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A dependência química e as relações de trabalho

Priscilla Folgosi Castanha

Publicado em 04/2012.

Elaborado em 03/2012

É comum encontrarmos decisões em que a dispensa por justa causa com


fundamento na embriaguez é descaracterizada, condenando a empresa
reclamada no pagamento de verbas decorrentes de uma dispensa imotivada
e até mesmo à reintegração do funcionário.

As dificuldades e dúvidas enfrentadas pelos empregadores na relação de trabalho com um


dependente químico, bem como a discussão sobre a possibilidade de demissão deste
funcionário, são temas de grande relevância atual, tendo em vista o assustador crescimento do
consumo de drogas nas cidades brasileiras e seus indissociáveis reflexos na vida profissional dos
dependentes, todavia, ainda considerado um tabu, tem sua importância ofuscada pelo
preconceito e falta de informação.

Busca-se através do presente artigo iluminar o debate, apresentando aos empregadores


algumas informações e ferramentas para enfrentar o problema.

Recente relatório do Ministério da Previdência Social revelou que a cada três horas, uma pessoa
é afastada do trabalho para tratar a dependência química no País. No ano de 2008 foram
concedidas 31.721 licenças, acima de 15 dias, para viciados em álcool, maconha, cocaína e
anfetamina. Em 2007 foram 27.517 licenças, o que indica um aumento de 15%, indicador sem
dúvida já superado.

O número reflete apenas uma das faces da influência das drogas no mercado de trabalho, já que
expressa o problema só entre os que têm carteira assinada no Brasil. Os dados mostram ainda
que a dependência está em alta entre empreendedores, médicos, advogados, economistas,
lixeiros, professores, funcionários públicos, todos do grupo cada vez mais amplificado nas
estatísticas de transtornos de saúde desencadeados pelo uso de entorpecentes.[1]

Evidente que o debate envolve aspectos não só trabalhistas, mas também médicos, sociais e
políticos, merecendo uma abordagem ampla e multidisciplinar que abranja toda a sociedade.

A legislação não se manifesta claramente sobre as obrigações do empregador em relação à


dependência química dos empregados no ambiente de trabalho, ficando a critério do
empregador a iniciativa de regulamentar internamente os procedimentos a serem adotados
quando verificadas estas situações.

Embora a Norma Regulamentadora 7 (NR-7) estabeleça a obrigatoriedade da elaboração e


implementação do Programa de Controle Médico e Saúde Ocupacional (PCMSO) por parte do
empregador, visando a promoção e preservação da saúde de todos os trabalhadores através dos
exames periódicos obrigatórios, não há definições claras das obrigações com relação aos
procedimentos para dependentes químicos.

Também é omissa a NR-5 de que trata da obrigatoriedade da Comissão Interna de Prevenção de


Acidentes – CIPA, que tem como objetivo a prevenção de doenças e acidentes decorrentes do
trabalho bem como de colaborar no desenvolvimento e implementação do PCMSO e PPRA além
de outros programas relacionados à segurança e saúde do trabalhador.

Todavia, independentemente do que prevê a legislação, as iniciativas empresariais para


prevenção e tratamento à dependência química são cada vez mais freqüentes, além de
recomendáveis, principalmente através de campanhas antitabagistas e de consientização sobre
os perigos do uso abusivo de álcool. Sendo certo que investimento em inciativas desta natureza
reverte em produtividade, assiduidade e redução do número de acidentes de trabalho.

O empregador deve investir em capacitação e multiplicação de informação, privilegiando e


incentivando iniciativas de prevenção. É imprescindível que a empresa mantenha total
confidencialidade do problema de forma a evitar a exposição do funcionário e que a adesão aos
programas seja voluntária.

O caráter educativo destas iniciativas, bem como o envolvimento da família, são essenciais para
a sua eficácia em longo prazo. Deve-se considerar ainda que os efeitos da dependência química
recaem não só sobre o indivíduo, mas também sobre toda a sociedade, sendo responsabilidade
de todos.

Muitas empresas, contudo, não estão aptas a identificar os sinais de alerta que possam estar
ligados à dependência, tais como:[2]

 Ausências durante o trabalho: os empregados geralmente costumam a se atrasar


frequentemente após o almoço ou sair de seus postos de trabalho para ir ao banheiro,
bebedouro, estacionamento, associações e etc.;

 Absenteísmo: podem ocorrer também faltas não autorizadas, licenças excessivas por
doenças, faltas com ou sem comprovação médica e usualmente nas segundas ou sextas-
feiras ou dias que antecedem ou sucedem feriados, faltas sucessivas por doenças vagas
como resfriados, gripes, enxaquecas e etc.;

 Acidentes de trabalho: o mau uso dos equipamentos de proteção individual e os


acidentes leves ou não relatados durante o trabalho e até fora do trabalho, podem ser
sinais de alerta;

 Queda de produtividade: atrasos na execução de tarefas ou no atendimento dos


compromissos, tarefas que levam mais tempo para serem cumpridas, desculpas ou
dificuldades para reconhecer erros, dificuldades com tarefas um pouco mais complexas,
descuidos e desperdícios de materiais, matéria-prima ou equipamentos;

 Relacionamento interpessoal: alternâncias no comportamento com colegas, reação


exagerada à críticas ou sugestões, empréstimo de dinheiro e endividamento, discussões
desnecessárias e irrelevantes;

 Hábitos pessoais: mudanças nos hábitos cotidianos como descuido com a higiene e
aparência pessoal, apresentar-se bêbado ou cheirando a álcool logo pela manhã,
mudança de comportamento ou confuso após o almoço.
Uma vez identificados estes sinais suspeitos, cabe ao empregador encaminhar o funionário para
o médico do trabalho ou assistente social e, no contexto organizacional, oferecer ajuda.

Em qualquer das situações de dependências químicas no ambiente de trabalho, cabe ao


empregador esgotar os recursos disponíveis para promover e preservar a saúde do empregado,
para somente se superadas as tentativas sem êxito, decidir-se pelo desligamento.

A Consolidação das Leis do Trabalho prevê, na alínea “f”, do artigo 482, a embriaguez (habitual
ou em serviço) como falta grave por parte do empregado ensejadora da extinção do contrato
de trabalho por justa causa. Esse dispositivo obviamente alcança o uso de outras drogas além
do álcool, todavia, é comum encontrarmos decisões em que a dispensa por justa causa com
fundamento na embriaguez é descaracterizada, condenando a empresa reclamada no
pagamento de verbas decorrentes de uma dispensa imotivada e até mesmo à reintegração do
funcionário.

Oportuno esclarecer que a embriaguez pode ser dividida em habitual (crônica) ou embriaguez
"no trabalho" (ocasional). A embriagues crônica é considerada uma enfermidade pela
Organização Mundial da Saúde e, segundo entendimento majoritário dos Tribunais, deve ser
tratada antes da extinção do contrato de trabalho, ou seja, entende-se que a empresa deve
tentar reabilitar o funcionário antes de desligá-lo.

Já a embriaguez ocasional sujeita-se ao poder fiscalizador e de punição inderente ao


empregador, que poderá penalizá-lo, com advertência ou suspensão.

Assim, recomenda-se que empregador encaminhe o funcionário que apresente sinais de


dependência química, seja por álcool ou outras drogas, ao setor de Medicina e Segurança do
Trabalho ou na falta deste, para órgão previdenciário para tratamento de saúde antes de adotar
punição mais rígida e definitiva.

A legislação brasileira dispõe que o empregado que possuir dependência química deve ser
afastado do trabalho por motivo de doença – e não por qualquer forma punitiva – devendo
receber do empregador o pagamento dos 15 primeiros dias decorrentes do afastamento. A
partir desse momento, o trabalhador passará a gozar do benefício previdenciário, ficando a
recuperação a cargo do sistema de saúde pública.

Tais procedimentos fundamentam-se na função social da empresa, esculpido na Constituição


Federal e, neste caso, interpretado no sentido de que a empresa deve proporcionar ao seu
empregado um tratamento digno para que o mesmo possa se reabilitar antes de ser desligado.

O juiz José Carlos Rizk, do Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região, em acórdão publicado
em 06.05.2008[3], ao deferir a reintegração de um dependente químico demitido durante
tratamento médico, argumentou que a função social do contrato consiste em cláusula geral, ou
seja, norma que apenas descreve valores, sem enunciar preceito ou sanção, permitindo que o
magistrado a aplique a cada caso concreto, buscando valores nos direitos fundamentais
previstos na Constituição da República.

Seguiu defendendo que a função social do contrato está diretamente ligada ao conceito social
da propriedade, haja vista que o contrato consiste no maior instrumento de circulação de
riquezas, eis que a valorização do trabalho humano constitui pilar da ordem econômica,
fundamentando-se, dentre outros princípios na função social da propriedade, insculpida na
Carta Magna, em seus arts. 5°, inciso XXIII, e 170, inciso III, o qual abrange não somente os bens
corpóreos como também os incorpóreos aplicando-se, portanto à empresa.
Conclui, portanto, que o direito do trabalho busca a realização da função social da empresa, pois
com a valorização do trabalho o indivíduo desenvolve plenamente a sua personalidade,
promovendo a busca do pleno emprego (art.170, inciso VIII), a redução das desigualdades e
sociais (art.170, inciso VII) e a dignidade da pessoa humana (art.1°, inciso III).

Neste contexto, advoga que o empregador não pode utilizar o seu direito potestativo de resilição
do contrato de trabalho para dispensar o reclamante, dependente químico, durante tratamento
médico, em razão da função social que desempenha e em observância, aos princípios
constitucionais.

Do mesmo entendimento partilha a Desembargadora Ana Cristina Lobo Petinati, da 5ª Turma


do TRT-SP, no acórdão nº 20090995621 publicado no DOE em 04/12/2009, do qual foi relatora,
consignando que, além dos fundamentos da República (valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa), dos princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da função social da empresa,
consignados na Constituição Federal, o Código Civil de 2002 também traz uma nítida valorização
da pessoa humana moralmente considerada, abrindo o caminho para o exercício pleno da
função social da empresa.

Ressalta que não se está minimizando a importância do lucro, mas sim constatando que a
sobrevida da empresa está colocada acima disso, numa tentativa de tornar capital e trabalho
partes integrantes de uma relação simbiótica. A empresa não sobrevive sem o lucro e a
tendência é a de que, com o amadurecimento da sociedade, o lucro não sobreviva em uma
empresa que não exerce a sua função social.

A desembargadora concluiu que "Não basta mais aos empregadores simplesmente cumprir suas
obrigações legais. É preciso que os detentores dos meios de produção e geradores de empregos
se conscientizem de seu papel na sociedade, atuando em prol da comunidade sempre que
possível, principalmente quando a ajuda reverterá em benefício a alguém que um dia já
contribuiu para o aumento de seu próprio lucro."

Não raro, portanto, a Justiça do Trabalho tem determinado a reintegração de dependentes


químicos demitidos durante tratamento médico, observada a suspensão do contrato de
trabalho enquanto perdurar o benefício previdenciário, bem como condenando a empresa no
pagamento de indenização por dano moral.

Evidentemente que a valorização do trabalho humano constituiu pilar da ordem econômica,


fundamentando-se, dentre outros princípios, na função social da propriedade, insculpida na
Carta Magna em seus artigos 5º, XXIII e 170, III, o qual abrange não somente os bens corpóreos
com também os incorpóreos, aplicando-se, portanto, à empresa.

O Direito do Trabalho busca, outrossim, a realização da função social da empresa, pois com a
valorização do trabalho o indivíduo desenvolve plenamente sua personalidade, promovendo a
busca do pleno emprego (art. 170, VIII), a redução das desigualdades regionais e sociais (art.
170, VII) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III).

A Constituição da República pressupõe como princípio fundamental a dignidade da pessoa


humana - que segundo o STF não se trata de direito fundamental, mas a fonte de todos os
direitos fundamentais - assim como os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, nos termos
do art. 1º Constituição da República.

Trata-se, contudo, de uma questão de saúde pública cuja responsabilidade não pode ser
transferida ao empregador, cabe sim a este adotar medidas educativas e incentivar o
tratamento médico, todavia, não surtindo efeito, não deve ser questionada a decisão de
rescindir o contrato de trabalho do funionário dependente químico, observado o período de
estabilidade provisória.

Notas
[1]
Fonte: Agência Estado
[2]
Grupo de Gestão de Pessoas de Manaus - http://www.grupos.com.br/blog/ggpm/
[3]
Acórdão nº 00401.2003.181.17.00.0

Priscilla Folgosi Castanha

Advogada Sênior do escritório Marcos Martins Advogados Associados, pós-graduada em Direito


Civil e Processo Civil e Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Escola Paulista de Direito.
Cursando MBA em Direito Empresarial na FGV.

Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT)

CASTANHA, Priscilla Folgosi. A dependência química e as relações de trabalho. Revista Jus


Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3215, 20 abr. 2012. Disponível em:
<https://jus.com.br/artigos/21560>. Acesso em: 23 out. 2017.

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