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educadores se
interroguem”
Convidadas pela curadoria da 31ª Bienal a contribuir com uma re-
“Algumas crianças de verdade, com túnicas de cetim, irão flexão sobre a educação no Brasil, escolhemos dividir esta respon-
jogando pétalas das alturas onde as terei acomodado, e sabilidade com pessoas que, no seu cotidiano de atuação, buscam
outra criança se sentará em uma grande lua, lá em cima,
reinventar a escola ou que pensam a prática educativa nas exposi-
amor, lá em cima. Olha, de vários ângulos, as Virgens do
Orvalho e a Virgem dos Pássaros, que como você sabe são ções de arte de maneira desconstrutiva e transformadora.
adversárias, contemplarão como a da Assunção se eleva, se Elaboramos seis perguntas e pedimos que cada um dos
eleva, de seu sepulcro. E, entre os compassos da Ave Maria, colaboradores escolhesse quais delas gostaria de responder, imagi-
quarenta grandes bonecos de papel e outras quarenta crianças nando escolas que (ainda) não existem ou tomando como referên-
ilustrarão a grande explosão mariana. Vai ser extraordinário,
cia a sua própria prática em educação:
céus”. Para Ocaña, era fundamental que as crianças
normalizassem a relação com seu mundo, não só pelo que à
1. O que é ou seria, para
época se chamava gay, ou alegre, também com suas fantasias
religiosas e suas mitologias populares.
você, uma escola pública?
Escola
Graziela Kunsch e Lilian L’Abbate Kelian emancipatória. Contudo, toda escola é singular e seus cotidianos, insuficientemente valoriza-
dos, reservam surpresas e produções positivas.
pública
Quase sempre que falamos de escola pública, estamos nos referindo às escolas estatais: imen-
sos equipamentos, de arquitetura uniforme, geridos por burocratas de carreira, professores
selecionados por um concurso público estadual ou municipal, projetos-político pedagógicos
genéricos e “de gaveta”. Dizemos que essa escola vai promover a universalização do direto à
educação. Minha provocação é para superarmos a identidade entre estatal e público. O que
A experiência da escola pública, por Elaine Fontana seria uma escola pública? Proponho alguns aspectos primordiais:
1) finalidade pública – a educação das pessoas como elemento central da tomada das deci-
Minha proximidade com a escola pública parte de diferentes experiências: estudei numa esco- sões; 2) financiamento público, mas, não necessariamente só público (que sua existência não
la municipal, em São Paulo; fui professora de artes da rede estadual; e, atualmente, converso esteja submetida às decisões de um indivíduo, de uma empresa privada, ou ao mercado);
com alunos que estudam na escola pública quando de suas visitas a museus e instituições cul- 3) transparência orçamentária e reinvestimento de possíveis ganhos financeiros no aprimora-
turais. Minha experiência me possibilitou observar e enfrentar as distinções entre as classes mento do projeto político-pedagógico, de acordo com avaliações realizadas; 4) transparência
sociais, assim como compreender que o que acontece em situações educacionais transcende de objetivos e resultados, bem como construção participativa da avaliação, levando em conta
as diferenças que existem entre as pessoas do grupo. Na década de 1980, quando era estu- tanto os profissionais como os estudantes e suas famílias.
dante, numa mesma escola havia crianças que viajavam para fora do país e crianças que não
tinham acesso a um televisor colorido. Ali, apesar de as aulas terem sido ministradas de forma Educação pública de verdade, por Graziela Kunsch
hierárquica e autoritária, desenvolvi uma atenção: me interessava a análise do que acontecia
em paralelo, à minha volta, os embates sociais e os universos diversos que compunham o que Para o Movimento Passe Livre (MPL), só haverá educação pública de verdade se o transpor-
era a escola para mim. Alunos descalços, a professora que referenciava viagem à Cuba, ami- te também for público de verdade. Muitas pessoas são excluídas das escolas geridas com
gos trabalhando, o menino com perna amputada que usava um skate como forma de locomo- recursos públicos e oferecidas gratuitamente porque não podem pagar as tarifas dos ônibus
ção, a condição social que apresentava cada uma das pessoas, mas também e principalmente até elas. Além disso, o direito universal à educação passa também pelo direito à cidade como
como elas criavam e se relacionavam naquele ambiente comum. um todo. Quando o MPL foi criado, em 2005, a luta era pelo passe gratuito estudantil. Com o
A escola pública daquele momento parece ter semelhanças com a de hoje. É lugar de centra- aprendizado conquistado pela própria luta, o movimento ampliou a sua reivindicação e passou
lização de poder e do estabelecimento da hierarquia. A fala do professor e do aluno pode, em a defender a gratuidade (Tarifa Zero) para todas as pessoas: “Aprendemos que o passe livre
alguns casos, ser muito parecida, por terem convívios sociais semelhantes; porém, o que os estudantil tem uma série de limitações. A começar, por ser um benefício e não um direito.
distingue é a condução não-dialógica das relações que se estabelecem entre eles. A domina- Os beneficiados recebem um número pequeno de viagens e o podem utilizar num itinerário
ção que a escola imprime sobre os alunos, a forma como a sociedade se apresenta naquela ainda mais restrito, delimitado entre casa e escola. Para ser de fato um investimento em edu-
micropolítica, é sem dúvida um dos aprendizados que os alunos podem reter. Além disso, cação, o passe livre teria que ser irrestrito, pois a educação não pode se limitar à experiência
temos a averiguação do saber na maioria das vezes por avaliação escrita, afastando o desen- escolar. Nos educamos indo a espaços culturais, conhecendo bairros diferentes dos nossos e,
volvimento das habilidades comunicativas que permitem se expressar, propor, debater e agir. fundamentalmente, experimentando a liberdade e a responsabilidade de poder ir para onde
quisermos”.
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Currículo e
Passou a ser um chavão a ideia de que a escola deva deixar de ser o espaço da transmissão
de conhecimento e passar a ser o espaço da sua produção. Mas como desenvolver pesquisa
numa estrutura de aulas, disciplinas, séries e testes padronizados? A pesquisa pressupõe li-
berdade, tempos alargados, erro, singularidade, momentos de socialização e avaliação crítica.
autonomia
Como podemos falar de pesquisa se, na prática, ainda estamos inscritos no marco de um cur-
rículo normativo?
Gosto de pensar em escolas que são comunidades de pesquisadores, uma diversida-
de de pessoas (e de diferentes idades) reunidas em torno de objetos comuns que desejam co-
nhecer e também indivíduos que desenvolvem projetos e pesquisas que só a eles interessam.
O currículo dessas escolas seria interdisciplinar, valorizando as competências, as habilidades
O conceito de autonomia, por José Pacheco (e, em bem poucos casos, conteúdos) muito essenciais das diferentes áreas do conhecimento.
Esse “currículo de arquitetura aberta” acolheria a diversidade cultural da comunidade escolar
A autonomia é um conceito de vasto espectro semântico. Na escola, não deve ser entendida só e da cidade ao seu redor.
como a progressiva independência do estudante em relação ao professor; é, também – e tal-
Gestão democrática
vez isso seja mais importante – a capacidade de influenciar na multiplicidade de situações do
processo de ensino-aprendizagem. Não é possível afirmar que a atividade autônoma exercida
nesse contexto se manifeste, de igual modo, em outros contextos sociais, mas alguns dados
empíricos sugerem a manutenção de procedimentos autônomos em situações não-escolares.
Independentemente dessa possível transição, o que importa reter é que as práticas educativas
condicionam o grau em que a autonomia se manifesta nos indivíduos.
O conceito de singularidade se situa aquém do conceito de autonomia. O reconhecimento da A democracia como ampliação permanente dos espaços para aprender, por
singularidade consiste na aceitação das diferenças inter-individuais dentro de cada espécie. José Pacheco
O reconhecimento da autonomia é de outra natureza: implica a rejeição do determinismo que
transfere a origem da singularidade para o domínio do acaso, bem como conceber a existên- A gestão democrática, que se diz existir, nada tem de democrática. Os professores que ocu-
cia de processos de auto-organização que geram as suas próprias determinações. Nessa as- pam cargos de direção, administração e gestão, estão sujeitos ao “dever de obediência hierár-
serção, autonomia será o primeiro elemento de compreensão do significado de sujeito como quica”. Mesmo que discordem de ordens “superiores”, deverão cumpri-las e fazer cumprir
complexo individual. Ela se alimenta da dependência do sujeito relativamente à sociedade e à aos seus “subordinados” (leia-se: outros professores). Poderemos falar de gestão democrática
cultura. quando as escolas ultrapassarem o âmbito restrito da educação escolar, para agir em múlti-
A escola é uma microcultura que exige adaptabilidade para o exercício de autonomia. plos espaços sociais, políticos e culturais.
Esta se exprime como produto da relação. Não existe autonomia no isolamento. Daqui decor- Em 1979, Lauro de Oliveira Lima escrevia: “A expressão ‘escola de comunidade’ pro-
re que um professor sozinho em sala de aula não é autônomo. cura significar o desenquistamento isolacionista da escola tradicional. Escola, no futuro, será
A aprendizagem da autonomia requer três atitudes do professor: de acessibilidade um centro comunitário propulsor das equilibrações sincrônicas e diacrônicas do grupo social
– é necessário que o aluno tenha acesso ao professor como pessoa; de iniciativa – é preciso a que serve. Não só a escola utilizará como instrumento ‘escolar’ o equipamento coletivo,
sugerir, intervir nos processos de modo a alargar o leque das opções; e de disponibilidade – como a comunidade utilizará o local da escola como centro de atividade. (…) A escola não se
importa que o aluno sinta no professor um apoiador e não um vigilante. reduzirá a um lugar fixo murado”.
Entre a escola, o bairro, a habitação, o clube desportivo, a associação cultural e recreativa, o
O currículo como mediação democrática, por Helena Singer local de trabalho ou de lazer, há que estabelecer uma corrente de interação humana capaz de
dar sentido ao cotidiano das pessoas e, assim, influenciar positivamente as suas trajetórias de
Em uma escola pública, no sentido por mim defendido anteriormente, educadores e estu- vida. Estaremos, então, a contribuir para a criação de espaços que, pela sua densidade antro-
dantes têm autonomia para construir o seu currículo, respondendo às curiosidades e aos pológica, podem servir para ajudar a despertar a vocação humana para a transcendência e,
interesses dos estudantes e às necessidades do contexto em que a escola está inserida. Quan- nessa medida, funcionar como verdadeiros laboratórios de laços sociais onde a vinculação éti-
do a escola se abre para o território, para as comunidades de onde vêm seus estudantes, as ca ao outro tenha a marca da solicitude mútua, do respeito e da sensibilidade. Potencializado
suas diversas culturas tornam-se o ponto de partida de seu currículo. A cultura, os saberes em práticas de autêntica relação social, o reconhecimento intersubjetivo surge como condição
e as experiências das pessoas daquele lugar dialogam, em uma perspectiva transversal, com de convivência, de paz e solidariedade, valores que, como sabemos, o mundo contemporâneo
os conhecimentos acadêmicos para produzir um novo conhecimento, que faça sentido para reclama, com urgência.
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à Bienal
orienta a participação de educadores, estudantes e famílias; a constituição da autonomia do
coletivo docente; a reflexão sobre a autonomia na passagem da infância para a vida adulta; a
instituição de suas regras e seus regimentos.
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o público
por narrativas hegemônicas), mas que configura, para cada época e contexto, um arcabouço
comum, um mundo compartilhado, a própria visibilidade em/da disputa. Conduzir o público
é, nesse sentido, levá-lo a tomar parte nessa disputa.
Urge reformular terminologias: desenvolver trabalho com e não trabalho para; substituir o ou
Mediação crítica
pelo e; trocar o eu pelo nós. Urge redefinir o perfil do mediador de aprendizagens, considerar
o aluno como participante ativo de transformações sociais. Bastará que os educadores se in- Da falsa dicotomia da diretividade e da não-diretividade, por José Pacheco
terroguem. É dessa capacidade de interpelar as práticas que emergem dispositivos de mudan-
ça em todos os espaços sociais onde ocorrem aprendizagens. Diz-nos um eminente teórico que o professor é um crítico reflexivo das suas práticas. E eu
A educação continua ainda a ser justificada mais como meio de controle social do que creio que o desenvolvimento do senso crítico poderá ocorrer nas mediações pedagógicas. As
como instrumento de aperfeiçoamento pessoal. Ensinar não é inculcar algo, mas fazer apren- transformações acontecem quando alguém se decifra através de um diálogo entre o eu que
der; e o professor não é aquele que impõe as respostas, mas o que coloca questões, dado que age e o eu que se interroga. E que, sempre que um professor se assume individualmente res-
não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que é. E não basta rejeitar práticas pedagógi- ponsável pelos atos do seu coletivo, transforma espaços de solidão em espaços de convivência
cas ditas tradicionais. É preciso afirmar, igualmente, que a liberdade se exprime e se aprende e diálogo. Nessa convicção, reagimos perante a hegemonia do modelo transmissivo, porque é
com os outros. a partir de questionamentos que se elaboram projetos de produção de vida e de sentido para
a vida. Insistimos numa relação interpessoal e na relação com um território biológico e psico-
Escutar as razões do outro, por Graziela Kunsch lógico de partilha em redes de aprendizagem. Donald Woods Winnicott define o ser humano
como pessoa em relação, ser singular, que não pode existir sem a presença do outro. O indiví-
Recentemente, li uma fala muito bonita do cineasta Eduardo Coutinho, que para mim funciona duo-com-os-outros tem consciência do seu papel numa ordem simbólica complexa e concreta,
como uma reflexão sobre a disposição que nós educadores precisamos ter: “É uma necessi- que o protege dos efeitos mortais da uniformização. Se é verdade que o conceito de partilha
dade imperiosa ter a colaboração do outro. E essa adesão ao objeto implica uma postura que está eivado de conotações moralistas, também é certo que é de partilha que se trata, da mani-
chamo de vazio, no sentido de que o que me interessa são as razões do outro, e não as mi- festação de um sentimento de partilha que rejeita atitudes de quem se julgue no direito de dar
nhas. Então, tenho de botar as minhas razões entre parênteses, a minha existência, para ten- respostas a perguntas que não escutou…
tar saber quais são as razões do outro, porque, de certa forma, o outro pode não ter sempre Nas escolas que acompanho, contrariando racionalidades mecanicistas, compreendemos que,
razão, mas tem sempre suas razões”. numa relação de escuta, a circulação de afetos produz novos modos de estruturação social.
Não negando o potencial da razão e da reflexão, juntamos-lhes as emoções, os sentimentos, as
A condução necessária, por Cayo Honorato intuições e as experiências de vida. A escuta, para além do seu significado metodológico, terá
de ser humanamente significativa e de assentar numa deontologia de troca “ganha-ganha”.
A pergunta sobre como o público não deve ser conduzido pressupõe negativamente a ideia de Terá de abdicar de atitudes magistrais, para que todos os intervenientes aprendam freireana-
conduzir, o que não seria embaraçoso se a própria pedagogia não significasse, na sua origem, mente mediados pelo mundo.
a “condução da criança”. Logo, como pensar numa prática educativa que, de algum modo, É necessário saber fazer silêncio “escutatório”, fundamento do reconhecimento do
nega a pedagogia? Decerto, posso imaginar que “não conduzir” signifique, numa só formula- outro. Direi que precisamos rever a nossa necessidade de desejar o outro conforme nossa
ção: não providenciar, nem facilitar, muito menos impor leituras ou interpretações a respeito imagem, respeitando-o numa perspectiva não-narcísica, ou seja, aquela que respeita o outro, o
de uma exposição. Isso mesmo quando as exposições, nos melhores casos, são concebidas não-eu, o diferente de mim, aquele que não quer catequizar ninguém, e que defende a liberda-
em torno de conceitos específicos, de nenhum modo arbitrários. de de ideias e crenças.
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Entendo que uma mediação crítica seria aquela que não busca facilitar a experiência do públi-
co, no sentido de tornar a obra mais transparente, mas a que busca estratégias de multiplicar
a sua poeticidade (poética + opacidade).
Gosto de pensar na diferença entre a homeopatia e a alopatia. A alopatia, diante de
um sintoma, procura combatê-lo, silenciá-lo até. A homeopatia, por sua vez, busca salientá-lo,
até intensificá-lo, para que então o corpo mesmo reaja. É assim também que os soros antio-
fídicos funcionam no caso de uma mordida de cobra. A cura (reação) não está na supressão,
facilitação ou diluição do conflito presente em uma obra, mas na intensificação do sintoma, na
concentração, na potencialização. Gosto de pensar que as boas obras são aquelas que nos pi-
cam e inoculam um veneno que não nos deixa dormir, que alteram o nosso eixo de equilíbrio.
Uma mediação crítica é fiel ao veneno e consiste em uma segunda picada.
O discurso edificante e benevolente da maioria dos departamentos educativos de instituições
artísticas me dá enjoo, pois opera a partir do apaziguamento do conflito, garantindo digesti-
bilidade e palatabilidade para a obra. Parece-me que essa lógica é a do consumo, pois busca
garantir a “satisfação do público”, tornado consumidor, portanto. Dessa maneira, o educativo
torna-se um prestador de serviço para a instituição, e o círculo patrocinador-instituição-consu-
midor satisfeito se encerra de maneira “bela e eficiente”.
E se deixássemos o nosso público ir para casa insatisfeito, com indigestão, irritado e se sentin-
do traído na sua expectativa de “quero ir pra casa satisfeito”? Acho importante pensarmos um
projeto educativo que garanta a sobrevivência do espanto e do incômodo, que acredito serem
os dois maiores capitais pedagógicos, pois podem (sem garantia) ativar o antigo “desejo de
querer saber mais”, base de toda a filosofia. Entendo que esse seria o real estado de participa-
ção, potencializado pela ação educativa. Ou seja, o público entra na exposição como especta-
dor e sai como participador da obra, dando-lhe sobrevida e continuação para além-mar. Como
pensar, assim, numa mediação que opere a partir de uma “garantia de insatisfação”?
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