar, para a esfera regional, no seguimento da do operada em 1835 com o inicio das assem- bléias provinciais. Desde logo, 0 embate transpunha-se para uma arena mais ampla, e também mais perigosa, na medida em que uma faccéo da classe dominante podia encampar a autoridade publica regional e joga-la contra uma outra fac- 40, abalando a ordem privada escravista. descentraliza Foi 0 que sucedeu em Sao Paulo e em Minas Gerais durante a Revolucao Liberal de 1842. Havia, nas duas provin- cias, a crenga de que o governo centralista do Rio, dominado pelos conservadores, tornara-se “formalmente ditador” a0 desencadear uma “violenta persegui¢ao” contra as camaras, policiais e judicidrias pertencentes arrogando-se atribuigé as municipalidades."' Na cidade mineira de Campanha, a So- ciedade dos Patriarcas Invisiveis fazia seus membros assinar 0 20 + HISTORIA DA VIDA PRADA NO BRASIL 2 5. Recife, teatro da Revolugao Praieira (1848-9), 0 levante politico ‘mais radical ocorrido no lmpério. (Emil Bauch, Largo do Corpo Santo, meados do século XIX) juramento de lutar contra o “governo absoluto”, leia-se cen- tralista, e alegadamente pr6-portugués, do partido conserva- dor. Outros rebeldes, reunidos nas vizinhangas de Caxambu para combater 0 “partido galego”, cingiam “o lagarto [om- bro] do lado direito” com uma faixa verde-amarela." A leitu- ra dos autos dos processos, emerge toda uma trama de rela- ges pessoais, familiares, que orienta o engajamento dos combatentes de um e de outro campo. Deflagradas as hostilidades, as forcas governistas langa- ram mao — conforme denuncia um simpatizante dos libe- rais, 0 cénego José Antonio Marinho — do instrumento mais “iniquo” e de conseqiténcias “mais terriveis” que podia existir no pais: mobilizaram nas tropas legalistas os escravos fugidos dos proprictérios insurgentes. Até aquela altura, con- tinua 0 cénego Marinho, “existiam as mesmas convicgdes” nos dois campos que se enfrentavam em sangrentos comba- tes, “proprietarios, capitalistas, pais de familia estavam debai- xo de uma e de outra bandeira; com a chegada, porém, da tropa de linha, a provincia (de Minas] foi inundada de nu- vens de nagés e minas que levaram a toda a parte a devasta- cdo e 0 saque” Espalhara-se “o germe mais perigoso que por- ventura se possa plantar no Brasil”? Em suma, durante as revolugées do Império, podia-se abrir fogo contra as tropas legais, sublevar os cidadaos, de- sencadear a guerra civil. Desde que um e outro campo guar- dassem “as mesmas convics6es” basicas do consenso impe- rial: o respeito a ordem privada escravista. Mas nao era s6 com relagao aos cativos que surgia 0 VIDA PRIVADA E ORDEM PRIVADA NC iMPERt problema. Em conexdo com 0 escravismo desenvolvia-se 0 paternalismo, o patriarcalismo rural e urbano, segundo a anilise consagrada por Gilberto Freyre. Também nesse domi- nio, nas relagdes entre fazendeiros e homens livres, ocorriam choques entre © publico e 0 privado, como sucedeu em Per- nambuco, quando uma ala radical e urbana do partido libe- ral — o partido praiciro — colidiu com o setor mais tradi- cional dos senhores de engenho, incorporado ao partido conservador. Antes de resumir 0 entrevero, convém sublinhar o entrela- samento do sistema eleitoral com a vida privada no Império. Apés a Independéncia, os homens brasileiros maiores de 25 anos, com certa renda anual, podiam ser “votantes’, isto é, eleitores de segundo grau. Em geral, trinta votantes escolhiam um eleitor de primeiro grau, o qual, dispondo do dobro da renda anual dos votantes, podia eleger e ser eleito vereador, deputado ou senador."* Dada a exigiiidade da populagio adul- ta, livre e masculina nas zonas rurais, os critérios para 2 quali- ficacao dos votantes tinham de ser moderados. Se dispusessem da renda minima exigida, os analfabetos e os ex-escravos (a0 contrario do que definia a legislacao dos estados sulistas norte- americanos) também estavam aptos a eleger-se para o posto de vereador e habilitar-se como eleitores de segundo grau." Além disso, fraudes permitiam que individuos mais modestos fos- sem reconhecidos como votantes a fim de eleger os proprieté- rios de suas terras no escrutinio de primeiro grau. Desse modo, os senhores de engenho e os fazendeiros mantinham um contingente mais ou menos constante de agregados — seu curral eleitoral particular — em suas pro- priedades. Mesmo nos lugares em que existia oferta regular de escravos ou, no outro quadrante social, um mercado de trabalhadores livres. Fatores que, noutras circunstancias, te- riam levado os proprietarios a retomar as terres cultivades pe- los agregados para exploré-las com sua mao-de-obra assala- riada ou cativa. Um dos autores mais perspicazes e menos reconhecidos do Império, Luiz Peixoto de Lacerda Werneck, filho do barao do Paty do Alferes, escrevia sem rodeios em 1855: “O que sustenta hoje a pequena agricultura € 0 nosso sistema eleitoral. Os grandes possuidores do solo consentem 22 + HISTORIA DA VIDA FrIVAEA NO BRASIL 2 ainda os agregados, porque 0 nosso sistema eleitoral assim 0 reclama” Deveres e direitos dos senhores ¢ de seus depen- dentes encontravam, dessa forma, um prolongamento insti- tucional no sistema partidério e eleitoral. Assimilado ao comportamento politico do pais, tal fendmeno constituiu um importante fator de estruturagao das relacoes entre os proprietérios rurais e seus dependentes, dando lugar, mais tarde, ao tripleto “coronelismo, enxada e voto”.”” Tudo isso foi posto em xeque em Pernambuco nas elei¢des para © Senado, em 1847. Nessa oportunidade, os funciondrios regionais ligados ao partido da Praia, detentor do governo da provincia, aliciaram agregados e moradores dos engenhos para que votassem nos candidatos praieiros, contra os proprietérios de suas terras, candidatos conservadores na eleicdo de primeiro grau. Conhecida a vit6ria dos praieiros na eleicdo primaria, a agucarocracia do partido conservador retaliou, apressando-se em expulsar de suas terras 0s agregados “traidores” Nabuco de Araiijo, futuro ministro da Justica e lider do pettido liberal moderado, justificou o expediente em nome do respeito as regras nao escritas do patriarcalismo. Foi tal o terror que se incutiu na populagdo que os mo- radores [...] que se uniam aos senhores de engenho pela forca do habito, pela influéncia dos costumes antigos, pelos lagos da gratidao, antes quiseram votar com a poli- cia que os aterrava do que com os seus patronos naturais que os sustentavam; e como os senhores de engenho, pelo legitimo uso de sua propriedade, tém o direito de expelir de suas terras os moradores que nao lhes agra- dam, a policia atual {praieira] [...] nao duvidou propalar por seus agentes que tal direito nao existia que ela interviria para o fazer cessar."* Revoltados, os agregados expulsos juntaram-se ao parti- do da Praia, engrossando 0 caldo revolucionario que deu a Praieira (1848-9) o estatuto de levante mais radical de toda a historia do Império. Esmagada a revolta, o Ministério conser- vador “saquarema”, justamente chamado de “governo da oli- garquia’, restabeleceu, como Evaldo Cabral de Mello observa no capitulo 8 deste livro, um dos primados do sistema impe- rial: a influéncia politica das familias nas diferentes regiGes do pais. Minas Gerais conhecera um refluxo de sua influéncia VIDA PRIVADA E O2DEM PRI politica na corte apés a derrota da Revolugdo de 1842, S40 Paulo ainda nao era o que viré a ser. Desde logo, esvaziada a autonomia municipal e assentada a preeminéncia das oligar- quias nos governos provinciais, o Segundo Reinado assegura a hegemonia do governo central — da “corte madrasta” —, como definiam os panfletos praieiros. Capital do pafs, corte da monarquia, sede das legacées diplomaticas, maior porto do territério e drea de forte con- centracao urbana de escravos, o Rio de Janeiro aparece, dora- vante, como 0 teatro das contradigdes imperiais. + A HEGEMONIA FLUMINENSE Singular na geografia politica do Novo Mundo, o Impé- rio representou também um momento tinico na histéria bra- sileira. Efetivamente, no regime monarquico forjou-se no Rio de Janeiro — capital politica, econdmica e cultural do pais — um padrao de comportamento que molda o pais pelo século xix afora e 0 século xx adentro. 6. 0 nttmero de comerciantes por mil habitantes livres mostra, em 1872, 0 peso da hegemonia comercial dda corte, inserida aqui no espace da provincia fluminense, (LED-Cebrap) (Ver Apéndice, tabela 1.) 2d + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASL 2 Entre a diversidade rgional esbocada nas diferentes par- tes da Coldnia deste 0 Sscentos e a influéncia estrangeira continuamente manifestada apés a abertura dos portos em 1808, o Rio de Janeiro funciona como uma grande eclusa, re- canalizando os fluxos extemos ¢ acomodando 0s regionalis- mos num quadro mais amplo, pela primeira vez verdadeira- mente nacional. Para se ter uma idéia da densidade de atividades concentradas m cidade do Rio de Janeiro, conside- te-se que sua renda tributiria municipal — referente aos im- postos e taxas recolhidos pela Camara — superava, em 1858, a renda municipal do conjunto de cidades de qualquer uma das vinte provincias do Impéria'” No plano externo, convém lem: brar queo porto fluminerse — numa época em que 0 comés cio intemacional fizia-se epenas por via maritima — apre- sentava-se como escala quase obrigatria dos navios que singrassem do Atlantico Norte para os portos americanos do Pacifico, e vice-versa. No plano inter-regional, o Rio de Janeiro constituia o ponto de enantro ¢ de redistribui¢ao da econo- mia nacional. Metade do coméicio exterior brasileiro passa pelos cais cariocas durante o século 1x.” Etapas bem distintas marcaram o crescimento do Rio de Janeiro. No decurso do século xx, os cativos representam da metade a dois quintos do total de habitantes da corte. Um contraste nascer entrea densidade de escravos na cidade e as pretensées civilizadoras & corte e da Coroa, orgulhosa de seu estatuto de tinica representante do “sistema europeu” — da monarquia — na América tomada pelo sistema republica- no. Contraste que as caracterfstices proprias da gestio e posse de cativos no meio urbaro fazem ainda mais flagrante. Considerando que 2 populacao do municipio pratica- mente dobrou nos anos 1821-49, a corte agregava nessa ulti- ma data, em ntimeros abslutos,a maior concentracao urba- na de escravos exisente no murdo desde o final do Império romano: 110 mil escravos para 266 mil habitantes2: No en- tanto, ao contrario do que sucedia na Antiguidade, 0 escra- vismo moderno, e particularmente o brasileiro, baseava-se na pilhagem de individuos de ama « regiao, de uma nica raga. Em outras palavras, no moderro escravismo do continente americano a oposicio serhor/escravo desdobra-se numa ten- sio racial que impregna toda a sociedade VIDA PHVA: Tamanho volume de escravos da a corte as caracteristica de uma cidade quase negra e — na seqiiéncia do boom do trafico negreiro nos anos 1840 — de uma cidade meio afri na. No micleo urbano do municipio, formado pelas nove paréquias centrais, as percentagens eram menores, mas 0 impacto da presenga escrava parecia maior, na medida em que envolvia 0 centro nervoso da capital, sede dos principais edificios publicos, as pragas, as ruas e 0 comércio mais im- portantes do Império.* Do total de 206 mil habitantes que moravam na area nos anos 1850, 79 mil (38%) eram cativos. Numie data em que o trafico negreiro ja estava legalmen- te proibido havia dezoito anos, o censo de 1849 mostra um. dado revelador: um habitante de cada trés do municipio do Rio de Janeiro tinha nascido na Africa. Isto é, viviam na corte 74 mil africanos escravos e livres." Pode-se dar de barato que a cifra estivesse aquém da realidade, pois os proprietérios costumavam ocultar a origem dos seus africans para esca- par a acusagao de contrabando. Maci¢amente formado por escravos (89%), esse contingente africano fundia-se nos ou- tros 22 mil cativos nascidos no pais. Nessa época, entre 1825 e 1850, desembarcou na drea fluminense o essencial do fluxo de 250 mil escravos mogambicanos deportados para o Brasil. Povo oriundo do planalto do Zimbabue e chamado “moca- ranga’. Daf, talvez, 0 substantivo mocorongo que, no Rio, Espirito Santo e em Sao Paulo ¢ sinonimo de “caipira” e de 7. De longe 9 maior porto do Brasil, @ Rio de Janeire constituia o ponto de convergéncia dos mercados provinciaise das mercidorias importedas. (Foto de Revert Fiearique Klumb, Vista do largo do Paco e do porto, 1860) le redistribuigao 26 * HISTORIA DA VIDA FRIVADA NO BRA festa o final da do Paraguai ent 1870. (Foto de Marc Ferrez, Campo de Santana na festa pelo fim da guerra, 1870) 28 + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRAS! 9, Procissdo fostiva de escraves passa pela rua Direita. Contando com « maior populegao urbana de escravos registrada desde o fim do Império romano, 0 Rio de Janeiro inka ares de cidade africana em meados do século passado. Nesta époce, um terco dos habitantes do municipio havia nascido na Africa. (Paul Harro-Harring Cena na rua Direita, 1840) “mulato quase escuro”, Caracteristicas de quem vinha de co- munidades étnicas distintas dos povos da Africa Ocidental e Central até entao deportados para a Colonia e o Império. Outros municipios ¢ cidades brasileiras e americanas ti- nham proporcdes maiores de cativos. Uma das mais fortes deve ter sido a registrada defronte a corte, em Niterdi, onde, em 1833, quatro quintos da populacao eram escraves. Ou em Campos, ainda na provincia fluminense, povoada em 1840 por 58 mil habitantes, dos quais 59% eram escravos.” Salva- dor também possuia uma importante populagao africana li- vre ou cativa. No entanto, a capital baiana tinha menor porte, cerca de 81 mil habitantes em 1855, reunia menos europeus € nao concentrava — como a corte — os atributos politicos € culturais que acentuavam os contrastes da escravidao urbana no Rio de Janeiro.* Num plano mais geral, 0 Impétio também discrepava, em meados do século, das outras duss grandes regides escra- vistas da América: Cuba e os Estados Unidos. Cuba vivia ainda sob o dominio colonial espanhol e as implicacoes mais amplas do problema incorriam na responsabilidade de Ma- dri. Nos Estados Unidos, 0 escravismo, desconectado do tra- fico africano desde 1808, tornara-se uma “instituigao pecu- liar” restrita ao Sul do territério e resolutamente combatida pelos outros estados da Uniao. Entranhado no Estado centralizado, difundido em todo © territ6rio, na corte e nas provincias mais présperas como IDA PRIVADA E OFDEM PRIVADA NO IM nas mais remotas, 0 escravismo brasileiro ameacava a estabi- lidade da monarquia e fezia o pais perigar. E a elite imperial sabia disso: malgrado a ameaga das canhoneiras da marinha de guerra britanica, o Brasil seré — até 1850 — 0 unico pais independente a praticar o trafico negreiro, assimilado a pira- taria e proibido pelos tratados internacionais e pelas propriss leis nacionais. A tolerancia com 0 comércio negreiro reduzia © Império a categoria dos estados barbarescos do Norte da Africa implicados na pirataria. Sob a alegagio de estancar essas atividades no Mediterraneo, a Inglaterra havia fincado pé em Gibraltar e Malta ea Franga invadira a Argélia (1830). Nesse contexto, o bill Aberdeen (1845) — decretado pelo go- verno britinico para ampliar a agao repressiva das canhonei- ras da Royal Navy contra os negreiros brasileiros — ficou conhecido no Império como o “bill argelino”. Tudo indica que a opiniao publica enfiou a carapuga, sen- tindo-se atingida no seu amor-préprio. Nao se pense, com efei- to, que o assunto interessava apenas diplomatas ¢ politicos de alto coturno. Um incidente banal ocorrido em 1857 demonstra © ressentimento criado entre as camadas populares da corte pelo fato de os paises europeus e, em particular, 0 governo britinico tratarem os brasileiros como reles piratas mouros. Um casal inglés, empregado na nova Companhia de Tumina- ‘40 de Gaz, desentendera-se com um delegado carioca. Julgan- do-se ofendido, o meganha exclamou: “Vocés pensam que esto em terras de mouros?” e, ato continuo, deu-lhes voz de prisao.” As conseqiiéncias internas do trifico preocupavam mais ainda a elite imperial. Na Aurora Fluminense, o grande jorna- lista Evaristo da Veiga verberava, desde 1831, os negreiros que queriam “fricanizar 0 Brasil”, introduzindo cada vez mais escravos no Império.”* Quinze anos mais tarde, o sentimento do absurdo suscitado pelo panorama social e politico do Im- pério inspira a Goncalves Dias 0 seu poema em prosa Medi- tagao (1846), escrito depois de seu retorno da Universidade de Coimbra e trés anos antes de sua mudanca do Maranhao para o Rio de Janeiro: “E nessas cidades, vilas e aldeias, nos seus cais, pragas ¢ chafarizes — vi somente escravos |...) Por isto 0 estrangeiro que chega a algum porto do vasto império — consulta de novo a sua derrota e observa atentamente os astros — porque julga que um vento inimigo o levou as Cos- tas d’Africa. E conhece por fim que esta no Brasil”? 30 + HISIORIA DA VIDA PRNADA NO BRASIL 2 Com o término do trafico de africanos em 1850, um fluxo intenso de imigrantes lusitanos, por vezes embarcados na frota negreira reciclada neste novo tipo de transporte, chega a corte. Cruzada pelos fluxos migratérios dos cativos transferidos para a zona rural, e dos portugueses que chega- vam ao seu porto, a corte conservou praticamente 0 mesmo numero de habitantes entre 1850 e 1872. Mas a composicao étnica e social do municipio alterou-se de maneira radic. numero de portugueses dobrou, subindo de um décimo para um quinto da populagao total. Paralelamente, caiam as percentagens referentes aos escravos. Quanto aos africanos, seu niimero sofre uma grande redugao e corresponde, em 1872, a menos de 1% do total de habitantes. Em compensa- 40, a vizinha provincia fluminense aparece como unidade do Império que conta com a maior proporcao de escravos africanos. Repare-se que a vizinhanga dos interesses negrei- ros ¢ escravocratas fluminenses pesara no imobilismo da Coroa, e do Império, sobre a matéria. Onze dos doze depu- tados da provincia do Rio de Janeiro e da corte yotaram contra a Lei do Ventre Livre (1871). Do mesmo modo, em 13 de maio de 1888, oito dos nove deputados que votaram contra a Lei Aurea, haviam sido eleitos pela provincia flumi- nense, considerada por Joaquim Nabuco como a mais “rea- cionéria” do Império, porque, nela, “a escravidao estava po- liticamente organizada”* Segundo um célculo global de Haddock Lobo, o organi zador do censo de 1849, de cada dez habitantes do munici- pio, somente quatro eram brancos nessa tiltima data. Em 1872, em conseqiiéncia da imigracdo portuguesa, essa pro- porcao jé se invertera: de cada dez habitantes, seis foram clas- sificados como brancos. ‘A média de habitantes por domicilio, 0 “fogo” — o qual podia compreender nao sé 0s pais ¢ os filhos, como também outros parentes, os empregados ¢ os escravos —, atingia 9,8 no municipio da corte em 1849. Vinte anos mais tarde, com 0 aumento do niimero de casas e de imigrantes, essa média caira para 6,2. Enfim, 0 niimero volta a subir um pouco, passando para 7,2, no censo de 1890, quando os cortigos tornam-se ¢: racteristicos da cidade.” VIDA FRVADA € ORDEM PRIVADA NO WMPERO * 31 ‘A SUPREMACIA DA FALA CARIOCA Embora formado na Universidade de Coimbra, 0 mara- nhense Goncalves Dias, ao retornar ao Brasil, achava inacei- tével adequar as rimas brasileiras a métrica da prontincia Portuguesa. Numa carta para um amigo, Gongalves Dias ex- plicava que qualquer brasileiro estranharia um poema, seme- Ihante ao de um poeta portugués da época, no qual mite rimava com também.” O sentimento de divergéncia fonética ¢ lingiiistica era, alias, reciproco. Nas charges do célebre cari- caturista lusitano Bordallo Pinheiro, sobre a primeira viagem do imperador a Portugal (1872), aparece, entre as bagagens de d. Pedro 1, um “Guia de conversacao brasileiro-portugués € portugués-brasileiro”® Mas nao era 6 a orelha fina dos poetas ou a pena severa dos chargistas que registrava a diferenga. Amincios publica- 10. Envolvendo a corte, a provincia Muminense, que Joaquim Nabuco considerava a mais “reaciondria” do Império, concentrava os interesses ‘escravegistas ¢ teve grande influéncia sobre a politica imperial. (Candido Mendes, Atlas do Império do Brazil, 1868) GENTES, VOCE JA VIO JA? Novo “@ mut gracloso tuncy brazileire , poesia do’curioso Ik B., posto em musica pelo pro. fessor Dorison : 4¢ numero do No. vo Arpum de modinhas ; preco 800 rs. 11. “Gentes, vocd ja vio ja?” A’ venda naimprensa de mu- Mexendo na concordinncia verbal sica de Filippone e Comp., rus e no ritmo das modinhas, 0 bunds dos Latoeiros nu. 89. mole a Fnguagem € a misica ia ae basin, desde ioendos. de stevie NA rua dos Peacace‘esn, 19 vemdem-se cofres de jornal do ommércos et ferry, por pregus mpdicos dos nos jornais davam como caracteristica principal de al- guns escravos fugidos « sua fala “aportuguesada”. Natural- mente por terem sido criados por senhores portugueses, co- mo nota Gilberto Freyre, pioneiro no estudo desse género de documento.™ Se é verdade que aparecem referencias da mes- ma natureza a escravos sertanejos, de fala “amatutada’, os cativos que falavam portugués corretamente passavam por “perndsticos” diante de senhores inseguros em relagio a0 uso do vernaculo. Fabricio, o estudante de medicina carioca, per- sonagem de um romance de Joaquim Manuel de Macedo, refere-se assim a um escravo, dono de fala escorreita: “o mal- dito do crioulo era um classico a falar portugués””* Nessa altura, 0 sotaque da corte ainda nio havia se esta- bilizado e o Império dividia-se numa sucessio de falares dis- tintos. Eduardo Angelim, cearense de Aracati, foi para o Paré na grande seca de 1825 — primeiro movimento de migracao nordestina — e tornou-se um dos dirigentes da revolucao dos Cabanos (1835-6). Lider carismatico de grande dignida- de politica, foi considerado por Gongalves Dias como “o ribaldi brasileiro”. Testernunho anénimo de um de seus com- panheiros descreve-o em cores vivas: “homem de estatura que dava na craveira cearense, branco com laives de caboclo, a tez de jambo tostada do sol, a cabeca chata, pescogo grosso e curto, cabelos corridos e negros, os pés pequenos, 0 peito SUBTRUO A LI ESE ACMN0 (VENDA NA RUA DU OUITAVDN N77 AS AFAMADAs FOKMIVOAN DE LACAMERT PUL 1834 ORGANISADAS, COM A FEFORMA DOS DIAS SANTOS, PARA TODGS US BISPADOS 00 IMPERIO. largo, a musculatura e pose de um gladiador |...) Falava com corregao © vernaculo do Ceard, abundando em imagens e cortesias”. Donde havia, bem definido nessa época, um “ver- néculo” cearense e um tipo, uma “craveira” cabega chata.* Frei Francisco de Nossa Senhora dos Prazeres Maranhao, autor da Poranduba maranhense e dicionarista do tupi-gua- rani, registra no inicio do século xix “certo dialeto”, mistura de portugués e de linguas nativas, corrente na provincia nor- tista.” Da mesma forma que o Maranhao, Sao Paulo prati: ra até meados do século xvii um bilingiiismo, no qual a lin- gua geral, de uso doméstico e privado, era tao conhecida quanto a lingua portuguesa, praticada em ptiblico e na escri- ta. Dessa maneira, o linguajar paulista conservava — e con- serva até hoje nas cidades do interior — a dificuldade de expresso dos fonemas que nao existem no tupi-guarani, o f, o le o rr, Contudo, o corte bem distinto entre 0 r curto do interior paulista ¢ © r bem rolado do falarrr carioca sé se acentuou na segunda metade do século xtx, quando desem- barcou no Rio de Janeiro a imigragao portuguesa. Nos anos 1850, quando o numero de africanos se apresentava bastante elevado no Rio e na Bahia, é provavel que a lingua portugue- 12. Folhinhas Laemmert para 1854: concebidas e impressas na corte as pautam o cotidiano de todas 6s provincias. (Jornal do Commércio, cout. 1854) 3A + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 13, Em 1872, « populagao masculina portuguesa sobrepuiava a populacio ‘masculina brasileira em alguns bairros do Rio. No censo de 1890 essa tendéncia seré acentuada, Resultou dai um aportuguesarnento do sotague carioca. (LED-Cebrap) (Ver Apéndice, tabela 2.) sa nao tivesse curso entre boa parte dos habitantes das duas cidades, e de outras, como Campos e Niteréi, habitadas pot uma forte proporgao de africanos. Num discurso no Parla- mento, um deputado baiano declarou, em 1851, que 14 Bahia, “entre a populagao preta, nio se fala a lingua do pais” Na corte, a presenca mais densa de portugueses — donos da lingua —, e a presenca igualmente dense de africa~ nos ¢ de seus descendentes — deformadores da lingua ofi- cial —, levou a populacao alfabetizada a molder sua fala Aquela do primeiro grupo. Nos anos 1870, metade da populacdo masculina da corte era estrangeira, vinda principalmente de Portugal. Poucos anos antes, por volta de 1860, Ana Bittencourt registrava que 0s baianos podiam distinguir a fala “bastante aportuguesada” do sotaque “luminense.® Bem longe do advento do radio € muito antes ainda da televisao, os habitantes do Rio ja in- fluenciavam a fala dos habitantes das outras provincias. ‘A partir dos anos 1850, quando o Jornal do Commércio comega a publicar o registro dos debates parlamentares pre- viamente taquigrafados, 0s leitores de todo o Império pude- ram familiarizar-se com a linguagem mais apurada que pre dominava na corte, ou melhor, com a versio padronizada dos discursos editados pelo jornal.! Com efeito, as sessdes da Camara e do Senado passaram a ser transcritas numa sintaxe enum vocabulirio mais polido que apagava os regionalismos

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