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Santos - Espetáculo e Ideologia
Santos - Espetáculo e Ideologia
CENTRO DE HUMANIDADES
Fortaleza
Maio/2013
3
Fabiano José Araújo dos Santos
Fortaleza
Maio/2013
4
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Estadual do Ceará
Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho
Bibliotecário Responsável – Francisco Welton Silva Rios – CRB-3/919
CDD: 145
5
Dedicatória e Agradecimentos
Dedico esse trabalho a meus pais e minha família. Os motivos são tão óbvios que
se fazem desnecessários aqui.
Dedico ainda aos amigos e pessoas queridas que tiveram de alguma forma sua
contribuição na realização desse projeto. Não são poucos e alguns sequer têm ideia de
sua importância, portanto, citar nomes seria uma tarefa difícil.
6
Resumo
A compreensão da ideologia ocupa papel central na crítica de Debord ao que ele chama
de espetáculo moderno. Este, por sua vez, seria o estágio mais desenvolvido, e por nós
conhecido, da sociedade de classes, no momento em que por seu desenvolvimento as
forças econômicas ganham autonomia ao estenderem por todo o mundo o domínio da
mercadoria. Tal fato, todavia, não poderia ter sido possível se não fossem as derrotas
dos principais movimentos revolucionários do século XX em dois momentos cruciais, o
primeiro quarto do século e o período que vai de cerca de meados dos anos 60 a fins de
anos dos anos 70. Essas lutas, portanto, assistiram ao nascimento e o fortalecimento do
regime espetacular do capital, inicialmente na divisão entre espetáculo difuso e
concentrado e depois na fusão desses dois no espetáculo integrado, podendo ser dito do
espetáculo como um todo que ele não trata apenas da gestão econômica, mas do próprio
controle de seus dominados. Entendê-lo é, portanto, entender como se dá essa
dominação na complexidade de suas técnicas de controle, tanto pelo aspecto objetivo da
força armada do Estado, quanto no domínio objetivo e subjetivo das imagens do capital
ali onde a sociedade da mercadoria se encontra mais desenvolvida. No que diz respeito
a esse aspecto subjetivo, a crítica de Debord retoma sob nova perspectiva a relação
proposta pelo filósofo e sociólogo húngaro Joseph Gabel das diferentes formas de
formas de consciência antidialética, em especial a relação das formas social e clínica
(para ele, a esquizofrenia). De fato, acreditamos estar aqui o fundamental da proposta
desse trabalho, tendo em vista não se tratar de um aspecto muito explorado da crítica de
Debord, além de se basear em um diálogo deste com um autor pouco conhecido no
Brasil até mesmo em sua área. Quanto ao conjunto do trabalho, diríamos que pela crítica
da ideologia é possível entender não apenas aspectos fundamentais desse elemento
subjetivo tanto da perspectiva clínica, quanto em sua relação com a economia – que
retoma ainda o Lukács de História e consciência de classe – e logicamente com a
própria política, onde ganham destaque a crítica da representação e o projeto de
superação da sociedade de classes por meio da revolução, discussão que, por sua vez, se
mostra original ao destacar a análise dos Conselhos e o aspecto da linguagem nas lutas
práticas, em exata oposição ao diálogo unilateral do espetáculo.
The understanding of ideology is central to the critique of Debord to what he calls the
modern spectacle. This, in turn, would be the most developed, and for us known, stage
of the class society, by the time of its development when the economic forces gain
autonomy to extend worldwide the mastery of merchandise. This, however, could not
have been possible if not for the defeats of the main revolutionary movements of the
twentieth century in two crucial moments, the first quarter of the century and the period
from about the mid-60s to late 70s. These struggles, therefore, attended the birth and
strengthening of the capital’s spectacular regime initially in the division between the
forms diffuse and concentrated and then in the fusion of these two in the integrated
spectacle, therefore allowing to be said of the spectacle as a whole that it is not just
about the economic management but the actual control of the proletarians. To
understand it is therefore to understand how is this domination in the complexity of its
control techniques, both the objective aspect of the armed force of the state, as in the
field of objective and subjective images of the capital's where the commodity society is
more developed. Regarding to this subjective aspect, Debord's critique resumes under
new perspective the relation proposed by the Hungarian philosopher and sociologist
Joseph Gabel of the different forms of anti-dialectical consciousness, in particular the
relation between social and clinical form (for him, schizophrenia). In fact, we believe
that here we have the fundamental purpose of this study, noting that this has not being a
very exploited aspect of Debord’s critic, besides be based on a dialogue with an author
very little known in Brazil even in his field of study. Regarding this study as a whole,
we would say that by the critique of ideology is not only possible to understand
fundamental aspects of this subjective element by the clinical perspective, but also in its
relationship with the economy - which also resumes the Lukács of History and Class
Consciousness - and logically with politics itself, discussion highlighted by criticism of
representation and the project to overcome class society through revolution, discussion,
in turn, that brings the original analysis of the Councils and the aspect of language in
practical struggles, in exact opposition to unilateral dialogue of the spectacle.
8
Sumário
Apresentação.............................................................................................................pg. 10
Bibliografia..............................................................................................................pg. 117
9
Apresentação
1
Martos, J. F., Histoire de l’Internationale situationniste, Paris : Ivrea, 1995, p. 62.
10
de explicar o fundamento da teoria da consciência reificada como base para a crítica da
representação ideológica, que melhor exploramos no capítulo seguinte. Neste, por sua
vez, a preocupação é também compreender o espetáculo em sua gênese histórica não
apenas como resultado do superdesenvolvimento das forças produtivas sociais, mas na
consolidação e fortalecimento desse poder econômico também a partir das derrotas dos
movimentos contestatórios do século XX em dois momentos decisivos: os anos de 1920
e 1930 e o período compreendido entre fins dos anos de 1960 e fins da década de 1970,
o primeiro referente ao espetáculo em suas formas difuso e concentrado e o segundo
dizendo respeito à origem da forma mais contemporânea do espetáculo, o espetacular
integrado; resultado da fusão das duas anteriores. No terceiro capítulo, por fim,
refletindo acerca do aspecto unitário da teoria revolucionária, ou seja, sua concepção
como inseparável relação entre pensamento e prática, discutindo ainda o método do
desvio como o método dialético revolucionário por excelência e o objetivo da
revolução: a instauração da sociedade sem classes e com ela a superação da ideologia.
11
antidialética, a partir da crítica da economia política, colocando essa forma de
consciência como expressão direta das relações impessoais mercantis tanto no âmbito
da produção (o “chão de fábrica”) quanto da distribuição para o consumo mercantil
(relações de compra e venda). Gabel, por outro lado, tenta alargar o conceito de
consciência antidialética colocando como denominador comum às diferentes formas
desta consciência a própria noção de dialética proposta por Lukács em sua HCC. Assim,
Gabel reconhece os méritos de HCC como primeira aproximação, em certo sentido, da
crítica da economia política aos desenvolvimentos da psicanálise. Ele acredita com isso
poder explicar não só a consciência social reificada de tipo econômico, mas também,
por exemplo, suas expressões políticas e ideológicas, como a consciência racista, e a
consciência antidialética de tipo clínico, a esquizofrenia, podendo, a partir daí, também
relacioná-las, no que ele chama de “paralelismo sociopatológico”.
12
No segundo capítulo, as formas do espetáculo são apresentadas em sua relação
indissociável com as principais lutas negadoras da ordem vigente no século passado,
esclarecendo que o espetáculo não se constitui, portanto, como já anunciamos, única e
exclusivamente como resultado do desenvolvimento histórico das forças produtivas,
mas também na adoção de técnicas de controle (das quais a ideologia se constitui como
o núcleo fundamental) cada vez mais virulentas sempre que o poder do capital se vê
ameaçado historicamente. Com base nisso, as duas formas iniciais do espetáculo,
concentrado e difuso, são apresentadas aqui como consequência das derrotas do
movimento operário dos anos de 1920 em sua estreita relação com o pensamento de
esquerda tradicional dominante de então: a socialdemocracia alemã e o bolchevismo
russo; enquanto a fusão destas duas formas é aqui aduzida, a partir dos Comentários
sobre a sociedade do espetáculo, como consequência das lutas dos anos de 1960,
movimentos em relação aos quais a SdE de Debord se constitui também como tentativa
de expressão.
2
Advertência da edição francesa de 1992. In: Debord, G., A sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997, p. 9.
3
Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo. In: Debord, G., op. cit., p. 151-152.
13
que “as velhas linhas de defesa que haviam barrado as ofensivas anteriores da revolução
social estava descontroladas e corrompidas”,4 o que lhes deu “a ocasião de se tentar
mais uma”.5 De fato, a teoria crítica de Debord tem como pressupostos de sua força dois
aspectos fundamentais: a união dialética entre teoria e prática e seu reconhecimento
como luta histórica, o que a coloca muito próxima do messianismo de Benjamin, este
que compreende cada tentativa revolucionária como momento único que reúne em si a
força de todas as lutas anteriores, devendo, dessa forma, redimi-las no momento de sua
vitória. A derrota de qualquer tentativa não deve, portanto, representar seu fracasso,
senão fortalecer a consciência da luta e das práticas futuras.
Esse aspecto, na verdade, ganha uma maior atenção no último capítulo, quando
discutimos a teoria revolucionária em sua história e em seus aspectos mais essenciais,
de acordo com a análise de Debord. É assim que trazemos à discussão o método do
desvio [détournement] como método fundamental da teoria, sem desconsiderar que, por
sua vez, este não se distingue de uma consideração acerca da linguagem e da memória.
Por fim, concluímos com uma pequena discussão sobre o objetivo último da teoria de
Debord, a dissolução da ordem burguesa e com ela de toda ideologia. Passemos então às
questões fundamentais.
4
Ibidem, p. 151.
5
Ibidem.
14
Capítulo I
Ideologia e Espetáculo
15
iniciado a partir do período compreendido entre as duas guerras mundiais como o
espetáculo.
O interesse de Debord pela questão deve ser entendido a partir da própria análise
crítica do capitalismo superdesenvolvido, tendo em vista que a consideração dessas
categorias se faz fundamental tanto para a compreensão do espetáculo como técnica de
poder (um dos aspectos da ideologia materializada), quanto na consideração do conjunto
das formas de consciência próprias a essa sociedade (a falsa consciência geral) em
vistas da tentativa de elaboração de uma teoria revolucionária que a supere.
A relação entre análise e síntese pode ser entendida precisamente como o ponto
de diferenciação do método de Marx e o sistema filosófico de Hegel, sua referência.
Hegel, em seu idealismo consequente, parte da identidade entre ser e pensar para
afirmar a igualdade entre método e realidade, ao passo que em Marx análise e síntese
dizem respeito a momentos isolados da pesquisa e da apresentação de seus resultados.
Enquanto Marx considera que essa apresentação não reproduz um desenvolvimento
histórico, mas se constitui de uma exposição lógica das categorias – apreendidas pelo
intelecto através da análise –, capaz de diferenciar por ordem de importância as
categorias do objeto de estudo,6 em Hegel, a exposição diz respeito ao próprio
movimento do objeto de que se ocupa a análise, o que pode ser entendido quando ele
afirma, por exemplo, que a razão lógica “é o substancial ou o real, que mantém unidas
todas as determinações abstratas e é sua unidade consistente, absolutamente concreta”.7
Há de se observar, todavia, acerca dessa identidade proposta por Hegel que é
exatamente a partir dela que seu método não consegue superar a determinação infinitista
e idealista que, como em Adam Smith, de quem foi leitor, condena todo seu projeto a
uma perspectiva a-histórica – não importando quão irônica seja sua busca por apresentar
um método de compreensão da história que seja ao mesmo tempo justificação do novo
modo de organização social que ele tenta entender em sua totalidade.
Debord, por sua vez, tem em mente o materialismo dialético em sua exposição
crítica do espetáculo. É ciente dos recursos do método que ele pode apresentar, logo nos
primeiros capítulos da SdE, as determinações mais abstratas de seu objeto de
investigação – a mercadoria dentre elas – em referência e constante relação com a
totalidade do mesmo. Segundo ele:
8
Marx, K., Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 110.
9
Azevedo, E. E. B., A crítica das formas jurídicas de Marx. 2008. 136 f. Dissertação (mestrado em
filosofia) – Centro de Humanidades, Universidade Estadual do Ceará – UECE, Fortaleza. p. 92.
18
Para descrever o espetáculo, sua formação, suas funções e as forças que tendem a
dissolvê-lo, é preciso fazer uma distinção artificial de elementos inseparáveis. Ao
analisar o espetáculo, fala-se de certa forma a própria linguagem do espetacular,
ou seja, passa-se para o terreno metodológico dessa sociedade que se expressa pelo
espetáculo (SdE, § 11).
10
Marx, K. O capital, São Paulo: Nova Cultural, 1983, p. 45.
19
os descobrem como atos históricos, através do desenvolvimento de suas forças
produtivas e ampliação de sua divisão do trabalho. Por outro lado, esse valor de uso é
portador de um “valor intrínseco à mercadoria”11 que se desvela primeiramente pela
troca dos resultados do excedente da produção de um grupo social – e, como tal, casual
e sujeito à relatividade no processo de troca com outras comunidades. É este duplo
caráter da mercadoria (valor de uso e valor) que nos permite entender que o dinheiro
aparece precisamente como o resultado da especialização histórica do processo de troca
privada, afirmando-se como a mais perfeita especialização da própria mercadoria, o
equivalente geral no qual todas se veem representadas. Ele é ainda o que nos permite
entender como a sociedade capitalista orienta os próprios rumos da atividade produtiva,
voltando-a por completo para a produção de valor.
Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos
trabalhos neles representados, e desaparecem também, portanto, as diferentes
formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro para
reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano
abstrato.12
11
Ibidem, p. 46.
12
Ibidem, p. 47. Itálico nosso.
20
produção de diferentes tipos de mercadoria, bem como das diferenças técnicas e
materiais entre os produtores, vale, por sua vez, uma consideração “média” entre esses
tempos, ou seja, o tempo “requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas
condições dadas de produção socialmente normais, e com o grau médio de habilidade e
de intensidade de trabalho”,13 o que Marx chamou de tempo de trabalho socialmente
necessário.
13
Ibidem, p. 48.
14
Ibidem, p. 49.
21
O valor de troca só pôde se formar como agente do valor de uso, mas as armas de
sua vitória criaram as condições de sua dominação autônoma. Ao mobilizar todo
uso humano e ao assumir o monopólio da satisfação, ele conseguiu dirigir o uso. O
processo de troca identificou-se com os usos possíveis, os sujeitou. O valor de
troca, condottiere do valor de uso, acaba guerreando por conta própria (SdE, § 46).
22
Mas o fetichismo não deriva de outra coisa que do próprio caráter peculiar do
trabalho abstrato que dá origem às mercadorias, o trabalho voltado à produção de valor.
Por sua determinação fundamental de estar orientado para a troca, não para a satisfação
de necessidades, o trabalho assalariado em larga escala acaba por realizar uma inversão
que confere à mercadoria as características sociais dos trabalhos individuais que lhes
dão origem. Nas palavras de Marx:
Em Marx, a crítica do fetichismo pode ser entendida como uma versão mais
aprimorada da teoria da alienação que ele já havia esboçado em seus Manuscritos de
1844. Não que isso queira dizer que esta se encontra invalidada pela crítica presente em
O capital, mas, ao contrário, de fato a confirma e a aprofunda. Ambas, de fato, acabam
por se complementar. Se o fetichismo é o que confere às mercadorias autonomia em
relação aos próprios produtores que lhes deram origem, a teoria da alienação, por sua
vez, explica a objetividade opressora do mundo criado por essas mercadorias. Em
acordo com essa análise, Debord explica da seguinte forma o fundamento do
espetáculo:
15
Marx, K. O capital, São Paulo: Nova Cultural, 1983, p. 71.
23
da despossessão. Com a acumulação de seus produtos alienados, o tempo e o
espaço de seu mundo se tornam estranhos para ele. O espetáculo é o mapa desse
novo mundo, mapa que corresponde exatamente a seu território. As forças que nos
escapam mostram-se a nós em todo o seu vigor (SdE, § 31).
16
Ibidem, p. 52. Itálico nosso.
24
somente com base no jogo de forças que se dá no interior do Ser mesmo que se pode
pensar sua autossuperação.
Ao sair da imediatidade a essência põe um outro diante de si, por meio da qual
se reflete, ou seja, se reconhece como essência e em referência ao qual pode afastar-se
para realizar as determinações que já trazia em si. Mas estando a essência inseparável de
si mesma, esse outro que se coloca diante dela só pode ser uma “inessência”, uma
ilusão, ou precisamente o que Hegel chama de aparência. Esta é, portanto, o que
“sobra” como resultado desse primeiro momento de autossuperação da essência.
Aparição (ou fenômeno), por sua vez, seria a essência ao afirmar-se como existência.
Para Hegel, portanto, a aparição (Erscheinung) – e, como resultado dela, a aparência
(Schein) – no finito são na verdade a forma de realização do infinito, a forma em que
este vem à aparência (ou seja, erscheint) tendo em vista que buscar compreender um
separado do outro seria impor limites ao conhecimento de ambos. É essa relação de
igualdade entre ser e pensar, ou seja, o mundo como um conjunto de determinações da
razão universal como princípio infinito criador e autoconsciente, que permite
compreender a finitude como dotada de verdade, não como finitude, mas somente nessa
relação; é o que se expressa no célebre aforisma presente em seus Princípios da filosofia
do Direito em que ele afirma que “o que é racional é real e o que é real é racional”.18
Marx, por outro lado, ainda que entendendo o domínio da mercadoria sobre o
mundo com a perspectiva materialista diametralmente oposta ao idealismo hegeliano,
essa que tenta explicar a nova sociedade como momento histórico de realização da
17
Hegel, W. F. Ciência da Lógica [excertos], São Paulo: Barcarolla, 2011, p. 106.
18
Hegel, W. F. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, Prefácio, p. xxvi.
25
razão lógica no mundo, ao retomar essas categorias numa perspectiva crítica, não
diferencia os traços gerais da compreensão destas de modo tão radical. Ressignificando
o mesmo esquema de desenvolvimento apresentado por Hegel, para ele, a essência
agora diz respeito à esfera da produção de capital, enquanto aparência e aparição são
entendidas como correspondentes respectivamente à circulação mercantil e aos
resultados do processo como um todo. Por essa perspectiva, ele vai avançar a exposição
do caráter fetichista da mercadoria ao mostrar como, no processo de circulação de
mercadorias, o dinheiro ganha a autonomia face aos envolvidos no processo de compra
e venda. Segundo Marx, o duplo caráter do dinheiro – reflexo do duplo caráter da
mercadoria –, ou seja, o de ser meio circulante (na circulação simples de mercadoria, M
– D – M) e o de ser capital (na circulação do dinheiro como capital, D – M – D’), é o
elemento por meio do qual se oculta a própria função das mercadorias como valores de
uso. Podemos ver pelos esquemas ilustrativos que do ponto de vista do produtor o
dinheiro é apenas meio para satisfação de necessidades (M – D – M), enquanto que,
tomado como ponto de partida, só faz sentido que ele seja colocado no circuito se em
retorno obtiver uma quantidade maior que a empregada incialmente (D – M – D’). E é
precisamente aqui onde se percebe que “a circulação de mercadorias distingue-se não só
formalmente, mas também essencialmente, do intercambio direto de produtos”,19 pois,
de fato, o dinheiro não desaparece ao realizar sua função de meio circulante, como
mostra o primeiro esquema. Como nos mostra Marx:
Por exemplo, na metamorfose total do linho: linho – dinheiro – Bíblia, primeiro sai
o linho da circulação e o dinheiro ocupa seu lugar; depois sai a Bíblia e o dinheiro
ocupa seu lugar. A substituição de mercadoria por mercadoria deixa, ao mesmo
tempo, a mercadoria monetária nas mãos de um terceiro. A circulação exsuda,
constantemente, dinheiro.20
19
Marx. K., O capital, São Paulo: Nova Cultural, 1983, p. 99.
20
Ibidem.
26
no processo de circulação, o que precisamente caracteriza uma aparência contrária que
de fato esconde a real essência do processo. De fato, é o que demonstra a comparação
entre os dois esquemas acima, tendo em vista que na ilusão do dinheiro como simples
meio circulante se esconde o fato de ser ele capital, portanto, meio de acumulação do
próprio capital, ou seja, valor que se valoriza. Nas palavras dele:
21
Ibidem, p. 130. Itálico nosso.
22
Ibidem, p. 125.
27
e a afirmação de toda vida humana – isto é, social – como simples aparência” (SdE, §
10), ou ainda, “o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” (SdE, § 34).
Mas ora, como sentido do domínio da mercadoria, o espetáculo pode ser ainda
entendido como o arcaísmo tecnicamente-equipado, arcaísmo este expresso “na
reintrodução formal e aparente de modos de experiência tradicionais, pós-modernos na
própria experiência moderna”.23 Dessa reintrodução se pode afirmar que é formal e
aparente na medida em que ela “é determinada sobre novas bases históricas, mas nem
por isso menos concreta e real”,24 e é isso que nos permite compreender, por exemplo, o
aspecto mais manifesto desse domínio – isto é, o tempo pseudocíclico do consumo –,
pois por meio do reuso do tempo e, num sentido mais amplo, do controle da vida
cotidiana operado pela mercadoria, a compreensão crítica do espetáculo é também a
compreensão de que na sociedade moderna “o mais moderno é aí também o mais
arcaico” (SdE, § 23).
23
Aquino, E. F., Reificação e linguagem em Guy Debord, Fortaleza: Editora da UECE, 2006, p. 67.
24
Ibidem.
25
Lukács, G. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 195.
28
fundamentalmente um conjunto de técnicas de poder, dentre as quais a ideologia assume
papel central. Equivale, portanto, a dizer que o conjunto dessas técnicas de poder
(objetivas e subjetivas) não pode ser pensado fora de sua relação com a economia
inicialmente por duas razões: primeiro, porque as formas de consciência que podemos
associar ao espetáculo não são apenas seu resultado, mas também jogam papel decisivo
na sua manutenção; segundo, porque as técnicas de poder espetacular, podendo ser
entendidas também como características do(s) modelo(s) de Estado que lhe é(são)
próprio(s), têm origem no resultado das lutas de contestação dessa ordem, que não são
outra coisa que o conjunto das lutas de classes mais significativas de uma época
histórica decisiva.26
Uma vez entendido que a produção da consciência, tanto em seu caráter geral
quanto individual, não pode ser pensada senão como uma única coisa em conjunto com
a totalidade da produção do mundo prático de uma sociedade, não há obstáculos para
que possamos afirmar que no espetáculo, “imagem da economia reinante” (SdE, § 14),
esta onde “o fim não é nada, o desenrolar é tudo” (idem), quer dizer, onde a economia
pôde de maneira efetiva se alienar completamente do conjunto da sociedade, a(s)
ideologia(s) que lhe serve(m) de suporte ganha(m) contornos que não podem de
maneira alguma ser ignoradas por uma teoria seriamente crítica. Atento a esse fato,
Debord busca em sua revisão da teoria revolucionária dedicar a este elemento a devida
importância, o que podemos atestar de maneira evidente quando ele chega a definir o
espetáculo como “a ideologia por excelência” (SdE, § 215).
26
É desse assunto que trataremos no capítulo seguinte.
29
capitalista, pode-se dizer que elas se assemelham enormemente. Prova disso é que ainda
que não se encontre em Marx (e, na verdade, nem em Debord) uma elaboração
definitiva do conceito de ideologia, observamos que o entendimento dessa categoria está
fundamentalmente baseada na separação entre teoria e práxis, que Marx explica, já em
A ideologia alemã, nos seguintes termos: “a divisão do trabalho torna-se realmente
divisão apenas a partir do momento em que surge uma divisão entre o trabalho material
e o espiritual”.27 Com isso, ele conclui que, somente a partir dessa dissociação, “a
consciência pode realmente imaginar ser algo diferente da consciência da práxis
existente, representar realmente algo sem representar algo real”.28
27
Marx, K. O capital, São Paulo: Nova Cultural, 1983, p. 44-45.
28
Ibidem, p. 45.
29
O espetáculo “não realiza a filosofia, ele filosofia a realidade. A vida concreta de todos se degradou em
universo especulativo” (SdE, § 19).
30
Marx, K. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel, introdução. In: Manuscritos
econômico-filosóficos, São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 45.
30
filosofias, mas também Estados”.31 É desta constatação que decorre o caráter radical da
teoria de Marx, também presente em Debord: a crítica da ideologia não apenas se limita
às formas de consciência em si e ao mundo que elas legitimam e constroem, mas antes
de tudo, é ela a crítica do mundo do qual essas formas de consciência são reflexo, o
mundo invertido que elas espelham. A crítica, consequente, entende que só com o fim
do mundo da separação é possível pôr fim à ideologia.
31
Ibidem, p. 46. Itálico nosso.
32
Korsch, K. Marxismo e filosofia, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008, p. 55.
33
Todavia esclarecendo que em Marx a crítica da ideologia não se limita a isso, pois Marx e Engels a
explicam com base na práxis social invertida. Ademais, ainda que dentro do limite de sua crítica da
ideologia, isto é, de não tê-la desenvolvido posteriormente de modo sistematizado, podemos ver a
importância deste momento da obra de Marx em termos das possibilidades a partir de então abertas na
afirmação de Gabel de que ele, Marx, “aparece não só como um dos fundadores da psicologia política,
mas como precursor num outro domínio: o do estudo do pensamento de-realista, fenômeno geral onde o
‘pensamento delirante’ em psicopatologia constitui um aspecto” (GABEL, 1979, p. 83).
31
ideologia “faz ver” (SdE, § 37).34 A ideologia, portanto, como expressão e instrumento
de poder própria a este mundo invertido em sua totalidade que é o espetáculo, deve ser
entendida também como algo qualitativamente diferente. Se o espetáculo é a realização
sistemática da separação, da perda da unidade do mundo, a ideologia é agora uma visão
de mundo objetivada, ou, segundo Debord, “uma Weltanschauung que se tornou efetiva,
materialmente traduzida” (SdE, § 5). Essa afirmação nos evidencia mais uma vez a
relação indissociável entre espetáculo e economia, pois este pensado para além de suas
características materiais, ou seja, agora referido em seu aspecto abstrato, “não é um
suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada” (SdE, § 6), mas
precisamente “o âmago do irrealismo da sociedade real” (idem).
Mas sigamos adiante. Considerando que tratamos até aqui de explicitar a base
material da ideologia e as bases teóricas de sua crítica na compreensão de Debord, nos
interessa ainda apresentar as características particulares dessa concepção de ideologia e
as referências para tal.
Sabemos que Debord está de acordo com os traços gerais da análise de Lukács
acerca do problema da consciência reificada, da forma que este a apresenta
precisamente na primeira das três partes de seu ensaio Reificação e consciência do
proletariado (a saber, “O problema da reificação”), presente em História e consciência
de classe. Ali, Lukács não apenas explora os aspectos econômicos do capitalismo
moderno, mas vai além ao explicitar as características que, segundo ele, são próprias
à(s) forma(s) de falsa consciência a ele correspondente(s), a consciência reificada. O
ponto de partida de Lukács é que as transformações que o domínio da mercadoria
condiciona em escala universal, a partir de sua lógica expressa no trabalho alienado, não
se refletem apenas como materializações objetivas, mas tem também no aspecto
subjetivo um papel importante. Isto se explica pelo fato, que já apontamos mais acima,
de que esses condicionamentos na ordem da percepção tendem a reforçar os
mecanismos que foram sua causa num momento anterior. Ou como ele nos explica:
34
“O espetáculo como tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já
não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como sentido privilegiado da pessoa humana – o que em
outras épocas fora o tato; o sentido mais abstrato, e mais sujeito à mistificação, corresponde à abstração
generalizada da sociedade atual” (SdE, § 18).
32
nas mercadorias. (Por outro lado, sua possibilidade histórica é mais vez (sic)
condicionada pela realização real desse processo de abstração.)35
34
Lukács os elementos que a habilitam a atuar como denominador comum para isto que
ele define como “paralelismo sociopatológico”,37 retomando uma expressão de H.
Aubin. A concepção de dialética do autor de HCC atende, portanto, às seguintes
exigências da proposta de Gabel:
37
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 70.
38
Ibidem, p. 95.
39
Lukács, G. História e consciência de classe, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 221.
40
Ibidem, p. 211.
41
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 88.
35
comum, a falsa consciência se constitui de “um estado de espírito difuso”,42 ao passo
que “ideologia é uma cristalização teórica”.43 Podemos tomar o nazismo como exemplo,
como o faz o próprio Gabel, para entender essa distinção conceitual. Vejamos: a
Alemanha do período imediatamente posterior à primeira guerra mundial tinha, de um
lado, sua economia devastada pelos resultados da guerra (desemprego; hiperinflação no
biênio 1922/1923, perda de território e dívida externa, de acordo com os termos do
Tratado de Versalhes etc). De outro, a socialdemocracia, maior representação da
esquerda oficial, encontrava-se desmoralizada dentre outras coisas por ter ela mesma
sido um dos elementos fundamentais para a entrada do país no combate e ter sido
responsável também pelo sufocamento do movimento revolucionário espartaquista,
envolvendo-se no assassinato de seus principais líderes, Rosa Luxemburg e Karl
Liebknecht. Em tal situação caótica, a sociedade encontrava-se em posição de completa
fragilidade e em tal perspectiva de falsa consciência extremada, de total incapacidade de
se colocar em autoanálise de maneira racional, que daria – como de fato deu – àquele(s)
que melhor representasse(m) os anseios coletivos a posição privilegiada de controle –
ou, de acordo com a perspectiva de Gabel, a imposição de sua ideologia. Foi assim que
os alemães viram o Partido Nacional Socialista eleger Adolf Hitler como seu chanceler
em 1933, depois de uma escalada de alguns anos saindo da completa inexpressividade
política.
A ideologia nazista, por sua vez, tinha no seu discurso a imagem de uma
Alemanha forte e unida rumo à recuperação dos horrores da guerra com base nos
valores da família e da tradição germânica. Na prática, todavia, não passava de um
esforço de recuperação do capital nacional, tendo o partido nazista chegado ao poder
muito graças ao apoio das forças políticas e econômicas conservadoras do país. Hitler,
assumindo o papel de figura capaz de canalizar as angústias e anseios do povo alemão
com seu projeto conservador, deveria estar à frente apenas na medida em que pudesse
ser um elemento facilmente controlável por tais forças, quando eleito chanceler, tendo
ainda um gabinete ministerial acima dele em atribuições. A ideia inicial era lógico, que
os nazistas fossem também minoria nesse órgão. Mas, pelo que nos conta a história, as
42
Ibidem.
43
Ibidem.
36
coisas não saíram como planejado... Não se esperava que os nazistas fossem tão
consequentes em seus objetivos...44
Mas, voltando à nossa questão anterior, não podemos perder de vista que Gabel
se recusa a entender o problema da ideologia como uma questão de raízes econômicas
(o que permite na verdade seu paralelo entre consciência antidialética de âmbito social e
esquizofrenia). Seu interesse é abarcar um conjunto de problemas que ele acredita
escaparem à análise de Lukács, e é preciso ter isso em mente para entender o desvio de
Debord dessas duas perspectivas, tendo em vista que o que está em questão para ele não
é exatamente uma crítica da ideologia em primeiro plano, mas desta como um aspecto
que não se separa da crítica sistemática da sociedade mercantil superdesenvolvida. Ou
seja, se a crítica desta sociedade é a crítica de seus fundamentos, a análise crítica da
ideologia que aqui entra em jogo deve ser entendida sob esta perspectiva, como estando
diretamente relacionada a esse aspecto. Assim, ainda que aceite a distinção entre falsa
consciência e ideologia nos mesmos termos de Gabel, Debord pode falar em “ideologia
total” (esta em sentido similar ao assinalado por Manheim45) do espetáculo, ou seja,
ideologia como despotismo deste “fragmento que se impõe como pseudo-saber de um
44
O nazismo como exemplo de ideologia social é tomado aqui em referência à obra de Gabel, tendo em
vista que uma de suas preocupações é entender as condições para ascensão do pensamento ideológico
autoritário. Na perspectiva de Debord, no entanto, a ideologia fascista (o exemplo italiano incluso) não se
configura como exemplo do que ele entende como o espetacular concentrado, a face autoritária da
ideologia do espetáculo e da qual falaremos no próximo capítulo. Segundo ele, ainda que copie dos
bolcheviques a forma de organização totalitária do partido, o fenômeno fascista, no entanto, não é
fundamentalmente ideológico. As condições em que surge são seu ponto de diferenciação. Sua função
não é promover o desenvolvimento econômico com base em uma mentira ideológica, mas colocar-se
como um elemento de “racionalização de emergência” (SdE, § 109) de um polo antes desenvolvido.
Assim, sua ideologia se constitui na verdade de “uma ressureição violenta do mito”, configurando-o como
“o arcaísmo tecnicamente equipado”, já que se apoia em valores tradicionais burgueses – desmentindo a
própria história na negação do fato de que a mercadoria em sua expansão geral já havia promovido a
derrubada da organização mítica de valores da sociedade. Todavia não se pode desconsiderar a
importância do fenômeno fascista como fundamental à própria constituição do espetáculo, notadamente
em seu papel de destruição dos restos do antigo movimento operário no período entreguerras.
45
“Aqui nos referimos à ideologia de uma época, de um grupo histórico-social concreto – por exemplo,
de uma classe – quando queremos falar das características e da estrutura total do espírito dessa época ou
desse grupo” (MANHEIM, 1954, p. 51-52).
Gabel nos apresenta ainda a distinção entre os conceitos parcial e total de ideologia, com base em
Manheim. Segundo ele: “1) o conceito parcial visa uma parte das convicções do adversário, enquanto o
conceito total visa a totalidade da sua concepção de mundo (Weltanschauung); 2) o conceito parcial
analisa a ideologia adversa no plano psicológico, o conceito total no plano teórico ou nosológico; 3) o
conceito parcial é tributário de uma psicológica de interesses, o conceito total opera com a ajuda de uma
análise funcional (do meu ponto de vista estrutural)” (GABEL, 1979, p. 94). Com base nisto, Gabel
afirma que o conceito de ideologia total é o único que pode ser corolário da falsa consciência e com o
próprio materialismo histórico dialético, mas aponta a crítica ideológica de Marx como muito mais
próxima do conceito de ideologia parcial, tendo em vista que muitas vezes pressupõe certa mistificação
voluntária.
37
todo estático”, “visão totalitária” que se realiza “no espetáculo imobilizado da não-
história” (SdE, § 214); a ideologia em sua forma materializada.
Mas a ideologia espetacular encontra sua coesão precisamente onde ela já não
mais existe, entre os homens. Como Debord nos explica:
Sendo uma única coisa, espetáculo e ideologia, podemos tomar como referida a
esta o que Debord afirma do primeiro, ou seja, o de ser o oposto do projeto resumido
por Marx nas Teses sobre Feuerbach; o de superação da dualidade entre materialismo e
idealismo (SdE, § 216). É o mesmo que dizer que a ideologia total espetacular, isolando
os elementos propriamente ideológicos tanto do materialismo quanto do idealismo, os
realiza totalmente no concreto. Como espectador de sua atividade prática, e, em sentido
mais amplo, de sua vida, o homem, na condição de espectador do absurdo que é o
espetáculo moderno, apreende a matéria no mesmo sentido contemplativo que o antigo
materialismo. Por outro lado, o espetáculo materializa uma “atividade sonhada” (idem)
por meio de todas as mediações que a separação impõe. E é assim que se pode dizer do
espetáculo que ele é a realização da alienação que desde a gênese do sistema está
presente em seu núcleo, ainda que de forma oculta.
46
As concepções de Lênin pretendem colocar-se como contraponto da ideologia burguesa. Como
‘cristalização teórica’, o leninismo é uma teoria de tomada do poder da classe operária a partir da
conscientização de sua tarefa histórica e seu poder para tal, a partir de sua organização partidária de
vanguarda. Sendo assim, o partido aparece como elemento central, capaz de aglutinar o proletariado em
torno do conjunto de preceitos teóricos que fundamentariam sua ação. Ora, mas se essa teoria
revolucionária por se pretender revolucionária assume, em sua própria perspectiva, um sentido positivo
do termo ideologia, para Debord, no entanto, ela é o perfeito exemplo do que ele entende criticamente
como ideologia: pensamento separado, dotado de poder enquanto tal. A esse respeito é interessante notar
que o próprio esforço de Lukács em HCC para justificar a tomada de consciência por meio da atuação do
partido não fica ileso a sua autocrítica no Posfácio de 1967, tendo em vista sua percepção de que o
partido, entendido como órgão alheio à experiência da massa, não se pode pretender expressão de sua
consciência, senão ditar a ela a consciência daqueles que detêm o poder dentro do partido. Lukács,
contudo, não avança sua autocrítica a suas últimas consequências, ou seja, não se interroga a respeito do
método correto de organização a partir dessa constatação.
39
Debord assinala que “quando o mundo real se transforma em simples imagens,
as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento
hipnótico” (SdE, § 18). Essa referência, como já vimos, se dá diretamente às
manifestações objetivas do capital, ou seja, capital como aparência (se apresentando
por meio de imagens a serem contempladas) e como aparição, que no espetáculo
ganham status de representações legítimas da vida social. Por outro lado, vemos
também a correspondência que essas manifestações têm no campo da consciência.
Desse modo Debord concordaria com Lukács – e antes dele com Marx – quando aquele
afirma que é precisamente nas relações sociais que essas manifestações do capital “se
esfumam, a ponto de se tornarem completamente imperceptíveis e irreconhecíveis, as
relações dos homens entre si e com os objetos reais, destinados a satisfação real de suas
necessidades”.47 Em seu conjunto, esses fenômenos efetivam a separação entre o
homem e sua atividade prática, estabelecendo assim a representação como categoria
espetacular, esta que explica os homens separados do mundo que eles mesmos criaram,
contemplando-o.
47
Lukács, G. História e consciência de classe, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 211.
48
Ibidem.
40
1.3. Ideologia e esquizofrenia
‘De há vinte anos a esta parte, declarei várias vezes que considero meu livro
História e consciência de classe, publicado em 1923 como superado e, em muitos
aspectos, errado. Eis as razões principais da minha posição: a teoria do
conhecimento que se exprime nesta obra, oscila entre a teoria materialista do
reflexo e a concepção hegeliana da identidade do sujeito e do objeto, o que implica
a negação da dialética na natureza; na exposição da alienação, repeti o erro
hegeliano que consiste em identificar a alienação com a objetividade em geral’.50
49
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 86.
50
Ibidem, p. 108.
51
Teixeira, F. e Frederico, Marxismo weberiano, São Paulo: Cortez Editora, 2010, p. 241.
41
Lukács identifica está na ausência do trabalho como mediador entre sociedade (sujeito)
e natureza (objeto), o que resulta não apenas na desconsideração desta última como
objetividade ôntica, mas também, segundo ele, na desaparição daquela “ação recíproca
existente entre trabalho, considerado de maneira autenticamente materialista, e o
desenvolvimento dos homens que trabalham”.52 Como resultado, tanto a exposição das
contradições do capitalismo (como as questões que envolvem a individualidade e a
consciência), quanto o aspecto revolucionário da teoria acabariam por cair em puro
subjetivismo.
Por sua vez, ao tomar essa concepção dialética apresentada em HCC como
denominador comum das diferentes formas de consciência antidialética, Gabel está
perfeitamente ciente da autocrítica de Lukács. E em relação a esse fato há de se
considerar o seguinte: em primeiro lugar, Gabel aponta o “erro hegeliano” da identidade
sujeito-objeto como perfeitamente conveniente à interpretação da esquizofrenia. E ele
assim o faz porque ainda que identifique a indecisão terminológica presente em HCC
entre “Einhat”, que ele traduz como unidade dialética, e “Identität”, Gabel afirma que
não se trata do erro recorrente do idealismo alemão de compreender a identidade
52
Lukács, G. História e consciência de classe, 2003, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 16.
53
Cf. nota 36.
42
sujeito-objeto como o último “absorvido” pelo primeiro, mas ao contrário, se trata em
HCC de uma
unidade dialética entre o sujeito atuante e o mundo “atuado”, unidade que torna
possível pelo viés do conhecimento ativo do mundo e do autoconhecimento das
possibilidades da ação própria, uma espécie de personalização dialética do sujeito
histórico.54
Debord concorda com essa análise, o que coloca como não contraditória a noção
de um “projeto de história consciente” que teria em Marx seu início, de acordo com
ele.55 A constatação de Lukács, retomada por Gabel – ou ainda por Lefebvre, em sua
Crítica da vida cotidiana –, da natureza essencialmente dialética do problema da
alienação se mantém também em Debord, com a diferença de que o paralelismo
estabelecido por Gabel lhe interessa sob a condição de estar “compreendido nesse
processo econômico de materialização da ideologia” (SdE, § 217), ao passo que em
Gabel, como já dissemos, a alienação de tipo econômico é apresentada como uma entre
várias das formas da alienação (que compreende não apenas esta e a esquizofrenia –
alienação do tipo clínico –, mas outras, como as diferentes formas de alienação
política56), interessando-lhe, dessa forma, descobrir o denominador comum a elas.
54
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 109.
55
Com isso, parece-me refutada a análise de Celso Frederico, para quem Debord incorreu no erro de
simplesmente repetir esta concepção de Lukács em HCC, ainda que no § 80 da SdE ele tenha deixado
claro que a inversão da dialética hegeliana operada por Marx não havia sido a de “substituir banalmente
pelo desenvolvimento das forças produtivas o percurso do Espírito hegeliano que vai ao encontro de si
mesmo no tempo”. O erro de Debord, segundo esse autor, seria o de não haver tirado dessa diferenciação
as conclusões necessárias. Contudo, há também de se considerar que no Posfácio de 1967 Lukács atribui
seu erro teórico não exclusivamente a uma confusão metodológica, mas a uma tendência objetiva de
oposição aos fundamentos da “ontologia” (sic) do marxismo que, segundo ele, ganhava espaço cada vez
maior dentro marxismo já antes da primeira guerra, com pensadores como Max Adler e Anatoli
Lunatscharski. Essa tendência, no caso particular de HCC, teria em muito sido resultado da influência do
ambiente intelectual do existencialismo francês de fins dos anos de 1910 e início dos anos de 1920. Ainda
que este texto muito possivelmente tenha sido dado ao conhecimento de Debord e Gabel, cuja obra A
falsa consciência ganhou sua terceira edição em 1969, nenhuma referência é feita a esta observação.
56
Neste caso sem levar em conta que a política não pode ser pensada fora de sua relação com a economia.
Apesar disso, não está entre os objetivos principais deste trabalho buscar validar ou refutar este ou aquele
pensamento, apenas buscar sua exposição.
57
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 86.
43
suas características dialéticas – por sua fixação num conjunto de “blocos temporais”,
agora sem distinção qualitativa. Segundo ele, essa transformação ocorreria dessa forma:
58
Lukács, G. História e consciência de classe, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 205.
59
O conceito de síntese de Lalo é tomado por Gabel – desviado, nos termos de Debord – como qualidade
formal, aludindo a sua noção mais precisa: a de “forma”. De fato, o termo “Gestalt” (forma) e “totalidade
concreta” podem ser entendidos como sinônimos, e é precisamente da concepção de totalidade que pode
transcender a partir de si mesma (síntese) que vem a relação, feita por Gabel, desse conceito com a
dialética.
60
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 148.
61
Ibidem, p. 150.
62
Ibidem.
63
Ibidem.
64
Ibidem.
65
Ibidem.
44
transcendência, sem abandonar o terreno da autonomia dos valores”,66 que a categoria
dialética da totalidade pode vir à discussão, e Gabel pode afirmar, dessa vez apoiado em
Eugène Minkowski, o caráter contrário do tempo que tem negada sua dimensão
dialética, explicando que “entre as noções de espaço, de agressividade e de
desvalorização existem inter-relações complexas”.67 A conclusão lógica não poderia ser
outra: a superação dialética do universo reificacional é essencialmente um processo
valorativo e de temporalização.
66
Ibidem, 152.
67
Ibidem, p. 152.
68
Marx, K. Miséria da filosofia, São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 85.
69
Ibidem.
45
renascente; presente, passado e futuro”,70 nos dando assim a perfeita dimensão de suas
possibilidades.
De fato, sagrado social abarca uma série de fenômenos como o valor racial
atemporal e a alienação religiosa e tem como característica a de se fundar no signo da
identificação, o que lhe garante a consistência dos valores, mas não sua precaridade,
constituindo-o assim em função desvalorizante, despersonalizante e dedialetizante.
70
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 178.
71
Ibidem, p. 149.
72
Ibidem, p. 153.
73
Conceito tomado de Jean Paulhan e que em seu contexto original relaciona-se à psicopatologia da
experiência delirante e das perversões sexuais.
46
Podemos, portanto, afirmar acerca do sagrado social que “ele contém sua própria
justificação; é a priori e não a posteriori, analítico, e não sintético”.74 Ou, se quisermos,
podemos defini-lo ainda como “um valor identificativo autista e antidialético”,75 por sua
independência da experiência (ausência de precaridade). Por outro lado, a falsa ilusão de
identificação é a mesma que Debord faz referência tantas vezes ao explicar como o
trabalhador separado de seu mundo, não se sentindo em casa em lugar nenhum (SdE, §
30), é capaz de projetar nas mercadorias, produtos de sua atividade separada, a
felicidade que ele já não encontra em sua vida cotidiana. Ora, Gabel nos explica o
conceito de ilusão (ou falsidade) do encontro como “a identificação de dois dados
diferentes após dissociação de suas totalidades respectivas e obscurecimento do resíduo
não identificável em função de um critério privilegiado cuja primazia é assegurada do
exterior”.76 E eis o elemento central do paralelismo de Gabel que Debord desvia para
ampliar sua crítica da ideologia espetacular: se entendida essa totalidade como o próprio
conjunto da personalidade do indivíduo, podemos dizer que sua dissolução enquanto
totalidade mesma é o que permite apresentar essa relação com a esquizofrenia, tendo em
vista que o modo de ser dessa patologia é a fragmentação da estrutura básica da
consciência.77
74
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 154.
75
Ibidem.
76
Ibidem, p. 169-170.
77
É importante atentar para o fato de que a relação entre esquizofrenia e consciência reificada social só
faz sentido dentro de certos limites – limites que procuramos respeitar nessa exposição. Gabel e Debord
estão cientes disso. Para uma melhor compreensão a respeito da psicose – e, portanto, de seu fenômeno
particular, a esquizofrenia – conferir “A psicose como estrutura”, segundo capítulo da tese de
doutoramento da professora Caciana Linhares Pereira, intitulada Psicoses na infância e escolarização:
uma pesquisa colaborativa na rede regular de ensino (2012). Já no que diz respeito à relação entre
capitalismo e produção da consciência, a tendência mais interessante hoje no campo da psicanálise é a
que vê a relação entre a consciência produzida no interior das relações mercantis e uma lógica de
comportamento própria da perversão. Um bom estudo dessa temática pode ser encontrado em “Trabalho
e capitalismo: uma visão psicanalítica” de Marco Antonio Coutinho Jorge e Flávio Corrêa Plínio Bastos,
publicado na revista Trivium, edição 1. Disponível em: http://www.uva.br/trivium/edicao1/artigos-
tematicos/2-trabalho-e-capitalismo.pdf
47
(SdE, § 218). Lembrando que o próprio Gabel explica que “a estrutura esquizofrênica
das ideologias manifesta-se acima de tudo no seu caráter autista”78 e sem perder de vista
que uma das possíveis manifestações da esquizofrenia é também a catatonia, não há
obstáculos para entender que uma consciência dissociada e passiva (falsa consciência)
encontra precisamente na ideologia total (espetacular) este elemento exterior que
obscurece sua não identificação com esse elemento externo que é a própria mercadoria.
Assim, sob a lógica do capital e na busca de uma alternativa à miséria de um mundo
regulado por coisas, a resposta da mente presa a esses limites só poderia ser de caráter
ilusório; no consumo de mercadorias e na falsa identificação que elas oferecem”79.
Seguindo o raciocínio de Debord, fica claro que esses fenômenos tratam na verdade de
uma “pseudo-resposta a uma comunicação sem resposta” (idem) que evidencia o
“apagamento dos limites do eu [moi]” (SdE, § 219) e a consequente “supressão dos
limites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento80 de toda verdade vivida, diante da
presença real da falsidade garantida pela organização da aparência” (idem); a lógica do
mundo da economia autônoma.
Fechamos então este capítulo com uma melhor precisão da noção de falsa
consciência em relação a seu caráter esquizofrênico. Se nos termos de Gabel ela pode
ser definida como “o lugar de convergência de um feixe de dados traduzindo sob
ângulos diferentes a permanência de uma crise axiológica e dialética da consciência
social”,81 Debord concorda com essa definição acrescentando que sua origem se dá na
separação entre consciência e ação (teoria e práxis), característica fundamental de todas
as sociedades de classes, mas que ganha no espetáculo moderno sua realização histórica
conhecida mais efetiva – argumento que, pelo que foi exposto e com base no que já
havíamos comentado anterior, retoma Lukács sem simplesmente o repetir, tendo em
vista que ainda que considera a importância do elemento econômico, não limita a ele
toda a crítica.
78
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 177.
79
De fato entram aqui em análise não apenas as mercadorias (“coisas”) e as (falsas) qualidades que são
(pretensamente) atribuídas àquele que as possui, mas também de maneira fundamental o que Debord
chama também de agentes ou vedetes do consumo, que trataremos de maneira mais detalhada no capítulo
seguinte, mas que podemos apresentar aqui como os modelos apologéticos desta sociedade.
80
Para uma boa compreensão do desvio da teoria de Freud realizado por Debord, conferir “A natureza
arcaico-moderna do ‘espetáculo’”, item 1.3 do capítulo “Espetáculo e linguagem”, e o item 2.2, “Debord
e a crítica da ‘superestimação do inconsciente’”, ambos da obra Reificação e Linguagem em Guy Debord,
de Emiliano Fortaleza de Aquino (Fortaleza: Editora da UECE, 2006).
81
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 177.
48
Com base no que já discutimos na primeira seção deste capítulo, sabemos que
uma das consequências e aspectos principais da generalização da lógica do valor é a
objetivação da força de trabalho ela mesma como mercadoria. A divisão do trabalho
particular do modo capitalista de produção fundamenta a imensa produtividade deste
sistema, mas a partir dela o trabalhador perde também a unidade orgânica e a totalidade
do processo produtivo – fato que é conhecido pelo menos desde Adam Smith. A
produção com isso passa cada vez mais a ser subordinada à análise racional e à
necessidade da precisão do cálculo para sua otimização. Mas esse é, contudo, o aspecto
mais geral do processo. O segundo, e não menos importante, é, segundo Lukács, que
“essa fragmentação do objeto da produção implica necessariamente a fragmentação do
seu sujeito”.82 Ou seja, o trabalhador não é simplesmente aquele que não possui os
meios de produção e, em consequência, tem que disponibilizar suas forças físicas e
mentais em troca de alguma remuneração, mas também alguém cujas “qualidades são
separadas do conjunto de sua personalidade e são objetivadas em relação a esta última,
para poderem ser integradas em sistemas especiais e racionais e reconduzidas ao
conceito calculador”.83 Portanto, o cálculo racional, que organiza a produção submete,
por um lado, a força do trabalhador e, por outro, suas faculdades; e o faz num único
processo. Assim, o caráter contemplativo da consciência reificada daí resultante, que
Debord define como a “submissão inquieta e admirativa às necessidades e aos
resultados da produção” (SdE, § 27), pode agora também ser entendido sob a
perspectiva da estrutura esquizofrênica apresentada por Gabel, ou seja, “como
dissociação das totalidades, como desvalorização, como preponderância da função
identificadora em relação à intuição do diverso (ou da intuição simplesmente), ou como
preponderância da função espacial em relação à função temporal”.84
Assim, concluímos recorrendo mais uma vez a Gabel para reafirmar sua
conclusão mais fundamental, a qual Debord está sem dúvida em concordância, ou seja,
a de que “uma teoria consequente da falsa consciência só poderá ser dialética”.85 Por
sua vez, a verdade não só desta afirmação, mas de todo o projeto empreendido por
Debord de revisão historicamente crítica da teoria revolucionária para uma reelaboração
82
Lukács, G. História e consciência de classe, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 203.
83
Ibidem, p. 202.
84
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 176.
85
Ibidem, p. 87.
49
da mesma centrada em seus elementos mais imprescindíveis – fundamentalmente a
interdependência entre teoria e práxis e seu aspecto dialético –, se confirmam na
afirmação seguinte de Gabel, para quem, da mesma forma, “uma dialética consequente
(‘idealista’ ou ‘materialista’) acaba por reencontrar, de uma forma ou de outra, o
problema da ideologia”.86
86
Ibidem.
50
Capítulo II
Espetáculo e Ideologia
O que nos interessa neste capítulo é trazer duas importantes discussões: primeiro
aquela feita pelo próprio Debord acerca da derrocada tanto das lutas revolucionárias do
primeiro quarto do século XX, quanto das lutas ocorridas entre fins dos anos 1960 e fins
87
Nos movimentos artísticos de vanguarda desta época – especialmente o dadaísmo e a primeira geração
do surrealismo –, e algumas demandas que lhes eram próprias, como a busca de revolução do cotidiano e
a superação da arte como instituição burguesa, Debord pôde enxergar a exata expressão dessas lutas. Esta
compreensão teve não só importância decisiva para que ele e, logo, a seção francesa da IS passassem de
um grupo de contestação da arte à contestação sistemática da sociedade da qual esta forma específica de
arte é apenas um aspecto, mas deve ser entendida também como fundamental na sistematização de seu
projeto revolucionário. Falaremos um pouco deste aspecto no capítulo seguinte.
51
dos anos 1970, sem as quais não se pode entender com exatidão as origens e a própria
dinâmica do espetáculo – discussão abordada não tanto em caráter historiográfico, mas
principalmente sob seu aspecto teórico, ou seja, buscando uma compreensão crítica da
práxis dessas lutas e seus resultados. Segundo, e não menos importante, ao estender a
discussão às características de cada uma dessas formas particulares de especialização do
espetáculo, a saber, o espetacular difuso e o espetacular concentrado, não perder de vista
o aspecto ideológico em suas nuances e pontos comuns, analisando os elementos que
são capazes de estimular o aparecimento em cada uma dessas formas da consciência
reificada e mantê-la, sob o signo da representação.88 Para essas questões, nossas
principais referências serão os capítulos III e IV de A sociedade do espetáculo –
respectivamente “Unidade e divisão na aparência” e “O proletariado como sujeito e
representação” – tendo em vista, contudo, que eles não esgotam a discussão, dado o
próprio caráter sistemático da SdE.
88
Devemos, todavia, deixar claro que a teoria do espetáculo não é de forma alguma determinista. Debord
estava bem ciente deste perigo e não seria capaz de tal reducionismo. Se assim o fizesse, teria de
apresentar também uma contrapartida para explicar a consciência dialética, fato que vulgarizaria
enormemente sua crítica e cuja dificuldade ele sabia de sua leitura do próprio Gabel, que a discutiu ao
fazer sua crítica a Marx e ao aspecto psicológico de sua teoria de classes em A falsa consciência.
Poderíamos ainda atentar para um dos aspectos gerais da teoria psicanalítica; o de que ela em geral
identifica e trata os diferentes tipos patológicos, mas não é capaz de determinar a origem das patologias.
52
Deputados alemã,89 e como principal referência da Segunda Internacional, servindo de
modelo para todos os partidos de esquerda a ela então associados. Há de se ter em conta
que essa expansão do alcance da socialdemocracia todavia não pode ser entendida sem
se considerar toda uma série de mudanças fundamentais nas orientações do partido
ocorridas ao longo de sua história, tendo uma delas – o programa de Gotha – contado
inclusive com a oposição do próprio Marx, que, embora não fosse afiliado, sem dúvida
estava ciente das consequências da adoção das propostas do documento.
Por sua vez, a Rússia assistiu como resultado das lutas que buscavam a
derrubada do regime czarista a chegada ao poder de uma versão ainda mais dura do
modelo alemão na forma do partido bolchevique, liderado por Lênin, iniciando assim o
espetáculo moderno; a uma só vez no reforço da ordem e no esgotamento do
movimento revolucionário nesses países. A revolução espanhola da segunda metade da
89
Haimovich, Perla L. de Uma revolução na encruzilhada da história. In: Rosa, A vermelha: vida e obra
da mulher que marcou a história da revolução no século XX. São Paulo: Editora Buscavida, 1987. Neste
artigo, a autora nos explica que o crescimento da socialdemocracia pode ser explicado com base no
próprio desenvolvimento econômico da Alemanha. O partido, dessa forma, tratou de ser a expressão
política da acumulação de capital realizada nesses anos, ainda que, à época o poder político ainda
estivesse nas mãos do junkers, nobres e latifundiários representados pela monarquia. É isso que explica,
em parte, a própria ascensão nazista ao poder, tendo em vista que com os desdobramentos da guerra
iniciada em 1914, o médio capital tenha conseguido conquistar a hegemonia política durante a República
de Weimar, abrindo assim espaço para o domínio político do grande capital, sob o comando de Hitler.
53
década de 1930 com isso se viu derrotada não apenas pelas forças que alçaram Franco
ao poder, mas como simples confirmação da já realizada derrota do movimento
revolucionário internacional. Com a Terceira Internacional instaurada pelos
bolcheviques e efetivada após o fracasso das lutas da socialdemocracia alemã e a perda
da vitalidade de sua organização, é o modelo hierárquico e burocrático ideológico que
passa a reger os rumos da esquerda mundial a partir de meados dos anos 1920,
encontrando amplo espaço de desenvolvimento – junto com o trotskismo – em países
pobres, especialmente da Ásia e América latina.
90
É interessante que Anselm Jappe como membro do grupo alemão Krisis tenha escrito um livro
dedicado a Debord. Ora, este grupo que tinha à frente o falecido Robert Kurz, tem como um dos
principais elementos de sua teoria crítica a censura do trabalho a partir da confusão teórica entre as
categorias de trabalho e trabalho abstrato. Essa confusão é precisamente o que os leva a relegar a segundo
plano o aspecto da luta prática da teoria revolucionária, colocando-os, da mesma forma que os socialistas
utópicos, em uma situação de inconformismo contemplativo diante do movimento econômico. A esse
respeito conferir Crítica ao manifesto contra o trabalho, de Ilana Viana do Amaral. Texto disponível em:
http://www.arteeanarquia.xpg.com.br/critica_ao_manifesto_contra_o_trabalho.htm.
54
E aqui aparece então um dos pontos essenciais da discussão que apresentamos
nesse capítulo: a derrota do movimento revolucionário precisa ser entendida não só
como resultado da fraqueza prática do movimento dos Conselhos operários do primeiro
quarto do século passado, mas ao mesmo tempo da imposição a essas lutas da visão
parcial (ideológica) pelas duas principais frações políticas – a socialdemocracia e o
bolchevismo – surgidas do esfacelamento do que antes havia sido, segundo Debord,
uma teoria revolucionária de caráter unitário. Embora fundamentado na economia, o
espetáculo é o recrudescimento do poder vigente em função da vitória da ordem
burguesa contra essas tentativas revolucionárias e, portanto, da adoção de novas formas
de organização social que são em seu conjunto a materialização dessas ideologias,
socialdemocrata e bolchevique. É assim que a dominação totalitária da mercadoria sobre
o mundo efetiva-se na divisão deste entre os regimes concentrado e difuso do
espetáculo, este que, por sua vez, encontra no modelo americano a melhor expressão da
ideologia mercantil em seu estado puro. É também por esse motivo que as duas
discussões caminham juntas.
55
O palco desses novos desdobramentos foram, para ele, países como Portugal e
Itália, que em condições diferentes de desenvolvimento traziam em comum fatores
importantes como a fraca tradição democrática e o caráter mais radical de seus
movimentos revolucionários. Em janeiro de 1979, por exemplo, Debord chegou a
afirmar que “sendo no momento o país mais avançado no movimento em direção à
revolução proletária, a Itália é também o laboratório mais moderno da contrarrevolução
internacional”.91 De fato, já em dezembro de 1969 a república italiana pôde assistir a
uma das várias cruéis experiências desse laboratório no famoso atentado da Piazza
Fontana, no centro de Milão, quando uma bomba explodiu na sede do Banco Nacional
da Agricultura, tendo ainda outros cinco atentados sido registrados nessa cidade, e
também em Roma, no espaço de uma hora. Era o início das novas medidas adotadas
pela strategia della tensione, segundo a tese de Debord levada a cabo pelos serviços
secretos do Estado no sentido de barrar os avanços do movimento proletário,
justificando agora suas ações no combate ao terrorismo que ele mesmo implantara.
Portanto, trataremos de analisar nos três tópicos que seguem cada uma dessas
formas do espetáculo, iniciando com a discussão de sua manifestação mais ‘vulgar’,
onde ele mostra com maior evidência seu modus operandi: o espetacular concentrado.
91
Prefácio à quarta edição italiana de A sociedade do espetáculo. In: A sociedade do espetáculo, Rio de
Janeiro: Contraponto, 1997, p. 159.
56
etapa imperialista. Apresentados como regimes de caráter popular e socialista, na
prática não passavam, segundo a concepção de Debord, de regimes capitalistas de base
estatal totalitária apoiada na ideologia burocrática de partido único, centrada, por sua
vez, na figura do líder.
95
Ibidem, p. 41.
96
Ibidem.
97
Ibidem.
98
Ibidem.
99
Castoriadis, C. Sobre o conteúdo do socialismo, I. In: Socialismo ou barbárie, o conteúdo do
socialismo, São Paulo: Brasiliense, 1979. Texto publicado pela primeira vez no número 17 da revista
Socialisme ou barbarie, em julho de 1955.
100
Ibidem, p. 55.
58
exemplo, essa dupla determinação da ideologia do espetacular concentrado significa
dizer que “se cada chinês tem de aprender a ser Mao e, assim, tornar-se Mao, é porque
não há outra coisa para ser” (SdE, §64). Nisso se revela a contrapartida material da
ideologia totalitária: a polícia. O que é o mesmo que dizer que “onde o espetacular
concentrado domina, a polícia também domina” (idem). Em outras palavras, a violência
legítima do Estado se apresenta essencialmente como expressão da perda do aspecto
comunicativo do diálogo prático sob o controle massivo do poder, este que só é possível
a partir da partilha comum da riqueza qualitativa dos acontecimentos, ou seja, sua
constituição como “linguagem histórica” (SdE, § 113).101
101
Acerca dessa crise da linguagem cotidiana no espetáculo, falaremos oportunamente no terceiro
capítulo, nos limitando, por ora, a chamar atenção para o fato de que aqui ela aparece em seu aspecto
mais rude.
102
Castoriadis, op. cit, p. 55.
103
Ibidem.
104
O próprio Lênin explica da seguinte maneira a orientação do partido quanto às políticas econômicas:
“O socialismo é inconcebível sem a grande técnica capitalista, calcada na última palavra da ciência
moderna, sem uma organização estatal harmônica, que submeta dezenas de milhões de pessoas à mais
rigorosa observância de uma única norma na produção e na distribuição dos produtos”. (Lênin V. I. et al.
A Nova Política Econômica (NEP). São Paulo: Global, 1987, p. 148).
59
O regime de trabalho forçado (assalariado) e parcializado que aqui se impõe em
vistas do melhor nível de produtividade alcançável acaba assim por afirmar no nível da
percepção as características de espacialização e quantificação do tempo, bem como a
perda da noção de continuidade ou totalidade; características, portanto, da falsa
consciência social no âmbito do espaço produtivo. Lembrando-nos da discussão vista no
capítulo anterior, temos aí a quantificação do tempo, seu esgotamento enquanto tempo
histórico como elemento que evidencia a relação entre a práxis social e a produção da
consciência, com esta assumindo a forma do processo de abstração que ocorre no
interior da produção mercantil capitalistas.105 Ora, para Debord, no espetáculo de tipo
concentrado “a falsa consciência só mantêm seu poder absoluto pelo terror absoluto”
(SdE, § 107, itálico nosso). O fundamento desse terror estatal bem como sua estreita
relação com a falsa consciência simplesmente reforça a constatação do fundamento
econômico do espetáculo, pelo fato de que a função do regime que se instaura por meio
da gestão estatal é, como já dissemos, a de realizar a acumulação primitiva retardatária,
etapa histórica sob a qual se funda o desenvolvimento da economia dos países do centro
do sistema. Sendo assim, da mesma forma que seus concorrentes avançados no passado,
essa tarefa só pode ser alcançada pela máxima exploração do trabalho. É quando a
polícia, o braço armado do Estado, mostra então sua real função no interior do sistema:
a defesa da mercadoria e suas leis. É isso também que nos permite entender que dessa
mesma necessidade de acumulação bruta de capital surgem os próprios mecanismos de
explicação da burocracia e seu modo particular de existência enquanto mentira
organizada.
105
A perda de consideração da totalidade do processo tal como se configura na consciência a partir da
prática se manifesta então no objeto que Gabel procura analisar sob três aspectos: “o da totalidade
concreta, central em axiologia e em dialética; o da temporalização valorizadora como corolário e como
desvalorizante do real; o da dialética axiológica da ‘consistência’ e enfim ‘precariedade’” (Gabel, J., A
falsa consciência, 1979, p. 155), concluindo a partir daí que “como fator de dissociação de totalidades, de
despersonalização e de dedialetização, a reificação econômica é simultaneamente um fator de
desvalorização” (ibidem).
60
próprios burocratas individuais, graças às contradições de sua existência enquanto
ideologia materializada:
106
Discussão do tópico 1.3
107
Marx, K., Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 58.
108
Debord, G. L’explosion de l’ideologie en Chine, Paris: Gallimard, 2004, p. 50.
61
do Estado de forma alguma garante efetiva participação nele como membro do mesmo;
o que se justifica é simplesmente o poder supremo ideológico estatal sobre o individual.
109
Ibidem.
62
existir” (SdE, §108); é a instauração de um “presente perpétuo” em que tudo o que
existe só existe enquanto espaço de controle de sua polícia legitimadora.110 Sua verdade
aparece nesse irrealismo que se resume a uma única determinação: “tudo o que ela diz,
é” (SdE, § 105). Assim, a classe que existe como substituta da burguesia – logo, como
substituta da própria economia –, se mostra como mentira também no momento em que
contradiz a própria racionalidade particular do desenvolvimento econômico que ela tem
por função promover.
110
É importante não perder de vista que, para Debord, o espetacular concentrado é fundamentalmente
uma técnica de poder. Sua distinção e pontos comuns com fenômeno do fascismo foi o que tentei explicar
na nota 34 do capítulo anterior.
63
Mas essa série de contradições ainda não é suficiente para fragilizar o poder
ideológico concentrado. É a realização de sua tarefa – a da acumulação primitiva
retardatária – que, ao ser concluída, embora de modo mais acidentado e mais pobre que
nas economias do centro, o leva ao momento seguinte de sua evolução:
Sob a acusação mútua de culpa por crimes contra o proletariado, cada potência
apresenta suas razões para desmoralizar o antigo aliado: a Rússia afirmando a
possibilidade de coexistência pacífica com os EUA e criticando os esforços da China de
se armar nuclearmente, e esta, justificando seus avanços no setor militar pela
necessidade de defesa de sua soberania, especialmente com o estreitamento de relações
entre Rússia e EUA, entendido pela burocracia chinesa como esforço conjunto de
oposição ao crescimento da potência asiática.
111
Debord, G., Le point d’explosion de l’ideologie en Chine, In : La planéte malade, Paris : Gallimard,
2004, p. 46.
64
Internationale Situationniste nº 11 (agosto de 1967), Debord explica da seguinte
maneira a raiz do embate entre as classes burocráticas:
Por sua vez, a China enfrenta também no interior de sua própria burocracia as
contradições de sua classe ideológica dominante. Nesse contexto, a falsa Revolução
Cultural não é outra coisa que a tentativa de afirmação do poder de Mao frente a
tendências discordantes no interior do partido acerca dos rumos do controle da
economia, notadamente após a falha das políticas do plano do “Grande Salto Adiante”,
realizadas entre 1958 e 1960. Como explica Debord:
112
Ibidem, p. 48.
113
Ibidem, p. 53-54.
114
Ibidem, p 50.
65
regiões inteiras do poder burocrático, e passando entre eles compromissos sobre
certa base.115
Contudo Debord esclarece que o processo de guerra civil instalado a partir daí
serviu apenas para afirmar ainda mais as contradições do espetacular concentrado como
modelo ideológico, sendo que por volta de 1967 – portanto, um ano após o início da
Revolução Cultural empreendida por Mao – cerca de dois terços do território da China
não se encontrava sob o comando de Pequim. À época, ele interpretou esse fato como
parte de um processo que anunciava o auto esfacelamento da ideologia burocrática
como um todo, afirmando com isso que mesmo com todas as incertezas sobre o futuro
da China, a imagem do último poder burocrático-revolucionário havia se estilhaçado.116
Sua análise talvez estivesse correta, não fossem os resultados das lutas que se seguiram
na Europa durante os anos seguintes. Desse modo, a derrota da nova investida
revolucionária nos países capitalistas centrais deu a chance de o espetacular se
reinventar na figura do espetacular integrado. Mas antes de falarmos dele, temos ainda
de apresentar a outra face do espetáculo em sua antiga dupla configuração, a difusa.
115
Ibidem, p. 56-57.
116
Ibidem, p. 73.
117
De fato, basta observar que nesta tarefa de transformação do mundo segundo sua imagem e
semelhança, a mercadoria confere ao urbanismo um papel fundamental, o que fica evidente na afirmação
de Debord de que “essa sociedade que suprime a distância geográfica recolhe interiormente a distância,
como separação espetacular” (SdE, §171). A psicogeografia pode ser entendida como a proposta do
“estudo das leis precisas e dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente organizado ou não, em
função de sua influência direta sobre o comportamento afetivo dos indivíduos” (DEBORD, Guy.
Introdução a uma crítica da geografia urbana, Les lévres nues #6, set/1955). Embora entendida como
uma teoria situacionista, sua origem se deve, na verdade, à obra Formulaire pour un urbanisme nouveau,
escrita em 1953 por Gilles Ivan (pseudônimo do teórico político e ativista Ivan Chtcheglov, então apenas
um rapaz de 19 anos), que não chegou a se associar à IS.
66
segundo, se a ideologia aqui já não age sob o poder da violência legitimadora, é porque
sua característica e modo particular de funcionamento são de outra ordem.
118
Debord, G. Le déclin et la chute de l’économie espectaculaire-marchande. Paris : Gallimard, 2004, p.
34.
67
A separação como lógica da sociedade moderna mostra desse modo que seu
limite não é apenas a divisão tirânica da burocracia pseudorrevolucionária, mas
enquanto fundada na mercadoria, só pode estar por toda parte. Segundo Debord, “com a
mercadoria, a hierarquia se recompõe sempre sob novas formas e se estende; seja entre
os dirigentes do movimento operário e os trabalhadores, ou entre os possuidores de dois
automóveis artificialmente distintos”.119 A razão burguesa (mercantil) se mostra assim
como o que de fato é: o irracionalismo fundado no domínio do abstrato sobre o sensível.
Embora Debord não afirme explicitamente, não seria exagero dizer que a ilusão
da escolha e a falsa liberdade do consumo mercantil reproduzem do movimento
revolucionário ocidental derrotado, enquanto derrotado, o mesmo caráter ativamente
passivo.120 É, na verdade, nisso que consiste a forma particular da representação
operária no espetacular difuso. A redução do proletariado (portanto, produtor) à
condição de comprador (consumidor) se estabelece aqui verdadeiramente como a
constituição de uma representação proletária autonomizada difusa, em que cada
produtor individual se representa a si mesmo na forma do consumidor, estabelecendo
justamente nisso a separação que, segundo Debord, é o “alfa e o ômega” do espetáculo
moderno (SdE, § 25). Ora, se consideramos a contrapartida desse fenômeno na esfera
político-jurídica, isso nos permite entender os sindicatos e os partidos, afirmando as
necessidades e demandas de inserção dos trabalhadores na realidade do mercado,
também como supostas instituições representantes do proletariado.
119
Ibidem, p. 35.
120
Ainda que, como já chamamos atenção, a vitória da socialdemocracia sobre o movimento proletário
alemão tenha sido decisiva para a constituição do modelo ideológico-representativo do espetacular
concentrado. Tal fato se dá porque a derrota da revolução nesse país, representante do bloco de
economias avançadas, foi também argumento decisivo de justificativa da contrarrevolução bolchevique
em sua política de Estado centralizado, apresentando-a então como fundamental no período de transição,
ou seja, da revolução socialista enquanto não efetivada em nível global. Sendo assim, e sem contrariar a
análise de Debord, proponho aqui uma leitura da história do movimento socialdemocrata alemão como a
contrapartida política, em grande medida, da representação difusa analisada na SdE, esta que como
sabemos, está centrada na análise do domínio da mercadoria como objeto de consumo, representante de
‘pseudonecessidades’ (Debord) e equivalentes falsas satisfações. Ora, se Debord foca no ponto de vista
do consumo para explicar o espetáculo em sua forma difusa, o faz porque seu desenvolvimento é
expressão direta da acumulação de capital já em grau bastante avançado e num momento em que as
economias do centro – especialmente a americana, o principal alvo da crítica – ainda viviam seu apogeu.
Desse modo, é justamente nessa aproximação que a Alemanha tem com os EUA, na condição de
economia desenvolvida, que fazemos esse paralelo, tomando o modelo representativo socialdemocrata
para ajudar a explicar a representação difusa em seu aspecto de diferenciação da representação
espetacular concentrada em seu aspecto mais essencial: a então ausência da violência legítima estatal
como instrumento ideológico.
68
Se Debord diz que não se pode fazer uma oposição abstrata entre o espetáculo
e a atividade social efetiva, tendo em vista que “esse desdobramento também é
desdobrado” (SdE, § 8), se pode concluir daí que da mesma forma que não é o produtor
que se apropria do produto de seu trabalho, mas sim o consumidor enquanto categoria
separada, também o operário na realidade do espetacular difuso só pode existir enquanto
categoria política crítica aceitável pela representação; é esse o modelo mais importante
do falso vivido político, sua imagem por excelência. Em outras palavras, se “para levar
os trabalhadores ao status de produtores e consumidores ‘livres’ do tempo-mercadoria, a
condição prévia foi a expropriação violenta do tempo deles” (SdE, § 159), expropriação
fundamental que o espetáculo faz retornar no tempo pseudocíclico do consumo
mercantil, da mesma forma a representação proletária nos sindicatos e partidos não é
outra coisa que a falsa imagem – compensatória – da incapacidade dos indivíduos de
materializarem suas reais demandas de transformação do mundo, o que se materializa
precisamente no falso consolo do consumo mercantil.
Por sua forte presença no parlamento nacional, bem como controle de sindicatos
fortemente organizados e instituições diversas de amparo ao trabalhador, a
socialdemocracia alemã conseguiu se constituir em modelo unânime para os partidos de
esquerda de mesma orientação dos demais países componentes da Internacional.
Contudo, sua força enquanto movimento revolucionário organizado não era mais que
aparente e sua força real advinha não do confronto, mas de sua acomodação às
estruturas que teoricamente afirmava combater. No centro da ideologia socialdemocrata
estava a falsa ideia de transição paulatina rumo ao socialismo, transição esta que seria
alcançada por meio de sucessivas conquistas do movimento trabalhista junto à estrutura
estatal vigente – por meio dos líderes representantes do partido –, de maneira que num
determinado ponto evolutivo estariam essas conquistas tão consolidadas que a transição
se daria sem a necessidade de revolução.
69
É interessante ainda observar que foi esse mesmo modelo que assumiu o novo
governo na Rússia pós-revolucionária com o partido bolchevique. Sobre esse ponto
falaremos ainda no capítulo seguinte, mas gostaríamos de adiantar que, como doutrina
política, o partido liderado por Lênin não passou de uma postura radicalizada dessa
mesma visão no momento em que concebia o processo revolucionário como dirigido
por um grupo centralizado separado que lhe servisse de liderança, posição que o sempre
astucioso Lênin defende em Que fazer? nos seguintes termos:
“Na revolução atual, as tropas de proteção da antiga ordem não agem sob a
insígnia das classes dirigentes, mas sob a bandeira de um ‘partido socialdemocrata’”
(SdE, § 101) é como Rosa Luxemburg, um dos nomes mais ativos do movimento,
denuncia seus antigos companheiros na Rote Fahne de 21 de dezembro de 1918, com
Debord concluindo o seguinte acerca das palavras da grande revolucionária polonesa:
121
Lênin, V. I., Que fazer?, São Paulo: Hucitec, 1988, p. 24-25.
70
Analisando o outro lado disso que acreditamos poder apresentar como a
representação difusa em seu aspecto político, isto é, o do proletariado, poderíamos dizer
que essa separação entre o movimento político real é também um fator de explicação da
hegemonia da mercadoria como instrumento de representação ela mesma. De fato, isso
não invalida a compreensão de Debord de que no próprio movimento do trabalho
alienado e do retorno de seus resultados como “abundância da despossessão” (SdE, §
31) está a gênese da consciência antidialética espetacular. A própria autonomia da
representação política tem também nessa complexa relação sua explicação.
71
Debord afirma que “o tempo pseudocíclico é o tempo espetacular, tanto como
consumo de imagens, em sentido restrito, como imagem do consumo do tempo, em toda
sua extensão” (SdE, § 153). O lazer aparece assim como “imagem social do consumo do
tempo” (idem). Para além dos blocos de tempo espacializados que regem uma jornada
de trabalho semanal e que caracterizam o tempo artificialmente periodizado da
produção capitalista, o lazer aparece no espetacular difuso não como simples período de
descanso entre uma jornada e outra, mas como a especialização por excelência do uso
desses blocos de tempo, ou seja, sua falsa afirmação enquanto espaço de momentos e
experiências qualitativos. Todavia, contrariamente ao que esse tempo pseudocíclico
falsamente afirma, para Debord, o verdadeiramente vivido “está em oposição direta ao
ritmo pseudocíclico do subproduto consumível desse tempo” (SdE, § 157).122
122
Conclui-se assim que essa falsa representação de felicidade não pode ter qualquer relação com a
memória, no sentido de que esta seja sua ligação um passado verdadeiramente vivido. Nas palavras de
Debord: “esse vivido individual da vida cotidiana separada fica sem linguagem, sem conceito, sem acesso
crítico a seu próprio passado, não registrado em lugar nenhum. Ele não se comunica. É incompreendido e
esquecido em proveito da falsa memória espetacular, do não-memorável” (SdE, § 157). Para ele, portanto,
uma consideração sobre o tempo no espetáculo não pode prescindir de sua ligação essencial com a
linguagem, o quer dizer que a consciência histórica se relaciona diretamente no uso prático da linguagem
sob a forma do diálogo. É assim que essa categoria aparece como elemento fundamental e inovador de
sua teoria revolucionária, questão que também discutiremos detalhadamente no capítulo seguinte ao
discutirmos os Conselhos.
72
A falsa escolha em meio à abundância espetacular, escolha que reside na
justaposição de espetáculos concorrentes e solidários e na justaposição dos papéis
(principalmente expressos e incorporados por objetos) que são ao mesmo tempo
exclusivos e imbricados, desenvolve-se como luta de qualidades fantasmáticas
destinadas a açular a adesão à banalidade quantitativa. Renascem assim as falsas
oposições arcaicas, regionalismos ou racismos encarregados de transfigurar em
superioridade ontológica fantástica a vulgaridade dos lugares hierárquicos no
consumo. Recompõe-se a interminável série de confrontos ridículos, que
mobilizam um interesse sub lúdico, espécie de esporte eleitoral. Onde se instalou o
consumo abundante, aparece entre os papéis ilusórios, em primeiro plano, uma
oposição espetacular entre a juventude e os adultos: porque não existe nenhum
adulto, dono da própria vida, e a juventude, a mudança daquilo que existe, não é de
modo algum propriedade desses homens que agora são jovens, mas sim do sistema
econômico, o dinamismo do capitalismo. São as coisas que reinam e se tornam
jovens; que se excluem e se substituem sozinhas (SdE, § 62).
73
ideologia do espetacular concentrado, materializada sob o poder de polícia estatal), em
seu conhecido e argucioso domínio suprassensível sobre o mundo real.
No que se refere ao urbanismo, este pode ser entendido, segundo Debord, como
“a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver
sua lógica de dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço
como seu próprio cenário” (SdE, § 169). É a materialização da ideologia em sua
expressão mais objetiva: o mundo que se vê é o mundo que ela faz ver. A necessidade
capitalista de “glaciação da vida” (SdE, § 170) se satisfaz, portanto, no urbanismo
afirmado como a predominância do espaço sobre o tempo, ou seja, “a realização da
tarefa permanente que salvaguarda o poder de classe: a manutenção da atomização de
trabalhadores que as condições urbanas de produção tinha perigosamente reunido”
(SdE, § 172). Nesse sentido é possível entender fenômenos como a “ditadura do
automóvel” e as “hiperfábricas de distribuição” (Debord): os supermercados. Além
disso, os grandes prédios residenciais aparecem aqui como expressão da “decisão
autoritária que planeja abstratamente o território como território da abstração” (SdE, §
173) e o urbanismo se confirma, portanto, como “a própria técnica da separação” (SdE,
§ 171), o “campo privilegiado” da luta travada “contra todos os aspectos da
possibilidade do encontro” (SdE, § 172). De fato, ainda que os grandes templos do
consumo promovam uma “recomposição parcial da aglomeração” (SdE, § 174), só o
fazem enquanto “primeiro plano da dissolução geral que levou a cidade a se consumir a
si mesma” (idem).
Por fim, podemos concluir que acima das distinções entre suas duas formas,
estas que tratam em verdade da glorificação da mercadoria e da confirmação de seu
poder no controle sobre o mundo vivido, o espetáculo mostra sua unidade, de fato, na
ideologia total da independência do poder econômico afirmado sobre a falsa consciência
generalizada por meio da representação operária autônoma. Compreender essa relação
nos permite não apenas entender o funcionamento do domínio espetacular em seus
aspectos objetivo e subjetivo – aspectos que, bem entendidos, na verdade não podem ser
pensados separadamente –, mas compreender de maneira precisa que na gênese do
espetáculo está a derrota das lutas de uma época, o primeiro quarto do século XX. Em
74
uma palavra, a ascensão do espetáculo, portanto, representa o esvaziamento do
movimento revolucionário em seu aspecto revolucionário.
Os negros de Los Angeles são melhores pagos que em qualquer parte nos Estados
Unidos, mas eles se encontram lá ainda mais separados que em outro lugar da
riqueza máxima que se espalha precisamente na Califórnia. Hollywood, o pólo do
espetáculo mundial, está em sua vizinhança imediata. A eles se promete que
ascenderão, com paciência, à prosperidade americana, mas eles veem que esta
prosperidade não é uma esfera estável, mas uma escala sem fim. Quanto mais eles
sobem, mais se afastam do cume, porque são desfavorecidos desde o início, porque
123
Debord, G. Le déclin et la chute de l’économie espectaculaire-marchande. Paris : Gallimard, 2004, p.
17.
124
Ibidem.
125
Ibidem, p. 19.
75
são menos qualificados, logo mais numerosos entre os desempregados, e
finalmente porque a hierarquia que os esmaga não é somente aquela do poder de
compra como fato econômico puro: ela é uma inferioridade essencial que lhes
impõe em todos os aspectos da vida cotidiana os costumes e os preconceitos de
uma sociedade onde todo poder humano está alinhado sob o poder de compra.126
126
Ibidem, p. 26-27.
127
Ibidem, p. 27.
128
Ibidem, p. 20.
129
Ibidem, p. 20 e 23.
76
errônea estar associada simplesmente àqueles espaços marcados pela carência e falta de
condições. No espetacular difuso, o poder de polícia, na verdade, não é expressão do
que falta a essa sociedade, mas do que ela não deve atingir: a contestação de sua lógica.
Ora, pergunta Debord, “o que é um policial? É o servidor ativo da mercadoria, é o
homem totalmente submisso à mercadoria, para a ação da qual tal produto do trabalho
humano permanece uma mercadoria onde a vontade mágica é a de ser pago”.130
Watts foi apenas uma das primeiras – ou talvez a primeira das – grandes
manifestações de contestação do espetáculo surgidas a partir do interior do próprio
modelo difuso. Muitas outras se seguiram nos anos seguintes e confluíram em mais uma
etapa decisiva da luta de classes de nossa época. A derrota dos contestadores, no
entanto, teve como resultado o reforço do regime espetacular na superação da antiga
divisão. É isso que tratamos no tópico seguinte.
Resta-nos então discorrer sobre a fusão das duas formas do espetáculo, resultado
do segundo momento decisivo das lutas revolucionárias no século XX, este que pode
ser enquadrado entre fins da década de 1960 e meados da seguinte. Como análise das
derrotas dessa nova tentativa e mais precisamente dos desdobramentos subsequentes do
espetáculo, Debord nos deixou seus Comentários sobre a sociedade do espetáculo
(1988), mesmo que em textos posteriores à SdE já tenha dado indicativos dessas
mudanças, ainda que não de forma definitiva e sistemática.
Pela forma como foram escritos, Os Comentários aparecem ainda hoje como
motivo de controvérsia para alguns comentadores, como Celso Frederico (2010) e João
Freire Filho, a quem faz referência, que acreditam ver ali a total ausência do “otimismo”
dos escritos de 1967. No caso do primeiro autor em particular – que dedicou seu
capítulo de Marx, Weber e o marxismo weberiano (escrito em parceria com Francisco
Teixeira) a uma breve análise da obra do autor de A sociedade do espetáculo – há a
interpretação de que entre uma e outra obra a crítica da mercadoria havia ficado em
segundo plano, o que expressam no seguinte argumento: “a transparência do mundo
mercantil, com seu brilho cativante, sua sedutora fantasmagoria” da SdE haveria dado
130
Ibidem, p. 24.
77
lugar “a um nebuloso sistema regido pelo segredo” nos Comentários. Ora, me parece
que essa polêmica não se justifica. Senão vejamos: o “sistema regido pelo segredo” não
é outro além daquele que tem a mercadoria como elemento nuclear. Como temos
procurado demonstrar aqui durante todo o trabalho, a própria mercadoria como núcleo
deste sistema é o maior dos segredos da ordem vigente. Desse modo, se Debord faz
“referências obsessivas a ‘sociedades veladas’, arquivos confidenciais, ‘estatísticas
incontroláveis’, especialistas em vigilância, complôs, boatos programados, atividades de
serviços secretos, maquinações da polícia e de ‘gente da mídia’”, o que está em
discussão aí não é uma “crítica paranoica da sociedade do espetáculo”, mas a própria
descrição detalhada do espetáculo em sua forma integrada, para além de uma
apresentação teórica desconexa da realidade. O aparente pessimismo que se intui dessa
exposição “paranoica” do novo momento do espetáculo se explica nas próprias
condições objetivas da sociedade, que tinha seus movimentos de negação em completo
recuo face à última derrota. Ademais, já no “Prefácio à 4ª edição italiana de Sociedade
do espetáculo”, escrito em 1979, Debord deixa claro o seguinte:
Quem ler com atenção este livro verá que ele não oferece nenhum tipo de garantia
sobre a vitória da revolução, nem sobre a duração de suas operações, nem sobre as
rudes vias que ela terá de percorrer, e menos ainda sobre sua capacidade, às vezes
gabada levianamente, de conduzir a uma perfeita felicidade.131
Como ele explica ainda no mesmo texto, nos anos de 1950 “as velhas linhas de
defesa que haviam barrado as ofensivas anteriores da revolução social estavam
descontroladas e corrompidas”132, o que deu a IS “a ocasião de tentar mais uma”.133
Vencida essa tentativa, o que se confirma quando o lemos reafirmando a verdade de
suas teses na “Advertência à edição francesa de 1992”, última lançada com ele ainda em
vida, é a certeza consciente de um estratego acerca da indefinição da luta a que dedica
suas forças. Debord parece confirmar assim o penúltimo parágrafo (§ 220) de A
sociedade do espetáculo onde afirma que “a crítica que vai além do espetáculo deve
saber esperar”, não compactuando com o reformismo ou qualquer ação comum a partir
da “vontade abstrata da eficácia imediata”.
131
Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo. In: A sociedade do espetáculo, Rio de
Janeiro: Contraponto, 1997, p. 161-162. O itálico é nosso.
132
Ibidem, p. 151.
133
Ibidem.
78
Portanto, os Comentários não tratam de uma justificativa da validade da teoria
apresentada sobre os acontecimentos que tiveram no maio de 1968 francês sua
manifestação mais expressiva ou de desmentir a mesma. Como o próprio Debord
explica, “esses comentários não tem preocupação moral. Não se referem ao que é
desejável, nem preferível. Limitam-se a registrar o que é” (Coment., § II).
Analisando sua constituição, Debord entende que o papel que coube à Rússia e a
Alemanha na instauração do regime espetacular concentrado a partir da derrota das
tentativas de suas revoluções, foi ocupado por França e Itália na experimentação desse
novo modelo, fato devido a uma série de fatores em comum entre os dois países. São
eles: o “papel importante do partido e sindicato stalinistas na vida política e intelectual,
fraca tradição democrática, longa monopolização do poder por um único partido
governamental, necessidade de acabar com a contestação revolucionária surgida de
repente” (Coment., § IV). Esse fato, Debord assinala já no prefácio da quarta edição
italiana de A sociedade do espetáculo, lançada em 1979, confirmando-o posteriormente
nos Comentários. No prefácio, por exemplo, ele afirma que
Foi possível ver a falsificação tornar-se mais densa e crescer até a fabricação das
coisas mais banais, qual bruma pegajosa que se acumula no nível do solo de toda a
existência humana. Foi possível ver, até a loucura “telemática”, a pretensão do
absoluto controle técnico e policial sobre o homem e sobre as forças naturais,
controle cujos erros aumentam tão depressa quanto os recursos que movimenta. Foi
possível ver a mentira estatal se desenvolver em si e por si, no perfeito
esquecimento de seu vínculo conflituoso com a verdade e a verossimilhança, a
ponto dessa mentira descrer de si mesma e se substituir de hora em hora.134
Sem perder de vista nosso objeto, chamo atenção para como não deixa de ser
curiosa a maneira pela qual o próprio espetáculo tratou de assimilar essa crítica,
desconsiderando o que ela tem de fundamental e se concentrando em categorias como
“mentira” e “falsificação”. Esvaziadas de seu sentido, elas acabam por testemunhar nos
Comentários a origem da simplificação que até hoje se verifica numa série de leituras
134
Ibidem, p. 153.
79
superficiais da SdE, especialmente dentro da Academia, reduzindo a crítica da
sociedade mercantil superdesenvolvida à noção de espetáculo como crítica dos meios de
comunicação superdesenvolvidos. Mas o próprio Debord já atentava para esse fato ao
explicar que
80
isto é, à liberdade ditatorial do Mercado, temperada pelo reconhecimento dos
direitos do homem espectador.135
Ele então esclarece que, “se o mundo pôde enfim proclamar-se oficialmente unificado é
porque essa fusão já se realizara na realidade econômico-política do mundo inteiro”.136
De fato, já a partir de 1985 a U.R.S.S. sob o comando de Gorbatchev promove uma
série de mudanças no sentido de preparar a transição ao modelo ocidental, medidas de
ordem econômica e política que ficaram conhecidas como Perestroika e Glasnost. As
duas medidas combinadas, como se sabe, foram motivo de uma série de conflitos no
interior da própria União Soviética e falharam em promover seus objetivos, fato que se
explica parcialmente na oposição de interesses no interior do partido comunista.
Todavia, ainda que a transição econômica e política tenha se dado de maneira
complicada, o espetáculo realizara de maneira muito menos enredada sua transição no
tocante às técnicas de controle do proletariado.
Essa fusão, por sua vez, não se dá como simples soma de elementos, mas na
mudança das funções anteriores de cada forma, com Debord nos explicando que, “no
lado concentrado, por exemplo, o centro diretor tornou-se oculto: já não se coloca aí um
chefe conhecido, nem uma ideologia clara. No lado difuso, a influência espetacular
jamais marcara tanto quase todos os comportamentos e objetos produzidos socialmente”
(Coment., § IV). Segundo Debord, essas mudanças se explicam a partir da alteração da
tese 105 da SdE, onde ele em 1967 afirmara o seguinte, a respeito do espetacular
concentrado: “a ideologia que aqui se materializa não transformou economicamente o
mundo, como o capitalismo chegado ao estágio de abundância; ela apenas transformou
policialmente a percepção”. Sobre o novo estágio, o do espetacular integrado reforçado
com a dissolução da antiga separação entre o difuso e o concentrado, poderia ser dito
agora então da ideologia que ela “‘transformou economicamente o mundo’, ao mesmo
tempo que ‘transformou policialmente a percepção’”.137
135
Debord, G., Advertência à edição francesa de 1992, In: op. cit. p. 11.
136
Ibidem, p. 10.
137
Debord, G., Advertência da edição francesa de 1992. In: A sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997, p. 10.
81
permitindo assim compreender como no espetacular integrado o componente ideológico
da dominação do capital mostra a razão de sua existência; ele não acontece como coisa
isolada, mas como categoria que fundada nesse fragmento que se faz total, a economia,
justifica seu domínio.
Aqui, o que queremos chamar atenção é para o fato de que quando Debord
aponta as cinco características principais do espetacular integrado – a saber, “a
incessante renovação tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo generalizado, a
mentira sem contestação e o presente perpétuo” (Coment., § V) –, a referência que faz a
Marx na tese 87 de A sociedade do espetáculo pode ser compreendida em toda sua
verdade. Ora, podemos entender como processos fundamentais do espetáculo os dois
primeiros, sendo, portanto, os três últimos deles resultantes. No que diz respeito ao
primeiro elemento, devemos buscar compreendê-lo no contexto de seu próprio avanço
histórico, isto é, como processo cada vez mais avançado a partir do amadurecimento do
próprio modo de produção em sua fase pós-colonial. Por outro lado, a fusão econômico-
estatal, caracteriza esta sim um novo processo organizacional. Debord já faz alusão a
essa combinação na referida tese, mas o faz para explicar o espetacular de tipo
concentrado. Mas se, todavia, pensamos nas consequências dessa combinação tendo em
mente esse novo modo de funcionamento, como explicado acima, compreendemos que
o espetáculo já mostrava ser a fusão das duas formas anteriores, espetacular e difuso, a
sua tendência natural. Senão, vejamos: segundo Debord, o próprio Marx já pudera
perceber essa tendência de racionalização de resultados – portanto, as bases do
espetáculo moderno – em sua análise do golpe de Louis Bonaparte. Citando Marx,
Debord o explica nos seguintes termos:
A partir de então, é evidente que a imagem será a sustentação de tudo, pois dentro
de uma imagem é possível justapor sem contradição qualquer coisa. O fluxo de
imagens carrega tudo; outra pessoa comanda a seu bel prazer esse resumo
simplificado do mundo sensível, escolhe aonde irá esse fluxo e também o ritmo do
que deve aí manifestar-se, como perpétua surpresa arbitrária que não deixa nenhum
tempo para a reflexão, tudo isso independente do que o espectador possa entender
ou pensar. Nessa experiência concreta da submissão permanente encontra-se a raiz
psicológica da adesão tão unânime ao que aí está; ela reconhece nisso, ipso facto,
um valor suficiente (Coment., § X).
138
Ibidem.
83
atribuições como expressão da sociedade da separação em sua etapa histórica mercantil
superdesenvolvida. Enquanto tal, ele é também a perfeita expressão da ausência do
diálogo. É isso que justifica tanto a irracionalidade da realidade que ele produz quando
as características do segredo generalizado, da mentira sem contestação e do presente
perpétuo. Ele é a busca da “dissolução da lógica” (idem), tendo em vista que esta só “se
forma socialmente por meio do diálogo” (idem). Ditando sua visão unilateral das coisas,
o espetáculo declara também o fim da memória e, com ela, da própria história no
momento em que ele mesmo abarca sua própria história “no movimento recente de sua
conquista do mundo” (Coment., §VI). É esta “a garantia do sucesso absoluto de todos os
seus empreendimentos, ou, ao menos, do rumor do sucesso” (Coment., § IV) e também
a gênese do espectador em sua forma mais contemporânea. Nas palavras de Debord:
É, portanto, correto afirmar que “nunca a censura foi tão perfeita. Nunca a
opinião daqueles a quem ainda se faz crer, em alguns países, que continuam a ser
cidadãos livres foi menos autorizada a se fazer ouvir, cada vez que se trata de uma
escolha que vai afetar sua vida real” (idem). Da mesma forma, “nunca foi possível
84
mentir com tão perfeita ausência de consequências” (idem), o que se mostra não apenas
nas decisões e ações do Estado à revelia da opinião dos que serão afetados por essas
opiniões, mas nos defensores oficiais da ordem: os especialistas.
139
Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo, in: op. cit., p. 159.
85
‘terroristas’ ao afirmar que os stalinistas não apenas tiveram sua participação como
elementos de desarticulação das lutas em seu país e na Itália nos anos 60 e 70, mas
também por sua tensão ideológica com o reformismo dos partidos da esquerda oficial
acabaram por colocar as bases para o surgimento de um movimento extremista que
justificasse as ações da repressão do Estado. Nesse sentido, o controverso episódio do
assassinato do ex-primeiro ministro italiano Aldo Moro pelos rebeldes da “brigada
vermelha” é analisado por Debord como
140
Ibidem, p. 153.
141
Ibidem, p. 156.
86
Portanto, como conjunto de mecanismos repressivos efetivos que operam tanto
em recorrência à psicologia das massas quanto pela força legítima do Estado, a
tendência do espetacular integrado é a de ser exportado como modelo para os demais
países ocidentais a partir de sua ordem hierárquica no reino espetacular. É essa a
realidade de nossos tempos e o caso americano atual é um bom exemplo particular desse
fato. Ainda que em crise, o país não é (ainda) apenas o grande centro do espetáculo
moderno de nossos dias por seu nível de consumo, mas também por possuir uma das
maiores populações carcerárias do planeta, com a impressionante marca de cerca de
25% de todos os detentos em escala global, um número que corresponde a cerca de 2
milhões de encarcerados.
142
Conferir em: http://youtu.be/HkSkQgnEV-Q
143
Conferir em: http://youtu.be/D7_rajy5L1k
144
Conferir em: http://glo.bo/YmFJ53
87
Capítulo III
145
Trata-se da nota XVIII do Handexemplar das Teses sobre o conceito de História descoberto por
Giorgio Agamben, responsável pela tradução da obra de Benjamin na Itália, em fins dos anos de 1980.
Por ter ficado de fora da versão mais conhecida das teses, passou-se a adotar, a partir das edições
italianas, essa numeração, de maneira que a anterior não sofresse alterações.
88
objetivo a busca de uma base sólida para a consciência e a prática futuras. Num duplo
movimento, trata-se de fazer a crítica das experiências e desenvolvimentos teóricos
concernentes a cada etapa histórica e resgatar o que as forças da ordem trataram de
cristalizar em verdades incontestáveis (portanto, mentiras) ou conclusões “inofensivas”
dessa crítica. O resultado desse contexto é o desvio [détournement] como o método –
prático e teórico – revolucionário por excelência.
146
Parece-me que ainda que evidenciando as particularidades do modo de produção, a crítica ao
capitalismo, seja em Marx ou em Debord, deve ser entendida na verdade como crítica da sociedade
histórica de classes. Em Debord e nos situacionistas isso é bem mais claro. Contudo, o que parece é que
Debord na verdade encontra nessa categoria o fundamento da crítica unitária de Marx, podendo com isso
fazer ressalvas em sua crítica do pensador alemão. Se é assim, isso explica que ainda que ele critique a
maneira fragmentada como Marx apresenta sua teoria crítica ao longo de determinado período de sua
produção, o pensador alemão tenha mantido até o fim de sua vida a perspectiva crítica total, não se
89
os socialistas utópicos ignoravam a luta de classe em favor de uma tentativa científica
de entendimento do funcionamento do modo capitalista de produção, tentativa que, para
eles, embasaria um conjunto de propostas a serem aplicadas no sentido de resolver as
contradições do sistema. Marx aparece então, possivelmente, como o primeiro a
denunciar o caráter ideológico de ambas as visões e advogar em favor de um projeto
revolucionário que fosse não uma nova visão parcelar acerca da luta – e separada dela –,
mas que encontrasse em si mesma o próprio fundamento de sua crítica.
limitando ao aspecto econômico – fato que é não apenas a interpretação corriqueira, mas a exata brecha
para o surgimento do marxismo como ideologia.
147
Marx, K. e Engels, F. Manifesto do partido comunista, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 47.
90
Em Marx, trata-se de tornar real no mundo o que a filosofia já realizara como
pensamento, ou seja, realizá-la por meio de sua superação. Ora, se Hegel explica a
nascente sociedade burguesa como um ponto de chegada histórico que tem o Absoluto
como fundamento, se efetivando no mundo como liberdade para conhecer a si mesmo,
cabe a Marx a tarefa de denunciar essa filosofia precisamente em seu núcleo abstrato,
criticando-a como “religião convertida em pensamento e desenvolvida pelo
pensamento”,148 não passando, portanto, de outra forma de alienação. O que Marx faz é
inverter esse conceito afirmando que de fato são os homens que fazem história, e é
necessário entender essa história fora de qualquer ilusão, atento à base material de cada
momento particular desse desenrolar histórico, bem como as lutas de classe particulares
de cada período. Essa operação, contudo, não se trata de uma simples inversão, mas,
como dissemos, da conservação sobre outras bases do que o pensamento de Hegel traz
de fundamental; justamente o que, como pensamento idealista, explica o impulso do Ser
para fora de si, a dialética. Assim, na perspectiva materialista de Marx esse o elemento
aparece em toda sua potencialidade no momento em que aparece como fundamento da
compreensão das lutas de classe, ou seja, o que permite que elas sejam entendidas como
não como leis, mas como movimento.
148
Marx, K., Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 173.
91
marxista do que noutros lugares, em benefício de autores como Proudhon e Fourier”.149
Por outro lado, ainda segundo ele, a recuperação de Marx e outros autores importantes
relegados a segundo plano, como Nietzsche e Freud, nos anos 60 se explica pelo
predomínio da tríade composta por Hegel, Husserl e Heidegger num período de três
décadas, de modo que, em geral, até o surgimento de Debord e da IS, “os hegelianos
franceses não eram marxistas, e amiúde os marxistas não eram hegelianos, ou mesmo
explicitamente anti-hegelianos, como Althusser”.150 Outra consideração curiosa é o fato
de que a recepção de Hegel na França, apesar de seu predomínio a partir dos anos 1930,
se deve ao impacto da leitura particular de Alexandre Kojève, o que, de acordo com
Jappe, trata de uma apresentação de Hegel como “existencialista”.
Vejamos, portanto, que essa constatação nos coloca diante de dois problemas:
primeiro, é preciso entender de que maneira o pensamento revolucionário unitário pôde
se cindir nestas duas correntes e com isso perder a força resultante de sua unidade
anterior. Segundo, é preciso buscar compreender o processo de ideologização que daí
sobrevém – especialmente dentro do marxismo, tendo em vista sua consolidação como
corrente de pensamento o permitiu muito maior alcance que o anarquismo. Mas, antes,
ainda uma palavra sobre Hegel.
Debord concorda com Korsch, mais precisamente com suas Teses sobre Hegel e
a revolução, quando afirma que Hegel, para além de suas pretensões, não passa de um
filósofo da reconciliação e glorificação do mundo existente, não da revolução. Sua
149
Jappe, A., Guy Debord, Lisboa: Antígona, 2008, p. 161
150
Ibidem, p. 164
92
perspectiva pretensamente revolucionária esbarra no próprio horizonte da sociedade
burguesa que ele tenta compreender, o que implica dizer que ao tentar explicar
contemplativamente um mundo que se fez a si mesmo, Hegel opera simplesmente uma
“realização filosófica da filosofia” (SdE, § 76). É por essa razão que seu esforço nessa
tarefa não pode prescindir da figura de um Absoluto que age no mundo para justificar o
caráter contemplativo da consciência que de fato não participa do movimento histórico
que tenta abarcar – fato que por si é definitivo para determinar um paradoxo
fundamental do qual Hegel não consegue se livrar. Como Debord nos explica:
Todavia, Debord está de acordo com Marx nos Manuscritos quando este afirma
que apesar de sua limitação, no método hegeliano estão os elementos essenciais do
verdadeiro pensamento revolucionário. Para Marx, o grande mérito de Hegel de
conceber a dialética em sua negatividade “enquanto princípio motor e criador”151
consiste, “em primeiro lugar, no fato de Hegel conceber a autocriação do homem como
processo”,152 e, em segundo, mas não menos importante, “apreender a natureza do
trabalho e conceber o homem objetivo (verdadeiro, porque homem real), como
resultado do seu próprio trabalho”.153 Porém, no momento em que concebe a história a
partir da identidade metodológica entre ser e pensar, discussão da qual nos ocupamos
um pouco no primeiro capítulo, toda a potencialidade da dialética de Hegel aparece
envolta em um véu idealista da qual é preciso se livrar e em seu sistema esses elementos
ainda aparecem de maneira especulativa, como expressão lógica do desenvolvimento do
Ser, ou em uma palavra, como abstração da própria história humana.
151
Ibidem, p. 178.
152
Ibidem.
153
Ibidem.
93
desenvolvimento histórico das forças produtivas,154 mas “demoliu a posição separada
de Hegel diante do que acontece e a contemplação de um agente supremo exterior, seja
ele quem for” (SdE, § 80). Em outras palavras, a partir de Marx, a teoria só pode
conhecer aquilo que ela realiza porque ainda que “obscuro e difícil”, seu caminhar
“deverá ser o apanágio do movimento prático agindo na escala da sociedade” (SdE, §
203) e o proletariado “existindo em atos”(SdE, § 77) já não pode ser apenas “o
desmentido da conclusão” da história, ou seja, a confirmação positiva do sistema, como
se dá no pensamento hegeliano, mas “a confirmação do método” materialista histórico-
dialético como pensamento negação, como pensamento e ação prática na história,
movimento que “dissolve toda a separação” (SdE, § 75).
154
Erro no qual incorreu, por exemplo, Lenin, em sua tentativa, segundo Korsch, de ser ao mesmo tempo
marxista e hegeliano. Segundo este, o revolucionário russo em sua simplista substituição do aspecto
idealista pelo materialista não só substituiu o “Espírito” pela “Matéria” como foi além ao recuar “todo o
confronto entre materialismo e idealismo a um nível de desenvolvimento histórico anterior ao alcançado
pela filosofia idealista alemã de Kant e Hegel” (KORSCH, 2008, p. 101), ou seja, retornar o fundamento
(Absoluto) ao ser, o que Hegel já havia superado ao pensá-lo como “desenvolvimento dialético da
‘Ideia’” (idem). O que ele obteve como resultado, certamente contrário a sua crença, foi apenas outra
forma de supressão da filosofia sem sua realização, o que, não por acaso, acabou por confirmar teórico e
praticamente o bolchevismo como absurdo completo. Em outras palavras, no campo teórico, essa
simplificação, ou seja, a limitação da dialética ao objeto que separado da consciência acaba por conceber
o conhecimento como transferência passiva à consciência subjetiva foi a própria justificativa teórica da
ditadura sobre o proletariado soviético.
155
Marx, K. e Engels, F. O manifesto do partido comunista, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 66.
156
Ibidem.
157
Ibidem.
94
(que contraditoriamente renegava a ação política prática), estivesse dada a emancipação
da classe, perspectiva que os colocava diante da ‘missão’ de apresentar à sociedade o
modelo correto de organização social, até alcançarem o reconhecimento, de sã
consciência ou boa vontade de seus interlocutores, de que com eles estaria “o melhor
plano possível para a melhor sociedade possível”.158
Contrariando sua crença, no entanto, a história acaba por mostrar que, negando a
práxis, só resta o conhecimento científico contemplativamente construído, com suas
leis, ao molde da natureza, e fica evidente, portanto, como assinala Debord, que a
concepção científica utópica falha em seu aspecto crítico mais fundamental: o de não
compreender o embate fundamental no seio da sociedade em crescente contradição, e,
portanto, desconsiderar “que grupos sociais têm interesses numa situação social
existente, forças para mantê-la, assim como formas de falsa consciência correspondente
a essas posições” (SdE, §83, itálico nosso). Em suma, encarando a ciência como
pensamento separado da história, suas fundamentações acerca da harmonia social plena
não poderiam ser outra coisa que simples abstração.159
Mas chamamos atenção para outro aspecto essencial da discussão teórica acerca
do pensamento revolucionário: o de que este não é ciência. De fato foi ao se considerar
como ciência objetiva, isenta de qualquer juízo de valor, que o marxismo da Segunda
Internacional consolidou seu processo de ideologização, fazendo com que sua
concepção materialista dialética da história se tornasse completamente o seu oposto.
Como nos explica Korsch:
Para uns, uma espécie de princípio heurístico que dirige a investigação nas ciências
particulares; para outros, a flexibilidade metodológica da dialética materialista se
cristaliza numa série de posições teóricas concernentes à causalidade dos eventos
históricos nos diferentes domínios da vida social, ou seja, em algo que seria melhor
designar como uma sociologia sistemática geral.160
158
Ibidem.
159
Dentre os socialistas utópicos Charles Fourier ganha, no entanto, uma diferente consideração,
primeiro.na ótica dos surrealistas da primeira geração (André Breton em especial, que em 1947 escreveu
sua Ode à Charles Fourier) e, a partir deles, Debord. Isso graças a seu projeto singular de fundar uma
sociedade “baseada no desejo, não na repressão”; ideia que sem maiores explicações conseguimos
compreender como plenamente de acordo ao projeto situacionista de transformação da vida cotidiana.
160
Korsch, K. Marxismo e filosofia, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008, p. 42.
95
prescinda de aspectos científicos em suas formulações. O que a teoria de fato busca
nessa relação é, tal qual faz com a filosofia, a realização da ciência por meio de sua
superação e não uma realização cientifica da ciência, ou seja, busca valorizar seus
aspectos essenciais sem se submeter aos próprios resultados cristalizados em dogmas.
161
Marx, K.e Engels, F., Manifesto do partido comunista, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 52.
96
cada vez mais científico, ou como afirma Debord, um árduo “trabalho erudito
separado” (SdE, § 85) – crítica válida pelo menos pelo período de cerca de vinte anos
que vai de 1852, com a publicação do 18 brumário, até seu trabalho de análise da
Comuna.
Para Korsch esse segundo período evolutivo da teoria consistiu em certo sentido
de um retorno a Hegel, tendo em vista que com o retrocesso do campo de ação das lutas
operárias pós-1850 em decorrência de uma ampliação dos canais “democráticos” de
luta, a teoria revolucionária só pôde seguir avançando “no pensamento” – ainda que
atingindo níveis mais elevados –, no momento em que ia “aplicando-se a todo o
domínio das ciências sociais e das ciências da natureza enquanto método materialista
dialético”.162 Por sua vez, Debord explica que, nessa fase de transição, ainda que não
tenha mudado seu ponto de vista unitário da teoria, Marx permitiu uma perda na teoria
ao aderir ao modo de exposição do pensamento dominante, adotando “a forma de
críticas de disciplinas particulares, principalmente a crítica da ciência fundamental da
sociedade burguesa, a economia política” (SdE, § 84). Ora, conclui ele, “foi essa
mutilação, ulteriormente aceita como definitiva, que constituiu o ‘marxismo’” (idem).
Desse modo, a visão parcializada, que tem sua maior expressão justamente (e
ironicamente) n’O capital, foi precisamente o terreno no qual prosperou o marxismo
enquanto ideologia. Por meio dela, estabeleceu-se uma visão determinista (científica) na
conclusão de que “a vinda do sujeito da história é adiada para depois, e a ciência
histórica por excelência, a economia, tende de modo cada vez mais alargado a garantir a
necessidade de sua própria negação futura” (idem, itálico nosso). Ademais, é oportuno
lembrar ainda que, para Gabel, essa ideologização se constitui em fundamento da
transformação do marxismo em doutrina política, o que se evidencia no próprio
obscurecimento da importância da análise dos fenômenos ideológicos, fato que ele
denuncia como forma de “pagar tributo à generalidade do fenômeno da falsa
consciência”.163
162
Korsch, K. Marxismo e filosofia, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008, p. 103.
163
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 83.
97
momento em que a teoria revolucionária tinha na unidade sua força (ou seja, quando da
fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1864), em favor do
inconsequente “uso de métodos estatais e hierárquicos tirados da revolução burguesa”
(SdE, § 90), foi o que de fato efetivou esse processo de ideologização, consolidado a
partir da Segunda Internacional. A reprodução da separação no próprio seio da
organização revolucionária trazia como consequência não apenas a formalização da
distinção de uma classe de líderes e teóricos à frente da “massa”, mas abria caminho a
uma crescente fragmentação da própria teoria, com a consequência de que cada
especialização não apenas trazia consigo suas próprias “verdades” acerca da luta, mas
continuava mantendo esse erro organizacional fundamental.
164
Luxemburg, R. Reforma ou revolução?, São Paulo: Global, 1990, p. 71.
99
todos eles garantia esse tipo de incompatibilidade; a história a desmentia a cada
momento (SdE, § 97).
Este marxismo russo, ainda mais ortodoxo (se é que isto é possível) do que a
ortodoxia marxista alemã, teve em todas as etapas do seu desenvolvimento um
caráter ainda mais ideológico do que aquela e esteve em contradição ainda mais
violenta do que aquela com o movimento histórico real de que deveria ser a
ideologia.166
167
Conferir a nota 47 de “Estado atual do problema (anticrítica)”. In: Korsch, K., Marxismo e filosofia,
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
101
3.2. Desvio e crítica da ideologia
Debord em sua teoria crítica está perfeitamente ciente de “que nenhuma ideia
pode levar além do espetáculo existente, mas apenas além das ideias existentes sobre o
espetáculo” (SdE, § 203). Ou seja, expresso nos termos da ordem, “o conceito crítico do
espetáculo pode também ser divulgado em qualquer fórmula vazia da retórica
sociológico-política para explicar e denunciar abstratamente tudo, e assim servir à
defesa do sistema espetacular” (idem). Mas ora, a forma de ser consequente com a
constatação de que a ordem de fato opera a recuperação da crítica não é apenas a sua
denúncia; a grande questão que se coloca é como recolocar em jogo toda a riqueza
histórica do conteúdo revolucionamento da crítica anterior. É esse o papel do desvio.
Debord explica que o desvio enquanto método tem sua origem na poesia
moderna, mas sua recusa de compreendê-lo unicamente como método artístico parte da
própria constatação crítica que norteou suas atividades ainda nos anos em que foi
membro do grupo letrista de Isou: o do movimento de autodestruição da arte. Sendo
assim, ele afirma em Mode d’emploi du détournement, escrito em parceiro com Gil J.
Wolman:
168
É precisamente dessa questão que se ocupa Emiliano Aquino em seu Reificação e linguagem em Guy
Debord (Fortaleza: Editora da UECE, 2006).
169
Aquino, J. E. F., op. cit., p. 175
102
Todos os meios de expressão conhecidos irão confluir em um movimento geral de
propaganda que deve abarcar todos os aspectos, em perpetua interação, da
realidade social. (...) Sobre o plano cultural como sobre o plano estritamente
político, as premissas da revolução não estão apenas maduras, elas já começaram a
apodrecer. (...) A inovação extremista tem apenas uma justificação histórica.170
A noção de desvio, como entendida por Debord, vai, portanto, abranger uma
gama maior de possibilidades, se servindo desde produções da cultura moderna,
passando pela linguagem cotidiana, até a psicanálise (como vimos no exemplo de seu
diálogo com Gabel) ou a própria teoria crítica. Desse modo, recusa a simples repetição
acrítica de elementos culturais por sua autoridade, tal como propõe o neodadaísmo e
pode se utilizar dos produtos da cultura na batalha antiideológica.
170
Debord, G. e Wolman, G. J., Mode d’emploi du détournement. In : Martos, J. F., Histoire de
L’Internationale Situationniste, Paris: Ivrea, 1995, p. 23, 24. Texto publicado pela primeira vez na revista
Les lévres nues nº 8, em maio de 1956.
171
Aquino, J. E. F., op. cit., p. 177.
103
que é resultado do esforço de afirmação da força crítica perdida no momento em que
aquele fragmento foi afirmado como mentira pela linguagem da ordem. O desvio,
portanto, “busca uma ação no presente que significa, duplamente, uma confirmação do
‘núcleo de verdade’ e uma ‘correção histórica’ de todo seu conteúdo social crítico”.172
Ou, como explica Debord, “esse estilo que contém sua própria crítica deve expressar a
dominação da crítica presente sobre todo o passado” (SdE, § 206).
172
Ibidem, p. 180
173
Debord, G. All The King’s Men. In: Aquino, J. E. F., Op. cit., p. 174. Esse texto foi publicado pela
primeira vez em janeiro de 1963 na edição nº 8 da Internationale situationniste.
174
Ibidem, p. 177
175
“As palavras que expressam o mal estão destinadas a vir a ter um significado de utilidade. As ideias
melhoram. O sentido participa disso. //O plágio é necessário. O progresso implica. Segue de perto a frase
de um autor, serve-se de suas expressões, apaga uma ideia falsa, substitui-a por uma justa.//Uma máxima,
para ser bem feita, não precisa ser corrigida. Precisa ser desenvolvida”. Lautréamont, Poesias [1870],
Parte II. Obra Completa. Tr. br. C. Willer. São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 277. In: Aquino, J. E. F.,
Op.cit., p. 173.
176
Ibidem.
104
caráter particular das lutas do proletariado, em comparação às lutas burguesas. Segundo
Marx:
A “magnitude infinita” dos objetivos das lutas operárias, por sua vez, Debord as
compreende como a inauguração da ‘historia consciente’ humana, pelo fim da sociedade
de classes e do domínio da mercadoria. E essa grandiosa tarefa de emancipação só pode
se dar por meio dos próprios operários na revolução total do mundo existente.
105
No Manifesto, Marx afirma que “os proletários não podem apoderar-se das
forças produtivas sociais senão abolindo o modo de apropriação a elas correspondente, e
por conseguinte, todo modo de apropriação existente até hoje”.177 Por outro lado,
explica também que o desenvolvimento das forças produtivas, motor da ascensão da
burguesia ao poder, se encontra agora constituindo em entrave à mesma, à própria
manutenção de sua condição de classe dominante, tal qual “o feiticeiro que já não pode
controlar os poderes infernais que convocou”.178 Sob o aspecto econômico isso se
manifestaria por meio de crises sistêmicas cada vez mais violentas que implicariam
também na progressiva diminuição dos meios de evitá-las. O motivo seria o próprio
superdesenvolvimento do sistema, ou seja, “a epidemia da superprodução”,179
manifesta em “civilização em excesso, meios de subsistência em excesso, indústria em
excesso, comércio em excesso”.180 Ademais, a crescente desestabilização burguesa teria
ainda como consequência a crescente organização da classe proletária, tanto pela sua
aglomeração decorrente das necessidades da produção, quanto da crescente tomada de
consciência a partir do reconhecimento de sua condição de sua condição como classe –
nos termos de Lukács, em referência a Hegel, sua transformação de classe em si em
classe em si e para si.
Mas, todavia, é bem óbvio que as lutas de 1848 – nem a Comuna de Paris – não
apenas não suprimiram a burguesia e nem a sociedade de classes como, por suas
derrotas, serviram de base para o reforço da ordem e sua maior organização, vindo a se
constituir em nossos dias nessa força de sujeição social que é o espetáculo. A história da
sociedade burguesa, portanto, especialmente a partir de meados do século XIX, é por
isso um relato do cada vez maior desenvolvimento dos instrumentos da separação, seja
no aspecto do desenvolvimento urbano, seja na especialização da representação
ideológica em seus diversos matizes. Por esse motivo, é óbvio, Debord não trata de
reproduzir o ‘otimismo’ do Marx do Manifesto que expõe ali as condições reais de um
momento completamente diferente da evolução histórica do capitalismo e da luta de
classes. Sua crítica do espetáculo é a própria confirmação disso. Mas se agora as
condições de organização tal qual Marx as havia descrito já não são as mesmas, e a
177
Marx, K. e Engels, F., Manifesto do partido comunista, p. 50
178
Ibidem, p. 45
179
Ibidem.
180
Ibidem.
106
abstração do sistema saindo do campo da produção invadiu a vida cotidiana
confirmando no espetáculo essa abstração como “modo de ser concreto” (SdE, § 29), o
“ponto de partida” inicial da crítica e da tomada de consciência deve ser então a própria
percepção prática dos resultados do desenvolvimento econômico em seu caráter
autonomizado, tal qual o caso dos motins do bairro de Watts em Los Angeles. Como ele
explica:
107
A consciência do desejo e o desejo da consciência são o mesmo projeto que, sob a
forma negativa, quer a abolição das classes, isto é, que os trabalhadores tenham a
posse direta de todos os momentos de sua atividade. Seu contrário é a sociedade do
espetáculo, na qual a mercadoria contempla a si mesma no mundo que ela criou
(SdE, § 53).
A teoria dos Conselhos é retomada por Debord tendo como foco principal seu
elemento mais fundamental: o diálogo prático. Ora, ele afirma, “nem o indivíduo
isolado nem a multidão atomizada e sujeita à manipulação podem realizar essa ‘missão
histórica de instaurar a verdade no mundo’” (idem). Assim, os Conselhos surgem como
o espaço onde não impera a separação e onde todos os envolvidos na luta comum
realizam a comunicação em toda sua potencialidade, o completo oposto do monólogo
espetacular. A união dialética da teoria com a luta na forma dos Conselhos tem aí sua
expressão mais poderosa e é, portanto, de onde ela extrai toda sua força e se afirma
verdadeiramente como o negativo da ordem vigente. É com base nessa constatação que
108
Debord explica que “no poder dos Conselhos, que deve suplantar internacionalmente
qualquer outro poder, o movimento proletário é seu próprio produto, e esse produto é o
próprio produtor. Ele é seu próprio fim” (SdE, § 117).
182
Na verdade, ao fazer a diferenciação entre Conselho e a organização revolucionária, me parece não
haver problema em se compreender que Debord não está oferecendo nenhum ‘guia’ de como deva se dar
a revolução e que papéis devam ser assumidos. Se lembramos do contexto de extremo vazio no terreno da
crítica tanto teórica quanto prática no momento de surgimento da IS, é fácil perceber que não se poderia
dizer da mesma que se tratava de um movimento conselhista (pois a sua atuação nem sempre se deu pela
109
Quanto a nossa discussão acerca dos Conselhos, é importante ter em mente que,
no que diz respeito à forma de organização, eles não surgem como simples teoria, mas
como resultado espontâneo da luta prática:
prática), todavia, podendo ser dito muito menos que ela se pretendia como liderança de uma nova
tentativa revolucionária. De fato, ao definir por meio de sua crítica à ideologia que a organização
revolucionária não pode se pretender como liderança do processo revolucionário, o que Debord de fato
me parece afirmar é que a distancia entre o ‘agir’ e o ‘fazer’ seja superada e que efetivamente “os
operários se tornem dialéticos e inscrevam seu pensamento na prática” (SdE, § 123).
183
Onde não foi possível aos bolcheviques limitar as ações dos Conselhos pela imposição de sua
ideologia, eles o fizeram pela força. Os exemplos mais significativos são o massacre de Kronstadt (março
de 1921) e a revolução social ucraniana, ocorrida entre os anos de 1917 e 1921. A revolta de Kronstadt
tem início em 1º de março de 1921 após uma assembleia geral, onde os marinheiros da fortaleza naval de
Kronstadt lançaram uma resolução contendo 15 reivindicações junto ao governo bolchevique. Em seu
conjunto, essas demandas são um bom retrato da situação econômica da Rússia da época e dos rumos da
política de Lênin, que se era perversa diante dos camponeses e trabalhadores das cidades, mostrou de fato
todo o seu terror na sua resposta. Em 13 de março, um último apelo foi lançado pelos insurgentes onde se
podia ler: “Permanecemos fieis à causa da qual fizemos nossa – a libertação do povo do jugo que lhe foi
imposto pelo fanatismo de um partido – e morremos gritando: ‘viva aos sovietes livremente eleitos!’.
Possa o proletariado do mundo inteiro sabê-lo” (Rocker, R, op cit, p. 73). No caso da Ucrânia, os sovietes
110
A conclusão de Rocker não poderia ser outra:
O sistema dos conselhos não suporta qualquer ditadura, partindo ele próprio de
pressupostos totalmente diferentes. Nele se encarnam a vontade da base, a energia
criadora do povo, enquanto na ditadura reinam a coação de cima e a cega
submissão aos esquemas sem espírito de um diktat: os dois não podem coexistir. O
que resta deles é apenas uma cruel caricatura da ideia dos sovietes, um irrisório e
risível produto.184
Mas não percamos de vista o fato de que o surgimento dos Conselhos como
correta prática de organização é anterior às agitações do século XX. 187 Sua primeira
manifestação histórica significativa foi de fato a Comuna de Paris, e, se é assim, isso
Ora, de fato, a teoria em sua concepção unitária pode ser entendida como a
perfeita expressão dos Conselhos. Entendemos assim essa complexa relação que
enxerga a organização revolucionária já ela mesma como crítica ao não compactuar com
nenhuma forma de poder separado, e a teoria já como forma de organização ao não
conceber a separação entre consciência e ação prática.
188
Ibidem, p. 78.
189
Löwy M., Walter Benjamin: aviso de incêndio, uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”,
São Paulo: Boitempo, 2005, p. 125.
112
Unendlichkeit der Zeit)”190, o primeiro se tratando, portanto, do tempo ligado à
realização histórica, realização que não é a linearidade do tempo da produção e do
consumo, mas, ao contrário, consideração do tempo por seu uso. Do outro lado, o tempo
vazio é o tempo da modernidade, do ‘pseudocíclico’ (Debord) que escraviza os homens
entre produzir e contemplar o que produzem. Ora, como bem lembra Michael Löwy em
seu Walter Benjamin: aviso de incêndio, Benjamin, em Das Passagen-Werk, com base
em sua síntese única entre marxismo e messianismo judaico, alude à própria
condenação quando afirma que “a quintessência do inferno é a eterna repetição do
mesmo”.191 A alusão não poderia ser melhor para fazer relação à crítica do espetáculo.
Para Debord, como história consciente humana, “a história que ameaça este
mundo crepuscular é também a força que pode submeter o espaço ao mundo vivido”
(SdE, § 178). Sendo assim, para ele, a ideia mais revolucionária acerca do urbanismo
“não é uma ideia urbanística, tecnológica ou estética” (SdE, § 179), mas a retomada do
reconhecimento do uso do tempo e da vida pela superação da separação imposta no
espaço, ou seja, “a decisão de reconstruir integralmente o território de acordo com as
necessidades do poder dos Conselhos de trabalhadores, da ditadura anti-estatal do
proletariado, do diálogo executório” (idem). Como crítica total do mundo da
mercadoria, também “a revolução proletária é a crítica da geografia humana através da
qual os indivíduos e as comunidades devem construir os locais e os acontecimentos
correspondentes à apropriação, já não apenas de seu trabalho, mas de sua história total”
(SdE, § 178). A nova sociedade, portanto, são os homens ditando as próprias regras de
seu jogo, conscientes de sua experiência como algo muito maior que a busca por
reconhecimento e espaço num mundo do qual se está alheio; é o “reconhecer a si
mesmo em seu mundo” (SdE, § 179), ou seja, é “trazer de volta a realidade da viagem, e
da vida entendida como uma viagem que contém em si mesma todo o seu sentido”
(SdE, § 178). Na dissolução da separação está a dissolução da ideologia e o
estabelecimento do diálogo. Não se trata de resolver todas as questões, mas de colocá-
las como resultado da história prática que já não se realiza mais como prática invertida
resultado de um mundo invertido. “Emancipar-se das bases materiais da verdade
190
Ibidem, p. 21.
191
Ibidem, p. 90.
113
invertida, eis no que consiste a auto-emancipação de nossa época” (SdE, § 221); com
essas palavras Debord abre a última tese de A sociedade do espetáculo.
Considerações Finais
114
espetacular difuso e espetacular concentrado, se fundem no que Debord chamou de
espetacular integrado. Esse novo momento surge em resposta às lutas contestatórias
surgidas de modo espontâneo dessa vez no interior da própria forma difusa, esta onde a
mercadoria se mostrava até então incontestável, por meio de liberdade total afirmada na
ideologia da representação pelo consumo. Se o espetáculo até aí mostrava sua face de
terror explícita apenas na exploração do trabalho do regime concentrado, no espetacular
integrado já não se trata de esconder sua natureza. Ele se mostra como o que é de fato, e
pune violentamente a todos os que o contestam. Em realidade, o tempo do espetacular
integrado é o nosso tempo...
Por fim, concluímos afirmando mais uma vez a importância e infeliz atualidade
da crítica de Debord, que para seu mérito e triste constatação em muito tem se
confirmado a cada novo movimento do espetáculo no momento atual da luta de classes.
Todavia, como afirma Debord no “Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do
espetáculo”, “o maior resultado da decomposição catastrófica da sociedade de classes é
que, pela primeira vez na história, o velho problema de saber se a maioria dos homens
ama a liberdade está superado: agora, eles vão ser obrigados a amá-la”.193
192
Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo. In: Debord, G., op. cit., p. 151.
193
Ibidem, 162.
116
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