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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA

Espetáculo & Ideologia: um estudo sobre o papel da Ideologia n’A sociedade do


espetáculo de Guy Debord

Fortaleza

Maio/2013
3
Fabiano José Araújo dos Santos

Espetáculo & Ideologia: um estudo sobre o papel da Ideologia n’A sociedade do


espetáculo de Guy Debord

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado


Acadêmico em Filosofia do Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Ceará como requisito parcial
para a obtenção do grau de mestre em filosofia

Orientador: Prof. Dr. João Emiliano Fortaleza de


Aquino

Fortaleza

Maio/2013
4
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Estadual do Ceará
Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho
Bibliotecário Responsável – Francisco Welton Silva Rios – CRB-3/919

S237e Santos, Fabiano José Araújo dos


Espetáculo & ideologia: um estudo sobre o papel da ideologia na
sociedade do espetáculo de Guy Dedord / Fabiano José Araújo dos Santos. -
- 2013.
CD-ROM. 120 f. : il. ; 4 ¾ pol.

“CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho


acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm)”.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Ceará, Centro de
Humanidades, Curso de Mestrado Acadêmico em Filosofia, Fortaleza,
2013.
Área de Concentração: Ética.
Orientação: Prof. Dr. João Emiliano Fortaleza de Aquino.

1. Ideologia. 2. Sociedade do espetáculo. 3. Linguagem. 4. Crítica da


representação. I. Título.

CDD: 145

5
Dedicatória e Agradecimentos

Dedico esse trabalho a meus pais e minha família. Os motivos são tão óbvios que
se fazem desnecessários aqui.

Dedico ainda aos amigos e pessoas queridas que tiveram de alguma forma sua
contribuição na realização desse projeto. Não são poucos e alguns sequer têm ideia de
sua importância, portanto, citar nomes seria uma tarefa difícil.

Em agradecimento, gostaria de citar os professores Aécio Oliveira, Fábio Sobral e


Emiliano Aquino, os dois primeiros por se tratarem de figuras com papel tão
fundamental na minha formação durante a graduação e o último por sua generosíssima
contribuição e orientação em todas as etapas dessa jornada de dois anos no curso do
mestrado. Dele, posso ainda afirmar que fico muito feliz de ter podido superar a barreira
do contato profissional e dizer que somei mais um amigo.

6
Resumo

A compreensão da ideologia ocupa papel central na crítica de Debord ao que ele chama
de espetáculo moderno. Este, por sua vez, seria o estágio mais desenvolvido, e por nós
conhecido, da sociedade de classes, no momento em que por seu desenvolvimento as
forças econômicas ganham autonomia ao estenderem por todo o mundo o domínio da
mercadoria. Tal fato, todavia, não poderia ter sido possível se não fossem as derrotas
dos principais movimentos revolucionários do século XX em dois momentos cruciais, o
primeiro quarto do século e o período que vai de cerca de meados dos anos 60 a fins de
anos dos anos 70. Essas lutas, portanto, assistiram ao nascimento e o fortalecimento do
regime espetacular do capital, inicialmente na divisão entre espetáculo difuso e
concentrado e depois na fusão desses dois no espetáculo integrado, podendo ser dito do
espetáculo como um todo que ele não trata apenas da gestão econômica, mas do próprio
controle de seus dominados. Entendê-lo é, portanto, entender como se dá essa
dominação na complexidade de suas técnicas de controle, tanto pelo aspecto objetivo da
força armada do Estado, quanto no domínio objetivo e subjetivo das imagens do capital
ali onde a sociedade da mercadoria se encontra mais desenvolvida. No que diz respeito
a esse aspecto subjetivo, a crítica de Debord retoma sob nova perspectiva a relação
proposta pelo filósofo e sociólogo húngaro Joseph Gabel das diferentes formas de
formas de consciência antidialética, em especial a relação das formas social e clínica
(para ele, a esquizofrenia). De fato, acreditamos estar aqui o fundamental da proposta
desse trabalho, tendo em vista não se tratar de um aspecto muito explorado da crítica de
Debord, além de se basear em um diálogo deste com um autor pouco conhecido no
Brasil até mesmo em sua área. Quanto ao conjunto do trabalho, diríamos que pela crítica
da ideologia é possível entender não apenas aspectos fundamentais desse elemento
subjetivo tanto da perspectiva clínica, quanto em sua relação com a economia – que
retoma ainda o Lukács de História e consciência de classe – e logicamente com a
própria política, onde ganham destaque a crítica da representação e o projeto de
superação da sociedade de classes por meio da revolução, discussão que, por sua vez, se
mostra original ao destacar a análise dos Conselhos e o aspecto da linguagem nas lutas
práticas, em exata oposição ao diálogo unilateral do espetáculo.

Palavras-chave: Ideologia, Sociedade do espetáculo, Estado, Linguagem, Crítica da


representação.
7
Abstract

The understanding of ideology is central to the critique of Debord to what he calls the
modern spectacle. This, in turn, would be the most developed, and for us known, stage
of the class society, by the time of its development when the economic forces gain
autonomy to extend worldwide the mastery of merchandise. This, however, could not
have been possible if not for the defeats of the main revolutionary movements of the
twentieth century in two crucial moments, the first quarter of the century and the period
from about the mid-60s to late 70s. These struggles, therefore, attended the birth and
strengthening of the capital’s spectacular regime initially in the division between the
forms diffuse and concentrated and then in the fusion of these two in the integrated
spectacle, therefore allowing to be said of the spectacle as a whole that it is not just
about the economic management but the actual control of the proletarians. To
understand it is therefore to understand how is this domination in the complexity of its
control techniques, both the objective aspect of the armed force of the state, as in the
field of objective and subjective images of the capital's where the commodity society is
more developed. Regarding to this subjective aspect, Debord's critique resumes under
new perspective the relation proposed by the Hungarian philosopher and sociologist
Joseph Gabel of the different forms of anti-dialectical consciousness, in particular the
relation between social and clinical form (for him, schizophrenia). In fact, we believe
that here we have the fundamental purpose of this study, noting that this has not being a
very exploited aspect of Debord’s critic, besides be based on a dialogue with an author
very little known in Brazil even in his field of study. Regarding this study as a whole,
we would say that by the critique of ideology is not only possible to understand
fundamental aspects of this subjective element by the clinical perspective, but also in its
relationship with the economy - which also resumes the Lukács of History and Class
Consciousness - and logically with politics itself, discussion highlighted by criticism of
representation and the project to overcome class society through revolution, discussion,
in turn, that brings the original analysis of the Councils and the aspect of language in
practical struggles, in exact opposition to unilateral dialogue of the spectacle.

Keywords: Ideology, Society of the Spectacle, State, Language, Critique of


representation.

8
Sumário

Apresentação.............................................................................................................pg. 10

Capítulo 1. Ideologia e Espetáculo............................................................................pg. 15

1.1. Economia e Espetáculo.......................................................................................pg. 16

1.2. Espetáculo e Ideologia........................................................................................pg. 28

1.3. Espetáculo e Esquizofrenia.................................................................................pg. 41

Capítulo 2. Espetáculo e Ideologia............................................................................pg. 51

2.1. O Espetacular Concentrado................................................................................pg. 56

2.2. O Espetacular Difuso..........................................................................................pg. 66

2.3. O Espetacular Integrado.....................................................................................pg. 77

Capítulo 3. Ideologia e Teoria Revolucionária..........................................................pg. 88

3.1. Dialética e Teoria Revolucionária......................................................................pg. 89

3.2. Desvio e Crítica da Ideologia...........................................................................pg. 102

3.3. Revolução e Dissolução da Ideologia..............................................................pg. 105

Considerações Finais...............................................................................................pg. 114

Bibliografia..............................................................................................................pg. 117

9
Apresentação

A Sociedade do Espetáculo tem sua importância como expressão de conclusão


de um período de dez anos, entre fins das décadas de 50 e fins da década de 60 do
século passado, em que a Internacional Situacionista, organização que tem em Debord
um de seus fundadores, se estabeleceu como o principal protagonista no terreno da
crítica revolucionária, não apenas na França. Como tal, e junto com os Comentários à
sociedade do espetáculo (1988), essa obra se constitui ainda hoje na crítica mais concisa
da ordem do capital em sua fase superdesenvolvida desde seu lançamento em dezembro
de 1967.

Surgida em 1957 a partir da união de grupos artísticos de vanguarda que tinham


por comum interesse uma preocupação tanto teórica quanto prática acerca das
possibilidades de superação da arte, a IS, nos anos que se seguiram, enriqueceu
progressivamente sua crítica a ponto de estendê-la a um pensamento crítico sistemático
da sociedade capitalista moderna, o que Debord, por sua vez, acabou por nomear “o
espetáculo”. O termo, na verdade, surge primeiramente como simples oposição da
noção de espectador – elemento passivo, mas não solitário – ao pensamento crítico da
época, que, dado o esgotamento político dos movimentos revolucionários de então,
concentrava-se na “dimensão subjetiva da alienação”.1 No entanto, ele vai ganhar como
categoria crítica cada vez maior dimensão, até finalmente se estabelecer como crítica da
sociedade capitalista superdesenvolvida na complexa relação que essa manifesta entre o
mundo prático e a economia autônoma. É nesse sentido que a ideologia aparece não
apenas como corolário de uma práxis invertida no plano da consciência, mas como ação
prática efetiva das forças de sujeição da vida em toda sua complexidade. E é exatamente
desse problema que trata essa dissertação, do interesse acerca do papel da ideologia no
conjunto da crítica da SdE partindo da afirmação de Debord de que “o espetáculo é a
ideologia por excelência” (SdE, § 215).

Para analisarmos a questão, apresentamos a discussão em três capítulos. O


primeiro se dedica à exposição da crítica do espetáculo na sua relação com a ideologia
buscando a relação entre espetáculo, ideologia e esquizofrenia. Fazemos isso no intuito

1
Martos, J. F., Histoire de l’Internationale situationniste, Paris : Ivrea, 1995, p. 62.

10
de explicar o fundamento da teoria da consciência reificada como base para a crítica da
representação ideológica, que melhor exploramos no capítulo seguinte. Neste, por sua
vez, a preocupação é também compreender o espetáculo em sua gênese histórica não
apenas como resultado do superdesenvolvimento das forças produtivas sociais, mas na
consolidação e fortalecimento desse poder econômico também a partir das derrotas dos
movimentos contestatórios do século XX em dois momentos decisivos: os anos de 1920
e 1930 e o período compreendido entre fins dos anos de 1960 e fins da década de 1970,
o primeiro referente ao espetáculo em suas formas difuso e concentrado e o segundo
dizendo respeito à origem da forma mais contemporânea do espetáculo, o espetacular
integrado; resultado da fusão das duas anteriores. No terceiro capítulo, por fim,
refletindo acerca do aspecto unitário da teoria revolucionária, ou seja, sua concepção
como inseparável relação entre pensamento e prática, discutindo ainda o método do
desvio como o método dialético revolucionário por excelência e o objetivo da
revolução: a instauração da sociedade sem classes e com ela a superação da ideologia.

Na tarefa que nos propomos no primeiro capítulo, contudo, acreditamos estar


realmente o elemento central do trabalho. Isso porque nele se evidencia um aspecto da
recepção da teoria psicanalítica por Debord até então pouco examinado. De fato, não se
trata aqui do diálogo com Freud, mas da maneira como as conquistas da psicanálise são
exploradas em sua relação com a crítica social. É assim, portanto, que o livro A falsa
consciência (1962) do filósofo e sociólogo Joseph Gabel joga papel fundamental. Aqui,
se bem entendido, se encontram os elementos essenciais da crítica de Debord às formas
de consciência do espetáculo na forma da crítica da consciência reificada – tanto como
ideologia quanto como falsa consciência, distinção conceitual aceita por Debord – em
suas diversas manifestações, especialmente na relação entre a consciência reificada de
tipo social e a de tipo clínico, que Gabel acredita ter sua expressão na esquizofrenia. Por
sua vez, Gabel toma como ponto de partida para o estudo da falsa consciência e da
ideologia, a própria categoria de consciência reificada, apresentada pela primeira vez
num importante momento do estudo da dialética marxista: a clássica obra História e
consciência de classe, de György Lukács.

Mas, todavia, há de se precisar a distinção entre as duas obras: Lukács apresenta


seu conceito de consciência reificada, isto é, a consciência em sua manifestação

11
antidialética, a partir da crítica da economia política, colocando essa forma de
consciência como expressão direta das relações impessoais mercantis tanto no âmbito
da produção (o “chão de fábrica”) quanto da distribuição para o consumo mercantil
(relações de compra e venda). Gabel, por outro lado, tenta alargar o conceito de
consciência antidialética colocando como denominador comum às diferentes formas
desta consciência a própria noção de dialética proposta por Lukács em sua HCC. Assim,
Gabel reconhece os méritos de HCC como primeira aproximação, em certo sentido, da
crítica da economia política aos desenvolvimentos da psicanálise. Ele acredita com isso
poder explicar não só a consciência social reificada de tipo econômico, mas também,
por exemplo, suas expressões políticas e ideológicas, como a consciência racista, e a
consciência antidialética de tipo clínico, a esquizofrenia, podendo, a partir daí, também
relacioná-las, no que ele chama de “paralelismo sociopatológico”.

É precisamente esse paralelismo que interessa a Debord em sua explicação das


formas de consciência do espetáculo como em perfeita sintonia com a esquizofrenia,
notadamente em sua característica contemplativa face ao domínio da mercadoria sobre o
mundo. O que tentamos mostrar é que o desvio feito por Debord das conquistas de A
falsa consciência e História e consciência de classe não se constituem em simples
repetições, ou, no caso do paralelismo proposto por Gabel, de um retorno ao
“reducionismo” de Lukács, mas concebe tanto a falsa consciência quanto a ideologia
como formas de consciência reificada precisamente por seu caráter “esquizofrênico” de
contemplação – já mencionada –, entendendo essa característica como expressão da
práxis invertida do espetáculo. Ora, no mundo da separação, construído pelo domínio
objetivo da mercadoria, não só os proletários não tem o controle de suas vidas, mas a
própria classe dirigente ideológica em todas as suas manifestações só é dominante à
medida que se encontra submissa ao desenvolvimento cego das forças econômicas. Em
outras palavras, todas as formas de ideologia em suas diversas manifestações, no
espetáculo são entendidas por Debord como uma única ideologia, a que se afirma como
“monólogo laudatório” (SdE, § 24) da ordem, da própria mercadoria que não apenas
controla o mundo, mas o constrói à sua imagem, “como reflexo fiel da produção das
coisas, e a confirmação infiel dos produtores” (SdE, § 16).

12
No segundo capítulo, as formas do espetáculo são apresentadas em sua relação
indissociável com as principais lutas negadoras da ordem vigente no século passado,
esclarecendo que o espetáculo não se constitui, portanto, como já anunciamos, única e
exclusivamente como resultado do desenvolvimento histórico das forças produtivas,
mas também na adoção de técnicas de controle (das quais a ideologia se constitui como
o núcleo fundamental) cada vez mais virulentas sempre que o poder do capital se vê
ameaçado historicamente. Com base nisso, as duas formas iniciais do espetáculo,
concentrado e difuso, são apresentadas aqui como consequência das derrotas do
movimento operário dos anos de 1920 em sua estreita relação com o pensamento de
esquerda tradicional dominante de então: a socialdemocracia alemã e o bolchevismo
russo; enquanto a fusão destas duas formas é aqui aduzida, a partir dos Comentários
sobre a sociedade do espetáculo, como consequência das lutas dos anos de 1960,
movimentos em relação aos quais a SdE de Debord se constitui também como tentativa
de expressão.

Esclarecemos que contrariamente à interpretação de autores como Anselm Jappe


e Celso Frederico, que veem nos Comentários uma exposição pessimista – e mesmo
fatalista – dos desenvolvimentos do espetáculo posteriores às lutas dos anos 70, ou seja,
a partir do surgimento do espetacular de tipo integrado, procuraremos demonstrar no
terceiro e último capítulo (a saber, “Ideologia e teoria revolucionária”) o caráter
revolucionário (dialético) da teoria crítica de Debord essencialmente com base na
relação entre teoria e comentários.

Debord explica na “Advertência da edição francesa de 1992” que “uma teoria


crítica como esta não se altera, pelo menos enquanto forem destruídas as condições
gerais do longo período histórico que ela foi a primeira a definir com precisão”.2 Como
reatulização da teoria crítica, a teoria da sobrevida [survie] e do espetáculo é, antes de
mais nada, a tentativa de recolocar em jogo a contestação da sociedade mercantil, posto
que das últimas derrotas dos movimentos de negação da ordem até o aparecimento da
IS, “nunca essa causa havia sofrido derrota tão completa nem havia deixado o campo de
batalha tão vazio”.3 Os acontecimentos de 1967, ele explica, foram resultado do fato de

2
Advertência da edição francesa de 1992. In: Debord, G., A sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997, p. 9.
3
Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo. In: Debord, G., op. cit., p. 151-152.
13
que “as velhas linhas de defesa que haviam barrado as ofensivas anteriores da revolução
social estava descontroladas e corrompidas”,4 o que lhes deu “a ocasião de se tentar
mais uma”.5 De fato, a teoria crítica de Debord tem como pressupostos de sua força dois
aspectos fundamentais: a união dialética entre teoria e prática e seu reconhecimento
como luta histórica, o que a coloca muito próxima do messianismo de Benjamin, este
que compreende cada tentativa revolucionária como momento único que reúne em si a
força de todas as lutas anteriores, devendo, dessa forma, redimi-las no momento de sua
vitória. A derrota de qualquer tentativa não deve, portanto, representar seu fracasso,
senão fortalecer a consciência da luta e das práticas futuras.

Quanto ao fato de os Comentários parecerem a negação das possibilidades de


ação após as últimas investidas revolucionárias nos anos 60 e 70, me parece que se trata
exatamente do contrário. O que o espetacular integrado quer é o fim da historia por
meio da organização da ignorância, justamente para manter “o esquecimento do que,
apesar de tudo, conseguiu ser conhecido” (Coment., § VI). É justamente essa a razão da
existência dos comentários: eles são ao mesmo tempo denúncia dos tempos em que
foram escritos e memória de um tempo sem memória. Ou, como Debord explica logo
no primeiro comentário: “se lhes forem intercaladas umas páginas cá, outras acolá, o
sentido completo pode aparecer: é o que muitas aconteceu quando artigos secretos
foram acrescentados àquilo que os tratados diziam abertamente; da mesma forma, há
agentes químicos que só revelam uma parte de suas propriedades quando se combinam
com outros”.

Esse aspecto, na verdade, ganha uma maior atenção no último capítulo, quando
discutimos a teoria revolucionária em sua história e em seus aspectos mais essenciais,
de acordo com a análise de Debord. É assim que trazemos à discussão o método do
desvio [détournement] como método fundamental da teoria, sem desconsiderar que, por
sua vez, este não se distingue de uma consideração acerca da linguagem e da memória.
Por fim, concluímos com uma pequena discussão sobre o objetivo último da teoria de
Debord, a dissolução da ordem burguesa e com ela de toda ideologia. Passemos então às
questões fundamentais.

4
Ibidem, p. 151.
5
Ibidem.
14
Capítulo I

Ideologia e Espetáculo

Perseu precisava de um capacete da invisibilidade para


perseguir os monstros. Nós puxamos o capacete mágico
a fundo sobre nossos olhos e orelhas, para podermos
negar a existência de monstros.

(Marx. Prefácio d’O capital)

Espetáculo é ideologia, é esta afirmativa que norteia o desenvolvimento deste


trabalho. Dito de forma mais clara, o que se quer aqui é explorar a relação feita pelo
autor de A sociedade do espetáculo entre esses dois conceitos, discussão que embora
perpasse toda a obra na própria exposição teórica do espetáculo, ganha atenção especial
em seu capítulo final (a saber, “A ideologia materializada”). Neste capítulo, a crítica da
ideologia ganha ainda como componente a retomada da analogia entre consciência
reificada (antidialética) e a categoria clínica da esquizofrenia, apresentada
primeiramente pelo filósofo e sociólogo húngaro Joseph Gabel, mais precisamente em
sua obra A falsa consciência, publicada em 1962. Para Gabel, a esquizofrenia é
fundamentalmente uma forma de consciência antidialética, de maneira que o
paralelismo que ele apresenta entre ideologia e esquizofrenia é o ilustrativo da proposta
de sua obra; oferecer um denominador comum entre as diversas formas de consciência
desse tipo. Esse denominador, uma concepção de mundo antidialética abrangente, tem,
por sua vez, como referência a teoria dialética apresentada por György Lukács na sua
clássica obra História e consciência de classe (1923), esta que, em certo sentido, se
constitui num primeiro esboço desse paralelismo proposto e desenvolvido por Gabel.

Debord, contudo, não está diretamente interessado em apenas retomar o projeto


inicial de Gabel, mas, em vez disso, em utilizar-se de seus resultados – e também
daqueles do Lukács de HCC – para explicar como a consciência dos indivíduos pode
assumir um caráter socialmente contemplativo a partir de determinadas condições
histórico-socialmente produzidas. É esse caráter contemplativo um dos elementos que o
levam a definir o momento histórico-social particular do modo de produção mercantil

15
iniciado a partir do período compreendido entre as duas guerras mundiais como o
espetáculo.

O interesse de Debord pela questão deve ser entendido a partir da própria análise
crítica do capitalismo superdesenvolvido, tendo em vista que a consideração dessas
categorias se faz fundamental tanto para a compreensão do espetáculo como técnica de
poder (um dos aspectos da ideologia materializada), quanto na consideração do conjunto
das formas de consciência próprias a essa sociedade (a falsa consciência geral) em
vistas da tentativa de elaboração de uma teoria revolucionária que a supere.

Dito isso, podemos passar à investigação da ligação entre espetáculo, ideologia e


esquizofrenia, a relação tríplice que procuraremos apresentar neste primeiro capítulo.
Mas tendo em vista que as ideologias não são simples quimeras, como afirma Debord
em referência a Marx logo no início de “A ideologia materializada”, e muito menos
estão desligadas da realidade, já que sobre esta “exercem uma real ação deformante”
(SdE, § 212), seguiremos um pequeno roteiro lógico de exposição que tem como ponto
de partida a própria base material do espetáculo: a economia em seu estágio de
superdesenvolvimento.

1.1. Economia e espetáculo

Espetáculo é economia. A primeira e mais imediata consideração que se possa


ter acerca do mesmo é a de que se trata do “momento histórico que nos contém” (SdE, §
11), bem como sua prática social e o sentido dessa prática. Mas ainda que não se possa
reduzir a análise e a crítica do espetáculo a uma determinação da base econômica da
sociedade, é de extrema importância entender a função que ela exerce no conjunto do
que Debord entende como o espetáculo, e como exerce esse papel. Dessa forma, neste
tópico especificamente, nos interessa mostrar os desdobramentos das relações de
produção capitalistas (ou seja, produção e reprodução de mercadorias e, portanto, num
sentido mais amplo, de capital) em relação ao conjunto da atividade social. Em outras
palavras, nos ocuparemos da dupla tarefa de mostrar: primeiro, como no modo de
produção mercantil o fundamento abstrato (valor) acaba por dominar a atividade
sensível e, por seguinte, inverte-la em uma relação entre coisas – relação, portanto,
regida com base nas leis dessas coisas. Tomamos então como ponto de partida a clássica
análise de Marx presente em O capital acerca da mercadoria. Isto porque também
16
levamos em consideração que a adoção do método histórico-dialético se faz
determinante para a compreensão não apenas da essência do sistema capitalista – o que
a economia política clássica já havia alcançado –, mas o todo das relações que daí
decorre. Sendo assim, antes ainda de adentrarmos a discussão sobre os fundamentos
econômicos do espetáculo, nos interessa fazer uma pequena consideração acerca deste
método.

A relação entre análise e síntese pode ser entendida precisamente como o ponto
de diferenciação do método de Marx e o sistema filosófico de Hegel, sua referência.
Hegel, em seu idealismo consequente, parte da identidade entre ser e pensar para
afirmar a igualdade entre método e realidade, ao passo que em Marx análise e síntese
dizem respeito a momentos isolados da pesquisa e da apresentação de seus resultados.
Enquanto Marx considera que essa apresentação não reproduz um desenvolvimento
histórico, mas se constitui de uma exposição lógica das categorias – apreendidas pelo
intelecto através da análise –, capaz de diferenciar por ordem de importância as
categorias do objeto de estudo,6 em Hegel, a exposição diz respeito ao próprio
movimento do objeto de que se ocupa a análise, o que pode ser entendido quando ele
afirma, por exemplo, que a razão lógica “é o substancial ou o real, que mantém unidas
todas as determinações abstratas e é sua unidade consistente, absolutamente concreta”.7
Há de se observar, todavia, acerca dessa identidade proposta por Hegel que é
exatamente a partir dela que seu método não consegue superar a determinação infinitista
e idealista que, como em Adam Smith, de quem foi leitor, condena todo seu projeto a
uma perspectiva a-histórica – não importando quão irônica seja sua busca por apresentar
um método de compreensão da história que seja ao mesmo tempo justificação do novo
modo de organização social que ele tenta entender em sua totalidade.

Em Smith, essa perspectiva a-histórica se manifesta na célebre teoria da mão


invisível, que compreende o mercado em perfeita autorregulação e tendendo sempre ao
equilíbrio – o que a análise da economia política clássica como um todo interpreta, por
sua vez, como a imutabilidade das leis históricas do capital. O erro da economia política
clássica, como Marx explicita em sua crítica, é o de tentar explicar as leis do novo modo
6
Para um estudo mais detalhado sobre esse ponto, conferir Crítica das formas jurídicas em Marx de
Estênio Azevedo, especialmente o capítulo 3: A exposição crítica das formas jurídicas enquanto
exposição da crítica da economia política.
7
Hegel, W. F., Ciência da lógica [excertos], São Paulo: Barcarolla, 2011, p. 27.
17
de produção baseados em suas categorias elementares (propriedade privada, salário etc)
tomando-os como dados, e não compreendendo que, ao contrário, essas categorias
decorrem da própria essência do sistema. É assim que para Smith, por exemplo, “ao
definir a relação do salário com o lucro do capital, aparece-lhe como último fundamento
o interesse dos capitalistas”,8 e ele acaba assim por conjeturar o que deveria de fato ser
explicado. Ora, é exatamente essa a perspectiva ‘invertida’ sobre a sociedade burguesa
moderna que Hegel traduz como o próprio movimento de desdobramento do Absoluto
no mundo.

Marx vai então denunciar o erro metodológico de Hegel atacando diretamente


seu fundamento idealista (identidade pensamento e ser), absoluto. Além disso, a
identificação do elemento central do idealismo hegeliano não lhe permite apenas a
crítica, mas sua correção, superando-o e resgatando o que esse método já traz em si de
revolucionário: a negatividade dialética, em referência à história, e a perspectiva da
totalidade. Significa exatamente dizer que ainda que se afaste “da determinação idealista
e infinitista do sistema de Hegel, no qual pensamento e ser, método e realidade se
confundem, Marx retoma, contudo, a concepção hegeliana de ciência como
apresentação (Darstellung)”.9

No método de Marx, a realidade concreta, ainda que seja o ponto de partida


efetivo, é encarada como síntese, como resultado da relação dialética de uma série de
determinações abstratas que em sua individualidade são fundamentais para a
compreensão da totalidade. E é sob essa nova perspectiva, da inauguração do método
“cientificamente exato”, como definido pelo próprio Marx, que a uma só vez ele pode se
apoderar das conquistas da filosofia hegeliana e da economia política clássica inglesa,
superando-as.

Debord, por sua vez, tem em mente o materialismo dialético em sua exposição
crítica do espetáculo. É ciente dos recursos do método que ele pode apresentar, logo nos
primeiros capítulos da SdE, as determinações mais abstratas de seu objeto de
investigação – a mercadoria dentre elas – em referência e constante relação com a
totalidade do mesmo. Segundo ele:

8
Marx, K., Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 110.
9
Azevedo, E. E. B., A crítica das formas jurídicas de Marx. 2008. 136 f. Dissertação (mestrado em
filosofia) – Centro de Humanidades, Universidade Estadual do Ceará – UECE, Fortaleza. p. 92.
18
Para descrever o espetáculo, sua formação, suas funções e as forças que tendem a
dissolvê-lo, é preciso fazer uma distinção artificial de elementos inseparáveis. Ao
analisar o espetáculo, fala-se de certa forma a própria linguagem do espetacular,
ou seja, passa-se para o terreno metodológico dessa sociedade que se expressa pelo
espetáculo (SdE, § 11).

Ao fazer referência ao processo analítico do método, ele, no entanto, apresenta a


determinação que se põe como o núcleo fundante do espetáculo: a separação, cuja
expressão no processo produtivo da sociedade mercantil superdesenvolvida é
precisamente a especialização das tarefas. De fato, o espetáculo sob o ponto de vista de
sua análise econômica é precisamente o processo de especialização do trabalho – e de
especialização do poder, de maneira correspondente – em seu nível historicamente mais
apurado. Sob este aspecto, a primeira conclusão a que podemos chegar é a de que seu
poder decorre do fato de, estando fundado na especialização, no isolamento, o
espetáculo como um todo ser também a “produção circular do isolamento” (SdE, § 28),
ou seja, enquanto “o isolamento fundamenta a técnica; reciprocamente, o processo
técnico isola” (idem). O espetáculo então trata da “fabricação concreta da alienação”
(SdE, § 32), no momento em que “o homem separado de seu produto produz, cada vez
mais e com mais força, todos os detalhes de seu mundo” (SdE, § 33).

Portanto, retomando a análise de Marx acerca da mercadoria, acabaremos por


compreender as relações que se fundamentam sobre essa separação fundamental,
precisamente essa à qual todo o sistema capitalista faz referência. Estaremos então em
condições de entender as categorias da alienação e da reificação, que muito nos
interessam nessa exposição. Passemos então à análise da mercadoria.

Marx atribui à mercadoria, logo nas primeiras linhas de O capital, o status de


forma elementar do modo de produção capitalista. Segundo ele, uma mercadoria “é,
antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz as
necessidades humanas de qualquer espécie”10. Como objeto externo, portanto, ainda
segundo ele, em nada influencia no próprio objeto a natureza das necessidades que este
deve atender; se são provenientes “do estômago ou da fantasia”. Sendo assim, para a
satisfação de necessidades, encaramos a utilidade das coisas sob o aspecto da qualidade
e da quantidade, advindo do primeiro aspecto a consideração de seu valor de uso, e do
segundo, seu valor. Valores de uso enquanto tais, Marx nos explica que as sociedades

10
Marx, K. O capital, São Paulo: Nova Cultural, 1983, p. 45.
19
os descobrem como atos históricos, através do desenvolvimento de suas forças
produtivas e ampliação de sua divisão do trabalho. Por outro lado, esse valor de uso é
portador de um “valor intrínseco à mercadoria”11 que se desvela primeiramente pela
troca dos resultados do excedente da produção de um grupo social – e, como tal, casual
e sujeito à relatividade no processo de troca com outras comunidades. É este duplo
caráter da mercadoria (valor de uso e valor) que nos permite entender que o dinheiro
aparece precisamente como o resultado da especialização histórica do processo de troca
privada, afirmando-se como a mais perfeita especialização da própria mercadoria, o
equivalente geral no qual todas se veem representadas. Ele é ainda o que nos permite
entender como a sociedade capitalista orienta os próprios rumos da atividade produtiva,
voltando-a por completo para a produção de valor.

Afirmar, todavia, o dinheiro como equivalente geral não esgota a exposição,


mas de fato nos leva à indagação acerca do que fundamenta sua equivalência à
mercadoria. Se o dinheiro pode ser entendido também como uma mercadoria, cabe-nos
buscar na relação entre mercadorias diferentes esse algo em comum que nos permite
colocá-las em perspectiva de igualdade em alguma medida (expressa, para todas, pelo
dinheiro). Ora, explica Marx, não são as propriedades externas das mercadorias
(geométricas, físicas etc.) o que as colocam em posição de serem comparadas, mas, ao
contrário, algo comum a que possam ser reduzidas. Decorre daí a conclusão de que, se
abstrairmos as propriedades corpóreas das mercadorias, entendemos que seu elemento
comum é precisamente a abstração dos próprios trabalhos que as criam. Nas palavras de
Marx:

Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos
trabalhos neles representados, e desaparecem também, portanto, as diferentes
formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro para
reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano
abstrato.12

Essa “massa” de trabalho humano indiferenciado é precisamente o que constitui


e confere valor às mercadorias. Apenas como cristalizações desse valor é que elas,
numa relação social (de compra e venda), podem ser consideradas valores mercantis. Na
consideração de igualdade entre os diferentes tempos de trabalho necessários para a

11
Ibidem, p. 46.
12
Ibidem, p. 47. Itálico nosso.
20
produção de diferentes tipos de mercadoria, bem como das diferenças técnicas e
materiais entre os produtores, vale, por sua vez, uma consideração “média” entre esses
tempos, ou seja, o tempo “requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas
condições dadas de produção socialmente normais, e com o grau médio de habilidade e
de intensidade de trabalho”,13 o que Marx chamou de tempo de trabalho socialmente
necessário.

Eis que entram então as seguintes importantes considerações acerca desse


processo: primeiramente, a de que, em geral, quanto maior a força produtiva do trabalho
– considerada em sua totalidade, ou seja, a relação entre trabalho vivo (humano) e
trabalho morto (máquinas) – menor o tempo de trabalho exigido para a produção de um
item de determinada mercadoria. Segundo, contraditoriamente, a grandeza de valor de
uma mercadoria aumenta em relação direta à quantidade de trabalho vivo incorporada
em sua produção, e em razão inversa à força produtiva (trabalho morto) que nela se
realiza. E, por último, como resumo geral do processo, constata-se que a produção de
mercadorias não trata, em essência, da produção de valores de uso – não para o
produtor, pelo menos –, mas da produção de valores de uso para outros; o que lhes
confere a qualidade de valores de troca. Em outras palavras, “nenhuma coisa pode ser
valor, sem ser objeto de uso. Sendo inútil, do mesmo modo é inútil o trabalho nela
contido, não conta como trabalho e não constitui qualquer valor”.14

Temos aí, portanto, o mecanismo geral da produção de valor. Se indagarmos


acerca das consequências dessas três características, entendemos então os fundamentos
do desenvolvimento técnico indefinido do sistema, bem como, a partir de determinado
ponto de sua evolução, a fusão entre Economia e Estado que é característica do
espetáculo moderno: a exploração da força de trabalho assalariada (trabalho-
mercadoria) em contradição com o desenvolvimento técnico e a produção de valor
orientando todo o processo, isto é, a constatação de que todo o sistema se fundamenta
na produção puramente quantitativa de mercadorias, o que Debord denuncia, dentre
outras coisas, com a constatação da baixa tendencial do valor de uso e na autonomia do
valor:

13
Ibidem, p. 48.
14
Ibidem, p. 49.
21
O valor de troca só pôde se formar como agente do valor de uso, mas as armas de
sua vitória criaram as condições de sua dominação autônoma. Ao mobilizar todo
uso humano e ao assumir o monopólio da satisfação, ele conseguiu dirigir o uso. O
processo de troca identificou-se com os usos possíveis, os sujeitou. O valor de
troca, condottiere do valor de uso, acaba guerreando por conta própria (SdE, § 46).

Em relação aos resultados da produção do capitalismo superdesenvolvido, a


crítica de Debord é inovadora ao explicar como o sistema capitalista em sua etapa
histórica atual resolve a aparente contradição entre a produção de mercadorias baseada
na incorporação de trabalho vivo e a cada vez menor necessidade desse trabalho vivo no
processo. Segundo ele, isso se dá com uma readequadação do uso do tempo, tendo em
vista que o espetáculo realiza por completo, a partir de seus imperativos, seu sentido
como prática social total. Se em sua forma mais desenvolvida o espetáculo já não impõe
como necessária a produção baseada na superexploração dos trabalhadores, é porque
agora o uso do tempo fora do trabalho ganha nova consideração. Trata-se, pois, de se
consumir todo o trabalho vendido que se afirma globalmente como mercadoria total
(SdE, § 40). Como nos explica Debord:

Forma e conteúdo do espetáculo são, de modo idêntico, a justificativa total das


condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo também é a presença
permanente dessa justificativa, como ocupação da maior parte do tempo vivido
fora da produção moderna (SdE, § 6).

O espetáculo se apresenta, portanto, como resultado histórico dessa “afirmação


onipresente da escolha já feita na produção, e o consumo que decorre dessa escolha”
(idem). O assim chamado “setor terciário” acaba então por ganhar nova dimensão na
organização do sistema: é agora a partir de sua crescente especialização que depende o
escoamento da produção em escala cada vez mais supercondicionada. Decorre daí, com
isso, a necessidade também crescente de criação de “pseudonecessidades” (Debord) que
sejam condizentes com a própria banalidade dessas mercadorias. O que fundamenta tal
produção não poderia ser outra coisa que o conhecido caráter fantasmagórico da
mercadoria, resultado histórico da inversão que ela opera na sociedade:

O principio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por “coisas


suprassensíveis embora sensíveis”, se realiza completamente no espetáculo, no
qual o mundo sensível é substituído por uma seleção de imagens que existe acima
dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer como o sensível por excelência
(SdE, § 36).

22
Mas o fetichismo não deriva de outra coisa que do próprio caráter peculiar do
trabalho abstrato que dá origem às mercadorias, o trabalho voltado à produção de valor.
Por sua determinação fundamental de estar orientado para a troca, não para a satisfação
de necessidades, o trabalho assalariado em larga escala acaba por realizar uma inversão
que confere à mercadoria as características sociais dos trabalhos individuais que lhes
dão origem. Nas palavras de Marx:

A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material de igual objetividade


de valor dos produtos de trabalho, a medida do dispêndio de força de trabalho do
homem, por meio da duração, assume a forma da grandeza de valor dos produtos
de trabalho, finalmente, as relações entre os produtores, em que aquelas
características sociais de seus trabalhos são ativadas, assumem a forma de uma
relação social entre os produtos de trabalho.15

O fetichismo, assim, pode ser entendido como expressão abstrata e elemento do


domínio das coisas sobre os homens, e o espetáculo, por sua vez, o realiza de forma
plena, se colocando como perfeita expressão dessa abstração que se verifica tanto em
cada trabalho particular quanto na esfera total da produção. Ele realiza a abstração como
“seu modo de ser concreto” (SdE, § 29) e pode ser entendido, com base nisso, como “a
reconstrução material da ilusão religiosa” (SdE, § 20). O espetáculo assim se mostra
como a outra face do dinheiro, “o equivalente geral abstrato de todas as mercadorias”
(SdE, § 47), pois por meio dele “a totalidade do uso se troca com a totalidade da
representação abstrata” (idem).

Em Marx, a crítica do fetichismo pode ser entendida como uma versão mais
aprimorada da teoria da alienação que ele já havia esboçado em seus Manuscritos de
1844. Não que isso queira dizer que esta se encontra invalidada pela crítica presente em
O capital, mas, ao contrário, de fato a confirma e a aprofunda. Ambas, de fato, acabam
por se complementar. Se o fetichismo é o que confere às mercadorias autonomia em
relação aos próprios produtores que lhes deram origem, a teoria da alienação, por sua
vez, explica a objetividade opressora do mundo criado por essas mercadorias. Em
acordo com essa análise, Debord explica da seguinte forma o fundamento do
espetáculo:

O trabalhador não se produz a si mesmo, produz uma força independente. O


sucesso dessa produção, sua abundância, volta para o produtor como abundância

15
Marx, K. O capital, São Paulo: Nova Cultural, 1983, p. 71.
23
da despossessão. Com a acumulação de seus produtos alienados, o tempo e o
espaço de seu mundo se tornam estranhos para ele. O espetáculo é o mapa desse
novo mundo, mapa que corresponde exatamente a seu território. As forças que nos
escapam mostram-se a nós em todo o seu vigor (SdE, § 31).

Portanto, na raiz dessa abstração social total está a essência do modo de


produção mercantil: o conjunto de sua atividade voltada para a produção de valor, da
qual a divisão do trabalho correspondente tende cada vez mais em suas particularidades
à racionalização – logo, reforço e manutenção de sua lógica de abstração.

Certamente a divisão social do trabalho não surgiu com o modo de produção


capitalista, mas é correto afirmar que nele essa divisão é quantitativamente desenvolvida
a ponto de atingir outro nível qualitativo, o que se manifesta tanto em consequências
objetivas quanto subjetivas; a primeira tratando, logicamente, de realizações materiais,
ao passo que a segunda, pela forma social mercantil da produção, diz respeito à falsa
consciência dos produtores acerca de sua relação com o processo produtivo e seus
resultados.

Na base dessa conclusão está a importante afirmação de Marx de que “as


diferentes proporções, nas quais as diferentes espécies de trabalho são reduzidas a
trabalhos simples como unidade de medida, são fixadas, por meio de um processo
social por trás das costas dos produtores”,16 lhes parecendo com isso dado pela
tradição. Mas para melhor entendermos o conjunto desse processo a que Marx faz
referência, cabe ainda apresentar as categorias de aparência e aparição, presentes
primeiramente em Hegel, e que ele, Marx, retoma sobre bases materialistas em sua
crítica à totalidade do sistema.

Aparência e aparição são categorias inseparáveis do próprio método dialético,


portanto, fundamentais à sua compreensão. Elas aparecem primeiramente em Hegel –
na Ciência da lógica – como momentos constituintes da Doutrina da essência, ou seja,
do processo de autossuperação da razão absoluta em sua imediatidade, como Ser em si
(Doutrina do ser), para se efetivar como Ser em si e para si (Doutrina do conceito).
Sendo assim, nossa exposição dessa passagem visa a explicitar como se dá esse
processo no próprio automovimento do absoluto, pela negatividade intrínseca à essência
do Ser, esta sem a qual não se pode pensar a categoria do devir, tendo em vista que é

16
Ibidem, p. 52. Itálico nosso.
24
somente com base no jogo de forças que se dá no interior do Ser mesmo que se pode
pensar sua autossuperação.

Portanto é na Doutrina da essência, livro segundo da Ciência da Lógica, que


encontramos os elementos que nos servem aos propósitos desse trabalho. Nela, Hegel
nos explica dá seguinte forma as etapas desse desenvolvimento:

A essência aparece [scheint] primeiramente em si mesma ou é reflexão; em


segundo lugar ela aparece [erscheint]; em terceiro lugar ela se manifesta. Ela põe
em seu movimento nas seguintes determinações:
como essência simples, existente em si em suas determinações no interior de si;
como saindo na existência [Dasein] ou segundo sua existência [Existenz] e
fenômeno [Erscheinung];
como essência que é uma com seu fenômeno, como efetividade [Wirklichkeit].17

Ao sair da imediatidade a essência põe um outro diante de si, por meio da qual
se reflete, ou seja, se reconhece como essência e em referência ao qual pode afastar-se
para realizar as determinações que já trazia em si. Mas estando a essência inseparável de
si mesma, esse outro que se coloca diante dela só pode ser uma “inessência”, uma
ilusão, ou precisamente o que Hegel chama de aparência. Esta é, portanto, o que
“sobra” como resultado desse primeiro momento de autossuperação da essência.
Aparição (ou fenômeno), por sua vez, seria a essência ao afirmar-se como existência.
Para Hegel, portanto, a aparição (Erscheinung) – e, como resultado dela, a aparência
(Schein) – no finito são na verdade a forma de realização do infinito, a forma em que
este vem à aparência (ou seja, erscheint) tendo em vista que buscar compreender um
separado do outro seria impor limites ao conhecimento de ambos. É essa relação de
igualdade entre ser e pensar, ou seja, o mundo como um conjunto de determinações da
razão universal como princípio infinito criador e autoconsciente, que permite
compreender a finitude como dotada de verdade, não como finitude, mas somente nessa
relação; é o que se expressa no célebre aforisma presente em seus Princípios da filosofia
do Direito em que ele afirma que “o que é racional é real e o que é real é racional”.18

Marx, por outro lado, ainda que entendendo o domínio da mercadoria sobre o
mundo com a perspectiva materialista diametralmente oposta ao idealismo hegeliano,
essa que tenta explicar a nova sociedade como momento histórico de realização da

17
Hegel, W. F. Ciência da Lógica [excertos], São Paulo: Barcarolla, 2011, p. 106.
18
Hegel, W. F. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, Prefácio, p. xxvi.
25
razão lógica no mundo, ao retomar essas categorias numa perspectiva crítica, não
diferencia os traços gerais da compreensão destas de modo tão radical. Ressignificando
o mesmo esquema de desenvolvimento apresentado por Hegel, para ele, a essência
agora diz respeito à esfera da produção de capital, enquanto aparência e aparição são
entendidas como correspondentes respectivamente à circulação mercantil e aos
resultados do processo como um todo. Por essa perspectiva, ele vai avançar a exposição
do caráter fetichista da mercadoria ao mostrar como, no processo de circulação de
mercadorias, o dinheiro ganha a autonomia face aos envolvidos no processo de compra
e venda. Segundo Marx, o duplo caráter do dinheiro – reflexo do duplo caráter da
mercadoria –, ou seja, o de ser meio circulante (na circulação simples de mercadoria, M
– D – M) e o de ser capital (na circulação do dinheiro como capital, D – M – D’), é o
elemento por meio do qual se oculta a própria função das mercadorias como valores de
uso. Podemos ver pelos esquemas ilustrativos que do ponto de vista do produtor o
dinheiro é apenas meio para satisfação de necessidades (M – D – M), enquanto que,
tomado como ponto de partida, só faz sentido que ele seja colocado no circuito se em
retorno obtiver uma quantidade maior que a empregada incialmente (D – M – D’). E é
precisamente aqui onde se percebe que “a circulação de mercadorias distingue-se não só
formalmente, mas também essencialmente, do intercambio direto de produtos”,19 pois,
de fato, o dinheiro não desaparece ao realizar sua função de meio circulante, como
mostra o primeiro esquema. Como nos mostra Marx:

Por exemplo, na metamorfose total do linho: linho – dinheiro – Bíblia, primeiro sai
o linho da circulação e o dinheiro ocupa seu lugar; depois sai a Bíblia e o dinheiro
ocupa seu lugar. A substituição de mercadoria por mercadoria deixa, ao mesmo
tempo, a mercadoria monetária nas mãos de um terceiro. A circulação exsuda,
constantemente, dinheiro.20

Constata-se assim a distinção entre a circulação capitalista e a troca simples:


enquanto esta se realiza efetivamente como uma relação entre dois envolvidos
diretamente, a circulação de mercadorias, ao contrário, se mostra como circulação de
capital, o que acaba por evidenciar o circuito de um número incalculável – e cada vez
mais abrangente – de vínculos criados em âmbito social cujos atores envolvidos não
podem controlar. Marx pode então afirmar que dessa forma bilateral das mercadorias o
dinheiro possa se evidenciar como elemento autônomo a partir de sua forma unilateral

19
Marx. K., O capital, São Paulo: Nova Cultural, 1983, p. 99.
20
Ibidem.
26
no processo de circulação, o que precisamente caracteriza uma aparência contrária que
de fato esconde a real essência do processo. De fato, é o que demonstra a comparação
entre os dois esquemas acima, tendo em vista que na ilusão do dinheiro como simples
meio circulante se esconde o fato de ser ele capital, portanto, meio de acumulação do
próprio capital, ou seja, valor que se valoriza. Nas palavras dele:

Fixadas as particularidades de aparição, que o valor que se valoriza assume


alternativamente no ciclo de sua vida, então se obtém as explicações: capital é
dinheiro, capital é mercadoria. De fato, porém, o valor se torna aqui o sujeito de
um processo em que ele, por meio de uma mudança constante das formas de
dinheiro e mercadoria, modifica a sua própria grandeza, enquanto mais-valia se
repele de si mesmo enquanto valor original, se autovaloriza. Pois o movimento,
pelo qual ele adiciona mais-valia, é seu próprio movimento, sua valorização,
portanto autovalorização. Ele recebeu a qualidade oculta de gerar valor porque ele
é valor. Ele pare filhotes vivos ou ao menos põe ovos de ouro.21

Como resultado da autovalorização do valor, o dinheiro, em suas


particularidades próprias a seu pertencimento à circulação capitalista, revela-se então
não resumido à sua função de meio circulante, mas como a “primeira forma de aparição
do capital”.22 Em contrapartida, “o resultado concentrado do trabalho social, no
momento da abundância econômica, torna-se aparente e submete toda realidade à
aparência, que é agora o seu produto” (SdE, § 50). Como aparência, o espetáculo é a
presença permanente da “justificativa total das condições e dos fins do sistema
existente” (SdE, § 6); é seu produtor e seu produto. Ele não legitima apenas esse modo
de produção, mas seu modo de consumo. Assim, não domina os homens apenas quando
estes assumem o papel de vendedores da própria mão de obra nas condições irracionais
do mercado, mas em sua própria vida cotidiana, por meio das imagens do capital.

Mas o espetáculo “não é um conjunto de imagens, é um conjunto de relações


sociais mediado por imagens” (SdE, § 4). De fato, é somente como tal que ele pode
afirmar sua autonomia e submeter “toda realidade à aparência, que é agora o seu
produto” (SdE, § 50), tornando-se ele mesmo aparência do capital. O espetáculo,
portanto, como resultado da superabundância artificial, é mais que a humanidade a
serviço do pseudo-uso da mercadoria, ele é “o dinheiro que apenas se olha” (SdE, § 49),
ou seja, a afirmação da passividade que acompanha todo o processo de abstração da
atividade produtora e que a reforça. Em outras palavras, ele “é a afirmação da aparência

21
Ibidem, p. 130. Itálico nosso.
22
Ibidem, p. 125.
27
e a afirmação de toda vida humana – isto é, social – como simples aparência” (SdE, §
10), ou ainda, “o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” (SdE, § 34).
Mas ora, como sentido do domínio da mercadoria, o espetáculo pode ser ainda
entendido como o arcaísmo tecnicamente-equipado, arcaísmo este expresso “na
reintrodução formal e aparente de modos de experiência tradicionais, pós-modernos na
própria experiência moderna”.23 Dessa reintrodução se pode afirmar que é formal e
aparente na medida em que ela “é determinada sobre novas bases históricas, mas nem
por isso menos concreta e real”,24 e é isso que nos permite compreender, por exemplo, o
aspecto mais manifesto desse domínio – isto é, o tempo pseudocíclico do consumo –,
pois por meio do reuso do tempo e, num sentido mais amplo, do controle da vida
cotidiana operado pela mercadoria, a compreensão crítica do espetáculo é também a
compreensão de que na sociedade moderna “o mais moderno é aí também o mais
arcaico” (SdE, § 23).

Essa explicação, todavia, não contradiz a retomada da perspectiva de Lukács


que, explicando a diferença entre uma sociedade onde a forma mercadoria aparece de
forma esporádica e outra em que ela já se encontra completamente desenvolvida, afirma
que “o conjunto dos fenômenos, subjetivos e objetivos, das sociedades em questão
adquire, de acordo com essa diferença, formas de objetividade qualitativamente
diferentes”.25 Isso porque o espetáculo como efetivação histórica do domínio da
mercadoria sobre o mundo se afirma sobre esse mundo efetivamente como ideologia. E
são as exatas formas de manifestação dessa ideologia, objetivas e subjetivas, tal qual
Debord as compreende, de que nos ocuparemos no tópico seguinte.

1.2. Espetáculo e ideologia

Da mesma forma que se pode afirmar que espetáculo é economia, é possível


dizer também que o espetáculo é ideologia. Mas antes de qualquer conclusão
precipitada, é necessário investigar como isso ocorre, fugindo de qualquer simplificação
que essa afirmação possa aparentemente aduzir. De fato, no momento histórico da
autonomia das forças produtivas sobre o conjunto do mundo prático, o espetáculo só
pode justificar seu domínio no momento em que se entende que ele também é

23
Aquino, E. F., Reificação e linguagem em Guy Debord, Fortaleza: Editora da UECE, 2006, p. 67.
24
Ibidem.
25
Lukács, G. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 195.
28
fundamentalmente um conjunto de técnicas de poder, dentre as quais a ideologia assume
papel central. Equivale, portanto, a dizer que o conjunto dessas técnicas de poder
(objetivas e subjetivas) não pode ser pensado fora de sua relação com a economia
inicialmente por duas razões: primeiro, porque as formas de consciência que podemos
associar ao espetáculo não são apenas seu resultado, mas também jogam papel decisivo
na sua manutenção; segundo, porque as técnicas de poder espetacular, podendo ser
entendidas também como características do(s) modelo(s) de Estado que lhe é(são)
próprio(s), têm origem no resultado das lutas de contestação dessa ordem, que não são
outra coisa que o conjunto das lutas de classes mais significativas de uma época
histórica decisiva.26

Uma vez entendido que a produção da consciência, tanto em seu caráter geral
quanto individual, não pode ser pensada senão como uma única coisa em conjunto com
a totalidade da produção do mundo prático de uma sociedade, não há obstáculos para
que possamos afirmar que no espetáculo, “imagem da economia reinante” (SdE, § 14),
esta onde “o fim não é nada, o desenrolar é tudo” (idem), quer dizer, onde a economia
pôde de maneira efetiva se alienar completamente do conjunto da sociedade, a(s)
ideologia(s) que lhe serve(m) de suporte ganha(m) contornos que não podem de
maneira alguma ser ignoradas por uma teoria seriamente crítica. Atento a esse fato,
Debord busca em sua revisão da teoria revolucionária dedicar a este elemento a devida
importância, o que podemos atestar de maneira evidente quando ele chega a definir o
espetáculo como “a ideologia por excelência” (SdE, § 215).

Mas afirmar há também de se ter em vista que falar do espetáculo como


ideologia não é apenas tratar das formas de consciência que o caracterizam, pois o
espetáculo como ideologia é também o conjunto de determinações por meio das quais
essa ideologia aparece, ou seja, se afirma sobre o real ao se fazer real. Dito isso,
tomamos como nosso ponto de partida para a crítica da ideologia a categoria da
separação – tão fundamental a Debord – em sua referência mais direta, o pensamento de
Marx, sendo interessante considerar que ainda que na Ideologia alemã a crítica aos
jovens hegelianos, entendidos como grupo ideológico, seja de ordem diferente daquela
que o autor de A sociedade do espetáculo procura desenvolver com relação ao sistema

26
É desse assunto que trataremos no capítulo seguinte.
29
capitalista, pode-se dizer que elas se assemelham enormemente. Prova disso é que ainda
que não se encontre em Marx (e, na verdade, nem em Debord) uma elaboração
definitiva do conceito de ideologia, observamos que o entendimento dessa categoria está
fundamentalmente baseada na separação entre teoria e práxis, que Marx explica, já em
A ideologia alemã, nos seguintes termos: “a divisão do trabalho torna-se realmente
divisão apenas a partir do momento em que surge uma divisão entre o trabalho material
e o espiritual”.27 Com isso, ele conclui que, somente a partir dessa dissociação, “a
consciência pode realmente imaginar ser algo diferente da consciência da práxis
existente, representar realmente algo sem representar algo real”.28

De fato, como “consciência deformada”, a ideologia em Debord também traz


de A ideologia alemã três elementos que não se separam. Primeiro, a concepção crítica
negativa de ideologia, ou seja, de esta ser para o ideólogo uma apreensão “invertida” da
realidade; segundo, que esse modo invertido de ver o mundo guarda fortes relações com
o idealismo;29 e, por último, que a ideologia na verdade se explica e se constitui na e
pela práxis invertida que se encontra em sua base. Mais ainda, na verdade: ideologia que
como práxis, se faz práxis – o que Debord entende como a “ideologia materializada” do
espetáculo.

Em Marx podemos entender perfeitamente a correlação entre essas duas


categorias fundamentais, separação e inversão, por exemplo, quando ele afirma em sua
Introdução à contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel que não apenas a
religião não faz o homem, mas, sendo o homem o mundo do homem e o Estado sua
coletividade, “este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência
invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido”.30 Ora, o mundo da práxis
efetivamente invertida, como Marx o entende, é o mundo do trabalho alienado, da
separação entre o produtor e seu mundo pela alienação. Mas não apenas isso. A
ideologia como expressão do mundo invertido não se isola desse mundo, e age sobre
ele, o que é o mesmo que dizer que “a consciência que se emancipa e está em
contradição com o modo de produção existente não constitui somente religiões e

27
Marx, K. O capital, São Paulo: Nova Cultural, 1983, p. 44-45.
28
Ibidem, p. 45.
29
O espetáculo “não realiza a filosofia, ele filosofia a realidade. A vida concreta de todos se degradou em
universo especulativo” (SdE, § 19).
30
Marx, K. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel, introdução. In: Manuscritos
econômico-filosóficos, São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 45.
30
filosofias, mas também Estados”.31 É desta constatação que decorre o caráter radical da
teoria de Marx, também presente em Debord: a crítica da ideologia não apenas se limita
às formas de consciência em si e ao mundo que elas legitimam e constroem, mas antes
de tudo, é ela a crítica do mundo do qual essas formas de consciência são reflexo, o
mundo invertido que elas espelham. A crítica, consequente, entende que só com o fim
do mundo da separação é possível pôr fim à ideologia.

É importante ressaltar – e isso também está de acordo com a teoria de Debord –


que, contrariamente às interpretações simplistas da obra de Marx (e Engels), este nunca
reduziu sua concepção de ideologia à ideologia econômica fundamental da sociedade
burguesa. Para a crítica de Marx valem apenas as formas de consciência filosóficas,
jurídicas, políticas, religiosas e estéticas em determinadas condições, como nos explica
Korsch. Segundo este:

A ideologia é somente a consciência invertida (verkehrte), particularmente aquela


que atribui a um fenômeno parcial da vida social uma existência autônoma – por
exemplo, as relações jurídicas e políticas que consideram o direito e o Estado como
poderes autônomos que pairam acima da sociedade.32

Podemos então apontar como diferença fundamental entre os dois pensadores o


fato de que embora Marx tenha lançado as bases para uma crítica abrangente da
ideologia, é bem sabido que com ele, no entanto, essa crítica é direcionada àquele grupo
de pensadores idealistas que passa à história como a esquerda hegeliana. 33 Deste modo,
cabe a Debord a tarefa de levá-la as suas derradeiras consequências, como crítica tanto
de uma forma global de compreensão e ação sobre o mundo, quanto do próprio
“movimento autônomo do não-vivo” (SdE, § 2), isto é, seu retorno como ideologia
materializada, que se expressa na mais cruel das verdades como a absurda e desumana
“inversão concreta da vida” (idem). Dito de outra forma, afirmar o mundo como
construção derradeira da separação na figura do espetáculo é o mesmo que dizer que “a
ideologia está em casa” (SdE, § 217), pois o mundo do espetáculo é o mundo que a

31
Ibidem, p. 46. Itálico nosso.
32
Korsch, K. Marxismo e filosofia, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008, p. 55.
33
Todavia esclarecendo que em Marx a crítica da ideologia não se limita a isso, pois Marx e Engels a
explicam com base na práxis social invertida. Ademais, ainda que dentro do limite de sua crítica da
ideologia, isto é, de não tê-la desenvolvido posteriormente de modo sistematizado, podemos ver a
importância deste momento da obra de Marx em termos das possibilidades a partir de então abertas na
afirmação de Gabel de que ele, Marx, “aparece não só como um dos fundadores da psicologia política,
mas como precursor num outro domínio: o do estudo do pensamento de-realista, fenômeno geral onde o
‘pensamento delirante’ em psicopatologia constitui um aspecto” (GABEL, 1979, p. 83).
31
ideologia “faz ver” (SdE, § 37).34 A ideologia, portanto, como expressão e instrumento
de poder própria a este mundo invertido em sua totalidade que é o espetáculo, deve ser
entendida também como algo qualitativamente diferente. Se o espetáculo é a realização
sistemática da separação, da perda da unidade do mundo, a ideologia é agora uma visão
de mundo objetivada, ou, segundo Debord, “uma Weltanschauung que se tornou efetiva,
materialmente traduzida” (SdE, § 5). Essa afirmação nos evidencia mais uma vez a
relação indissociável entre espetáculo e economia, pois este pensado para além de suas
características materiais, ou seja, agora referido em seu aspecto abstrato, “não é um
suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada” (SdE, § 6), mas
precisamente “o âmago do irrealismo da sociedade real” (idem).

Mas sigamos adiante. Considerando que tratamos até aqui de explicitar a base
material da ideologia e as bases teóricas de sua crítica na compreensão de Debord, nos
interessa ainda apresentar as características particulares dessa concepção de ideologia e
as referências para tal.

Sabemos que Debord está de acordo com os traços gerais da análise de Lukács
acerca do problema da consciência reificada, da forma que este a apresenta
precisamente na primeira das três partes de seu ensaio Reificação e consciência do
proletariado (a saber, “O problema da reificação”), presente em História e consciência
de classe. Ali, Lukács não apenas explora os aspectos econômicos do capitalismo
moderno, mas vai além ao explicitar as características que, segundo ele, são próprias
à(s) forma(s) de falsa consciência a ele correspondente(s), a consciência reificada. O
ponto de partida de Lukács é que as transformações que o domínio da mercadoria
condiciona em escala universal, a partir de sua lógica expressa no trabalho alienado, não
se refletem apenas como materializações objetivas, mas tem também no aspecto
subjetivo um papel importante. Isto se explica pelo fato, que já apontamos mais acima,
de que esses condicionamentos na ordem da percepção tendem a reforçar os
mecanismos que foram sua causa num momento anterior. Ou como ele nos explica:

A universalidade da forma mercantil condiciona, portanto, tanto sob o aspecto


objetivo quanto sob o subjetivo, uma abstração do trabalho humano que se objetiva

34
“O espetáculo como tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já
não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como sentido privilegiado da pessoa humana – o que em
outras épocas fora o tato; o sentido mais abstrato, e mais sujeito à mistificação, corresponde à abstração
generalizada da sociedade atual” (SdE, § 18).
32
nas mercadorias. (Por outro lado, sua possibilidade histórica é mais vez (sic)
condicionada pela realização real desse processo de abstração.)35

Mas de que trata a consciência reificada, a qual se refere Lukács? Ou melhor,


quais são suas características? Segundo ele, essa consciência reificada é aquela de tipo
não dialético, o que implica uma consideração fundamental: a perda da perspectiva da
totalidade. E isto pode ser entendido sob dois aspectos: pensada no espaço da produção
ela é tanto a perda da totalidade do processo produtivo quanto perda da perspectiva
histórica, o que configura, como resultado, uma consciência essencialmente
contemplativa face ao mundo ao qual ela pertence. Por sua vez, a contemplação,
compreendida como categoria, deve ser entendida não (apenas) como a incapacidade de
perceber o desenrolar do movimento social na qual se está inserido, mas a própria
impossibilidade de se guiar os rumos desse processo.36 Trata-se, portanto, de uma
posição prática frente à objetividade opressora do mundo da mercadoria e suas leis
autônomas, e é essa perspectiva que permite a Debord afirmar que “a consciência
espectadora, prisioneira de um universo achatado, limitado pela tela do espetáculo, para
trás da qual sua própria vida foi deportada” (SdE, § 218) é esta que só é capaz de
reconhece os “interlocutores fictícios” (idem) que a entretém num falso diálogo que em
essência é apenas o “discurso ininterrupto que a ordem atual faz a respeito de si mesma,
seu monólogo laudatório” (SdE, § 24).

Para Lukács, o trabalho assalariado, a atividade prática separada por e nessa


estrutura alienante do capital se realiza como qualquer outra mercadoria, ou seja, por
meio de sua venda, o que garante a possibilidade de acesso a outros bens destinados a
35
Lukács, G. História e consciência de classe, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 200.
36
Celso Frederico considera como equívoco que Debord compartilhe com Lukács essa concepção de
consciência contemplativa, afirmando que “a atividade prática da burguesia não tem nada de
contemplativa, como atestam, por exemplo, o planejamento na economia; os experimentos no interior da
indústria; e a ação ideológica programada pelos meios de comunicação” (2010, p. 241). Por outro lado,
afirma que a consciência operária permanece separada da consciência empírica dos operários, tratando-
se, portanto, de uma consciência atribuída, imposta, que existe quase como idealidade. De fato, quanto à
consciência burguesa, todas estas observações estão corretas e em nada se opõe a distinção entre
ideologia e falsa consciência, expressão da separação na sociedade espetacular. Porém, ainda que “ativa”,
a consciência burguesa não consegue pensar além dos limites da sociedade que a origina e condiciona, o
que equivale a dizer que continuam a reproduzir a história de forma “inconsciente”, determinada por leis
que ela, a consciência burguesa, cria, no momento de sua atividade prática, mas não consegue controlar;
ou seja, permanece, no sentido mais profundo que a tematizam Lukács e Debord, contemplativa. Quanto à
consciência operária em caráter separado, esta é tema da própria autocrítica posterior de Lukács e
certamente Debord não a retoma. Se o fizesse, contradiria toda sua crítica fundada nessa mesma
separação. Para ele, a consciência revolucionária só pode surgir em unidade com a luta, o que pressupõe a
negação das próprias formas de organização tradicionais, dentre as quais o partido, este que Lukács se
esforça em defender em HCC.
33
satisfação de necessidades. Mas é somente como mercadoria que essa atividade pode
estar inteiramente submissa às leis sociais objetivas do mundo que ela mesma construiu
em sua contemplação. Só aí estão dadas as condições para a realização da verdadeira
metafísica: o domínio das criações deformadas do intelecto sobre o mundo humano
sensível.

Portanto, é com a consolidação do trabalho assalariado em nível mundial que se


pode pensar também a efetivação no mundo da abstração que está em sua origem – e
que é também seu resultado. Equivale a dizer que é no e pelo movimento indefinido do
capital, na imediatidade das relações mercantis como aparências do capital, que a
consciência é capaz de perder a capacidade de apreender todo o aspecto fluido da vida, a
própria característica dialética do tempo. Sem essa compreensão, a consciência cativa
das armadilhas histórico-sociais que ela mesma criou atua reforçando os mecanismos
que a aprisionam e é assim incapaz de se configurar como consciência histórica, esta
que permita vislumbrar a superação da sociedade burguesa ao compreendê-la como
criação histórica determinada – capaz, portanto, de ser superada como último horizonte
possível.

Podemos então concluir o seguinte a respeito da teoria da mente reificada de


Lukács: em primeiro lugar, sob sua perspectiva, fica claro que uma teoria crítica
revolucionária não pode de maneira nenhuma desconsiderar o aspecto da consciência,
como ele de fato não ignora em HCC. Por conseguinte, podemos dizer ainda, com base
nos estudos de Joseph Gabel – autor de A falsa consciência –, que Lukács representa
uma primeira aproximação entre a crítica da sociedade mercantil e as conquistas no
campo da investigação psicanalítica. A contribuição de Lukács neste campo não poderia
passar despercebida por algum pesquisador da área clínica que estivesse também atento
aos avanços no campo da crítica social e foi exatamente o que ocorreu cerca de quatro
décadas depois do lançamento de História e consciência de classe justamente com a
publicação, em 1962, de A falsa consciência. Nesta obra, o filósofo e sociólogo húngaro
se propõe a avançar as análises iniciadas por Lukács em HCC ao relacionar a
consciência reificada em nível social, particularmente no estudo do racismo e do duplo
ideologia/utopia, com o que o próprio Gabel define como o caso particular clínico dessa
consciência reificada: a esquizofrenia. Para tal, Gabel acredita encontrar na dialética de

34
Lukács os elementos que a habilitam a atuar como denominador comum para isto que
ele define como “paralelismo sociopatológico”,37 retomando uma expressão de H.
Aubin. A concepção de dialética do autor de HCC atende, portanto, às seguintes
exigências da proposta de Gabel:

(a) de servir de denominador comum às diferentes formas de ideologia; (b) permitir


uma definição e uma delimitação precisas dos conceitos de ideologia e falsa
consciência, e (c) de definir um setor comum à alienação individual (clínica) e à
alienação social.38

Sob a perspectiva da crítica da consciência antidialética, o que interessa a Gabel


é abarcar uma gama maior de problemas que aqueles assinalados por Lukács em HCC.
Para Gabel, portanto, interessam, além da consciência dialética de tipo econômico e de
tipo clínico, os diferentes aspectos da alienação política e, em certa medida, do
desenvolvimento psicológico da criança. Contrariamente, para Lukács é a estrutura
reificada da consciência que ganha status de “categoria fundamental da sociedade”.39
Isso, segundo ele, se dá justamente pelo fato da consciência estar em especial relação
com o campo da produção econômica, de modo que a estrutura reificada seria em
grande medida determinada pelos aspectos quantitativo e abstrato da calculabilidade,
estes que encontram nas relações mercantis suas formas mais genuínas40 e que
dificultam à consciência a capacidade de apreensão do movimento geral do mundo
(conferindo-lhe, portanto, a característica antidialética), levando-a não apenas a
desconsiderar a possibilidade de superação do sistema produtor de mercadorias, mas,
além disso, “eternizando” o imediatismo das relações mercantis cotidianamente a partir
da busca de sua sintetização num sistema de leis que possam ser apreendidas por esta
consciência em suas limitações.

Gabel procura demarcar de maneira bastante precisa os conceitos de falsa


consciência e ideologia, definindo primeiramente o que elas têm em comum, ou seja, o
fato de serem “duas formas de apreensão não dialética (reificada) de realidades
dialéticas; ou, dito com outras palavras, dois aspectos (melhor ainda: dois graus) da
recusa da dialética”41. Com base nisso, determina ainda que, apesar desse elemento

37
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 70.
38
Ibidem, p. 95.
39
Lukács, G. História e consciência de classe, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 221.
40
Ibidem, p. 211.
41
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 88.
35
comum, a falsa consciência se constitui de “um estado de espírito difuso”,42 ao passo
que “ideologia é uma cristalização teórica”.43 Podemos tomar o nazismo como exemplo,
como o faz o próprio Gabel, para entender essa distinção conceitual. Vejamos: a
Alemanha do período imediatamente posterior à primeira guerra mundial tinha, de um
lado, sua economia devastada pelos resultados da guerra (desemprego; hiperinflação no
biênio 1922/1923, perda de território e dívida externa, de acordo com os termos do
Tratado de Versalhes etc). De outro, a socialdemocracia, maior representação da
esquerda oficial, encontrava-se desmoralizada dentre outras coisas por ter ela mesma
sido um dos elementos fundamentais para a entrada do país no combate e ter sido
responsável também pelo sufocamento do movimento revolucionário espartaquista,
envolvendo-se no assassinato de seus principais líderes, Rosa Luxemburg e Karl
Liebknecht. Em tal situação caótica, a sociedade encontrava-se em posição de completa
fragilidade e em tal perspectiva de falsa consciência extremada, de total incapacidade de
se colocar em autoanálise de maneira racional, que daria – como de fato deu – àquele(s)
que melhor representasse(m) os anseios coletivos a posição privilegiada de controle –
ou, de acordo com a perspectiva de Gabel, a imposição de sua ideologia. Foi assim que
os alemães viram o Partido Nacional Socialista eleger Adolf Hitler como seu chanceler
em 1933, depois de uma escalada de alguns anos saindo da completa inexpressividade
política.

A ideologia nazista, por sua vez, tinha no seu discurso a imagem de uma
Alemanha forte e unida rumo à recuperação dos horrores da guerra com base nos
valores da família e da tradição germânica. Na prática, todavia, não passava de um
esforço de recuperação do capital nacional, tendo o partido nazista chegado ao poder
muito graças ao apoio das forças políticas e econômicas conservadoras do país. Hitler,
assumindo o papel de figura capaz de canalizar as angústias e anseios do povo alemão
com seu projeto conservador, deveria estar à frente apenas na medida em que pudesse
ser um elemento facilmente controlável por tais forças, quando eleito chanceler, tendo
ainda um gabinete ministerial acima dele em atribuições. A ideia inicial era lógico, que
os nazistas fossem também minoria nesse órgão. Mas, pelo que nos conta a história, as

42
Ibidem.
43
Ibidem.
36
coisas não saíram como planejado... Não se esperava que os nazistas fossem tão
consequentes em seus objetivos...44

Mas, voltando à nossa questão anterior, não podemos perder de vista que Gabel
se recusa a entender o problema da ideologia como uma questão de raízes econômicas
(o que permite na verdade seu paralelo entre consciência antidialética de âmbito social e
esquizofrenia). Seu interesse é abarcar um conjunto de problemas que ele acredita
escaparem à análise de Lukács, e é preciso ter isso em mente para entender o desvio de
Debord dessas duas perspectivas, tendo em vista que o que está em questão para ele não
é exatamente uma crítica da ideologia em primeiro plano, mas desta como um aspecto
que não se separa da crítica sistemática da sociedade mercantil superdesenvolvida. Ou
seja, se a crítica desta sociedade é a crítica de seus fundamentos, a análise crítica da
ideologia que aqui entra em jogo deve ser entendida sob esta perspectiva, como estando
diretamente relacionada a esse aspecto. Assim, ainda que aceite a distinção entre falsa
consciência e ideologia nos mesmos termos de Gabel, Debord pode falar em “ideologia
total” (esta em sentido similar ao assinalado por Manheim45) do espetáculo, ou seja,
ideologia como despotismo deste “fragmento que se impõe como pseudo-saber de um

44
O nazismo como exemplo de ideologia social é tomado aqui em referência à obra de Gabel, tendo em
vista que uma de suas preocupações é entender as condições para ascensão do pensamento ideológico
autoritário. Na perspectiva de Debord, no entanto, a ideologia fascista (o exemplo italiano incluso) não se
configura como exemplo do que ele entende como o espetacular concentrado, a face autoritária da
ideologia do espetáculo e da qual falaremos no próximo capítulo. Segundo ele, ainda que copie dos
bolcheviques a forma de organização totalitária do partido, o fenômeno fascista, no entanto, não é
fundamentalmente ideológico. As condições em que surge são seu ponto de diferenciação. Sua função
não é promover o desenvolvimento econômico com base em uma mentira ideológica, mas colocar-se
como um elemento de “racionalização de emergência” (SdE, § 109) de um polo antes desenvolvido.
Assim, sua ideologia se constitui na verdade de “uma ressureição violenta do mito”, configurando-o como
“o arcaísmo tecnicamente equipado”, já que se apoia em valores tradicionais burgueses – desmentindo a
própria história na negação do fato de que a mercadoria em sua expansão geral já havia promovido a
derrubada da organização mítica de valores da sociedade. Todavia não se pode desconsiderar a
importância do fenômeno fascista como fundamental à própria constituição do espetáculo, notadamente
em seu papel de destruição dos restos do antigo movimento operário no período entreguerras.
45
“Aqui nos referimos à ideologia de uma época, de um grupo histórico-social concreto – por exemplo,
de uma classe – quando queremos falar das características e da estrutura total do espírito dessa época ou
desse grupo” (MANHEIM, 1954, p. 51-52).
Gabel nos apresenta ainda a distinção entre os conceitos parcial e total de ideologia, com base em
Manheim. Segundo ele: “1) o conceito parcial visa uma parte das convicções do adversário, enquanto o
conceito total visa a totalidade da sua concepção de mundo (Weltanschauung); 2) o conceito parcial
analisa a ideologia adversa no plano psicológico, o conceito total no plano teórico ou nosológico; 3) o
conceito parcial é tributário de uma psicológica de interesses, o conceito total opera com a ajuda de uma
análise funcional (do meu ponto de vista estrutural)” (GABEL, 1979, p. 94). Com base nisto, Gabel
afirma que o conceito de ideologia total é o único que pode ser corolário da falsa consciência e com o
próprio materialismo histórico dialético, mas aponta a crítica ideológica de Marx como muito mais
próxima do conceito de ideologia parcial, tendo em vista que muitas vezes pressupõe certa mistificação
voluntária.
37
todo estático”, “visão totalitária” que se realiza “no espetáculo imobilizado da não-
história” (SdE, § 214); a ideologia em sua forma materializada.

A contrapartida da ideologia como pensamento separado da prática é


precisamente sua afirmação como pensamento totalitário separado. O espetáculo pode
então ser entendido em seu duplo movimento: como produto e como produtor do mundo
vigente. Ora, o espetáculo entendido como “enorme positividade, indiscutível e
inacessível” (SdE, § 12) não pode ser algo estático. Seu modo de ser é a abstração, mas
seu domínio é objetivo. Não por acaso, a ideologia que ele mostra em sua versão mais
rude não se separa de seu poder de polícia, sua violência legítima com fins de controle.
Por outro lado, onde o espetáculo se mostra mais desenvolvido, a forma genuína de
materialização de sua ideologia é precisamente o seu poder de se fazer ver, é o mundo
da mercadoria em todo seu esplendor.

Como resultado da realização da mercadoria em nível global, toda realidade


individual se torna social sob a condição de ser “diretamente dependente da força social,
moldada por ela” (SdE, § 17). Assim se estabelece a dupla relação: “a realidade surge
do espetáculo, e o espetáculo é real” (SdE, § 11) e compreendemos, portanto, porque
para Debord, a ideologia se confunde com o próprio espetáculo. Se este “é o autorretrato
do poder na época de sua gestão totalitária das condições de existência” (SdE, § 24), a
ideologia é, sob todas as suas manifestações, a própria objetivação desse poder de
controle. Ela pode tanto se manifestar como aparência fetichista, escondendo a
verdadeira natureza da relação social dos homens e classes em que se encontra cindida a
sociedade (imagens), quanto pode ser a força de coação junto àqueles que ousam
questionar sua gerência.

Mas a ideologia espetacular encontra sua coesão precisamente onde ela já não
mais existe, entre os homens. Como Debord nos explica:

O espetáculo é a conservação da inconsciência na mudança prática das condições


de existência. Ele é seu próprio produto, e foi ele quem determinou as regras: é um
pseudo-sagrado. Mostra o que ele é: o poder separado desenvolvendo-se em si
mesmo, no crescimento da produtividade por meio do refinamento incessante da
divisão do trabalho em gestos parcelares, dominados pelo movimento independente
das máquinas; e trabalhando para um mercado cada vez mais ampliado. Toda
comunidade e todo senso crítico dissolveram-se ao longo desse movimento, no
qual as forças conseguiram crescer ao se separar e ainda não se encontraram (SdE,
§ 25).
38
De Gabel, Debord mantém a noção de ideologia como “cristalização teórica”,
todavia considerando a categoria da separação em seu fundamento econômico (Lukács),
e sem perder de vista que o termo ideologia tem aqui um sentido unicamente negativo,
ao contrário da perspectiva de autores como Lênin ou o próprio Lukács. 46 Para ele, só
faz sentido falar em ideologia como resultado e instrumento do espetáculo, ou seja, se
puder ser entendida como expressão das forças separadas dominantes do mesmo.
Assim, o espetáculo, como Debord o descreve, pode ser entendido como “a ideologia
por excelência” (SdE, § 215), ou seja, esta que “expõe e manifesta em sua plenitude a
essência de todo sistema ideológico: o empobrecimento, a sujeição e a negação da vida
real” (idem).

Sendo uma única coisa, espetáculo e ideologia, podemos tomar como referida a
esta o que Debord afirma do primeiro, ou seja, o de ser o oposto do projeto resumido
por Marx nas Teses sobre Feuerbach; o de superação da dualidade entre materialismo e
idealismo (SdE, § 216). É o mesmo que dizer que a ideologia total espetacular, isolando
os elementos propriamente ideológicos tanto do materialismo quanto do idealismo, os
realiza totalmente no concreto. Como espectador de sua atividade prática, e, em sentido
mais amplo, de sua vida, o homem, na condição de espectador do absurdo que é o
espetáculo moderno, apreende a matéria no mesmo sentido contemplativo que o antigo
materialismo. Por outro lado, o espetáculo materializa uma “atividade sonhada” (idem)
por meio de todas as mediações que a separação impõe. E é assim que se pode dizer do
espetáculo que ele é a realização da alienação que desde a gênese do sistema está
presente em seu núcleo, ainda que de forma oculta.

46
As concepções de Lênin pretendem colocar-se como contraponto da ideologia burguesa. Como
‘cristalização teórica’, o leninismo é uma teoria de tomada do poder da classe operária a partir da
conscientização de sua tarefa histórica e seu poder para tal, a partir de sua organização partidária de
vanguarda. Sendo assim, o partido aparece como elemento central, capaz de aglutinar o proletariado em
torno do conjunto de preceitos teóricos que fundamentariam sua ação. Ora, mas se essa teoria
revolucionária por se pretender revolucionária assume, em sua própria perspectiva, um sentido positivo
do termo ideologia, para Debord, no entanto, ela é o perfeito exemplo do que ele entende criticamente
como ideologia: pensamento separado, dotado de poder enquanto tal. A esse respeito é interessante notar
que o próprio esforço de Lukács em HCC para justificar a tomada de consciência por meio da atuação do
partido não fica ileso a sua autocrítica no Posfácio de 1967, tendo em vista sua percepção de que o
partido, entendido como órgão alheio à experiência da massa, não se pode pretender expressão de sua
consciência, senão ditar a ela a consciência daqueles que detêm o poder dentro do partido. Lukács,
contudo, não avança sua autocrítica a suas últimas consequências, ou seja, não se interroga a respeito do
método correto de organização a partir dessa constatação.
39
Debord assinala que “quando o mundo real se transforma em simples imagens,
as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento
hipnótico” (SdE, § 18). Essa referência, como já vimos, se dá diretamente às
manifestações objetivas do capital, ou seja, capital como aparência (se apresentando
por meio de imagens a serem contempladas) e como aparição, que no espetáculo
ganham status de representações legítimas da vida social. Por outro lado, vemos
também a correspondência que essas manifestações têm no campo da consciência.
Desse modo Debord concordaria com Lukács – e antes dele com Marx – quando aquele
afirma que é precisamente nas relações sociais que essas manifestações do capital “se
esfumam, a ponto de se tornarem completamente imperceptíveis e irreconhecíveis, as
relações dos homens entre si e com os objetos reais, destinados a satisfação real de suas
necessidades”.47 Em seu conjunto, esses fenômenos efetivam a separação entre o
homem e sua atividade prática, estabelecendo assim a representação como categoria
espetacular, esta que explica os homens separados do mundo que eles mesmos criaram,
contemplando-o.

Temos então os elementos para entender a expressão “inversão da vida”, à qual


Debord tantas vezes recorre. Ela diz respeito fundamentalmente à manifestação do que
há de ideológico no espetáculo, ou seja, o domínio da lógica da mercadoria, baseada nas
categorias da separação e da inversão, com a consequente imposição dos já
mencionados elementos da falsificação, empobrecimento, sujeição e negação da vida
real mundana. Essa ideologia que se ergue sobre a falsa consciência geral é o que
legitima todo o movimento incessante do espetáculo, é seu próprio aparecer em sua
manifestação mais pura, a confirmação de sua totalidade e de seu controle.
Compreendemos, portanto, a natureza deste processo como precisamente a de
legitimação do automovimento da economia na inconsciência por ela mesma produzida
– e mais ainda; a correspondente penetração na consciência dos homens submetidos a
essa lógica da “estrutura da reificação” de maneira cada vez mais “profunda, fatal e
definitiva”.48

47
Lukács, G. História e consciência de classe, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 211.
48
Ibidem.
40
1.3. Ideologia e esquizofrenia

A esquizofrenia é o quadro clínico da mente reificada. Sob a perspectiva de


Gabel, a esquizofrenia pode ser pensada como da mesma natureza da falsa consciência e
da ideologia por guardar com elas características comuns. Este elo entre as diversas
formas de consciência reificada, como já mencionamos, o autor de A falsa consciência
teria encontrado precisamente na concepção dialética particular de Lukács, que,
segundo Gabel, tem como centro não “a famosa transformação de quantidade em
qualidade, nem sequer a constatação do caráter ‘movediço’ do real, mas a categoria da
totalidade concreta por um lado, a dialética Sujeito-Objeto e a degradação reificacional
pelo outro”.49 No entanto, há de atentar para o fato de que se a primeira categoria está
longe de qualquer contestação, a dialética do sujeito e objeto idênticos, ao contrário, foi
alvo de muitas críticas, inclusive do próprio Lukács, que chegou a posteriormente
renegar este estudo devido ao que ele aponta como um caráter idealista fundado nessa
concepção. Em uma carta publicada pela revista Arguments em sua edição nº 5, de
dezembro 1957, e reproduzida em parte por Gabel em seu estudo, Lukács comenta o
seguinte:

‘De há vinte anos a esta parte, declarei várias vezes que considero meu livro
História e consciência de classe, publicado em 1923 como superado e, em muitos
aspectos, errado. Eis as razões principais da minha posição: a teoria do
conhecimento que se exprime nesta obra, oscila entre a teoria materialista do
reflexo e a concepção hegeliana da identidade do sujeito e do objeto, o que implica
a negação da dialética na natureza; na exposição da alienação, repeti o erro
hegeliano que consiste em identificar a alienação com a objetividade em geral’.50

Podemos aqui identificar como (auto)crítica fundamental, com base nos


argumentos de seu Posfácio a HCC escrito em 1967, o fato de que em diversas partes
desta obra a natureza é considerada como uma categoria social, o que implicaria numa
concepção geral de que o que é relevante é apenas o conhecimento da sociedade e dos
homens que nela existem. Este desvio, ainda segundo Lukács, teria por sua vez reflexo
sobre o conceito de economia, invalidando-a como eixo central para explicar os
fenômenos ideológicos, o que, para Celso Frederico, implicaria também na redução da
crítica da economia política “praticamente à crítica do fetichismo”.51 A confusão que

49
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 86.
50
Ibidem, p. 108.
51
Teixeira, F. e Frederico, Marxismo weberiano, São Paulo: Cortez Editora, 2010, p. 241.
41
Lukács identifica está na ausência do trabalho como mediador entre sociedade (sujeito)
e natureza (objeto), o que resulta não apenas na desconsideração desta última como
objetividade ôntica, mas também, segundo ele, na desaparição daquela “ação recíproca
existente entre trabalho, considerado de maneira autenticamente materialista, e o
desenvolvimento dos homens que trabalham”.52 Como resultado, tanto a exposição das
contradições do capitalismo (como as questões que envolvem a individualidade e a
consciência), quanto o aspecto revolucionário da teoria acabariam por cair em puro
subjetivismo.

Em sua autocrítica, Lukács expõe ainda o comprometimento do próprio conceito


de práxis, fundamental na obra de 1923, também por se basear em sua autoproclamada
concepção idealista. Para ele, sua tentativa, referenciada em Lênin, de apresentar o
pensamento revolucionário (ideologia revolucionária, segundo o mesmo) como
alternativa transformadora ao aspecto contemplativo da consciência reificada, seria ela
mesma a apologia da pura contemplação, no momento em que o conceito exagerado de
práxis não se apoia na própria práxis efetiva. Na realidade, o que ele constata é o
simples movimento real: se é o ponto de vista dos líderes do partido que predomina
sobre o conjunto dos trabalhadores organizados, sua “consciência” não se trata de fato
de uma “tomada de consciência”, mas de uma imposição.53 Desse modo, a consciência
de classe a ser realizada como práxis revolucionária aparece efetivamente como um
dado externo (como de fato defendia Lênin), sem nenhuma garantia de que entre teoria
e prática se dê a devida transição, mas apenas concluindo que “assim será”.

Por sua vez, ao tomar essa concepção dialética apresentada em HCC como
denominador comum das diferentes formas de consciência antidialética, Gabel está
perfeitamente ciente da autocrítica de Lukács. E em relação a esse fato há de se
considerar o seguinte: em primeiro lugar, Gabel aponta o “erro hegeliano” da identidade
sujeito-objeto como perfeitamente conveniente à interpretação da esquizofrenia. E ele
assim o faz porque ainda que identifique a indecisão terminológica presente em HCC
entre “Einhat”, que ele traduz como unidade dialética, e “Identität”, Gabel afirma que
não se trata do erro recorrente do idealismo alemão de compreender a identidade

52
Lukács, G. História e consciência de classe, 2003, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 16.
53
Cf. nota 36.
42
sujeito-objeto como o último “absorvido” pelo primeiro, mas ao contrário, se trata em
HCC de uma

unidade dialética entre o sujeito atuante e o mundo “atuado”, unidade que torna
possível pelo viés do conhecimento ativo do mundo e do autoconhecimento das
possibilidades da ação própria, uma espécie de personalização dialética do sujeito
histórico.54

Debord concorda com essa análise, o que coloca como não contraditória a noção
de um “projeto de história consciente” que teria em Marx seu início, de acordo com
ele.55 A constatação de Lukács, retomada por Gabel – ou ainda por Lefebvre, em sua
Crítica da vida cotidiana –, da natureza essencialmente dialética do problema da
alienação se mantém também em Debord, com a diferença de que o paralelismo
estabelecido por Gabel lhe interessa sob a condição de estar “compreendido nesse
processo econômico de materialização da ideologia” (SdE, § 217), ao passo que em
Gabel, como já dissemos, a alienação de tipo econômico é apresentada como uma entre
várias das formas da alienação (que compreende não apenas esta e a esquizofrenia –
alienação do tipo clínico –, mas outras, como as diferentes formas de alienação
política56), interessando-lhe, dessa forma, descobrir o denominador comum a elas.

Retomando a análise de Lukács em HCC, Gabel concebe o universo da


reificação como um mundo “espacializante e anaxiológico”.57 Quanto ao primeiro
ponto, de fato, segundo Lukács, um dos resultados da perda do domínio da totalidade do
processo produtivo sob a lógica do trabalho especializado (no quadro da alienação) seria
a de substituição das características qualitativas, mutáveis e fluidas do tempo – ou seja,

54
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 109.
55
Com isso, parece-me refutada a análise de Celso Frederico, para quem Debord incorreu no erro de
simplesmente repetir esta concepção de Lukács em HCC, ainda que no § 80 da SdE ele tenha deixado
claro que a inversão da dialética hegeliana operada por Marx não havia sido a de “substituir banalmente
pelo desenvolvimento das forças produtivas o percurso do Espírito hegeliano que vai ao encontro de si
mesmo no tempo”. O erro de Debord, segundo esse autor, seria o de não haver tirado dessa diferenciação
as conclusões necessárias. Contudo, há também de se considerar que no Posfácio de 1967 Lukács atribui
seu erro teórico não exclusivamente a uma confusão metodológica, mas a uma tendência objetiva de
oposição aos fundamentos da “ontologia” (sic) do marxismo que, segundo ele, ganhava espaço cada vez
maior dentro marxismo já antes da primeira guerra, com pensadores como Max Adler e Anatoli
Lunatscharski. Essa tendência, no caso particular de HCC, teria em muito sido resultado da influência do
ambiente intelectual do existencialismo francês de fins dos anos de 1910 e início dos anos de 1920. Ainda
que este texto muito possivelmente tenha sido dado ao conhecimento de Debord e Gabel, cuja obra A
falsa consciência ganhou sua terceira edição em 1969, nenhuma referência é feita a esta observação.
56
Neste caso sem levar em conta que a política não pode ser pensada fora de sua relação com a economia.
Apesar disso, não está entre os objetivos principais deste trabalho buscar validar ou refutar este ou aquele
pensamento, apenas buscar sua exposição.
57
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 86.
43
suas características dialéticas – por sua fixação num conjunto de “blocos temporais”,
agora sem distinção qualitativa. Segundo ele, essa transformação ocorreria dessa forma:

Ele se fixa num continuum delimitado com precisão, quantitativamente


mensurável, pleno de ‘coisas’ quantitativamente mensuráveis (os ‘trabalhos
realizados’ pelo trabalhador, reificados, mecanicamente objetivados,
minuciosamente separados do conjunto da personalidade humana); torna-se um
espaço.58

Para Gabel, este continuum espaço-temporal concerne à dimensão anaxiológica


do tempo. Essa crise de ordem axiológica, por sua vez, deve ser entendida como um
desacordo do(s) sistema(s) valorativo(s) do(s) indivíduo(s), isto porque, ainda segundo
Gabel, em concordância com o conceito de síntese59 de Charles Lalo, “a existência
axiológica tem como suporte elementos que, considerados em si próprios, são
desprovidos de valor”.60 Gabel explica que “a realidade organizada em forma está em
constante estado de auto-superação”61 e “uma totalidade é mais que uma soma de
elementos”,62 o que nos leva à compreensão da concepção de “pré-dinamismo” que ele
atribui a esse arranjo. Gabel prossegue e afirma que “a organização formal contém
sempre um esboço de finalidade”,63 concluindo então que “qualquer finalidade, mesmo
inconsciente, inclui uma ideia de valor”.64 Ainda em sintonia com Lalo, ele afirma
também a característica energética do valor, segundo a qual a moral equivale em algum
sentido à concepção de energia física, e a organização vital como fator axiógeno, ou
seja, a vida entendida como espaço de criação de valores, tendo em vista que “o valor é
uma perpétua superação de si”.65 Ora, se a moral se constitui a partir de um conjunto de
experiências do indivíduo, não é difícil compreendê-la a partir dessa comparação onde
os elementos físicos se constituem em pré-dinâmicos em seu arranjo (“fator axiógeno”);
ela é o próprio dinamismo daí resultante. Por outro lado, é justamente por ser a criação
axiológica “mais do que a soma das partes, tornando possível uma realidade e uma

58
Lukács, G. História e consciência de classe, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 205.
59
O conceito de síntese de Lalo é tomado por Gabel – desviado, nos termos de Debord – como qualidade
formal, aludindo a sua noção mais precisa: a de “forma”. De fato, o termo “Gestalt” (forma) e “totalidade
concreta” podem ser entendidos como sinônimos, e é precisamente da concepção de totalidade que pode
transcender a partir de si mesma (síntese) que vem a relação, feita por Gabel, desse conceito com a
dialética.
60
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 148.
61
Ibidem, p. 150.
62
Ibidem.
63
Ibidem.
64
Ibidem.
65
Ibidem.
44
transcendência, sem abandonar o terreno da autonomia dos valores”,66 que a categoria
dialética da totalidade pode vir à discussão, e Gabel pode afirmar, dessa vez apoiado em
Eugène Minkowski, o caráter contrário do tempo que tem negada sua dimensão
dialética, explicando que “entre as noções de espaço, de agressividade e de
desvalorização existem inter-relações complexas”.67 A conclusão lógica não poderia ser
outra: a superação dialética do universo reificacional é essencialmente um processo
valorativo e de temporalização.

Debord não por acaso entende o caráter esquizofrênico da lógica do capital na


forma do espetáculo como “organização social da paralisia da história e da memória”
(SdE, § 158), organização essa que é de uma só vez o congelamento do tempo e a
negação da realização de suas possibilidades, ou seja, negação do aspecto dialético do
devir histórico – ou ainda, se quisermos, a própria falsa consciência entendida como
“falsa consciência do tempo” (idem). Mas se Debord afirma que, como congelamento
do tempo histórico, o espetáculo “oferece como perpétuo o que se funda na mudança”
(SdE, § 71), o que ele busca ressaltar nessa crítica são exatamente essas características
próprias ao tempo histórico de fluidez e o aspecto valorativo que a ela se associa.
Contrariamente a elas, no âmbito da produção de valor – entendida aqui não apenas
unicamente do ponto de vista da produção direta de um indivíduo, mas como o processo
social global –, o que se tem é uma série sucessiva de “espaços” temporais intervalados
que já não podem ser diferenciados em termos de qualidade, mas apenas em seu aspecto
quantitativo – o que também Marx já havia descrito em Miséria da filosofia ao falar
sobre a relação do homem com o tempo (entendido como medida de produção de valor),
afirmando que “o tempo é tudo, o homem já não é mais nada; ele é no máximo a
carcaça do tempo”.68 Em outras palavras, a questão é explicitar que na produção
mercantil não se trata mais de qualidade, pois ali “a quantidade decide tudo sozinha:
hora por hora; jornada por jornada.”.69 Além do mais, como categoria dialética, o tempo
histórico não se caracteriza apenas por sua fluidez, contrária ao caráter estático do
espaço, mas por realizar “uma síntese dialética das suas três dimensões constantemente

66
Ibidem, 152.
67
Ibidem, p. 152.
68
Marx, K. Miséria da filosofia, São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 85.
69
Ibidem.
45
renascente; presente, passado e futuro”,70 nos dando assim a perfeita dimensão de suas
possibilidades.

Ainda para entendermos a consideração sobre o valor que Gabel apresenta,


poderíamos afirmar que outros elementos importantes para a compreensão dessa noção
podem ser encontrados nas categorias formuladas por Eugéne Dupréel em sua teoria
gestaltista, e das quais Gabel se apropria em A falsa consciência. Segundo Dupréel, o
valor teria duas características essenciais, a consistência e a precaridade. A primeira
consistiria na “tendência autoconservadora das formas cuja intensidade mede a
diferença entre formas fracas e formas fortes”,71 enquanto a segunda seria a causa do
desaparecimento das formas, no instante em que os elos fundamentais do conjunto são
desfeitos. Um dos exemplos que Gabel apresenta para ilustrar esta noção é o próprio
ciclo de vida de um indivíduo, que consiste em uma bipolaridade axiológica entre
conservação e assimilação, evidenciando sua precaridade no fato de que uma causa
mínima pode se mostrar suficiente para que ela cesse de existir. Assim, Gabel retoma
essas categorias para alargar seu conceito de ideologia com base no que chama de valor
reificado ou sagrado social, que, por sua vez, pode ser definido como “um valor
consistente, mas não precário”.72 Como valor consistente, a referência direta é a própria
noção de ideologia de Gabel como cristalização teórica, ou seja, superação do estado
difuso que caracteriza a falsa consciência. Por outro lado, é justamente enquanto
consciência antidialética, ou seja, “fixa”, que a ideologia pode ser entendida também
como valor não precário. Daí segue a relação que podemos fazer entre ideologia, como
sagrado social, com a noção de ilusão de totalidade73 (também ilusão de dereificação,
ilusão de temporalização ou ilusão de História) e com a noção de acentuação do
sociocentrismo de um grupo que exacerba sua visão de mundo em uma ideologia.

De fato, sagrado social abarca uma série de fenômenos como o valor racial
atemporal e a alienação religiosa e tem como característica a de se fundar no signo da
identificação, o que lhe garante a consistência dos valores, mas não sua precaridade,
constituindo-o assim em função desvalorizante, despersonalizante e dedialetizante.

70
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 178.
71
Ibidem, p. 149.
72
Ibidem, p. 153.
73
Conceito tomado de Jean Paulhan e que em seu contexto original relaciona-se à psicopatologia da
experiência delirante e das perversões sexuais.
46
Podemos, portanto, afirmar acerca do sagrado social que “ele contém sua própria
justificação; é a priori e não a posteriori, analítico, e não sintético”.74 Ou, se quisermos,
podemos defini-lo ainda como “um valor identificativo autista e antidialético”,75 por sua
independência da experiência (ausência de precaridade). Por outro lado, a falsa ilusão de
identificação é a mesma que Debord faz referência tantas vezes ao explicar como o
trabalhador separado de seu mundo, não se sentindo em casa em lugar nenhum (SdE, §
30), é capaz de projetar nas mercadorias, produtos de sua atividade separada, a
felicidade que ele já não encontra em sua vida cotidiana. Ora, Gabel nos explica o
conceito de ilusão (ou falsidade) do encontro como “a identificação de dois dados
diferentes após dissociação de suas totalidades respectivas e obscurecimento do resíduo
não identificável em função de um critério privilegiado cuja primazia é assegurada do
exterior”.76 E eis o elemento central do paralelismo de Gabel que Debord desvia para
ampliar sua crítica da ideologia espetacular: se entendida essa totalidade como o próprio
conjunto da personalidade do indivíduo, podemos dizer que sua dissolução enquanto
totalidade mesma é o que permite apresentar essa relação com a esquizofrenia, tendo em
vista que o modo de ser dessa patologia é a fragmentação da estrutura básica da
consciência.77

Talvez a passagem mais significativa da SdE no que se refere à ressignificação


do paralelismo de Gabel esteja no famoso desvio que Debord faz de uma das passagens
de A falsa consciência ao dizer que nos quadros clínicos da esquizofrenia “‘a
decadência da dialética (que tem como forma extrema a dissociação) e a decadência da
dialética do devir (que tem como forma extrema a catatonia) parecem bem solidárias’”

74
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 154.
75
Ibidem.
76
Ibidem, p. 169-170.
77
É importante atentar para o fato de que a relação entre esquizofrenia e consciência reificada social só
faz sentido dentro de certos limites – limites que procuramos respeitar nessa exposição. Gabel e Debord
estão cientes disso. Para uma melhor compreensão a respeito da psicose – e, portanto, de seu fenômeno
particular, a esquizofrenia – conferir “A psicose como estrutura”, segundo capítulo da tese de
doutoramento da professora Caciana Linhares Pereira, intitulada Psicoses na infância e escolarização:
uma pesquisa colaborativa na rede regular de ensino (2012). Já no que diz respeito à relação entre
capitalismo e produção da consciência, a tendência mais interessante hoje no campo da psicanálise é a
que vê a relação entre a consciência produzida no interior das relações mercantis e uma lógica de
comportamento própria da perversão. Um bom estudo dessa temática pode ser encontrado em “Trabalho
e capitalismo: uma visão psicanalítica” de Marco Antonio Coutinho Jorge e Flávio Corrêa Plínio Bastos,
publicado na revista Trivium, edição 1. Disponível em: http://www.uva.br/trivium/edicao1/artigos-
tematicos/2-trabalho-e-capitalismo.pdf

47
(SdE, § 218). Lembrando que o próprio Gabel explica que “a estrutura esquizofrênica
das ideologias manifesta-se acima de tudo no seu caráter autista”78 e sem perder de vista
que uma das possíveis manifestações da esquizofrenia é também a catatonia, não há
obstáculos para entender que uma consciência dissociada e passiva (falsa consciência)
encontra precisamente na ideologia total (espetacular) este elemento exterior que
obscurece sua não identificação com esse elemento externo que é a própria mercadoria.
Assim, sob a lógica do capital e na busca de uma alternativa à miséria de um mundo
regulado por coisas, a resposta da mente presa a esses limites só poderia ser de caráter
ilusório; no consumo de mercadorias e na falsa identificação que elas oferecem”79.
Seguindo o raciocínio de Debord, fica claro que esses fenômenos tratam na verdade de
uma “pseudo-resposta a uma comunicação sem resposta” (idem) que evidencia o
“apagamento dos limites do eu [moi]” (SdE, § 219) e a consequente “supressão dos
limites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento80 de toda verdade vivida, diante da
presença real da falsidade garantida pela organização da aparência” (idem); a lógica do
mundo da economia autônoma.

Fechamos então este capítulo com uma melhor precisão da noção de falsa
consciência em relação a seu caráter esquizofrênico. Se nos termos de Gabel ela pode
ser definida como “o lugar de convergência de um feixe de dados traduzindo sob
ângulos diferentes a permanência de uma crise axiológica e dialética da consciência
social”,81 Debord concorda com essa definição acrescentando que sua origem se dá na
separação entre consciência e ação (teoria e práxis), característica fundamental de todas
as sociedades de classes, mas que ganha no espetáculo moderno sua realização histórica
conhecida mais efetiva – argumento que, pelo que foi exposto e com base no que já
havíamos comentado anterior, retoma Lukács sem simplesmente o repetir, tendo em
vista que ainda que considera a importância do elemento econômico, não limita a ele
toda a crítica.

78
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 177.
79
De fato entram aqui em análise não apenas as mercadorias (“coisas”) e as (falsas) qualidades que são
(pretensamente) atribuídas àquele que as possui, mas também de maneira fundamental o que Debord
chama também de agentes ou vedetes do consumo, que trataremos de maneira mais detalhada no capítulo
seguinte, mas que podemos apresentar aqui como os modelos apologéticos desta sociedade.
80
Para uma boa compreensão do desvio da teoria de Freud realizado por Debord, conferir “A natureza
arcaico-moderna do ‘espetáculo’”, item 1.3 do capítulo “Espetáculo e linguagem”, e o item 2.2, “Debord
e a crítica da ‘superestimação do inconsciente’”, ambos da obra Reificação e Linguagem em Guy Debord,
de Emiliano Fortaleza de Aquino (Fortaleza: Editora da UECE, 2006).
81
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 177.
48
Com base no que já discutimos na primeira seção deste capítulo, sabemos que
uma das consequências e aspectos principais da generalização da lógica do valor é a
objetivação da força de trabalho ela mesma como mercadoria. A divisão do trabalho
particular do modo capitalista de produção fundamenta a imensa produtividade deste
sistema, mas a partir dela o trabalhador perde também a unidade orgânica e a totalidade
do processo produtivo – fato que é conhecido pelo menos desde Adam Smith. A
produção com isso passa cada vez mais a ser subordinada à análise racional e à
necessidade da precisão do cálculo para sua otimização. Mas esse é, contudo, o aspecto
mais geral do processo. O segundo, e não menos importante, é, segundo Lukács, que
“essa fragmentação do objeto da produção implica necessariamente a fragmentação do
seu sujeito”.82 Ou seja, o trabalhador não é simplesmente aquele que não possui os
meios de produção e, em consequência, tem que disponibilizar suas forças físicas e
mentais em troca de alguma remuneração, mas também alguém cujas “qualidades são
separadas do conjunto de sua personalidade e são objetivadas em relação a esta última,
para poderem ser integradas em sistemas especiais e racionais e reconduzidas ao
conceito calculador”.83 Portanto, o cálculo racional, que organiza a produção submete,
por um lado, a força do trabalhador e, por outro, suas faculdades; e o faz num único
processo. Assim, o caráter contemplativo da consciência reificada daí resultante, que
Debord define como a “submissão inquieta e admirativa às necessidades e aos
resultados da produção” (SdE, § 27), pode agora também ser entendido sob a
perspectiva da estrutura esquizofrênica apresentada por Gabel, ou seja, “como
dissociação das totalidades, como desvalorização, como preponderância da função
identificadora em relação à intuição do diverso (ou da intuição simplesmente), ou como
preponderância da função espacial em relação à função temporal”.84

Assim, concluímos recorrendo mais uma vez a Gabel para reafirmar sua
conclusão mais fundamental, a qual Debord está sem dúvida em concordância, ou seja,
a de que “uma teoria consequente da falsa consciência só poderá ser dialética”.85 Por
sua vez, a verdade não só desta afirmação, mas de todo o projeto empreendido por
Debord de revisão historicamente crítica da teoria revolucionária para uma reelaboração

82
Lukács, G. História e consciência de classe, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 203.
83
Ibidem, p. 202.
84
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 176.
85
Ibidem, p. 87.
49
da mesma centrada em seus elementos mais imprescindíveis – fundamentalmente a
interdependência entre teoria e práxis e seu aspecto dialético –, se confirmam na
afirmação seguinte de Gabel, para quem, da mesma forma, “uma dialética consequente
(‘idealista’ ou ‘materialista’) acaba por reencontrar, de uma forma ou de outra, o
problema da ideologia”.86

86
Ibidem.
50
Capítulo II

Espetáculo e Ideologia

A classe operária sempre pode olhar a verdade cara a


cara, ainda que isto signifique a mais alta acusação.

Rosa Luxemburg, A crise da social democracia alemã

Em 1967 Guy Debord teorizou o movimento global do espetáculo como dividido


em dois tipos: o espetacular difuso e o espetacular concentrado. O primeiro, entendido
como próprio aos países capitalistas desenvolvidos, onde a mercadoria encontraria livre
trânsito, teria sua contrapartida no modelo capitalista burocrático, cujos países se
diferenciariam por seu imenso atraso em termos de acumulação de capital e teriam
como principal característica a organização e planejamento de tipo estatal-burocrático
como motor de desenvolvimento.

Mas o espetáculo não é resultado unicamente da evolução da economia enquanto


elemento isolado. O próprio controle que esta exerce sobre a sociedade nessa etapa
histórica não seria possível não fosse o exercício de novas técnicas de governo que lhe
permitissem seguir seu desenvolvimento indefinido. Implica dizer, portanto, que o
espetáculo é também resultado de uma etapa decisiva da própria luta de classes que é
expressão da sociedade mercantil. Por sua vez, o momento histórico que assiste às lutas
em questão foram os anos 1920,87 que viram o conflito se definir tendo, de um lado, a
organização autônoma e espontânea dos conselhos operários, e, no outro polo, os
principais representantes da esquerda oficial à época, a socialdemocracia alemã e o
bolchevismo russo.

O que nos interessa neste capítulo é trazer duas importantes discussões: primeiro
aquela feita pelo próprio Debord acerca da derrocada tanto das lutas revolucionárias do
primeiro quarto do século XX, quanto das lutas ocorridas entre fins dos anos 1960 e fins

87
Nos movimentos artísticos de vanguarda desta época – especialmente o dadaísmo e a primeira geração
do surrealismo –, e algumas demandas que lhes eram próprias, como a busca de revolução do cotidiano e
a superação da arte como instituição burguesa, Debord pôde enxergar a exata expressão dessas lutas. Esta
compreensão teve não só importância decisiva para que ele e, logo, a seção francesa da IS passassem de
um grupo de contestação da arte à contestação sistemática da sociedade da qual esta forma específica de
arte é apenas um aspecto, mas deve ser entendida também como fundamental na sistematização de seu
projeto revolucionário. Falaremos um pouco deste aspecto no capítulo seguinte.
51
dos anos 1970, sem as quais não se pode entender com exatidão as origens e a própria
dinâmica do espetáculo – discussão abordada não tanto em caráter historiográfico, mas
principalmente sob seu aspecto teórico, ou seja, buscando uma compreensão crítica da
práxis dessas lutas e seus resultados. Segundo, e não menos importante, ao estender a
discussão às características de cada uma dessas formas particulares de especialização do
espetáculo, a saber, o espetacular difuso e o espetacular concentrado, não perder de vista
o aspecto ideológico em suas nuances e pontos comuns, analisando os elementos que
são capazes de estimular o aparecimento em cada uma dessas formas da consciência
reificada e mantê-la, sob o signo da representação.88 Para essas questões, nossas
principais referências serão os capítulos III e IV de A sociedade do espetáculo –
respectivamente “Unidade e divisão na aparência” e “O proletariado como sujeito e
representação” – tendo em vista, contudo, que eles não esgotam a discussão, dado o
próprio caráter sistemático da SdE.

Ainda no que diz respeito à derrota dos movimentos revolucionários acima


citados – especialmente os do primeiro quarto do século – é de fundamental importância
a consideração que não se pode pensar criticamente esses movimentos de negação sem
analisarmos aquelas formações ideadas que pretendem não apenas explicá-los, mas
servir-lhes de fundamento. Referimo-nos logicamente às ideologias da esquerda oficial,
notadamente a socialdemocracia alemã e o bolchevismo russo, estas que foram
decisivas na consolidação do espetáculo por meio do surgimento de sua forma
concentrada.

No caso germânico é bastante expressivo que de sua fundação, em 1869, até


1912 o partido socialdemocrata tenha crescido de forma ininterrupta até alcançar nesse
ano a impressionante marca de cerca de dois milhões e meio de associados, tendo ainda
sob seu controle um grande número de sindicatos fortemente organizados, fatores que
lhe permitiram se firmar como o partido mais expressivo do Reichstag, a Câmara dos

88
Devemos, todavia, deixar claro que a teoria do espetáculo não é de forma alguma determinista. Debord
estava bem ciente deste perigo e não seria capaz de tal reducionismo. Se assim o fizesse, teria de
apresentar também uma contrapartida para explicar a consciência dialética, fato que vulgarizaria
enormemente sua crítica e cuja dificuldade ele sabia de sua leitura do próprio Gabel, que a discutiu ao
fazer sua crítica a Marx e ao aspecto psicológico de sua teoria de classes em A falsa consciência.
Poderíamos ainda atentar para um dos aspectos gerais da teoria psicanalítica; o de que ela em geral
identifica e trata os diferentes tipos patológicos, mas não é capaz de determinar a origem das patologias.
52
Deputados alemã,89 e como principal referência da Segunda Internacional, servindo de
modelo para todos os partidos de esquerda a ela então associados. Há de se ter em conta
que essa expansão do alcance da socialdemocracia todavia não pode ser entendida sem
se considerar toda uma série de mudanças fundamentais nas orientações do partido
ocorridas ao longo de sua história, tendo uma delas – o programa de Gotha – contado
inclusive com a oposição do próprio Marx, que, embora não fosse afiliado, sem dúvida
estava ciente das consequências da adoção das propostas do documento.

O programa proposto na reunião de Gotha, contudo, foi aprovado com


pouquíssimas alterações e o partido, por meio da subsequente implementação e
aperfeiçoamento do reformismo da teoria de Marx deixou de ser um partido operário
para se configurar num partido de intelectuais. Era o início do marxismo em sua forma
vulgar, este que desconsiderava a luta de classes em favor de uma ideologia que daria
sustentação ao argumento da transição pacífica do capitalismo ao socialismo por meio
de mudanças graduais conseguidas a partir do sufrágio e da participação parlamentar,
tudo isso baseado numa doutrina científica própria, que se propunha a explicar os
desdobramentos recentes do capitalismo de então. Foi esse mesmo partido que diante da
crise europeia dos primeiros anos da década de 1910, apoiou a entrada da Alemanha na
Primeira Guerra em defesa de seus interesses como potência imperialista e sufocou os
principais atores da Revolução Espartaquista, em seu esforço de levar adiante a
revolução em face dos acontecimentos pós-1914.

Por sua vez, a Rússia assistiu como resultado das lutas que buscavam a
derrubada do regime czarista a chegada ao poder de uma versão ainda mais dura do
modelo alemão na forma do partido bolchevique, liderado por Lênin, iniciando assim o
espetáculo moderno; a uma só vez no reforço da ordem e no esgotamento do
movimento revolucionário nesses países. A revolução espanhola da segunda metade da

89
Haimovich, Perla L. de Uma revolução na encruzilhada da história. In: Rosa, A vermelha: vida e obra
da mulher que marcou a história da revolução no século XX. São Paulo: Editora Buscavida, 1987. Neste
artigo, a autora nos explica que o crescimento da socialdemocracia pode ser explicado com base no
próprio desenvolvimento econômico da Alemanha. O partido, dessa forma, tratou de ser a expressão
política da acumulação de capital realizada nesses anos, ainda que, à época o poder político ainda
estivesse nas mãos do junkers, nobres e latifundiários representados pela monarquia. É isso que explica,
em parte, a própria ascensão nazista ao poder, tendo em vista que com os desdobramentos da guerra
iniciada em 1914, o médio capital tenha conseguido conquistar a hegemonia política durante a República
de Weimar, abrindo assim espaço para o domínio político do grande capital, sob o comando de Hitler.

53
década de 1930 com isso se viu derrotada não apenas pelas forças que alçaram Franco
ao poder, mas como simples confirmação da já realizada derrota do movimento
revolucionário internacional. Com a Terceira Internacional instaurada pelos
bolcheviques e efetivada após o fracasso das lutas da socialdemocracia alemã e a perda
da vitalidade de sua organização, é o modelo hierárquico e burocrático ideológico que
passa a reger os rumos da esquerda mundial a partir de meados dos anos 1920,
encontrando amplo espaço de desenvolvimento – junto com o trotskismo – em países
pobres, especialmente da Ásia e América latina.

Consolida-se então o espetáculo por meio de seu elemento fundamental, seu


arcana imperii, do qual nos fala Debord na seguinte passagem:

O mesmo momento histórico em que o bolchevismo triunfou por si próprio na


Rússia, e em que a socialdemocracia lutou vitoriosamente pelo velho mundo, marca
o nascimento completo de uma ordem de coisas que está no âmago da dominação
do espetáculo moderno: a representação operária opôs-se radicalmente à classe
(SdE, § 100).

Portanto, o momento subsequente à derrota dos movimentos revolucionários na


Europa, graças à capitulação da socialdemocracia alemã e o triunfo da revolução
bolchevique na Rússia, com a resultante consolidação da representação operária contra
a própria classe operária e a polarização do mundo em dois blocos falsamente
antagônicos do poder hierárquico da economia mercantil é o que marca de fato a
ascensão do espetáculo.90 Em seu primeiro momento, como reflexo do mundo
fortemente dividido sobre o qual se erige, ele também se apresenta sob duas formas,
difuso e concentrado, de maneira a cumprir seu papel de resgate da velha ordem nos
países onde as condições materiais são menos desenvolvidas. Num segundo momento,
contudo, trata-se, por outro lado, de desmentir sua própria afirmação inicial a fim de
prosseguir em sua mentira fundamental, o que ocorre pela fusão dos principais
elementos destas duas formas na figura do espetacular integrado.

90
É interessante que Anselm Jappe como membro do grupo alemão Krisis tenha escrito um livro
dedicado a Debord. Ora, este grupo que tinha à frente o falecido Robert Kurz, tem como um dos
principais elementos de sua teoria crítica a censura do trabalho a partir da confusão teórica entre as
categorias de trabalho e trabalho abstrato. Essa confusão é precisamente o que os leva a relegar a segundo
plano o aspecto da luta prática da teoria revolucionária, colocando-os, da mesma forma que os socialistas
utópicos, em uma situação de inconformismo contemplativo diante do movimento econômico. A esse
respeito conferir Crítica ao manifesto contra o trabalho, de Ilana Viana do Amaral. Texto disponível em:
http://www.arteeanarquia.xpg.com.br/critica_ao_manifesto_contra_o_trabalho.htm.

54
E aqui aparece então um dos pontos essenciais da discussão que apresentamos
nesse capítulo: a derrota do movimento revolucionário precisa ser entendida não só
como resultado da fraqueza prática do movimento dos Conselhos operários do primeiro
quarto do século passado, mas ao mesmo tempo da imposição a essas lutas da visão
parcial (ideológica) pelas duas principais frações políticas – a socialdemocracia e o
bolchevismo – surgidas do esfacelamento do que antes havia sido, segundo Debord,
uma teoria revolucionária de caráter unitário. Embora fundamentado na economia, o
espetáculo é o recrudescimento do poder vigente em função da vitória da ordem
burguesa contra essas tentativas revolucionárias e, portanto, da adoção de novas formas
de organização social que são em seu conjunto a materialização dessas ideologias,
socialdemocrata e bolchevique. É assim que a dominação totalitária da mercadoria sobre
o mundo efetiva-se na divisão deste entre os regimes concentrado e difuso do
espetáculo, este que, por sua vez, encontra no modelo americano a melhor expressão da
ideologia mercantil em seu estado puro. É também por esse motivo que as duas
discussões caminham juntas.

Igualmente, precisamos entender que, nos Comentários, escritos cerca de 20


anos depois de A sociedade do espetáculo, Debord afirma que não apenas o estágio de
desenvolvimento do espetáculo que ele havia descrito inicialmente não havia então
alcançado forma definitiva, como também que a mudança mais significativa desse
desenvolvimento posterior seria a fusão do espetacular concentrado e do espetacular
difuso na forma do espetacular integrado (mudança para a qual já havia chamado
atenção em 1979, no “Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo”, sem,
no entanto, teorizá-la de maneira aprofundada). O que nessa obra, lançada em fins dos
anos 1980, está em discussão é, portanto, um segundo momento de derrota das lutas
revolucionárias: as que ocorrem de fins dos anos de 1960 a fins da década de 1970 e que
ocorrem no interior da própria forma difusa, até então inabalada. Segundo ele mesmo
afirma:

Como os acontecimentos pós-1968, que se estenderam a diversos países nos anos


seguintes, não destruíram em nenhum lugar a organização social existente, o
espetáculo, que dela parece brotar espontaneamente, continuou a se afirmar em
toda parte. Alastrou-se até os confins e aprofundou sua densidade no centro.
Chegou mesmo a incorporar novos procedimentos defensivos, como o poder
quando se vê atacado (Coment., §II).

55
O palco desses novos desdobramentos foram, para ele, países como Portugal e
Itália, que em condições diferentes de desenvolvimento traziam em comum fatores
importantes como a fraca tradição democrática e o caráter mais radical de seus
movimentos revolucionários. Em janeiro de 1979, por exemplo, Debord chegou a
afirmar que “sendo no momento o país mais avançado no movimento em direção à
revolução proletária, a Itália é também o laboratório mais moderno da contrarrevolução
internacional”.91 De fato, já em dezembro de 1969 a república italiana pôde assistir a
uma das várias cruéis experiências desse laboratório no famoso atentado da Piazza
Fontana, no centro de Milão, quando uma bomba explodiu na sede do Banco Nacional
da Agricultura, tendo ainda outros cinco atentados sido registrados nessa cidade, e
também em Roma, no espaço de uma hora. Era o início das novas medidas adotadas
pela strategia della tensione, segundo a tese de Debord levada a cabo pelos serviços
secretos do Estado no sentido de barrar os avanços do movimento proletário,
justificando agora suas ações no combate ao terrorismo que ele mesmo implantara.

Portanto, trataremos de analisar nos três tópicos que seguem cada uma dessas
formas do espetáculo, iniciando com a discussão de sua manifestação mais ‘vulgar’,
onde ele mostra com maior evidência seu modus operandi: o espetacular concentrado.

2.1. O espetáculo concentrado

A forma particular do espetáculo que efetivamente o inaugura, o espetacular


concentrado, surge como resultado e resposta à brutal defasagem em termos de
acumulação de capital dos países onde este regime se instaurou, a começar pela Rússia
pós-revolucionária, em relação às concorrentes economias ocidentais. Segundo Debord,
a concentração espetacular “é a continuação do poder da economia, a salvação do
essencial da sociedade mercantil que mantém o trabalho mercadoria” (SdE, § 104). De
fato, China e Rússia antes do êxito de suas revoluções não passavam de economias
fortemente agrárias e dominadas quase que completamente por elementos pré-
capitalistas em seu regime de produção – o mesmo podendo ser dito dos países que
posteriormente adotaram esse modelo na América Latina e na Ásia –, isso num
momento histórico em que o capitalismo já havia chegado com grande força em sua

91
Prefácio à quarta edição italiana de A sociedade do espetáculo. In: A sociedade do espetáculo, Rio de
Janeiro: Contraponto, 1997, p. 159.
56
etapa imperialista. Apresentados como regimes de caráter popular e socialista, na
prática não passavam, segundo a concepção de Debord, de regimes capitalistas de base
estatal totalitária apoiada na ideologia burocrática de partido único, centrada, por sua
vez, na figura do líder.

É importante ressaltar que no desenvolvimento do tema do capitalismo


burocrático não se pode desconsiderar os primeiros escritos de Cornelius Castoriadis,
quando à frente da revista Socialismo ou Barbárie a partir de 1948.92 Enquanto
dissidentes do movimento trotskista, que, como nos conta Richard Gombin em seu Les
origines du gauchisme, foi a brecha por meio da qual a esquerda não estalinista pôde
pensar criticamente a revolução russa, Castoriadis e a S ou B foram os primeiros a
afirmar a burocracia bolchevique como uma verdadeira classe dirigente, e não apenas
como fenômeno superficial.93 Essa mudança foi de fundamental importância para a
crítica subsequente – incluindo aí o próprio Debord e os situacionistas –, já que para a
corrente de seguidores de Trotsky – e para o próprio – o fenômeno burocrático russo
não se fundava sobre uma base social, e dessa forma não se configurava em uma
verdadeira classe, mas apenas em um fenômeno político, alimentando assim as ilusões
acerca do Estado soviético, visto assim como um “Estado proletário degenerado”, isto é,
“a meio caminho entre o capitalismo e o socialismo”.94

Portanto, apesar do avanço crítico, esse pensamento acabou por se constituir em


um verdadeiro dogma no seio da Quarta Internacional até ser contestado por
Castoriadis, que viu na análise de Trotsky a interpretação exageradamente literal da
teoria marxista. O fundamento desse erro seria a consideração de classe dominante
como aquela que detém privadamente (juridicamente) os meios de produção, o que não
era o caso na Rússia. Mas, todavia, se os bolcheviques não eram os proprietários dos
meios de produção no país, sua posição enquanto classe dirigente lhes garantia todos os
benefícios destinados à burguesia nos países onde vigorava o capitalismo de mercado,
fosse orientando os investimentos, nomeando e revogando dirigentes ou decidindo
92
Segundo Gombin (Les origines du gauchisme. Paris: Éditions du seuil, 1971), no entanto, apesar de
trazer esse importante avanço teórico, a S o B em sua resolução de se manter fiel ao pensamento marxista,
não conseguiu posteriormente se livrar da orientação trotskista, o que explica que ainda nos anos 50
Castoriadis tivesse a compreensão do fenômeno burocrático como uma degeneração da revolução de
outubro.
93
A esse respeito, conferir o primeiro capítulo de Les origines du gauchisme, de Richard Gombin,
intitulado “La quéstion préjudicielle : le régine de l’U.R.S.S. et le phénomene bureaucratique”.
94
Ibidem, p. 39.
57
preços e salários.95 Além do mais, sendo os membros desse grupo e seus associados e
descendentes os verdadeiros beneficiários do regime, pouco interessava que não
detivessem o título jurídico de propriedade, tendo em vista que a burocracia realiza “a
ambição dos capitalistas porque detém sem repartir a potência econômica e política”,96
não tendo assim “de considerar a oposição sindical e menos ainda uma oposição
política”.97 Por todas essas razões ela, segundo Castoriadis, se constitui numa terceira
categoria socioeconômica, entre o capitalismo e o socialismo: o capitalismo de Estado,
“resultado de uma evolução comum a todos os países industriais, a todas as sociedades
modernas, e que começa no mundo antes da Primeira Guerra”.98

Debord concorda com a análise99 de que essa degenerescência burocrática do


Estado russo é explicada pelo próprio movimento incessante da economia moderna, ou
seja, como expressão da concentração de poder indissociável do próprio movimento de
concentração do capital e sob pressão do desenvolvimento técnico, bem como “a
incompatibilidade do grau de desenvolvimento atual das forças produtivas com a
propriedade privada e o mercado como modo de integração das empresas”.100 De fato,
no espetáculo de tipo concentrado, pela ausência dessa concentração de capital, é o
poder que se mostrará em condensação assombrosa, necessitando para isso de forte
apoio em sua base ideológica, o que nos leva a entender o espetacular concentrado
também como o lugar em que a ideologia se dá a conhecer em sua forma mais “pura”. A
máquina estatal burocrática recém-inaugurada se revela aqui em sua plenitude; sua
função não é apenas coordenar o processo econômico de acumulação forçada, mas
também se mostrar como instrumento objetivo de coerção ali onde a mercadoria falha
em impor sua ideologia de desenvolvimento econômico indefinido.

Isso se dá de duas formas: primeiro, pela imposição de sua ideologia através da


propaganda do Estado; segundo, pelo uso da violência legal enquanto violência
legitimadora dessa imposição. Como nos bem ilustra Debord, tomando a China como

95
Ibidem, p. 41.
96
Ibidem.
97
Ibidem.
98
Ibidem.
99
Castoriadis, C. Sobre o conteúdo do socialismo, I. In: Socialismo ou barbárie, o conteúdo do
socialismo, São Paulo: Brasiliense, 1979. Texto publicado pela primeira vez no número 17 da revista
Socialisme ou barbarie, em julho de 1955.
100
Ibidem, p. 55.
58
exemplo, essa dupla determinação da ideologia do espetacular concentrado significa
dizer que “se cada chinês tem de aprender a ser Mao e, assim, tornar-se Mao, é porque
não há outra coisa para ser” (SdE, §64). Nisso se revela a contrapartida material da
ideologia totalitária: a polícia. O que é o mesmo que dizer que “onde o espetacular
concentrado domina, a polícia também domina” (idem). Em outras palavras, a violência
legítima do Estado se apresenta essencialmente como expressão da perda do aspecto
comunicativo do diálogo prático sob o controle massivo do poder, este que só é possível
a partir da partilha comum da riqueza qualitativa dos acontecimentos, ou seja, sua
constituição como “linguagem histórica” (SdE, § 113).101

Cabe também ressaltar que a concentração de poder burocrática simplifica as


decisões a serem tomadas por aqueles que detêm o poder de decisão. Isso implica que a
classe burocrática, verdadeiro subproduto da classe dominante capitalista, resume suas
tarefas ao programa de realização a passos largos (isto é dizer ‘sob um regime brutal
exploração operária’) da acumulação primitiva de capital a que por motivos históricos
esteve até então impedida. Quanto a esse ponto, Castoriadis nos explica que, no centro
do programa econômico bolchevique nos primeiros anos da revolução, o que está em
questão “não é a gestão operária, mas o controle operário”;102 isto é, os especialistas
burgueses (engenheiros, administradores etc.) ficando encarregados da gestão e aos
operários cabendo apenas a tarefa de inspecioná-los. Esse modelo de controle se
justificaria na tentativa de realizar a uma só vez as seguintes tarefas: “impedir os
capitalistas de organizar a sabotagem da produção, controlar seus lucros e a disposição
do produto das empresas, e constituir uma ‘escola’ de direção para os operários”,103 isso
tendo em vista que, para os propósitos da “revolução”, os capitalistas não podem ser
eliminados, mas devem ser condenados à desapropriação dos meios de produção.104

101
Acerca dessa crise da linguagem cotidiana no espetáculo, falaremos oportunamente no terceiro
capítulo, nos limitando, por ora, a chamar atenção para o fato de que aqui ela aparece em seu aspecto
mais rude.
102
Castoriadis, op. cit, p. 55.
103
Ibidem.
104
O próprio Lênin explica da seguinte maneira a orientação do partido quanto às políticas econômicas:
“O socialismo é inconcebível sem a grande técnica capitalista, calcada na última palavra da ciência
moderna, sem uma organização estatal harmônica, que submeta dezenas de milhões de pessoas à mais
rigorosa observância de uma única norma na produção e na distribuição dos produtos”. (Lênin V. I. et al.
A Nova Política Econômica (NEP). São Paulo: Global, 1987, p. 148).
59
O regime de trabalho forçado (assalariado) e parcializado que aqui se impõe em
vistas do melhor nível de produtividade alcançável acaba assim por afirmar no nível da
percepção as características de espacialização e quantificação do tempo, bem como a
perda da noção de continuidade ou totalidade; características, portanto, da falsa
consciência social no âmbito do espaço produtivo. Lembrando-nos da discussão vista no
capítulo anterior, temos aí a quantificação do tempo, seu esgotamento enquanto tempo
histórico como elemento que evidencia a relação entre a práxis social e a produção da
consciência, com esta assumindo a forma do processo de abstração que ocorre no
interior da produção mercantil capitalistas.105 Ora, para Debord, no espetáculo de tipo
concentrado “a falsa consciência só mantêm seu poder absoluto pelo terror absoluto”
(SdE, § 107, itálico nosso). O fundamento desse terror estatal bem como sua estreita
relação com a falsa consciência simplesmente reforça a constatação do fundamento
econômico do espetáculo, pelo fato de que a função do regime que se instaura por meio
da gestão estatal é, como já dissemos, a de realizar a acumulação primitiva retardatária,
etapa histórica sob a qual se funda o desenvolvimento da economia dos países do centro
do sistema. Sendo assim, da mesma forma que seus concorrentes avançados no passado,
essa tarefa só pode ser alcançada pela máxima exploração do trabalho. É quando a
polícia, o braço armado do Estado, mostra então sua real função no interior do sistema:
a defesa da mercadoria e suas leis. É isso também que nos permite entender que dessa
mesma necessidade de acumulação bruta de capital surgem os próprios mecanismos de
explicação da burocracia e seu modo particular de existência enquanto mentira
organizada.

Em contradição com a falsa mensagem que sua ideologia apresenta – a de ser o


poder concentrado nas mãos do proletariado e, portanto, para o proletariado (“todo o
poder aos sovietes!”) – sua existência objetiva, tirânica, só pode se justificar nessa falsa
consciência enquanto “a classe invisível à consciência” (SdE, § 106). É essa a essência
da representação proletária, tão cruel frente ao conjunto da sociedade quanto face aos

105
A perda de consideração da totalidade do processo tal como se configura na consciência a partir da
prática se manifesta então no objeto que Gabel procura analisar sob três aspectos: “o da totalidade
concreta, central em axiologia e em dialética; o da temporalização valorizadora como corolário e como
desvalorizante do real; o da dialética axiológica da ‘consistência’ e enfim ‘precariedade’” (Gabel, J., A
falsa consciência, 1979, p. 155), concluindo a partir daí que “como fator de dissociação de totalidades, de
despersonalização e de dedialetização, a reificação econômica é simultaneamente um fator de
desvalorização” (ibidem).
60
próprios burocratas individuais, graças às contradições de sua existência enquanto
ideologia materializada:

Nenhum burocrata pode sustentar individualmente seu direito ao poder, porque


provar que ele é um proletário socialista seria manifestar-se como o contrário do
burocrata; e provar que é um burocrata é impossível, porque a verdade da
burocracia é não existir. Assim, cada burocrata fica na dependência absoluta de
uma garantia central da ideologia, que reconhece uma participação coletiva em seu
“poder socialista” de todos os burocratas que ela não esmaga (SdE, § 107).

É esse, portanto, o mecanismo geral da representação operária, a mentira


socialmente organizada: de um lado, o trabalhador que, alheio às decisões do processo
econômico no qual se encontra implicado dentro e fora do espaço laboral, vê como
única alternativa a de se submeter aos ditames do líder em exercício, encontrando aí a
compensação de uma vida reduzida ao nível do simples existir e da miséria do todo
coletivo esmagado pelo controle burocrático, este que lhe impõe a total sujeição pela
repressão de seu desejo e de sua consciência em suas possibilidades de ação no mundo.
A aceitação pelo trabalhador da mentira generalizada desse mundo deve ser então
entendida como a referida106 pseudorresposta a uma pseudocomunicação com o mundo
vivido, pela incapacidade de distinguir entre o verdadeiro e seu oposto em confronto
com a totalidade das imagens do falso que se afirma. Em uma palavra, sua necessidade
de representação surge como pseudoconsolo por estar condenado a um nível inferior de
existência, onde o que vigora é a falsa consciência, essa apatia social e historicamente
fabricada, policialmente mantida e ilusionisticamente reforçada – um dos aspectos da
moderna “pobreza produzida artificialmente” de que já nos fala Marx107em sua
Contribuição à crítica da filosofia do Direito de Hegel.

No outro polo dessa divisão absurdamente desigual de poderes, o burocrata só


existe como indivíduo nessa sociedade enquanto participante do poder ideológico
totalitário. Se a economia está submetida em sua totalidade ao controle do Estado,
resulta que somente enquanto personificação do Estado alguém pode ter qualquer
direito justificado sobre ela, o que é o mesmo que dizer que “se os homens podem ser
derrubados ou mudados, a função deve continuar sempre a mesma majestade
indiscutível”.108 No regime de caráter burocrático totalitário, portanto, estar sob a tutela

106
Discussão do tópico 1.3
107
Marx, K., Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 58.
108
Debord, G. L’explosion de l’ideologie en Chine, Paris: Gallimard, 2004, p. 50.
61
do Estado de forma alguma garante efetiva participação nele como membro do mesmo;
o que se justifica é simplesmente o poder supremo ideológico estatal sobre o individual.

Igualmente, acima de toda a hierarquia da representação burocrática está o líder.


Nele se justificam o terror e a ideologia totalitários, pois assim como o fazem de modo
disperso as múltiplas mercadorias do espetacular difuso em sua abundância mercantil,
quem comanda é quem pode concentrar em si todas as qualidades gerais a se desejar e,
portanto, aquele “em quem reside a única verdade prática da mentira no poder” (SdE, §
107).

Como a raiz da própria estrutura hierárquica é seu domínio sobre o econômico, o


líder pode se afirmar como representação da mercadoria total. Equivale a dizer que a
ele é garantida a equivalência do dinheiro em suas atribuições nas economias do centro,
justamente na medida em que a pobre acumulação de capital o afirma como único com
plenos poderes sobre a força de trabalho e os produtos da atividade produtiva em seu
conjunto. É o que lhe confere, portanto, o direito de “revenda” dos resultados da força
produtiva social em migalhas a seus subordinados. Stálin então aparece como a figura
que realiza em sua plenitude as atribuições dessa coerência do separado iniciada com o
leninismo, o regime do terror que “detém a gestão de uma realidade que a rejeita” (SdE,
§ 105). Como líder incontestado (e incontestável) do poder absoluto da burocracia, ele é
o único personagem inviolável da mentira da representação, capaz de decidir inclusive
sobre o destino dos demais componentes do quadro burocrático da organização estatal,
dado que a centralização sem a qual o regime não se torna possível é o que garante
também que “a repressão sem explicação e sem réplica pode em seguida descer
normalmente a cada estágio do aparelho, como simples complemento disso que foi
instantaneamente decidido no topo”.109

No que diz respeito ao conjunto da sociedade, a representação totalitária


enquanto representação da ideologia é também a expressão máxima da falsa consciência
em sua relação com essa ideologia tornada absoluta e que paira acima da sociedade.
Como tal, a ideologia do espetacular concentrado aniquila de tal forma o pensamento da
história “que a própria história, no nível do conhecimento mais empírico já não pode

109
Ibidem.

62
existir” (SdE, §108); é a instauração de um “presente perpétuo” em que tudo o que
existe só existe enquanto espaço de controle de sua polícia legitimadora.110 Sua verdade
aparece nesse irrealismo que se resume a uma única determinação: “tudo o que ela diz,
é” (SdE, § 105). Assim, a classe que existe como substituta da burguesia – logo, como
substituta da própria economia –, se mostra como mentira também no momento em que
contradiz a própria racionalidade particular do desenvolvimento econômico que ela tem
por função promover.

Com a perda dessa racionalidade indispensável à própria organização da


produção mercantil em seu desenvolvimento histórico, a ideologia deixa de ser simples
instrumento do poder totalitário para se afirmar com arrogância totalitária própria.
Como denuncia Debord, “a mentira que não é desmentida torna-se loucura” (idem) e é
essa mentira patológica que de fato evidencia todo o irrealismo da representação
espetacular burocrática. Ora, o líder alçado à condição de “única verdade prática da
mentira no poder” (SdE, § 107), a garantia da coesão da classe burocrática, não pode ser
outra coisa que o terrorismo do poder a serviço de seu Eu em confusão quase unitária
com seu Id, para retomarmos a análise em termos psicanalíticos. Ou como Debord nos
explica, desviando o Conceito hegeliano para sua concepção particular de psicanálise:

“O soberano do mundo possui a consciência efetiva do que ele é – a força


universal da efetividade – na violência destruidora que exerce contra o Eu de seus
súditos que lhe faz contraste”. É o próprio poder que define o terreno da dominação
e, ao mesmo tempo, é “o poder que devasta esse terreno” (idem).

É assim que a representação proletária autonomizada mostra o que é de fato: o


coração do espetáculo; seu segredo fundamental, ainda que inconfesso. Contudo, como
não poderia ser de outra forma, a necessidade do elemento racional que se perde em
contradição à recusa da racionalidade tem seus resultados no próprio fundamento da
sociedade: a arbitrariedade de decisões resulta na inferioridade deste modelo de
produção em relação ao modelo espetacular difuso na constatação de que “a burocracia
não pode resolver a questão da agricultura, e lhe é inferior na produção industrial,
planificada com base no irrealismo e na mentira generalizada” (SdE, § 108).

110
É importante não perder de vista que, para Debord, o espetacular concentrado é fundamentalmente
uma técnica de poder. Sua distinção e pontos comuns com fenômeno do fascismo foi o que tentei explicar
na nota 34 do capítulo anterior.

63
Mas essa série de contradições ainda não é suficiente para fragilizar o poder
ideológico concentrado. É a realização de sua tarefa – a da acumulação primitiva
retardatária – que, ao ser concluída, embora de modo mais acidentado e mais pobre que
nas economias do centro, o leva ao momento seguinte de sua evolução:

Quando a burocracia russa conseguiu se desfazer dos vestígios da propriedade


burguesa que entravavam seu império sobre a economia, desenvolver esta
economia para seu próprio uso e ser reconhecida no exterior entre as grandes
potências, ela quis desfrutar calmamente de seu próprio mundo suprimir dele o
componente arbitrário que se exercia sobre ela mesma. Então, ela denuncia o
stalinismo que lhe deu origem. Mas tal denúncia permanece stalinista, arbitrária,
inexplicada, e sempre corrigida, porque a mentira ideológica de sua origem nunca
pode ser revelada (SdE, § 109).

Apenas quando se atinge esse momento em que o desenvolvimento econômico


já não pode se manter dentro dos limites de cada Estado é que “o título de propriedade
ideológica em mãos da burocracia desmorona em escala internacional” (SdE, § 111). É
a partir de então que “cada burocracia no poder, ou cada partido totalitário candidato ao
poder que o período stalinista deixou em algumas classes operárias nacionais deve
seguir seu caminho” (idem), o que logicamente implica conflito. A polêmica russo-
chinesa surge, dessa forma, como o mais significativo exemplo desses embates, ainda
que o pseudocomunismo estatal já se encontrasse à época profundamente dividido, com
algo “em torno de vinte linhas independentes, da Romênia a Cuba, da Itália ao bloco de
partidos vietnamita-coreano-japoneses”.111

Sob a acusação mútua de culpa por crimes contra o proletariado, cada potência
apresenta suas razões para desmoralizar o antigo aliado: a Rússia afirmando a
possibilidade de coexistência pacífica com os EUA e criticando os esforços da China de
se armar nuclearmente, e esta, justificando seus avanços no setor militar pela
necessidade de defesa de sua soberania, especialmente com o estreitamento de relações
entre Rússia e EUA, entendido pela burocracia chinesa como esforço conjunto de
oposição ao crescimento da potência asiática.

Justamente em “Le point d’explosion de l’ideologie en Chine”, texto escrito


alguns meses antes da publicação de A sociedade do espetáculo e publicado na

111
Debord, G., Le point d’explosion de l’ideologie en Chine, In : La planéte malade, Paris : Gallimard,
2004, p. 46.
64
Internationale Situationniste nº 11 (agosto de 1967), Debord explica da seguinte
maneira a raiz do embate entre as classes burocráticas:

O internacionalismo não pode pertencer à burocracia como proclamação ilusória ao


serviço de seus interesses reais, como justificação ideológica entre outras, porque a
sociedade burocrática é justamente o reverso da comunidade proletária. A
burocracia é essencialmente um poder estabelecido sobre a possessão estato-
nacional [étatique nationale], e essa é a lógica de sua realidade que ela deve
finalmente obedecer, de acordo com os interesses particulares que impõem o nível
de desenvolvimento do país que ela possui.112

Por sua vez, a China enfrenta também no interior de sua própria burocracia as
contradições de sua classe ideológica dominante. Nesse contexto, a falsa Revolução
Cultural não é outra coisa que a tentativa de afirmação do poder de Mao frente a
tendências discordantes no interior do partido acerca dos rumos do controle da
economia, notadamente após a falha das políticas do plano do “Grande Salto Adiante”,
realizadas entre 1958 e 1960. Como explica Debord:

É certo que esse conflito se dá pela gestão da economia. É certo que o


desmoronamento das políticas econômicas sucessivas da burocracia é a causa da
acuidade extrema do conflito. A derrocada da política do “Grande Salto Adiante”
principalmente devida à resistência do campesinato – não apenas fechou a
perspectiva de uma decolagem ultravoluntarista da produção industrial, mas ainda
ensaiou forçosamente uma desorganização desastrosa, sensível durante vários
anos.113

Ainda quanto à necessidade da “revolução”, do porquê da cisão no interior da


classe ideológica na China, considerando que o modo de resolução de divergências da
burocracia no espetacular concentrado é, por excelência, sua depuração a partir do topo,
e tendo em vista que “seu modo de apropriação da economia a obriga a ser
centralizada”,114 Debord a explica com base nas particulares do desenvolvimento chinês
e na manutenção de certa tradição de administração em clãs e grupos semiautônomos:

A denúncia dos “reinos independentes”, lançada em janeiro pelos maoístas de


Pequim, evoca claramente esse fato, e o desenvolvimento dos problemas nos
últimos meses o confirma. É bem possível que o fenômeno da autonomia regional
do poder burocrático que, durante a revolução russa, não se manifesta senão ligeira
e episodicamente em torno da organização de Leningrado, tenha encontrado na
China burocrática bases múltiplas e sólidas, se traduzindo na possibilidade de uma
coexistência, no governo central, de clãs e clientelas detendo em propriedade direta

112
Ibidem, p. 48.
113
Ibidem, p. 53-54.
114
Ibidem, p 50.
65
regiões inteiras do poder burocrático, e passando entre eles compromissos sobre
certa base.115

Contudo Debord esclarece que o processo de guerra civil instalado a partir daí
serviu apenas para afirmar ainda mais as contradições do espetacular concentrado como
modelo ideológico, sendo que por volta de 1967 – portanto, um ano após o início da
Revolução Cultural empreendida por Mao – cerca de dois terços do território da China
não se encontrava sob o comando de Pequim. À época, ele interpretou esse fato como
parte de um processo que anunciava o auto esfacelamento da ideologia burocrática
como um todo, afirmando com isso que mesmo com todas as incertezas sobre o futuro
da China, a imagem do último poder burocrático-revolucionário havia se estilhaçado.116
Sua análise talvez estivesse correta, não fossem os resultados das lutas que se seguiram
na Europa durante os anos seguintes. Desse modo, a derrota da nova investida
revolucionária nos países capitalistas centrais deu a chance de o espetacular se
reinventar na figura do espetacular integrado. Mas antes de falarmos dele, temos ainda
de apresentar a outra face do espetáculo em sua antiga dupla configuração, a difusa.

2.2. O espetacular difuso

Sob o aspecto histórico-econômico, o espetacular difuso pode ser entendido


como resultado dos últimos avanços do sistema mercantil posteriores a seu período
imperialista, se tomamos essa etapa histórica como encerrada com a Primeira Guerra.
Ele é, portanto, o maior resultado do domínio da mercadoria no mundo, no momento em
que promove a produção de mercadorias em plenitude. Sua diferenciação mais evidente
em relação ao tipo concentrado é o papel secundário do poder de polícia estatal, de onde
se constata: primeiro, a aparente liberdade dos homens no sistema mercantil apenas se
efetiva como tal porque esconde sua realidade como liberdade real das “coisas”;117

115
Ibidem, p. 56-57.
116
Ibidem, p. 73.
117
De fato, basta observar que nesta tarefa de transformação do mundo segundo sua imagem e
semelhança, a mercadoria confere ao urbanismo um papel fundamental, o que fica evidente na afirmação
de Debord de que “essa sociedade que suprime a distância geográfica recolhe interiormente a distância,
como separação espetacular” (SdE, §171). A psicogeografia pode ser entendida como a proposta do
“estudo das leis precisas e dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente organizado ou não, em
função de sua influência direta sobre o comportamento afetivo dos indivíduos” (DEBORD, Guy.
Introdução a uma crítica da geografia urbana, Les lévres nues #6, set/1955). Embora entendida como
uma teoria situacionista, sua origem se deve, na verdade, à obra Formulaire pour un urbanisme nouveau,
escrita em 1953 por Gilles Ivan (pseudônimo do teórico político e ativista Ivan Chtcheglov, então apenas
um rapaz de 19 anos), que não chegou a se associar à IS.

66
segundo, se a ideologia aqui já não age sob o poder da violência legitimadora, é porque
sua característica e modo particular de funcionamento são de outra ordem.

No espetacular difuso, a representação ideológica não tem uma classe a


esconder, como ocorre no concentrado, o que ela esconde de fato é sua própria
existência enquanto processo. É nisso que se baseia a ilusão da escolha do consumidor
no universo de banalidades mercantis criadas e ofertadas em quantidade crescente e em
eficiência que tanto garantem a minimização do tempo de produção (e consumo) quanto
atestam que esta não se destina à satisfação de necessidades reais. O espetacular difuso,
desse modo, “acompanha a abundância das mercadorias, o desenvolvimento não
perturbado do capitalismo moderno” (SdE, § 65). É dessa forma que a ilusão do
consumo mercantil – como confirmação da vitória da lógica mercantil sobre o mundo
dos homens – é perfeitamente entendida e explicitada a partir da brilhante alusão de
Debord ao Espírito hegeliano no caminhar rumo à realização de sua autoconsciência; ou
seja, da mesma maneira que as particularidades do existir finito se esgotam no
desenvolvimento do espírito, “o que é particular da mercadoria gasta-se no combate, ao
passo que a forma mercadoria caminha para sua realização absoluta” (SdE, § 66).

Contudo, nessa comparação entre a categoria absoluta do idealismo hegeliano e


a objetividade do “agir” da mercadoria no mundo, reside uma diferença fundamental:
enquanto o Espírito realiza por si e para si a Razão Absoluta, o espetáculo se mostra, ao
contrário, como a realização da irracionalidade de um mundo objetivamente dominado
por coisas: o realizar-se da mercadoria no mundo, também em si e para si. Se o
espetáculo se estende a todo o mundo vivido, daí decorre que a lógica particular da
mercadoria – enquanto seu elemento fundamental – passa também à condição de razão
legisladora desse mundo:

Estando o mundo da mercadoria fundado sob uma oposição de classes, a


mercadoria é ela mesma hierárquica. A obrigação para a mercadoria, e, portanto,
para o espetáculo que informa o mundo da mercadoria, de ser a uma só vez
universal e hierárquica alcança uma hierarquização universal. Mas decorre do fato
que esta hierarquização deve permanecer não declarada, que ela se traduz em
valorizações hierárquicas não declaradas, porque irracionais, em um mundo de
racionalização sem razão.118

118
Debord, G. Le déclin et la chute de l’économie espectaculaire-marchande. Paris : Gallimard, 2004, p.
34.
67
A separação como lógica da sociedade moderna mostra desse modo que seu
limite não é apenas a divisão tirânica da burocracia pseudorrevolucionária, mas
enquanto fundada na mercadoria, só pode estar por toda parte. Segundo Debord, “com a
mercadoria, a hierarquia se recompõe sempre sob novas formas e se estende; seja entre
os dirigentes do movimento operário e os trabalhadores, ou entre os possuidores de dois
automóveis artificialmente distintos”.119 A razão burguesa (mercantil) se mostra assim
como o que de fato é: o irracionalismo fundado no domínio do abstrato sobre o sensível.

Embora Debord não afirme explicitamente, não seria exagero dizer que a ilusão
da escolha e a falsa liberdade do consumo mercantil reproduzem do movimento
revolucionário ocidental derrotado, enquanto derrotado, o mesmo caráter ativamente
passivo.120 É, na verdade, nisso que consiste a forma particular da representação
operária no espetacular difuso. A redução do proletariado (portanto, produtor) à
condição de comprador (consumidor) se estabelece aqui verdadeiramente como a
constituição de uma representação proletária autonomizada difusa, em que cada
produtor individual se representa a si mesmo na forma do consumidor, estabelecendo
justamente nisso a separação que, segundo Debord, é o “alfa e o ômega” do espetáculo
moderno (SdE, § 25). Ora, se consideramos a contrapartida desse fenômeno na esfera
político-jurídica, isso nos permite entender os sindicatos e os partidos, afirmando as
necessidades e demandas de inserção dos trabalhadores na realidade do mercado,
também como supostas instituições representantes do proletariado.

119
Ibidem, p. 35.
120
Ainda que, como já chamamos atenção, a vitória da socialdemocracia sobre o movimento proletário
alemão tenha sido decisiva para a constituição do modelo ideológico-representativo do espetacular
concentrado. Tal fato se dá porque a derrota da revolução nesse país, representante do bloco de
economias avançadas, foi também argumento decisivo de justificativa da contrarrevolução bolchevique
em sua política de Estado centralizado, apresentando-a então como fundamental no período de transição,
ou seja, da revolução socialista enquanto não efetivada em nível global. Sendo assim, e sem contrariar a
análise de Debord, proponho aqui uma leitura da história do movimento socialdemocrata alemão como a
contrapartida política, em grande medida, da representação difusa analisada na SdE, esta que como
sabemos, está centrada na análise do domínio da mercadoria como objeto de consumo, representante de
‘pseudonecessidades’ (Debord) e equivalentes falsas satisfações. Ora, se Debord foca no ponto de vista
do consumo para explicar o espetáculo em sua forma difusa, o faz porque seu desenvolvimento é
expressão direta da acumulação de capital já em grau bastante avançado e num momento em que as
economias do centro – especialmente a americana, o principal alvo da crítica – ainda viviam seu apogeu.
Desse modo, é justamente nessa aproximação que a Alemanha tem com os EUA, na condição de
economia desenvolvida, que fazemos esse paralelo, tomando o modelo representativo socialdemocrata
para ajudar a explicar a representação difusa em seu aspecto de diferenciação da representação
espetacular concentrada em seu aspecto mais essencial: a então ausência da violência legítima estatal
como instrumento ideológico.
68
Se Debord diz que não se pode fazer uma oposição abstrata entre o espetáculo
e a atividade social efetiva, tendo em vista que “esse desdobramento também é
desdobrado” (SdE, § 8), se pode concluir daí que da mesma forma que não é o produtor
que se apropria do produto de seu trabalho, mas sim o consumidor enquanto categoria
separada, também o operário na realidade do espetacular difuso só pode existir enquanto
categoria política crítica aceitável pela representação; é esse o modelo mais importante
do falso vivido político, sua imagem por excelência. Em outras palavras, se “para levar
os trabalhadores ao status de produtores e consumidores ‘livres’ do tempo-mercadoria, a
condição prévia foi a expropriação violenta do tempo deles” (SdE, § 159), expropriação
fundamental que o espetáculo faz retornar no tempo pseudocíclico do consumo
mercantil, da mesma forma a representação proletária nos sindicatos e partidos não é
outra coisa que a falsa imagem – compensatória – da incapacidade dos indivíduos de
materializarem suas reais demandas de transformação do mundo, o que se materializa
precisamente no falso consolo do consumo mercantil.

Se for assim, acreditamos poder fazer uma relação entre a representação


autônoma em sua forma difusa com o movimento operário alemão à época da Segunda
Internacional, mais precisamente o partido socialdemocrata alemão, teoricamente a mais
organizada e poderosa instituição política isolada nos anos que antecederam a Primeira
Guerra.

Por sua forte presença no parlamento nacional, bem como controle de sindicatos
fortemente organizados e instituições diversas de amparo ao trabalhador, a
socialdemocracia alemã conseguiu se constituir em modelo unânime para os partidos de
esquerda de mesma orientação dos demais países componentes da Internacional.
Contudo, sua força enquanto movimento revolucionário organizado não era mais que
aparente e sua força real advinha não do confronto, mas de sua acomodação às
estruturas que teoricamente afirmava combater. No centro da ideologia socialdemocrata
estava a falsa ideia de transição paulatina rumo ao socialismo, transição esta que seria
alcançada por meio de sucessivas conquistas do movimento trabalhista junto à estrutura
estatal vigente – por meio dos líderes representantes do partido –, de maneira que num
determinado ponto evolutivo estariam essas conquistas tão consolidadas que a transição
se daria sem a necessidade de revolução.

69
É interessante ainda observar que foi esse mesmo modelo que assumiu o novo
governo na Rússia pós-revolucionária com o partido bolchevique. Sobre esse ponto
falaremos ainda no capítulo seguinte, mas gostaríamos de adiantar que, como doutrina
política, o partido liderado por Lênin não passou de uma postura radicalizada dessa
mesma visão no momento em que concebia o processo revolucionário como dirigido
por um grupo centralizado separado que lhe servisse de liderança, posição que o sempre
astucioso Lênin defende em Que fazer? nos seguintes termos:

Os operários, já dissemos, não podiam ter ainda a consciência socialdemocrata.


Esta só podia chegar até eles a partir de fora. A história de todos os países atesta
que, pelas próprias forças, a classe operária não pode chegar senão à consciência
sindical, isto é, à convicção de que é preciso unir-se em sindicatos, conduziu a luta
contra os patrões, exigir do governo essas ou aquelas leis necessárias aos operários
etc. Quanto à doutrina socialista, nasceu das teorias filosóficas, históricas,
econômicas elaboradas pelos representantes instruídos das classes proletárias, pelos
intelectuais. Os fundadores do socialismo científico, Marx e Engels, pertenciam
eles próprios, pela sua situação social, aos intelectuais burgueses.121

Em suma, a força do movimento socialdemocracia não pode ser entendida


desarticulada da sua constituição enquanto ideologia representativa. Isso fica ainda mais
evidente no momento em que estoura a Primeira Guerra e a fração verdadeiramente
revolucionária surgida no interior do movimento, a Liga Espartaquista, ao denunciar o
partido em sua oposição à classe operária se vê fortemente perseguida.

“Na revolução atual, as tropas de proteção da antiga ordem não agem sob a
insígnia das classes dirigentes, mas sob a bandeira de um ‘partido socialdemocrata’”
(SdE, § 101) é como Rosa Luxemburg, um dos nomes mais ativos do movimento,
denuncia seus antigos companheiros na Rote Fahne de 21 de dezembro de 1918, com
Debord concluindo o seguinte acerca das palavras da grande revolucionária polonesa:

Assim, alguns dias antes de sua destruição, a corrente radical do proletariado


alemão descobria o segredo das novas condições criadas por todo o processo
anterior (para o qual a representação operária contribuíra muitíssimo): a
organização espetacular da defesa da ordem existente, o reino social das aparências
onde já nenhuma “questão central” pode ser colocada “aberta e honestamente”.
Nesse estágio, a representação revolucionária do proletariado tornara-se ao mesmo
tempo o fator principal e o resultado da falsificação geral da sociedade (idem).

121
Lênin, V. I., Que fazer?, São Paulo: Hucitec, 1988, p. 24-25.

70
Analisando o outro lado disso que acreditamos poder apresentar como a
representação difusa em seu aspecto político, isto é, o do proletariado, poderíamos dizer
que essa separação entre o movimento político real é também um fator de explicação da
hegemonia da mercadoria como instrumento de representação ela mesma. De fato, isso
não invalida a compreensão de Debord de que no próprio movimento do trabalho
alienado e do retorno de seus resultados como “abundância da despossessão” (SdE, §
31) está a gênese da consciência antidialética espetacular. A própria autonomia da
representação política tem também nessa complexa relação sua explicação.

No que diz respeito à consciência reificada (falsa consciência) nessa forma


particular do espetáculo, é fato que ela ganha aqui contornos diferenciados em relação a
seu par, o espetacular concentrado. Ainda que se mantenha sua essência enquanto
produto direto do trabalho alienado, no entanto, é próprio ao espetáculo de tipo difuso
que os aspectos dessa passividade ganhem ressignificação no “tempo livre” dos
indivíduos, o que se reflete também na forma particular de percepção do tempo nessa
sociedade. Dessa forma, à medida que o tempo vivido fora do espaço de trabalho ganha
nova consideração e o papel social da polícia não tem a mesma virulência que no
espetacular de tipo concentrado, a consciência dialética pode evidenciar sua
imediatidade na apreensão do tempo enquanto tempo pseudocíclico do consumo. É a
própria falsa afirmação da autonomia do consumidor no pseudohumanismo mercantil:

Subitamente lavado do absoluto desprezo com que é tratado em todas as formas de


organização e controle da produção, ele continua a existir fora dessa produção,
aparentemente tratado como adulto, com uma amabilidade forçada, sob o disfarce
do consumidor. Então, o humanismo da mercadoria se encarrega dos “lazeres e da
humanidade” do trabalhador, simplesmente porque agora a economia política pode
e deve dominar essas esferas como economia política (SdE, § 43).

Em toda sua complexidade, compreender o espetacular difuso é compreender


tanto a gerência do tempo dentro e fora do espaço de trabalho, como o mundo que ele
produz; sua própria forma particular de ideologia espetacular materializada, a ideologia
da abundância mercantil. O tempo pseudocíclico e o urbanismo podem ser então
entendidos como par complementar, em que este se mostra como instrumento do
espetáculo que se faz ver e oferece sua pungência à contemplação, enquanto o primeiro
afirma a própria falsa liberdade da contemplação.

71
Debord afirma que “o tempo pseudocíclico é o tempo espetacular, tanto como
consumo de imagens, em sentido restrito, como imagem do consumo do tempo, em toda
sua extensão” (SdE, § 153). O lazer aparece assim como “imagem social do consumo do
tempo” (idem). Para além dos blocos de tempo espacializados que regem uma jornada
de trabalho semanal e que caracterizam o tempo artificialmente periodizado da
produção capitalista, o lazer aparece no espetacular difuso não como simples período de
descanso entre uma jornada e outra, mas como a especialização por excelência do uso
desses blocos de tempo, ou seja, sua falsa afirmação enquanto espaço de momentos e
experiências qualitativos. Todavia, contrariamente ao que esse tempo pseudocíclico
falsamente afirma, para Debord, o verdadeiramente vivido “está em oposição direta ao
ritmo pseudocíclico do subproduto consumível desse tempo” (SdE, § 157).122

O fundamento do tempo pseudocíclico permite ainda que ele mesmo possa se


afirmar como mercadoria, e, enquanto tal, como “matéria prima para outras
mercadorias” (SdE, § 151). É assim que diferentes especializações da atividade ociosa
possam ser apresentadas em conjunto, desmentindo sua banalidade por meio da
afirmação no simples somatório, na lógica mercantil do quantitativo. O turismo aparece
então como exemplo bastante significativo, pois se trata de um catálogo apologético de
espaços convertidos em objetos de consumo em escala ampliada. Por meio dele,
atividade de “circulação humana considerada como consumo” (SdE, § 168), diferentes
espaços são apresentados como “especiais” sob os mais diversos distintivos e ganham,
assim, roteiro definido e acesso liberado por meio de determinada soma em dinheiro.
Compreende-se dessa forma a razão de ser de uma série de fenômenos aparentemente
contraditórios, mas que têm, todos eles, suas raízes na própria falsa disputa de
mercadorias que não fazem outra coisa que afirmar em todos os níveis a mercadoria
total como senhora absoluta do mundo:

122
Conclui-se assim que essa falsa representação de felicidade não pode ter qualquer relação com a
memória, no sentido de que esta seja sua ligação um passado verdadeiramente vivido. Nas palavras de
Debord: “esse vivido individual da vida cotidiana separada fica sem linguagem, sem conceito, sem acesso
crítico a seu próprio passado, não registrado em lugar nenhum. Ele não se comunica. É incompreendido e
esquecido em proveito da falsa memória espetacular, do não-memorável” (SdE, § 157). Para ele, portanto,
uma consideração sobre o tempo no espetáculo não pode prescindir de sua ligação essencial com a
linguagem, o quer dizer que a consciência histórica se relaciona diretamente no uso prático da linguagem
sob a forma do diálogo. É assim que essa categoria aparece como elemento fundamental e inovador de
sua teoria revolucionária, questão que também discutiremos detalhadamente no capítulo seguinte ao
discutirmos os Conselhos.

72
A falsa escolha em meio à abundância espetacular, escolha que reside na
justaposição de espetáculos concorrentes e solidários e na justaposição dos papéis
(principalmente expressos e incorporados por objetos) que são ao mesmo tempo
exclusivos e imbricados, desenvolve-se como luta de qualidades fantasmáticas
destinadas a açular a adesão à banalidade quantitativa. Renascem assim as falsas
oposições arcaicas, regionalismos ou racismos encarregados de transfigurar em
superioridade ontológica fantástica a vulgaridade dos lugares hierárquicos no
consumo. Recompõe-se a interminável série de confrontos ridículos, que
mobilizam um interesse sub lúdico, espécie de esporte eleitoral. Onde se instalou o
consumo abundante, aparece entre os papéis ilusórios, em primeiro plano, uma
oposição espetacular entre a juventude e os adultos: porque não existe nenhum
adulto, dono da própria vida, e a juventude, a mudança daquilo que existe, não é de
modo algum propriedade desses homens que agora são jovens, mas sim do sistema
econômico, o dinamismo do capitalismo. São as coisas que reinam e se tornam
jovens; que se excluem e se substituem sozinhas (SdE, § 62).

À frente de todas essas pseudovalorizações do banal está a figura da vedete (ou


agente) do consumo, verdadeira “especialização do vivido aparente” (SdE, § 60). A
vedete, de maneira similar à figura do líder no espetacular concentrado, agrega em si
todas as qualidades às quais deve aspirar o espectador, que, enquanto tal, acredita na
felicidade prometida pelo sistema mercantil superdesenvolvido. Todavia, “como vedete,
o agente do consumo levado à cena é o oposto do indivíduo, é o inimigo do indivíduo
nele mesmo tão evidentemente como nos outros” (SdE, § 61). Como seu equivalente no
espetacular concentrado, o agente do espetacular difuso personifica em sua plenitude a
mentira ideológica; sua existência se justifica na falsidade do mundo em que se vive, e
justifica esse mundo – “num caso, é o poder governamental que se personifica em
pseudovedete; no outro, é a vedete do consumo que se submete a plebiscito como
pseudopoder sobre o vivido” (SdE, § 60).

Em seu conjunto, todas as mercadorias que concorrem entre si por afirmação


frente à passiva figura do consumidor encontram, por meio do agente do espetáculo, sua
unidade total, superando qualquer diferença entre si, pois “embora represente
exteriormente tipos de personalidade, mostra cada um desses tipos como se tivesse igual
acesso à totalidade do consumo, e também como capaz de encontrar a felicidade nesse
consumo” (SdE, § 61). Dessa maneira se consolidam os diferentes modos de existência
totais: estilos de vida, gostos musicais, maneiras de vestir e mesmo de se interpretar o
mundo do qual fazem parte ganham assim sua confirmação, afirmando desse modo, de
maneira clara, a própria mercadoria, em todas as suas especializações, como o centro
inviolável de onde emana a ideologia particular espetacular difuso (em oposição à

73
ideologia do espetacular concentrado, materializada sob o poder de polícia estatal), em
seu conhecido e argucioso domínio suprassensível sobre o mundo real.

No que se refere ao urbanismo, este pode ser entendido, segundo Debord, como
“a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver
sua lógica de dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço
como seu próprio cenário” (SdE, § 169). É a materialização da ideologia em sua
expressão mais objetiva: o mundo que se vê é o mundo que ela faz ver. A necessidade
capitalista de “glaciação da vida” (SdE, § 170) se satisfaz, portanto, no urbanismo
afirmado como a predominância do espaço sobre o tempo, ou seja, “a realização da
tarefa permanente que salvaguarda o poder de classe: a manutenção da atomização de
trabalhadores que as condições urbanas de produção tinha perigosamente reunido”
(SdE, § 172). Nesse sentido é possível entender fenômenos como a “ditadura do
automóvel” e as “hiperfábricas de distribuição” (Debord): os supermercados. Além
disso, os grandes prédios residenciais aparecem aqui como expressão da “decisão
autoritária que planeja abstratamente o território como território da abstração” (SdE, §
173) e o urbanismo se confirma, portanto, como “a própria técnica da separação” (SdE,
§ 171), o “campo privilegiado” da luta travada “contra todos os aspectos da
possibilidade do encontro” (SdE, § 172). De fato, ainda que os grandes templos do
consumo promovam uma “recomposição parcial da aglomeração” (SdE, § 174), só o
fazem enquanto “primeiro plano da dissolução geral que levou a cidade a se consumir a
si mesma” (idem).

Por fim, podemos concluir que acima das distinções entre suas duas formas,
estas que tratam em verdade da glorificação da mercadoria e da confirmação de seu
poder no controle sobre o mundo vivido, o espetáculo mostra sua unidade, de fato, na
ideologia total da independência do poder econômico afirmado sobre a falsa consciência
generalizada por meio da representação operária autônoma. Compreender essa relação
nos permite não apenas entender o funcionamento do domínio espetacular em seus
aspectos objetivo e subjetivo – aspectos que, bem entendidos, na verdade não podem ser
pensados separadamente –, mas compreender de maneira precisa que na gênese do
espetáculo está a derrota das lutas de uma época, o primeiro quarto do século XX. Em

74
uma palavra, a ascensão do espetáculo, portanto, representa o esvaziamento do
movimento revolucionário em seu aspecto revolucionário.

Mas se o sistema capitalista em sua forma espetacular, no momento de seu


surgimento, pôde esgotar as forças negadoras da ordem assimilando-as e desmoralizar o
pensamento revolucionário de então, o que de fato ele nunca pôde controlar foi a
própria revolta espontânea contestando sua lógica. Esse é na verdade, para Debord, o
fundamento de toda a crítica, e, desse modo, a teoria crítica só tem sentido como
expressão das lutas que efetivamente se dão no campo real. Ora, segundo ele, “as duas
críticas se explicam uma pela outra; e cada uma é sem a outra inexplicável”.123 É assim
que, à crítica teórica do espetacular difuso, Debord pode ver sua contrapartida prática de
maneira mais manifesta nos levantes do bairro residencial de Watts, no sul de Los
Angeles, na Califórnia. Ali, para a consternação geral tanto da direita quanto da
esquerda instituídas nos EUA e fora, entre os dias 13 e 16 de agosto de 1965 se dá uma
série de violentas sublevações espontâneas por parte da população local, em sua maioria
negra, contra suas próprias condições de vida. Para Debord se trata da própria teoria da
sobrevida (survie) e do espetáculo “clarificada e verificada por esses atos que são
incompreensíveis à falsa consciência americana”,124 o que o leva a concluir que a
revolta de Los Angeles deve ser entendida justamente como “uma revolta contra a
mercadoria, contra o mundo da mercadoria e do trabalho-consumidor hierarquicamente
submisso às medidas da mercadoria”.125

As premissas históricas para a sublevação incluíam não apenas as condições de


pobreza a que estavam submetidos os habitantes daquela localidade, mas a condição
particular dos próprios negros no interior da sociedade onde o espetáculo já então se
mostrava em sua forma mais aperfeiçoada, o que Debord explica da seguinte forma:

Os negros de Los Angeles são melhores pagos que em qualquer parte nos Estados
Unidos, mas eles se encontram lá ainda mais separados que em outro lugar da
riqueza máxima que se espalha precisamente na Califórnia. Hollywood, o pólo do
espetáculo mundial, está em sua vizinhança imediata. A eles se promete que
ascenderão, com paciência, à prosperidade americana, mas eles veem que esta
prosperidade não é uma esfera estável, mas uma escala sem fim. Quanto mais eles
sobem, mais se afastam do cume, porque são desfavorecidos desde o início, porque
123
Debord, G. Le déclin et la chute de l’économie espectaculaire-marchande. Paris : Gallimard, 2004, p.
17.
124
Ibidem.
125
Ibidem, p. 19.
75
são menos qualificados, logo mais numerosos entre os desempregados, e
finalmente porque a hierarquia que os esmaga não é somente aquela do poder de
compra como fato econômico puro: ela é uma inferioridade essencial que lhes
impõe em todos os aspectos da vida cotidiana os costumes e os preconceitos de
uma sociedade onde todo poder humano está alinhado sob o poder de compra.126

As condições dos negros de Watts são, portanto, evidência da própria ditadura


mercantil em sua característica organizacional, pois “a riqueza individual não fará mais
que um negro rico porque os negros em seu conjunto devem representar a pobreza de
uma sociedade de riqueza hierarquizada”.127 O levante espontâneo, com seus saques, se
constitui, com isso, da tomada ‘ao pé da letra’ das falsas promessas de realização da
felicidade da sociedade espetacular: no desprezo do valor de troca das mercadorias, os
insurrectos querem apropriar-se diretamente dos valores de uso. É assim que Debord
pode afirmar que a sociedade da abundância mercantil encontra sua resposta na
pilhagem, pois o que ela apresenta não é a abundância de riqueza humana, mas da falsa
riqueza, do puro quantitativo de mercadorias. Segundo ele, o desejo imediato se justifica
no querer fazer uso de forma imediata, e desse modo, a pilhagem, o saque, aparece
como a precisa rejeição do princípio mercantil que rege a sociedade da falsa
abundância:

A pilhagem do bairro de Watts manifesta a realização mais sumária do princípio


bastardo: “a cada um segundo suas falsas necessidades”, as necessidades
determinadas e produzidas pelo sistema econômico que a pilhagem precisamente
rejeita. Mas do fato de que esta abundância é tomada ao pé da letra, se adere de
imediato, e [ela] não é mais indefinidamente perseguida no curso do trabalho
alienado e do aumento de necessidades sociais diferenciadas, os verdadeiros
desejos se exprimindo já na festa, na afirmação lúdica, na potlatch da destruição.128

Fora da lógica do mercado, o fetiche pode mostrar seu irrealismo e a mercadoria


expor sua fragilidade enquanto coisa inanimada. Como bem observa Debord, “o homem
que destrói as mercadorias mostra sua superioridade humana sobre as mercadorias. Ele
não continuará prisioneiro das formas arbitrárias que se revestiram da imagem de sua
necessidade”.129 Mas, por outro lado, é óbvio que a contestação consequente do fetiche
mercantil evidencia também os mecanismos do poder de manter seu reino de mentiras.
A polícia não se constitui em recurso unicamente do espetacular concentrado, ainda que
por seu modus operandi nesta forma particular a violência estatal possa de maneira

126
Ibidem, p. 26-27.
127
Ibidem, p. 27.
128
Ibidem, p. 20.
129
Ibidem, p. 20 e 23.
76
errônea estar associada simplesmente àqueles espaços marcados pela carência e falta de
condições. No espetacular difuso, o poder de polícia, na verdade, não é expressão do
que falta a essa sociedade, mas do que ela não deve atingir: a contestação de sua lógica.
Ora, pergunta Debord, “o que é um policial? É o servidor ativo da mercadoria, é o
homem totalmente submisso à mercadoria, para a ação da qual tal produto do trabalho
humano permanece uma mercadoria onde a vontade mágica é a de ser pago”.130

Watts foi apenas uma das primeiras – ou talvez a primeira das – grandes
manifestações de contestação do espetáculo surgidas a partir do interior do próprio
modelo difuso. Muitas outras se seguiram nos anos seguintes e confluíram em mais uma
etapa decisiva da luta de classes de nossa época. A derrota dos contestadores, no
entanto, teve como resultado o reforço do regime espetacular na superação da antiga
divisão. É isso que tratamos no tópico seguinte.

2.3. O espetacular integrado

Resta-nos então discorrer sobre a fusão das duas formas do espetáculo, resultado
do segundo momento decisivo das lutas revolucionárias no século XX, este que pode
ser enquadrado entre fins da década de 1960 e meados da seguinte. Como análise das
derrotas dessa nova tentativa e mais precisamente dos desdobramentos subsequentes do
espetáculo, Debord nos deixou seus Comentários sobre a sociedade do espetáculo
(1988), mesmo que em textos posteriores à SdE já tenha dado indicativos dessas
mudanças, ainda que não de forma definitiva e sistemática.

Pela forma como foram escritos, Os Comentários aparecem ainda hoje como
motivo de controvérsia para alguns comentadores, como Celso Frederico (2010) e João
Freire Filho, a quem faz referência, que acreditam ver ali a total ausência do “otimismo”
dos escritos de 1967. No caso do primeiro autor em particular – que dedicou seu
capítulo de Marx, Weber e o marxismo weberiano (escrito em parceria com Francisco
Teixeira) a uma breve análise da obra do autor de A sociedade do espetáculo – há a
interpretação de que entre uma e outra obra a crítica da mercadoria havia ficado em
segundo plano, o que expressam no seguinte argumento: “a transparência do mundo
mercantil, com seu brilho cativante, sua sedutora fantasmagoria” da SdE haveria dado

130
Ibidem, p. 24.
77
lugar “a um nebuloso sistema regido pelo segredo” nos Comentários. Ora, me parece
que essa polêmica não se justifica. Senão vejamos: o “sistema regido pelo segredo” não
é outro além daquele que tem a mercadoria como elemento nuclear. Como temos
procurado demonstrar aqui durante todo o trabalho, a própria mercadoria como núcleo
deste sistema é o maior dos segredos da ordem vigente. Desse modo, se Debord faz
“referências obsessivas a ‘sociedades veladas’, arquivos confidenciais, ‘estatísticas
incontroláveis’, especialistas em vigilância, complôs, boatos programados, atividades de
serviços secretos, maquinações da polícia e de ‘gente da mídia’”, o que está em
discussão aí não é uma “crítica paranoica da sociedade do espetáculo”, mas a própria
descrição detalhada do espetáculo em sua forma integrada, para além de uma
apresentação teórica desconexa da realidade. O aparente pessimismo que se intui dessa
exposição “paranoica” do novo momento do espetáculo se explica nas próprias
condições objetivas da sociedade, que tinha seus movimentos de negação em completo
recuo face à última derrota. Ademais, já no “Prefácio à 4ª edição italiana de Sociedade
do espetáculo”, escrito em 1979, Debord deixa claro o seguinte:

Quem ler com atenção este livro verá que ele não oferece nenhum tipo de garantia
sobre a vitória da revolução, nem sobre a duração de suas operações, nem sobre as
rudes vias que ela terá de percorrer, e menos ainda sobre sua capacidade, às vezes
gabada levianamente, de conduzir a uma perfeita felicidade.131

Como ele explica ainda no mesmo texto, nos anos de 1950 “as velhas linhas de
defesa que haviam barrado as ofensivas anteriores da revolução social estavam
descontroladas e corrompidas”132, o que deu a IS “a ocasião de tentar mais uma”.133
Vencida essa tentativa, o que se confirma quando o lemos reafirmando a verdade de
suas teses na “Advertência à edição francesa de 1992”, última lançada com ele ainda em
vida, é a certeza consciente de um estratego acerca da indefinição da luta a que dedica
suas forças. Debord parece confirmar assim o penúltimo parágrafo (§ 220) de A
sociedade do espetáculo onde afirma que “a crítica que vai além do espetáculo deve
saber esperar”, não compactuando com o reformismo ou qualquer ação comum a partir
da “vontade abstrata da eficácia imediata”.

131
Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo. In: A sociedade do espetáculo, Rio de
Janeiro: Contraponto, 1997, p. 161-162. O itálico é nosso.
132
Ibidem, p. 151.
133
Ibidem.
78
Portanto, os Comentários não tratam de uma justificativa da validade da teoria
apresentada sobre os acontecimentos que tiveram no maio de 1968 francês sua
manifestação mais expressiva ou de desmentir a mesma. Como o próprio Debord
explica, “esses comentários não tem preocupação moral. Não se referem ao que é
desejável, nem preferível. Limitam-se a registrar o que é” (Coment., § II).

Dito isso, já sabemos que, quanto a seu conteúdo, os Comentários tratam de


analisar os desdobramentos do espetáculo a partir dos anos 70, partindo da constatação
mais fundamental de sua continuidade: a fusão das formas anteriores do espetáculo no
que o autor da SdE chamou de espetacular integrado.

Analisando sua constituição, Debord entende que o papel que coube à Rússia e a
Alemanha na instauração do regime espetacular concentrado a partir da derrota das
tentativas de suas revoluções, foi ocupado por França e Itália na experimentação desse
novo modelo, fato devido a uma série de fatores em comum entre os dois países. São
eles: o “papel importante do partido e sindicato stalinistas na vida política e intelectual,
fraca tradição democrática, longa monopolização do poder por um único partido
governamental, necessidade de acabar com a contestação revolucionária surgida de
repente” (Coment., § IV). Esse fato, Debord assinala já no prefácio da quarta edição
italiana de A sociedade do espetáculo, lançada em 1979, confirmando-o posteriormente
nos Comentários. No prefácio, por exemplo, ele afirma que

Foi possível ver a falsificação tornar-se mais densa e crescer até a fabricação das
coisas mais banais, qual bruma pegajosa que se acumula no nível do solo de toda a
existência humana. Foi possível ver, até a loucura “telemática”, a pretensão do
absoluto controle técnico e policial sobre o homem e sobre as forças naturais,
controle cujos erros aumentam tão depressa quanto os recursos que movimenta. Foi
possível ver a mentira estatal se desenvolver em si e por si, no perfeito
esquecimento de seu vínculo conflituoso com a verdade e a verossimilhança, a
ponto dessa mentira descrer de si mesma e se substituir de hora em hora.134

Sem perder de vista nosso objeto, chamo atenção para como não deixa de ser
curiosa a maneira pela qual o próprio espetáculo tratou de assimilar essa crítica,
desconsiderando o que ela tem de fundamental e se concentrando em categorias como
“mentira” e “falsificação”. Esvaziadas de seu sentido, elas acabam por testemunhar nos
Comentários a origem da simplificação que até hoje se verifica numa série de leituras

134
Ibidem, p. 153.
79
superficiais da SdE, especialmente dentro da Academia, reduzindo a crítica da
sociedade mercantil superdesenvolvida à noção de espetáculo como crítica dos meios de
comunicação superdesenvolvidos. Mas o próprio Debord já atentava para esse fato ao
explicar que

Em vez de espetáculo, preferem chamá-lo de mídia. Com isso, querem designar um


simples instrumento, uma espécie de serviço público que gerencial com imparcial
“profissionalismo” a riqueza da comunicação de todos por mass media,
comunicação que teria enfim atingido pureza unilateral, na qual se faz calmamente
admirar a decisão já tomada (Coment., § III).

Na verdade, acerca dessa possibilidade de redução da crítica do espetáculo à


crítica dos meios de comunicação em seu papel e desenvolvimento contemporâneos,
Debord parece já estar ciente nos escritos de 1967, quando afirma, contra qualquer
conclusão precipitada acerca de sua afirmação do espetáculo como um “relação social
mediada por imagens” (SdE, § 4), que os meios de comunicação de massa são todavia
apenas sua “manifestação superficial mais esmagadora” (SdE, § 24). Por isso mesmo,
nos Comentários ele não poderia ser mais direto ao explicar as operações fundamentais
do espetáculo, relacionadas com seu aspecto midiático ou não. Segundo ele, “o que é
comunicado são ordens” (Coment., III), concluindo, por conseguinte, que, em seguida e
“de forma altamente harmoniosa, os responsáveis por essas ordens vão dizer o que
pensam delas” (idem). Trata-se, na verdade, de denunciar o poder do espetáculo em seu
novo momento aludindo a sua operação mais fundamental: construir a memória
superficial do mundo de acordo com seus preceitos.

Inicialmente, Debord explica o espetacular integrado como resultado da adesão


das técnicas de poder de repressão dos governos espetaculares concentracionais do
oriente ao regime totalitário do livre mercado pseudodemocrático ocidental, este que
atende de forma plena às demandas da mercadoria. Justamente quatro anos depois, na
“Advertência à edição francesa de 1992”, ele confirma essa tendência à unificação cada
vez mais sólida, afirmando que

Essa vontade de modernização e de unificação do espetáculo, ligada a todos os


outros aspectos da simplificação da sociedade, levou em 1989 a burocracia russa a
converter-se de repente, como um só homem, à presente ideologia da democracia:

80
isto é, à liberdade ditatorial do Mercado, temperada pelo reconhecimento dos
direitos do homem espectador.135

Ele então esclarece que, “se o mundo pôde enfim proclamar-se oficialmente unificado é
porque essa fusão já se realizara na realidade econômico-política do mundo inteiro”.136
De fato, já a partir de 1985 a U.R.S.S. sob o comando de Gorbatchev promove uma
série de mudanças no sentido de preparar a transição ao modelo ocidental, medidas de
ordem econômica e política que ficaram conhecidas como Perestroika e Glasnost. As
duas medidas combinadas, como se sabe, foram motivo de uma série de conflitos no
interior da própria União Soviética e falharam em promover seus objetivos, fato que se
explica parcialmente na oposição de interesses no interior do partido comunista.
Todavia, ainda que a transição econômica e política tenha se dado de maneira
complicada, o espetáculo realizara de maneira muito menos enredada sua transição no
tocante às técnicas de controle do proletariado.

Essa fusão, por sua vez, não se dá como simples soma de elementos, mas na
mudança das funções anteriores de cada forma, com Debord nos explicando que, “no
lado concentrado, por exemplo, o centro diretor tornou-se oculto: já não se coloca aí um
chefe conhecido, nem uma ideologia clara. No lado difuso, a influência espetacular
jamais marcara tanto quase todos os comportamentos e objetos produzidos socialmente”
(Coment., § IV). Segundo Debord, essas mudanças se explicam a partir da alteração da
tese 105 da SdE, onde ele em 1967 afirmara o seguinte, a respeito do espetacular
concentrado: “a ideologia que aqui se materializa não transformou economicamente o
mundo, como o capitalismo chegado ao estágio de abundância; ela apenas transformou
policialmente a percepção”. Sobre o novo estágio, o do espetacular integrado reforçado
com a dissolução da antiga separação entre o difuso e o concentrado, poderia ser dito
agora então da ideologia que ela “‘transformou economicamente o mundo’, ao mesmo
tempo que ‘transformou policialmente a percepção’”.137

Vale como observação o fato de que essa retificação do § 105 de A sociedade do


espetáculo, longe de contradizer seu escrito de 1967, parece na verdade evocar o
pressuposto hegeliano que entende o resultado como explicação do percurso, nos

135
Debord, G., Advertência à edição francesa de 1992, In: op. cit. p. 11.
136
Ibidem, p. 10.
137
Debord, G., Advertência da edição francesa de 1992. In: A sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997, p. 10.
81
permitindo assim compreender como no espetacular integrado o componente ideológico
da dominação do capital mostra a razão de sua existência; ele não acontece como coisa
isolada, mas como categoria que fundada nesse fragmento que se faz total, a economia,
justifica seu domínio.

Aqui, o que queremos chamar atenção é para o fato de que quando Debord
aponta as cinco características principais do espetacular integrado – a saber, “a
incessante renovação tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo generalizado, a
mentira sem contestação e o presente perpétuo” (Coment., § V) –, a referência que faz a
Marx na tese 87 de A sociedade do espetáculo pode ser compreendida em toda sua
verdade. Ora, podemos entender como processos fundamentais do espetáculo os dois
primeiros, sendo, portanto, os três últimos deles resultantes. No que diz respeito ao
primeiro elemento, devemos buscar compreendê-lo no contexto de seu próprio avanço
histórico, isto é, como processo cada vez mais avançado a partir do amadurecimento do
próprio modo de produção em sua fase pós-colonial. Por outro lado, a fusão econômico-
estatal, caracteriza esta sim um novo processo organizacional. Debord já faz alusão a
essa combinação na referida tese, mas o faz para explicar o espetacular de tipo
concentrado. Mas se, todavia, pensamos nas consequências dessa combinação tendo em
mente esse novo modo de funcionamento, como explicado acima, compreendemos que
o espetáculo já mostrava ser a fusão das duas formas anteriores, espetacular e difuso, a
sua tendência natural. Senão, vejamos: segundo Debord, o próprio Marx já pudera
perceber essa tendência de racionalização de resultados – portanto, as bases do
espetáculo moderno – em sua análise do golpe de Louis Bonaparte. Citando Marx,
Debord o explica nos seguintes termos:

Esboço da burocracia estatal moderna, fusão de capital e do Estado,


constituição de um “poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma
força pública organizada para a sujeição social”, em que a burguesia desiste
de toda vida histórica que não seja sua redução à história econômica das
coisas e quer “ser condenada ao mesmo nada político das outras classes”
(SdE, § 87).

Assim, a fusão econômico-estatal é o fator que explica em grande medida as novas


técnicas de controle do capital, o que leva Debord a afirmar que a própria polícia nesse
82
caso é “totalmente nova”,138 portanto, elemento de fundamental importância para se
compreender o espetacular integrado. Com efeito, todas essas mudanças concorrem para
afirmar o domínio da mercadoria num nível ainda mais alto de controle por meio da
abstração, com Debord podendo afirmar que o espetacular integrado “detém todos os
meios para falsificar o conjunto da produção tanto quanto da percepção, é senhor
absoluto das lembranças, assim como é senhor incontrolado dos projetos que modelam
o mais longínquo futuro” (Coment., IV).

Portanto, no domínio da percepção que o espetácular integrado tem seu principal


instrumento e a base de sua força. Sua ação é precisamente a de reconstruir a realidade
no momento em que se põe e descrevê-la agora sob seus termos, seja pela abstração das
imagens do capital ou da objetividade da polícia frente a quem o contesta, pois “como
era teoricamente previsível, a experiência prática da realização sem obstáculos dos
desígnios da razão mercantil logo mostrou que, sem exceção, o devir-mundo da
falsificação era também o devir-falsificação do mundo”, afirmação que Debord faz
desviando a tese 66 da SdE. De fato, não se trata mais de desmascarar o domínio da
mercadoria sob o mundo, mas os desenvolvimentos mais recentes dessa ditadura.
“Quando o espetacular era concentrado, a maior parte da sociedade periférica lhe
escapava; quando era difuso, uma pequena parte; hoje, nada lhe escapa. O espetáculo
confundiu-se com toda a realidade, ao irradiá-la” (idem). Desse modo, ele é agora o
produtor “consciente” das imagens que norteiam a vida cotidiana, imagens estas que
antes tinham sua autonomia unicamente a partir do automovimento enlouquecido do
capital. Como explica Debord:

A partir de então, é evidente que a imagem será a sustentação de tudo, pois dentro
de uma imagem é possível justapor sem contradição qualquer coisa. O fluxo de
imagens carrega tudo; outra pessoa comanda a seu bel prazer esse resumo
simplificado do mundo sensível, escolhe aonde irá esse fluxo e também o ritmo do
que deve aí manifestar-se, como perpétua surpresa arbitrária que não deixa nenhum
tempo para a reflexão, tudo isso independente do que o espectador possa entender
ou pensar. Nessa experiência concreta da submissão permanente encontra-se a raiz
psicológica da adesão tão unânime ao que aí está; ela reconhece nisso, ipso facto,
um valor suficiente (Coment., § X).

Como fusão entre as esferas econômica e estatal, o espetacular integrado não é


apenas o domínio efetivo da mercadoria no mundo, mas o Estado no pleno uso de suas

138
Ibidem.
83
atribuições como expressão da sociedade da separação em sua etapa histórica mercantil
superdesenvolvida. Enquanto tal, ele é também a perfeita expressão da ausência do
diálogo. É isso que justifica tanto a irracionalidade da realidade que ele produz quando
as características do segredo generalizado, da mentira sem contestação e do presente
perpétuo. Ele é a busca da “dissolução da lógica” (idem), tendo em vista que esta só “se
forma socialmente por meio do diálogo” (idem). Ditando sua visão unilateral das coisas,
o espetáculo declara também o fim da memória e, com ela, da própria história no
momento em que ele mesmo abarca sua própria história “no movimento recente de sua
conquista do mundo” (Coment., §VI). É esta “a garantia do sucesso absoluto de todos os
seus empreendimentos, ou, ao menos, do rumor do sucesso” (Coment., § IV) e também
a gênese do espectador em sua forma mais contemporânea. Nas palavras de Debord:

Já não existe ágora, comunidade geral; nem existem comunidades restritas a


grupos intermediários ou instituições autônomas, a salões ou cafés, aos
trabalhadores de uma mesma empresa; nem nenhum lugar onde o debate sobre as
verdades que concernem àqueles que lá estão possa se liberar de modo durável da
esmagadora presença do discurso midiático e das diferentes forças organizadas
para substituí-lo (Coment., § VII).

O espetáculo quer mascarar a realidade e seu segredo mais fundamental, o de ser


a mercadoria a regente soberana dos rumos do mundo. Essa verdade, uma vez exposta,
deve ser agora encoberta com o uso de todos os artifícios possíveis. Assim, organizando
socialmente a ignorância, o espetáculo pretende conseguir “o esquecimento do que,
apesar de tudo, conseguiu ser conhecido” (Coment., § VI) e liquidar “com a inquietante
concepção, que predominava por mais de duzentos anos, segundo a qual uma sociedade
pode ser criticada e transformada, reformada ou revolucionada” (Coment., § VIII). Ora,
afirma Debord, “há 20 anos nada é tão dissimulado com mentiras dirigidas quanto a
história de maio de 1968” (Coment., § VI). Com efeito, das tentativas de romantização
ou demonização dos eventos ocorridos na França, todas escondem o que se tratou da
mais recente tentativa de assalto da ordem burguesa; o espetáculo não falaria contra si
próprio.

É, portanto, correto afirmar que “nunca a censura foi tão perfeita. Nunca a
opinião daqueles a quem ainda se faz crer, em alguns países, que continuam a ser
cidadãos livres foi menos autorizada a se fazer ouvir, cada vez que se trata de uma
escolha que vai afetar sua vida real” (idem). Da mesma forma, “nunca foi possível

84
mentir com tão perfeita ausência de consequências” (idem), o que se mostra não apenas
nas decisões e ações do Estado à revelia da opinião dos que serão afetados por essas
opiniões, mas nos defensores oficiais da ordem: os especialistas.

Com a destruição da história, o próprio acontecimento contemporâneo logo se


afasta para uma distância fabulosa, em meio a narrativas inverificáveis, estatísticas
incontroláveis, explicações inverossímeis e raciocínios insustentáveis. Só gente da
mídia pode responder a todas as asneiras que são apresentadas espetacularmente,
através de respeitosas retificações ou admoestações; e, mesmo assim, com
parcimônia. Pois, além de sua extrema ignorância, existe a solidariedade, de
profissão e de alma, com a autoridade geral do espetáculo e com a sociedade que
ele expressa, que se torna para essa gente um dever, e também um prazer, o fato de
nunca se afastar da autoridade, cuja majestade não deve ser lesada. Convém não
esquecer que toda pessoa da mídia, por salário ou por outras recompensas, sempre
tem um patrão, senão vários; toda pessoa da mídia sabe que pode ser substituída
(Coment., § VII).

Confirma-se assim o segredo generalizado como a “mais importante operação


do espetáculo” (Coment., § V). Sem memória e sem diálogo, o Estado pode ele mesmo
apontar seus próprios adversários se afirmando como Estado de exceção permanente, o
que ele faz, efetivamente, ao criminalizar no mais alto nível todos aqueles que têm a
“pretensão impertinente de desejar mudar algo nesta sociedade, a qual acha ter sido até
agora paciente e boa demais; mas que já não aceita ser criticada” (Coment., § IX). São
eles os seus terroristas. E é à Itália que Debord atribui o papel de laboratório do
espetacular integrado, sendo lá onde se assiste a esse “progresso espetacular da justiça”
na forma de “uma guerra civil que não houve, uma espécie de vasta insurreição armada
que por acaso nunca ocorreu, um golpe tecido com o mesmo material de que são feitos
os sonhos” (idem). Como ele explica:

A Itália resume as contradições sociais de todo o mundo e tenta, do jeito que se


sabe, amalgamar num só país a Santa Aliança repressiva do poder de classe,
burguês e burocrático-totalitário, que já funciona abertamente em toda superfície
da terra, na solidariedade econômica e policial de todos os Estados.139

Realmente, para entendermos essa nova composição peculiar do Estado


italiano, posteriormente exportada para as demais democracias espetaculares, não se
pode desconsiderar a combinação dos elementos que partilham o poder, incluindo aí
também, logicamente, aqueles que compõem a representação espetacular em seus
diversos níveis. No caso em questão, a análise de Debord dedica atenção ao papel dos
sindicalistas stalinistas e do partido comunista local na própria definição dos

139
Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo, in: op. cit., p. 159.
85
‘terroristas’ ao afirmar que os stalinistas não apenas tiveram sua participação como
elementos de desarticulação das lutas em seu país e na Itália nos anos 60 e 70, mas
também por sua tensão ideológica com o reformismo dos partidos da esquerda oficial
acabaram por colocar as bases para o surgimento de um movimento extremista que
justificasse as ações da repressão do Estado. Nesse sentido, o controverso episódio do
assassinato do ex-primeiro ministro italiano Aldo Moro pelos rebeldes da “brigada
vermelha” é analisado por Debord como

Uma opera mitológica de grande encenação, na qual heróis terroristas com


papéis variados foram raposas ao pegar a presa, leões ao nada temer de
ninguém enquanto a mantinham escondida, e cordeiros ao não extrair desse
golpe o mínimo incomodo ao regime que fingiam desafiar.140
Ora, já em sua versão oficial o caso é controverso a partir da relutância do
governo em negociar os termos de libertação de Moro, que ao final do 55º dia foi morto.
Por outro lado, enquanto a mídia noticiava as ameaças dos extremistas aos sindicalistas
stalinistas, Debord chama atenção para o fato de que em realidade eles nunca haviam
entrado em confronto direto. Ademais, sua análise prossegue explicando que

O que é insano e revoltante é afirmar que essas “frações operárias


extremistas” chegaram a esse estágio por terem “por trás delas”, terroristas.
Muito pelo contrário: fez-se funcionar a “brigada vermelha” porque um
grande número de operários italianos escapou do enquadramento da polícia
sindical-stalinista; o terrorismo ilógico e cego só pode incomodá-los.141
Todavia, para além das controvérsias desse caso em particular, deve-se
reconhecer que Debord foi o primeiro (ou um dos primeiros) a falar de um fenômeno
social e político de extrema importância e atualidade: a atual generalização, nos países
capitalistas democráticos, das medidas policiais e jurídicas do Estado como prática
corriqueira de controle, este que não por acaso ele descreve como o que de fato é, um
produto da sociedade espetacular mercantil, tendo em vista que “todo inimigo da
democracia espetacular equivale a qualquer outro, como se equivalem todas as
democracias espetaculares” (idem). Como prática, esse fenômeno é o controle
ideológico também em outro nível, onde a “supressão da personalidade” (Coment., §
XII) se faz pela força toda vez que os mecanismos sociais do cotidiano não o fizeram.

140
Ibidem, p. 153.
141
Ibidem, p. 156.
86
Portanto, como conjunto de mecanismos repressivos efetivos que operam tanto
em recorrência à psicologia das massas quanto pela força legítima do Estado, a
tendência do espetacular integrado é a de ser exportado como modelo para os demais
países ocidentais a partir de sua ordem hierárquica no reino espetacular. É essa a
realidade de nossos tempos e o caso americano atual é um bom exemplo particular desse
fato. Ainda que em crise, o país não é (ainda) apenas o grande centro do espetáculo
moderno de nossos dias por seu nível de consumo, mas também por possuir uma das
maiores populações carcerárias do planeta, com a impressionante marca de cerca de
25% de todos os detentos em escala global, um número que corresponde a cerca de 2
milhões de encarcerados.

As atuais discussões em nível paranoico acerca da segurança com questões que


vão desde o desarmamento a prisões arbitrárias de ‘terroristas potenciais’ (incluídos aí
os alegados ‘FEMA camps’, aparentemente mais próximos de comprovação real do que
gostariam os que os desacreditam como teorias conspiratórias).142 Tudo isso acontece
num complexo clima de tensão em que a crise econômica leva cada vez mais pessoas às
ruas reclamando as falhas da ideologia do progresso. Na Europa não é diferente. A
Espanha, por exemplo, um dos países mais afetados pela crise (o que representa, entre
outros indicadores, uma taxa de desemprego por volta dos 27% da população), chega a
noticiar no mês abril a impressionante estatística de uma família desalojada a cada 15
minutos.143 Além do mais, cresce o número de grupos de extrema direita com discurso
xenofóbico e ultranacionalista, aos quais aderem um grande número de jovens e ao
mesmo tempo procuram se afirmar como forças políticas institucionalizadas para chegar
a um maior número de pessoas. É o caso da ‘Aurora Dourada’ na Grécia, que tem
mostrado crescimento vertiginoso, saindo da total inexpressividade para cerca de 10%
da preferência nas eleições de fevereiro.144

É esse contexto caótico que infelizmente nos traz a atualidade da crítica de


Debord. Por outro lado, a discussão acerca da organização não hierárquica também
mostra aqui toda sua potencialidade. E é dela que nos deteremos no capítulo seguinte.

142
Conferir em: http://youtu.be/HkSkQgnEV-Q
143
Conferir em: http://youtu.be/D7_rajy5L1k
144
Conferir em: http://glo.bo/YmFJ53
87
Capítulo III

Ideologia e Teoria Revolucionária

Para o pensador revolucionário, a chance revolucionária


própria de cada instante histórico se confirma a partir
da situação política. Mas ela se lhe confirma não menos
pelo poder-chave desse instante sobre um compartimento
inteiramente determinado, até então fechado, do
passado. A entrada nesse compartimento coincide
estritamente com a ação política; e é por essa entrada
que a ação política, por mais aniquiladora que seja,
pode ser reconhecida como messiânica. (A sociedade
sem classes não é a meta final do progresso na história,
mas, sim, sua interrupção, tantas vezes malograda,
finalmente efetuada.)

Walter Benjamin, Tese XVII a145 “Sobre o conceito de


História”.

Dialética e totalidade são categorias fundamentais da teoria revolucionária de


Debord. Para tal afirmação, há de se enxergá-las não apenas do ponto de vista da
compreensão teórica apropriada acerca do momento histórico em que se vive, mas da
maneira como a prática transformadora responderá às demandas dessa compreensão.
Nesse sentido, a totalidade deve ser entendida não como a busca de um conhecimento
sistemático, a fundação de uma ciência positiva, mas a totalidade da negação do mundo
que é o mundo total da mercadoria. Ora, mas a negação e, a partir dela, a transformação
do mundo existente, só podem se realizar pela prática que, por sua vez, está em unidade
dialeticamente indissociável com a teoria.

Por outro lado, o aspecto dialético da teoria revolucionária também a põe em


relação crítica com sua própria história, com todas as tentativas anteriores dos
movimentos revolucionários. Resgatá-los, portanto, é uma tarefa que deve ter como

145
Trata-se da nota XVIII do Handexemplar das Teses sobre o conceito de História descoberto por
Giorgio Agamben, responsável pela tradução da obra de Benjamin na Itália, em fins dos anos de 1980.
Por ter ficado de fora da versão mais conhecida das teses, passou-se a adotar, a partir das edições
italianas, essa numeração, de maneira que a anterior não sofresse alterações.
88
objetivo a busca de uma base sólida para a consciência e a prática futuras. Num duplo
movimento, trata-se de fazer a crítica das experiências e desenvolvimentos teóricos
concernentes a cada etapa histórica e resgatar o que as forças da ordem trataram de
cristalizar em verdades incontestáveis (portanto, mentiras) ou conclusões “inofensivas”
dessa crítica. O resultado desse contexto é o desvio [détournement] como o método –
prático e teórico – revolucionário por excelência.

Não menos importante, a força histórico-crítica do desvio frente aos


acontecimentos do espetáculo e à derrota das lutas contestadoras que estiveram na
gênese do mesmo traz também consigo o questionamento acerca do próprio aspecto da
organização do movimento revolucionário, o que implica não apenas a crítica teórica do
modelo de organização hierárquico burguês – adotado ainda nos anos da teoria
revolucionária quando esta era um conjunto harmonioso de percepções unidas por um
(ou mais) elemento(s) comum(ns) ainda que nem sempre totalmente afins –, mas, num
nível mais profundo, uma reconsideração acerca do próprio caráter da linguagem no
interior do movimento revolucionário. São esses os pontos que discutiremos a seguir.

3.1. Dialética e teoria revolucionária

Dialética e teoria revolucionária na crítica de Debord são elementos


indissociáveis. É esse o fio condutor de seu apanhado histórico da teoria crítica e o que
o leva a entender o resgate da dialética hegeliana e sua ressignificação como elemento
central no conjunto crítico do pensamento revolucionário como primeiro grande
momento histórico de amadurecimento da mesma. Antes de Marx, a teoria
revolucionária encontrara em Blanqui e nos socialistas utópicos seus principais
desenvolvimentos recentes. O primeiro trazia uma clara noção das lutas de classe de seu
tempo e advogava em favor da tomada do poder pela classe operária. Contudo, não
conferia a essa classe nenhum papel especial, tendo em vista que não analisava os
conflitos sociais sob a ótica das particularidades do sistema capitalista.146 Na outra mão,

146
Parece-me que ainda que evidenciando as particularidades do modo de produção, a crítica ao
capitalismo, seja em Marx ou em Debord, deve ser entendida na verdade como crítica da sociedade
histórica de classes. Em Debord e nos situacionistas isso é bem mais claro. Contudo, o que parece é que
Debord na verdade encontra nessa categoria o fundamento da crítica unitária de Marx, podendo com isso
fazer ressalvas em sua crítica do pensador alemão. Se é assim, isso explica que ainda que ele critique a
maneira fragmentada como Marx apresenta sua teoria crítica ao longo de determinado período de sua
produção, o pensador alemão tenha mantido até o fim de sua vida a perspectiva crítica total, não se
89
os socialistas utópicos ignoravam a luta de classe em favor de uma tentativa científica
de entendimento do funcionamento do modo capitalista de produção, tentativa que, para
eles, embasaria um conjunto de propostas a serem aplicadas no sentido de resolver as
contradições do sistema. Marx aparece então, possivelmente, como o primeiro a
denunciar o caráter ideológico de ambas as visões e advogar em favor de um projeto
revolucionário que fosse não uma nova visão parcelar acerca da luta – e separada dela –,
mas que encontrasse em si mesma o próprio fundamento de sua crítica.

Concordando com Korsch, Debord acredita que a força desse pensamento


revolucionário reside então primeira e fundamentalmente nesse ponto: a inconcebível
dissociação do aspecto teórico da luta com o aspecto prático, numa perspectiva de
totalidade, tal qual Marx e Engels o apresentam no Manifesto Comunista, ou seja, a
partir da perspectiva de que na luta de classes o proletariado não é apenas um polo que
encontra na burguesia seu contrário, mas é de fato a classe que tem como missão
histórica realizar o fim da sociedade de classes por meio da revolução. É nesse sentido
que, em sua luta contra a burguesia, esta que “começa com sua existência”,147 o
proletário tem de passar “por diferentes fases de desenvolvimento” até atingir a plena
certeza dessa missão de ‘instaurar a verdade no mundo’ (SdE, § 221).

A teoria de Marx e Engels, tal qual aparece no Manifesto, se fundamenta na


constatação de que as condições do desenvolvimento material que favoreceram a
burguesia no processo de superação da ordem feudal já em sua época haviam
encontrado seu limite, o que se mostraria nas constantes crises de superprodução. Ela se
trata então de um projeto de superação do julgo do movimento das forças econômicas
independentizadas, numa perspectiva de inauguração de uma história humana
consciente, pelo fim da sociedade de classes, projeto que Debord desvia para pensar
questões atuais. Além disso, em sua recepção do pensamento de Marx, Debord também
está atento ao fato de que a perspectiva histórica da teoria crítica do pensador alemão
tem suas raízes diretas no confronto deste com Hegel, o que exige também uma
profunda consideração dos elementos filosóficos das quais a teoria revolucionária não
pode prescindir.

limitando ao aspecto econômico – fato que é não apenas a interpretação corriqueira, mas a exata brecha
para o surgimento do marxismo como ideologia.
147
Marx, K. e Engels, F. Manifesto do partido comunista, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 47.
90
Em Marx, trata-se de tornar real no mundo o que a filosofia já realizara como
pensamento, ou seja, realizá-la por meio de sua superação. Ora, se Hegel explica a
nascente sociedade burguesa como um ponto de chegada histórico que tem o Absoluto
como fundamento, se efetivando no mundo como liberdade para conhecer a si mesmo,
cabe a Marx a tarefa de denunciar essa filosofia precisamente em seu núcleo abstrato,
criticando-a como “religião convertida em pensamento e desenvolvida pelo
pensamento”,148 não passando, portanto, de outra forma de alienação. O que Marx faz é
inverter esse conceito afirmando que de fato são os homens que fazem história, e é
necessário entender essa história fora de qualquer ilusão, atento à base material de cada
momento particular desse desenrolar histórico, bem como as lutas de classe particulares
de cada período. Essa operação, contudo, não se trata de uma simples inversão, mas,
como dissemos, da conservação sobre outras bases do que o pensamento de Hegel traz
de fundamental; justamente o que, como pensamento idealista, explica o impulso do Ser
para fora de si, a dialética. Assim, na perspectiva materialista de Marx esse o elemento
aparece em toda sua potencialidade no momento em que aparece como fundamento da
compreensão das lutas de classe, ou seja, o que permite que elas sejam entendidas como
não como leis, mas como movimento.

De fato, a própria noção de dialética de Debord, em estreita relação com o de


desenrolar da história, ou seja, como ideia de história (SdE, § 75), retoma essa
consideração. E o faz de duas formas: primeiro, entendendo, como Marx, a história da
sociedade de classes sob a ótica da luta de classes, e, segundo, compreendendo o tempo
histórico como o tempo que realiza a dialética – verdadeiro “centro inesquecível” (SdE,
§ 143) do projeto revolucionário, onde cada tentativa não é apenas um fato, “mas um
ponto de partida possível da nova vida histórica” (idem). Ora, é desse modo que se pode
dizer que da interrelação entre dialética, consciência e história Debord pode também
afirmar o papel da crítica da economia política como momento necessário do desenrolar
da própria luta de classes.

Debord, ao conferir a devida importância a Hegel, marca ainda seu lugar em


extremo distanciamento do pensamento marxista de seu tempo, não apenas em seu país.
De fato, na França, o pensamento de esquerda sempre foi bastante peculiar, como nos
explica Jappe. A começar pelo fato de que lá “o pensamento socialista se revelou menos

148
Marx, K., Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 173.
91
marxista do que noutros lugares, em benefício de autores como Proudhon e Fourier”.149
Por outro lado, ainda segundo ele, a recuperação de Marx e outros autores importantes
relegados a segundo plano, como Nietzsche e Freud, nos anos 60 se explica pelo
predomínio da tríade composta por Hegel, Husserl e Heidegger num período de três
décadas, de modo que, em geral, até o surgimento de Debord e da IS, “os hegelianos
franceses não eram marxistas, e amiúde os marxistas não eram hegelianos, ou mesmo
explicitamente anti-hegelianos, como Althusser”.150 Outra consideração curiosa é o fato
de que a recepção de Hegel na França, apesar de seu predomínio a partir dos anos 1930,
se deve ao impacto da leitura particular de Alexandre Kojève, o que, de acordo com
Jappe, trata de uma apresentação de Hegel como “existencialista”.

Mas voltemos então ao que importa. Se na consideração da dialética hegeliana


Debord já marca um primeiro distanciamento dos intelectuais da esquerda de sua época,
na sua recepção do pensamento de Marx, ele na verdade vai ainda mais longe ao
mostrar a clareza de compreensão de que, na verdade, não apenas Marx, mas “todas as
correntes teóricas do movimento operário revolucionário são resultantes do confronto
crítico com o pensamento hegeliano” (SdE, § 78). É com base nisso que ele explica a
relação entre as duas principais correntes do movimento revolucionário no momento
histórico dos combates que culminaram com a ascensão do espetáculo, o marxismo e o
anarquismo.

Vejamos, portanto, que essa constatação nos coloca diante de dois problemas:
primeiro, é preciso entender de que maneira o pensamento revolucionário unitário pôde
se cindir nestas duas correntes e com isso perder a força resultante de sua unidade
anterior. Segundo, é preciso buscar compreender o processo de ideologização que daí
sobrevém – especialmente dentro do marxismo, tendo em vista sua consolidação como
corrente de pensamento o permitiu muito maior alcance que o anarquismo. Mas, antes,
ainda uma palavra sobre Hegel.

Debord concorda com Korsch, mais precisamente com suas Teses sobre Hegel e
a revolução, quando afirma que Hegel, para além de suas pretensões, não passa de um
filósofo da reconciliação e glorificação do mundo existente, não da revolução. Sua

149
Jappe, A., Guy Debord, Lisboa: Antígona, 2008, p. 161
150
Ibidem, p. 164
92
perspectiva pretensamente revolucionária esbarra no próprio horizonte da sociedade
burguesa que ele tenta compreender, o que implica dizer que ao tentar explicar
contemplativamente um mundo que se fez a si mesmo, Hegel opera simplesmente uma
“realização filosófica da filosofia” (SdE, § 76). É por essa razão que seu esforço nessa
tarefa não pode prescindir da figura de um Absoluto que age no mundo para justificar o
caráter contemplativo da consciência que de fato não participa do movimento histórico
que tenta abarcar – fato que por si é definitivo para determinar um paradoxo
fundamental do qual Hegel não consegue se livrar. Como Debord nos explica:

A filosofia que termina no pensamento da história só pode glorificar seu mundo


negando-o, pois, para tomar a palavra, é-lhe necessário supor terminada essa
história total à qual ela reduziu tudo e encerrada a sessão do único tribunal no
qual pode ser proferida a sentença da verdade (idem).

Todavia, Debord está de acordo com Marx nos Manuscritos quando este afirma
que apesar de sua limitação, no método hegeliano estão os elementos essenciais do
verdadeiro pensamento revolucionário. Para Marx, o grande mérito de Hegel de
conceber a dialética em sua negatividade “enquanto princípio motor e criador”151
consiste, “em primeiro lugar, no fato de Hegel conceber a autocriação do homem como
processo”,152 e, em segundo, mas não menos importante, “apreender a natureza do
trabalho e conceber o homem objetivo (verdadeiro, porque homem real), como
resultado do seu próprio trabalho”.153 Porém, no momento em que concebe a história a
partir da identidade metodológica entre ser e pensar, discussão da qual nos ocupamos
um pouco no primeiro capítulo, toda a potencialidade da dialética de Hegel aparece
envolta em um véu idealista da qual é preciso se livrar e em seu sistema esses elementos
ainda aparecem de maneira especulativa, como expressão lógica do desenvolvimento do
Ser, ou em uma palavra, como abstração da própria história humana.

Portanto, é na consideração acerca da própria atividade humana como


conformadora da realidade sensível que reside todo o fundamento da crítica e da prática
revolucionárias. Desconsiderar esse aspecto é invalidar todo o esforço de Marx, que,
segundo Debord, na sua inversão do pensamento de Hegel não fez apenas a substituição
do percurso do Espírito hegeliano rumo ao conhecimento de si no tempo pelo

151
Ibidem, p. 178.
152
Ibidem.
153
Ibidem.
93
desenvolvimento histórico das forças produtivas,154 mas “demoliu a posição separada
de Hegel diante do que acontece e a contemplação de um agente supremo exterior, seja
ele quem for” (SdE, § 80). Em outras palavras, a partir de Marx, a teoria só pode
conhecer aquilo que ela realiza porque ainda que “obscuro e difícil”, seu caminhar
“deverá ser o apanágio do movimento prático agindo na escala da sociedade” (SdE, §
203) e o proletariado “existindo em atos”(SdE, § 77) já não pode ser apenas “o
desmentido da conclusão” da história, ou seja, a confirmação positiva do sistema, como
se dá no pensamento hegeliano, mas “a confirmação do método” materialista histórico-
dialético como pensamento negação, como pensamento e ação prática na história,
movimento que “dissolve toda a separação” (SdE, § 75).

Debord atenta para o fato de que, na contramão disso, precisamente na


desconsideração do caráter histórico das lutas se encontra o fundamento das correntes
utópicas do socialismo anteriores a Marx. No que se refere ao “socialismo e comunismo
crítico-utópicos”, Marx explica essa desconsideração em função tanto do “estado
embrionário do proletariado, como devido à ausência das condições materiais de sua
emancipação”.155 Nesse cenário, em que, segundo ele, tanto o proletariado ainda não
havia se desenvolvido suficientemente a ponto de se constituir em movimento de caráter
político e nem as condições materiais estavam dadas, posto que “estas apenas surgem
como produto da época burguesa”,156 a ação dos utópicos foi a de substituírem “a
atividade social por sua própria imaginação pessoal; as condições históricas da
emancipação por condições fantásticas; a organização gradual e espontânea do
proletariado em classe por uma organização da sociedade pré-fabricada por eles”.157 Em
uma palavra, julgaram que no descobrimento de leis sociais e de uma ciência social

154
Erro no qual incorreu, por exemplo, Lenin, em sua tentativa, segundo Korsch, de ser ao mesmo tempo
marxista e hegeliano. Segundo este, o revolucionário russo em sua simplista substituição do aspecto
idealista pelo materialista não só substituiu o “Espírito” pela “Matéria” como foi além ao recuar “todo o
confronto entre materialismo e idealismo a um nível de desenvolvimento histórico anterior ao alcançado
pela filosofia idealista alemã de Kant e Hegel” (KORSCH, 2008, p. 101), ou seja, retornar o fundamento
(Absoluto) ao ser, o que Hegel já havia superado ao pensá-lo como “desenvolvimento dialético da
‘Ideia’” (idem). O que ele obteve como resultado, certamente contrário a sua crença, foi apenas outra
forma de supressão da filosofia sem sua realização, o que, não por acaso, acabou por confirmar teórico e
praticamente o bolchevismo como absurdo completo. Em outras palavras, no campo teórico, essa
simplificação, ou seja, a limitação da dialética ao objeto que separado da consciência acaba por conceber
o conhecimento como transferência passiva à consciência subjetiva foi a própria justificativa teórica da
ditadura sobre o proletariado soviético.
155
Marx, K. e Engels, F. O manifesto do partido comunista, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 66.
156
Ibidem.
157
Ibidem.
94
(que contraditoriamente renegava a ação política prática), estivesse dada a emancipação
da classe, perspectiva que os colocava diante da ‘missão’ de apresentar à sociedade o
modelo correto de organização social, até alcançarem o reconhecimento, de sã
consciência ou boa vontade de seus interlocutores, de que com eles estaria “o melhor
plano possível para a melhor sociedade possível”.158

Contrariando sua crença, no entanto, a história acaba por mostrar que, negando a
práxis, só resta o conhecimento científico contemplativamente construído, com suas
leis, ao molde da natureza, e fica evidente, portanto, como assinala Debord, que a
concepção científica utópica falha em seu aspecto crítico mais fundamental: o de não
compreender o embate fundamental no seio da sociedade em crescente contradição, e,
portanto, desconsiderar “que grupos sociais têm interesses numa situação social
existente, forças para mantê-la, assim como formas de falsa consciência correspondente
a essas posições” (SdE, §83, itálico nosso). Em suma, encarando a ciência como
pensamento separado da história, suas fundamentações acerca da harmonia social plena
não poderiam ser outra coisa que simples abstração.159

Mas chamamos atenção para outro aspecto essencial da discussão teórica acerca
do pensamento revolucionário: o de que este não é ciência. De fato foi ao se considerar
como ciência objetiva, isenta de qualquer juízo de valor, que o marxismo da Segunda
Internacional consolidou seu processo de ideologização, fazendo com que sua
concepção materialista dialética da história se tornasse completamente o seu oposto.
Como nos explica Korsch:

Para uns, uma espécie de princípio heurístico que dirige a investigação nas ciências
particulares; para outros, a flexibilidade metodológica da dialética materialista se
cristaliza numa série de posições teóricas concernentes à causalidade dos eventos
históricos nos diferentes domínios da vida social, ou seja, em algo que seria melhor
designar como uma sociologia sistemática geral.160

A diferença fundamental está no fato de que, como teoria, o pensamento


revolucionário encontra sua confirmação e constante correção na prática, ainda que não

158
Ibidem.
159
Dentre os socialistas utópicos Charles Fourier ganha, no entanto, uma diferente consideração,
primeiro.na ótica dos surrealistas da primeira geração (André Breton em especial, que em 1947 escreveu
sua Ode à Charles Fourier) e, a partir deles, Debord. Isso graças a seu projeto singular de fundar uma
sociedade “baseada no desejo, não na repressão”; ideia que sem maiores explicações conseguimos
compreender como plenamente de acordo ao projeto situacionista de transformação da vida cotidiana.
160
Korsch, K. Marxismo e filosofia, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008, p. 42.
95
prescinda de aspectos científicos em suas formulações. O que a teoria de fato busca
nessa relação é, tal qual faz com a filosofia, a realização da ciência por meio de sua
superação e não uma realização cientifica da ciência, ou seja, busca valorizar seus
aspectos essenciais sem se submeter aos próprios resultados cristalizados em dogmas.

É fato que o projeto de Marx de uma história consciente do proletariado também


trouxe consigo a necessidade da fundamentação científica relativamente a um de seus
aspectos fundamentais, o de buscar uma compreensão racional acerca das forças
históricas em conflito na sociedade. No entanto, diferenciou-se da ciência burguesa
corrente no momento em que sabiamente fundamentou sua compreensão no aspecto
dialético do movimento geral da história, tratando-se, portanto, como já dissemos, de
uma “compreensão da luta, e não da lei” (SdE, § 81). Como o próprio Marx chega a
afirmar no Manifesto, suas proposições teóricas buscavam apenas de ser “a expressão
geral das condições efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento
histórico que se desenvolve diante dos olhos”.161 É assim, portanto, que a própria
autocrítica da teoria revolucionária se fundamenta na prática dos movimentos de luta
das quais ela é expressão, se apresentando, com isso, como o elemento fundamental
capaz de realizar conservando – isto é, sem tomar numa perspectiva positiva, nem
abandonar – a ciência e a filosofia, obtendo como resultado, inclusive, os meios para
crítica de ambas. Contrariamente a essa perspectiva, para o grupo majoritário dos
marxistas dos anos de 1920, se tratava de cristalizar os conhecimentos historicamente
adquiridos (logo, historicamente determinados) na “verdade” de um programa, ou, se
quisermos, de “transformar a luta em lei”, estabelecendo assim a ideologização
doutrinária no duplo erro de tentar convertê-la em ciência positiva e desconsiderar o
elemento filosófico da teoria crítica materialista dialética.

Há, todavia, de se atentar para o fato de que a ideologização do marxismo tem já


sua possibilidade no próprio desenvolvimento de Marx como teórico. Isso porque, de
acordo com Debord, as principais lutas de sua época, notadamente as revoluções
europeias de 1848 e a Comuna de Paris de 1871, foram incapazes de se realizar em sua
plenitude, superando o regime burguês, e, portanto, não tendo atingido sua “existência
total”, obrigaram-no a defender a validade de seu método em um trabalho de caráter

161
Marx, K.e Engels, F., Manifesto do partido comunista, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 52.
96
cada vez mais científico, ou como afirma Debord, um árduo “trabalho erudito
separado” (SdE, § 85) – crítica válida pelo menos pelo período de cerca de vinte anos
que vai de 1852, com a publicação do 18 brumário, até seu trabalho de análise da
Comuna.

Para Korsch esse segundo período evolutivo da teoria consistiu em certo sentido
de um retorno a Hegel, tendo em vista que com o retrocesso do campo de ação das lutas
operárias pós-1850 em decorrência de uma ampliação dos canais “democráticos” de
luta, a teoria revolucionária só pôde seguir avançando “no pensamento” – ainda que
atingindo níveis mais elevados –, no momento em que ia “aplicando-se a todo o
domínio das ciências sociais e das ciências da natureza enquanto método materialista
dialético”.162 Por sua vez, Debord explica que, nessa fase de transição, ainda que não
tenha mudado seu ponto de vista unitário da teoria, Marx permitiu uma perda na teoria
ao aderir ao modo de exposição do pensamento dominante, adotando “a forma de
críticas de disciplinas particulares, principalmente a crítica da ciência fundamental da
sociedade burguesa, a economia política” (SdE, § 84). Ora, conclui ele, “foi essa
mutilação, ulteriormente aceita como definitiva, que constituiu o ‘marxismo’” (idem).

Desse modo, a visão parcializada, que tem sua maior expressão justamente (e
ironicamente) n’O capital, foi precisamente o terreno no qual prosperou o marxismo
enquanto ideologia. Por meio dela, estabeleceu-se uma visão determinista (científica) na
conclusão de que “a vinda do sujeito da história é adiada para depois, e a ciência
histórica por excelência, a economia, tende de modo cada vez mais alargado a garantir a
necessidade de sua própria negação futura” (idem, itálico nosso). Ademais, é oportuno
lembrar ainda que, para Gabel, essa ideologização se constitui em fundamento da
transformação do marxismo em doutrina política, o que se evidencia no próprio
obscurecimento da importância da análise dos fenômenos ideológicos, fato que ele
denuncia como forma de “pagar tributo à generalidade do fenômeno da falsa
consciência”.163

E há ainda outro ponto a se considerar: a própria forma de organização. Para


Debord, a negligência quanto à questão da estrutura do movimento operário, ainda no

162
Korsch, K. Marxismo e filosofia, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008, p. 103.
163
Gabel, J. A falsa consciência, Lisboa: Guimarães & Cia, 1979, p. 83.
97
momento em que a teoria revolucionária tinha na unidade sua força (ou seja, quando da
fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1864), em favor do
inconsequente “uso de métodos estatais e hierárquicos tirados da revolução burguesa”
(SdE, § 90), foi o que de fato efetivou esse processo de ideologização, consolidado a
partir da Segunda Internacional. A reprodução da separação no próprio seio da
organização revolucionária trazia como consequência não apenas a formalização da
distinção de uma classe de líderes e teóricos à frente da “massa”, mas abria caminho a
uma crescente fragmentação da própria teoria, com a consequência de que cada
especialização não apenas trazia consigo suas próprias “verdades” acerca da luta, mas
continuava mantendo esse erro organizacional fundamental.

O processo de ideologização da teoria revolucionária deve ser então entendido


como a perda de sua unidade interna, falha que resulta na total desconsideração pelo
elemento dialético que encontra na realidade prática e histórica das lutas operárias sua
confirmação. Negado esse elemento fundamental, a teoria pode então se cindir em uma
série de “verdades” autoritárias que só podem confirmar na prática sua fraqueza
enquanto tais.

Resultados dessa cisão falsamente irreconciliável, duas grandes correntes


ideológicas surgem então no interior do próprio movimento: o anarquismo e o
marxismo. E cada uma dessas tendências por si ganhará crescente espaço nos anos que
se seguem ao fim da AIT em 1876, com Debord nos explicando acerca desse fato que
embora organizações poderosas, como a socialdemocracia alemã e a Federação
Anarquista Ibérica tenham servido “fielmente uma ou outra destas ideologias; em toda
parte o resultado foi muitíssimo diferente do que se pretendia” (SdE, § 91).

Quanto ao grupo socialdemocracia, já assinalamos no capítulo anterior, as lutas


operárias do começo do século XX puderam ainda ver sua versão radical autoritária no
leninismo. E foram essas, portanto, as correntes protagonistas das lutas da primeira
metade do século XX cujo fracasso teve como resultado o fortalecimento das forças de
defesa da ordem no advento do espetáculo. Vejamos cada uma.

O anarquismo surge fundamentalmente como “a ideologia da pura liberdade


que iguala tudo e afasta qualquer ideia a respeito do mal histórico” (SdE, § 92). Debord
explicita o duplo aspecto da perspectiva anarquista sobre a revolução social afirmando
98
que na grande consideração sobre a imediatidade – e, portanto, desconsideração das
lutas históricas – reside ao mesmo tempo a fraqueza e a força do movimento. Isso
porque do pensamento revolucionário unitário a concepção anarquista conserva a
verdade acerca do caráter inseparável entre teoria e ação, mas falha grosseiramente ao
sustentar que todas as conquistas no campo teórico já foram realizadas. Essa concepção
é o que também permite que se estabeleça no seio do movimento o caráter ideológico
autoritário pela separação entre os “propagandistas e defensores de sua própria
ideologia, especialistas em geral tanto mais medíocres quanto mais sua atividade
intelectual se propõe a repetir algumas verdades definitivas” (SdE, § 93) e o resto da
sociedade, desconsiderando a diferença entre esta e uma classe de líderes que, tomando
suas “leis” como definitivas, simplesmente aguardam que a mesma seja aceita de modo
unânime por todos os demais.

Na outra mão, o marxismo ortodoxo da Segunda Internacional se apresenta


como a ideologia científica do movimento operário histórico. Segundo Debord, “essa
ideologia recobra a confiança na demonstração pedagógica que caracterizaria o
socialismo utópico, mas acrescida de uma referência contemplativa ao curso da história”
(SdE, § 95), atitude esta, ele acrescenta, que perde tanto a perspectiva de totalidade –
ainda que imóvel – dos fenômenos sociais (como presente nos utópicos), quanto o
elemento dialético do método hegeliano, fragmentando-se numa série de conhecimentos
parcelares alienados do conjunto do movimento concreto da própria economia e da
história. Como consequência, o marxismo ortodoxo acaba por se tornar uma simples
teoria utópica reformista, o que Rosa Luxemburg acabou por definir, se tomarmos sob o
uso do desvio essa citação de suas críticas a Bernstein, como “uma teoria do
afundamento do socialismo, fundamentada na teoria da economia vulgar do
afundamento do capitalismo”.164 Quanto a sua organização, a tática da socialdemocracia
consistia em relegar aos líderes o papel da educação de um movimento passivo, logo,
profundamente acrítico – ainda que ativamente participativo –, por meio dos
instrumentos da atividade política legal. Contudo, Debord chama atenção:

Para que a atividade de todos guardasse algo de revolucionário, teria sido


necessário que o capitalismo de então fosse incapaz de suportar economicamente
esse reformismo que ele tolerava politicamente na agitação legalista. A ciência de

164
Luxemburg, R. Reforma ou revolução?, São Paulo: Global, 1990, p. 71.
99
todos eles garantia esse tipo de incompatibilidade; a história a desmentia a cada
momento (SdE, § 97).

Por último, e retomando o que vimos anteriormente, essa mesma perspectiva


teórica cientificista que fundamenta a organização do movimento numa classe de líderes
apresentados como a vanguarda do movimento, sendo por isso, capazes de ser guia das
massas, é a mesma que se estabelece na Rússia pós-revolucionária. De acordo com
Debord, o que há de se considerar como elemento de diferenciação é apenas o fato de
que as condições histórico-sociais, sendo de ordem completamente diversa da alemã,
levam os bolcheviques a adotar um caráter de “radicalismo ideológico autoritário” (SdE,
§ 99). Lenin, dessa forma, “foi apenas, como pensador marxista, um kautskista fiel e
consequente” (SdE, § 98). Ora, se a socialdemocracia alemã da Segunda Internacional
que tinha em Kautsky seu principal teórico nunca teve de fato uma teoria
revolucionária, mas tão somente uma ideologia revolucionária,165 isto é, uma
cristalização teórica desligada dos movimentos das lutas reais, práticas, o que se
evidencia na Rússia bolchevique é a maneira de resolver o problema da grande
defasagem entre teoria “revolucionária” fortemente desenvolvida e um movimento real
aquém desse desenvolvimento. Como Korsch nos explica oportunamente:

Este marxismo russo, ainda mais ortodoxo (se é que isto é possível) do que a
ortodoxia marxista alemã, teve em todas as etapas do seu desenvolvimento um
caráter ainda mais ideológico do que aquela e esteve em contradição ainda mais
violenta do que aquela com o movimento histórico real de que deveria ser a
ideologia.166

O bolchevismo surge assim como a solução não cogitada e definitiva de


derrubada do czarismo, contrariando toda a insuficiência da discussão teórica, “sempre
insatisfatória” (SdE, § 103) das diversas tendências da social democracia russa no início
do século XX e testemunha da impossibilidade tanto de uma revolução burguesa quanto
uma revolução verdadeiramente democrática realizada por camponeses e operários: a
primeira, por fazer oposição ao domínio econômico e político dos czares; a segunda, por
165
Segundo Korsch, de fato, esta ideologia de fato jamais aderiu seu programa ao pensamento de Marx
em sua totalidade, mas apenas a alguns aspectos econômicos, políticos e sociais deste “cuja significação
geral já vinha modificada pelo fato de estarem desvinculadas da perspectiva revolucionária de Marx,
ademais de mutiladas e falsificadas em seu próprio conteúdo” (KORSCH, 2008, p. 91). Ademais, a ênfase
no caráter rigorosamente marxista era desmentida no fato de que este programa datava de uma época
posterior à estreita colaboração de Marx e Engels, época que assistia ao surgimento de novas tendências
de práxis do movimento operário que encontraram expressão precisamente no revisionismo de nomes
como Edouard Bernstein. Foi com base nisto que ele pôde afirmá-las como perfeita complementação
teórica uma da outra, ao contrário do pensamento corrente que as colocava como tendências opostas.
166
Korsch, K. Marxismo e filosofia, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008, p. 105.
100
sua incapacidade por sua incapacidade de fazer oposição tanto a reação nacional e
internacional. O partido bolchevique pode então se estabelecer como “o partido dos
proprietários do proletariado” (SdE, § 102), confirmando “sua própria representação
exteriorizada e alienada como partido operário dos mestres absolutos do Estado, da
economia, da expressão e, em breve, do pensamento” (SdE, § 103). Em suma, o
bolchevismo, é, portanto, antes de mais nada, uma reconciliação teórica com o próprio
sistema, a partir da glorificação do modelo de acumulação capitalista, como nos afirma
Trotsky em um artigo escrito durante seu período de ruptura com Lênin e em razão do
25º aniversário da Neue Zeit167 de Kautsky; e isso num ambiente intelectual em que a
influência de Bakunin, puramente negadora, ainda era bastante expressiva.

Como discutimos no segundo capítulo, curiosamente é a ideologia surgida a


partir do pensamento do próprio Trotsky que, numa certa contramão do bolchevismo,
ou, pelo menos, como tentativa de resgate de sua ideologia já bastante desgastada pela
autodenuncia do terror stalinista, possibilita a renovação da crítica. Isso se faz possível
porque a ilusão do trotskismo em sua impossibilidade de ser uma crítica consequente –
tendo em vista que pretende reaver as glórias enganosas de um momento do passado da
revolução – acaba por ser “a todo momento desmentida pela realidade da sociedade
capitalista moderna, tanto burguesa quanto burocrática” (SdE, § 113), só encontrando
espaço, desse modo, em países com menor nível de desenvolvimento histórico.

Do hiato entre a derrota dos movimentos revolucionários do primeiro quarto do


século, que teve como símbolo fundamental o domínio sem contestação do estalinismo
sobre a esquerda oficial já a partir da segunda metade dos anos 20, até a segunda metade
dos anos 50, a teoria em sua perspectiva unitária, como Debord a compreende, se
manteve em silêncio. A compreensão do percurso da mesma é o que Debord acredita
permiti-lo compreendê-la em suas potencialidades efetivas. Todavia, não se trata de um
resgate da “teoria pura”, mas de ‘recolocá-la em jogo’. E aqui o método do desvio
ganha papel fundamental. É dele que trataremos a seguir.

167
Conferir a nota 47 de “Estado atual do problema (anticrítica)”. In: Korsch, K., Marxismo e filosofia,
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
101
3.2. Desvio e crítica da ideologia

Debord em sua teoria crítica está perfeitamente ciente de “que nenhuma ideia
pode levar além do espetáculo existente, mas apenas além das ideias existentes sobre o
espetáculo” (SdE, § 203). Ou seja, expresso nos termos da ordem, “o conceito crítico do
espetáculo pode também ser divulgado em qualquer fórmula vazia da retórica
sociológico-política para explicar e denunciar abstratamente tudo, e assim servir à
defesa do sistema espetacular” (idem). Mas ora, a forma de ser consequente com a
constatação de que a ordem de fato opera a recuperação da crítica não é apenas a sua
denúncia; a grande questão que se coloca é como recolocar em jogo toda a riqueza
histórica do conteúdo revolucionamento da crítica anterior. É esse o papel do desvio.

Ademais, não se pode desconsiderar que todo o projeto de Debord de crítica


social e estética se faz de modo inseparável de uma reflexão própria sobre a
linguagem.168 De fato, “na constante recuperação, pelo poder, da criação de sentidos
pela linguagem, Debord concebe uma potencialidade que a esta é permanentemente
ínsita de recriação de sentidos, o que faz dela um campo de batalha entre o poder e a
criação histórica”.169 Assim, trata-se de dar a devida atenção ao jogo de forças no campo
em que a linguagem joga papel fundamental, pois considerada como instrumento de
expressão do movimento que é em si a crítica sistemática negadora da ordem, a
linguagem dessa crítica também o deve ser em toda a sua potencialidade. Em outras
palavras, é ter a própria consideração de que “a teoria deve comunicar-se em sua
própria linguagem, a linguagem da contradição, que deve ser dialética na forma como o
é no conteúdo” (SdE, § 204).

Debord explica que o desvio enquanto método tem sua origem na poesia
moderna, mas sua recusa de compreendê-lo unicamente como método artístico parte da
própria constatação crítica que norteou suas atividades ainda nos anos em que foi
membro do grupo letrista de Isou: o do movimento de autodestruição da arte. Sendo
assim, ele afirma em Mode d’emploi du détournement, escrito em parceiro com Gil J.
Wolman:

168
É precisamente dessa questão que se ocupa Emiliano Aquino em seu Reificação e linguagem em Guy
Debord (Fortaleza: Editora da UECE, 2006).
169
Aquino, J. E. F., op. cit., p. 175
102
Todos os meios de expressão conhecidos irão confluir em um movimento geral de
propaganda que deve abarcar todos os aspectos, em perpetua interação, da
realidade social. (...) Sobre o plano cultural como sobre o plano estritamente
político, as premissas da revolução não estão apenas maduras, elas já começaram a
apodrecer. (...) A inovação extremista tem apenas uma justificação histórica.170

A noção de desvio, como entendida por Debord, vai, portanto, abranger uma
gama maior de possibilidades, se servindo desde produções da cultura moderna,
passando pela linguagem cotidiana, até a psicanálise (como vimos no exemplo de seu
diálogo com Gabel) ou a própria teoria crítica. Desse modo, recusa a simples repetição
acrítica de elementos culturais por sua autoridade, tal como propõe o neodadaísmo e
pode se utilizar dos produtos da cultura na batalha antiideológica.

Mas o método do desvio, como elemento da crítica sistemática, só encontra sua


verdadeira confirmação como tal quando ligado às lutas revolucionárias. Desse modo,
se pode afirmar que num duplo movimento “a teoria crítica do espetáculo só se torna
verdadeira ao unificar-se à corrente prática da negação da sociedade. E essa negação, a
retomada da luta de classes revolucionária, se tornará consciente de si ao desenvolver a
crítica do espetáculo” (SdE, § 203). É isso, portanto, que confirma o desvio não como
“negação do estilo, mas o estilo da negação” (SdE, § 204), e é também por essa razão
que a exposição crítica dialética deve aparecer como “escândalo e abominação segundo
as regras da linguagem dominante” (SdE, § 205). A crítica da autoridade de um
elemento tomado como superior por seu papel no que constituiu a tradição
revolucionária não é desrespeito com o mesmo, mas, ao contrário, tanto o
reconhecimento de sua importância quanto sua confirmação nas lutas presentes. Dessa
maneira

Na recepção presente da crítica anterior, expõe-se o desvio graças à própria


imutabilidade do passado, ao seu caráter de “passado da crítica”. Se ela pode e
deve ser retomada no presente, é-o somente com base nas próprias possibilidades
presentes do mundo e, portanto, das necessidades atuais da crítica social.171

Como o próprio Debord nos explica, “o uso desviado é o contrário da citação, da


autoridade teórica sempre falsificada pelo simples fato de se ter tornado citação” (SdE,
§208). A força do desvio, dessa maneira, consiste na “reversão”, a recontextualização

170
Debord, G. e Wolman, G. J., Mode d’emploi du détournement. In : Martos, J. F., Histoire de
L’Internationale Situationniste, Paris: Ivrea, 1995, p. 23, 24. Texto publicado pela primeira vez na revista
Les lévres nues nº 8, em maio de 1956.
171
Aquino, J. E. F., op. cit., p. 177.
103
que é resultado do esforço de afirmação da força crítica perdida no momento em que
aquele fragmento foi afirmado como mentira pela linguagem da ordem. O desvio,
portanto, “busca uma ação no presente que significa, duplamente, uma confirmação do
‘núcleo de verdade’ e uma ‘correção histórica’ de todo seu conteúdo social crítico”.172
Ou, como explica Debord, “esse estilo que contém sua própria crítica deve expressar a
dominação da crítica presente sobre todo o passado” (SdE, § 206).

A primeira compreensão que se deve ter desse movimento de inversão que


coloca o presente como senhor do passado é, portanto, a de que ele afirma o pleno
reconhecimento do caráter histórico de todas as lutas anteriores. Desmentir a autoridade
durável em caráter autônomo do teórico enunciado é critica-lo como ideologia, como
pensamento separado da prática, o que permite afirmar o desvio como “a linguagem
fluida da antiideologia” (SdE, §208, itálico nosso). Essa fluidez é a recolocação em
jogo de elementos que por sua importância haviam sido desmentidos em sua verdade
pela linguagem do espetáculo. É a recuperação de sua “poesia”, entendida aqui a
referência feita pelo Debord em All the King’s men acerca do “principal poder da
linguagem”: “o de se combater e de se ultrapassar, em seu nível poético”.173

Por fim, se a retomada da crítica deve ser “inseparável do reconhecimento do


seu passado como algo deperecido, pertencente a uma outra época e a um outro
contexto social; inseparável, portanto, da reflexão sobre suas anteriores derrotas e das
necessidades das lutas atuais”,174 isso nos remete primeiramente à citação de
Lautréamont em que este explica seu método do dépaysement175 e que Debord,
desviando, a apresenta como o parágrafo 207 da SdE. Mas da conclusão de Láutreamont
de que “uma máxima, para ser bem feita, não precisa ser corrigida”176 e sim
“desenvolvida”, nos vem por conseguinte a clássica explicação de Marx acerca do

172
Ibidem, p. 180
173
Debord, G. All The King’s Men. In: Aquino, J. E. F., Op. cit., p. 174. Esse texto foi publicado pela
primeira vez em janeiro de 1963 na edição nº 8 da Internationale situationniste.
174
Ibidem, p. 177
175
“As palavras que expressam o mal estão destinadas a vir a ter um significado de utilidade. As ideias
melhoram. O sentido participa disso. //O plágio é necessário. O progresso implica. Segue de perto a frase
de um autor, serve-se de suas expressões, apaga uma ideia falsa, substitui-a por uma justa.//Uma máxima,
para ser bem feita, não precisa ser corrigida. Precisa ser desenvolvida”. Lautréamont, Poesias [1870],
Parte II. Obra Completa. Tr. br. C. Willer. São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 277. In: Aquino, J. E. F.,
Op.cit., p. 173.
176
Ibidem.
104
caráter particular das lutas do proletariado, em comparação às lutas burguesas. Segundo
Marx:

As revoluções burguesas, como as do século XVIII, avançam rapidamente de


sucesso em sucesso; seus efeitos dramáticos excedem uns aos outros; os homens e
as coisas se destacam como gemas fulgurantes; o êxtase é o estado permanente da
sociedade; mas essas revoluções têm vida curta; logo atingem o auge, e uma longa
modorra se apossa da sociedade antes que esta tenha aprendido a assimilar
serenamente os resultados de seu período de lutas e embates. Por outro lado, as
revoluções proletárias, como as do século XIX, se criticam constantemente a si
próprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido
para recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as
deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços, parecem derrubar seu
adversário apenas para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se
novamente, agigantado, diante delas, recuam constantemente ante a magnitude
infinita de seus próprios objetivos até que se cria uma situação que torna
impossível qualquer retrocesso e na qual as próprias condições gritam:
Hic Rhodus, hic salta!
Aqui está Rodes, salta aqui!

A “magnitude infinita” dos objetivos das lutas operárias, por sua vez, Debord as
compreende como a inauguração da ‘historia consciente’ humana, pelo fim da sociedade
de classes e do domínio da mercadoria. E essa grandiosa tarefa de emancipação só pode
se dar por meio dos próprios operários na revolução total do mundo existente.

3.3. Revolução e Dissolução da Ideologia

No que diz respeito à teoria da revolução, o que Debord mantém de mais


fundamental de Marx – e de Lukács, em certo sentido – é a compreensão de que a
missão histórica do proletariado não é a da pura e simples tomada do poder, mas a sua
efetiva emancipação no momento em que põe fim à sociedade de classes e ao domínio
da abstração mercantil. Isso seria para Debord – e segundo ele, também para Marx – o
início da “história consciente humana” (SdE, § 80, itálico nosso). Nesse sentido,
portanto, a teoria revolucionária só existe com o único propósito de transformar
radicalmente o mundo existente. Ou seja, ela é a própria afirmação do negativo que,
enquanto tal, não pode surgir senão das próprias contradições do sistema mercantil
superdesenvolvido, especialmente em sua contradição mais fundamental: o
superdesenvolvimento das forças produtivas em oposição à miséria dos homens na
tarefa de manter a continuidade desse processo.

105
No Manifesto, Marx afirma que “os proletários não podem apoderar-se das
forças produtivas sociais senão abolindo o modo de apropriação a elas correspondente, e
por conseguinte, todo modo de apropriação existente até hoje”.177 Por outro lado,
explica também que o desenvolvimento das forças produtivas, motor da ascensão da
burguesia ao poder, se encontra agora constituindo em entrave à mesma, à própria
manutenção de sua condição de classe dominante, tal qual “o feiticeiro que já não pode
controlar os poderes infernais que convocou”.178 Sob o aspecto econômico isso se
manifestaria por meio de crises sistêmicas cada vez mais violentas que implicariam
também na progressiva diminuição dos meios de evitá-las. O motivo seria o próprio
superdesenvolvimento do sistema, ou seja, “a epidemia da superprodução”,179
manifesta em “civilização em excesso, meios de subsistência em excesso, indústria em
excesso, comércio em excesso”.180 Ademais, a crescente desestabilização burguesa teria
ainda como consequência a crescente organização da classe proletária, tanto pela sua
aglomeração decorrente das necessidades da produção, quanto da crescente tomada de
consciência a partir do reconhecimento de sua condição de sua condição como classe –
nos termos de Lukács, em referência a Hegel, sua transformação de classe em si em
classe em si e para si.

Mas, todavia, é bem óbvio que as lutas de 1848 – nem a Comuna de Paris – não
apenas não suprimiram a burguesia e nem a sociedade de classes como, por suas
derrotas, serviram de base para o reforço da ordem e sua maior organização, vindo a se
constituir em nossos dias nessa força de sujeição social que é o espetáculo. A história da
sociedade burguesa, portanto, especialmente a partir de meados do século XIX, é por
isso um relato do cada vez maior desenvolvimento dos instrumentos da separação, seja
no aspecto do desenvolvimento urbano, seja na especialização da representação
ideológica em seus diversos matizes. Por esse motivo, é óbvio, Debord não trata de
reproduzir o ‘otimismo’ do Marx do Manifesto que expõe ali as condições reais de um
momento completamente diferente da evolução histórica do capitalismo e da luta de
classes. Sua crítica do espetáculo é a própria confirmação disso. Mas se agora as
condições de organização tal qual Marx as havia descrito já não são as mesmas, e a

177
Marx, K. e Engels, F., Manifesto do partido comunista, p. 50
178
Ibidem, p. 45
179
Ibidem.
180
Ibidem.
106
abstração do sistema saindo do campo da produção invadiu a vida cotidiana
confirmando no espetáculo essa abstração como “modo de ser concreto” (SdE, § 29), o
“ponto de partida” inicial da crítica e da tomada de consciência deve ser então a própria
percepção prática dos resultados do desenvolvimento econômico em seu caráter
autonomizado, tal qual o caso dos motins do bairro de Watts em Los Angeles. Como ele
explica:

Se a lógica da falsa consciência não pode conhecer a si mesma de forma verídica, a


busca da verdade crítica sobre o espetáculo tem de ser também uma crítica
verdadeira. Praticamente, ela tem de lutar no meio dos inimigos irreconciliáveis do
espetáculo e admitir estar ausente lá onde eles estão ausentes (SdE, § 220).

Advém daí a importância da crítica da vida cotidiana no pensamento de Debord,


sem desconsiderar, todavia, que esta não se desvincula da crítica da economia política,
sendo, na verdade, um aspecto da mesma. Como Korsch já chamara atenção, “a
coincidência entre a consciência e o real caracteriza toda dialética, e também a dialética
materialista”,181 do que deriva, ainda segundo ele, que são as formas que as relações
materiais capitalistas assumem tanto na consciência pré-científica quanto científica
burguesa que permitem que a crítica da economia política tenha podido se afirmar como
o elemento mais importante da teoria da revolução social.

Segundo Debord, “no momento em que a sociedade descobre que depende da


economia, a economia, de fato depende da sociedade” (SdE, § 52). Trata-se, portanto,
de atacar o reino mercantil espetacular em seu fundamento, o econômico, afirmando que
“a vitória da economia autônoma deve ser ao mesmo tempo o seu fracasso” (SdE, § 51).
Ora, com essa afirmação Debord não tem qualquer ilusão a respeito de uma possível
transição “pacífica” do capitalismo a um novo modo de organização social
simplesmente partindo da constatação do amadurecimento (ou “apodrecimento”) do
mesmo – como afirmado pela ideologia cientificista da socialdemocracia –, mas a
certeza de que todo o dilema da produção econômica advém da autonomia da economia
e a afirmação da “mercadoria total” (Debord) “como ruptura absoluta do
desenvolvimento orgânico das necessidades sociais” (SdE, § 68), com a afirmação não
da necessidade da produção material para satisfação de necessidades, mas da imposição
da necessidade da produção em progressão infinita. Como ele nos explica:
181
Korsch, K. Marxismo e filosofia, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008, p. 57-58.

107
A consciência do desejo e o desejo da consciência são o mesmo projeto que, sob a
forma negativa, quer a abolição das classes, isto é, que os trabalhadores tenham a
posse direta de todos os momentos de sua atividade. Seu contrário é a sociedade do
espetáculo, na qual a mercadoria contempla a si mesma no mundo que ela criou
(SdE, § 53).

A crítica ao irracionalismo da forma mercantil se dá no fato de que apesar de


demandar constante mudança, progresso ininterrupto de sua própria base, ela, todavia,
só pode manter seu domínio à medida que oferece os resultados de seu movimento
como perpétuos. Nesse sentido, o espetáculo é “absolutamente dogmático e, ao mesmo
tempo, não pode chegar a nenhum dogma sólido. Para ele, nada pára; este é seu estado
natural e, no entanto, o mais contrário à sua propensão” (SdE, § 71). Ademais, ele tem
ainda de mascarar a profunda divisão que é seu próprio resultado e sustentáculo como
“unidade irreal” (Debord). É assim que, de acordo com Debord:

O que obriga os produtores a participarem da construção do mundo é também o


que os afasta dela. O que põe em contato os homens liberados de suas limitações
locais e nacionais é também o que os separa. O que obriga ao aprofundamento do
racional é também o que alimenta o irracional da exploração hierárquica e da
repressão. O que constitui o poder abstrato da sociedade constitui sua não-
liberdade concreta (SdE, § 72).

Portanto, é esse o contexto de afirmação da ideia de que todo o esforço da luta


deve se fazer no sentido de reafirmar a busca de se colocar os homens em contato direto
com sua história. O proletariado, por sua condição particular dentro da sociedade de
classes, é visto então como a “classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes
ao resumir todo o poder na forma desalienante da democracia realizada” (SdE, § 221).
Por sua vez, essa democracia se dá na forma histórica dos Conselhos operários,
elemento fundamental da crítica do espetáculo.

A teoria dos Conselhos é retomada por Debord tendo como foco principal seu
elemento mais fundamental: o diálogo prático. Ora, ele afirma, “nem o indivíduo
isolado nem a multidão atomizada e sujeita à manipulação podem realizar essa ‘missão
histórica de instaurar a verdade no mundo’” (idem). Assim, os Conselhos surgem como
o espaço onde não impera a separação e onde todos os envolvidos na luta comum
realizam a comunicação em toda sua potencialidade, o completo oposto do monólogo
espetacular. A união dialética da teoria com a luta na forma dos Conselhos tem aí sua
expressão mais poderosa e é, portanto, de onde ela extrai toda sua força e se afirma
verdadeiramente como o negativo da ordem vigente. É com base nessa constatação que
108
Debord explica que “no poder dos Conselhos, que deve suplantar internacionalmente
qualquer outro poder, o movimento proletário é seu próprio produto, e esse produto é o
próprio produtor. Ele é seu próprio fim” (SdE, § 117).

Na forma dos Conselhos não está apenas a crítica prática da linguagem


espetacular, mas a crítica de todas as formas de organização pseudorrepresentativas,
portanto, ideológicas. Com isso, não escapa à reflexão o próprio papel das organizações
revolucionárias – dentre as quais a IS –, ainda que críticas do modelo sindical e
partidário, pois, segundo Debord, “uma organização revolucionária existente FRENTE
ao poder dos Conselhos – e ela tem de encontrar na luta sua própria forma – já sabe que
não representa a classe” (SdE, § 119).

Mas a organização revolucionária, todavia, não entra em contradição com os


Conselhos. Ainda que em teoria seu papel deva ser o de auxílio nas lutas ajudando a
fortalecer o elemento crítico das mesmas, ela de fato só se diferencia do partido e dos
sindicatos no momento em que estabelece pela prática o diálogo efetivo com as lutas
cotidianas e o desapego dos resultados das mesmas. Ora, Debord explica:

A organização revolucionária é a expressão coerente da teoria da práxis que entra


em comunicação não unilateral com as lutas práticas, em devir para a teoria prática.
Sua própria prática é a generalização da comunicação e da coerência nessas lutas.
No momento revolucionário, em que a separação social se dissolve, essa
organização deve reconhecer sua própria dissolução como organização separada
(SdE, § 120).

Portanto, para Debord, como instrumento antiideológico, a verdade da


organização revolucionária advém justamente do “reconhecimento e a autoprivação
efetiva, por todos os seus membros, da coerência de sua crítica, coerência que deve se
provar na teoria crítica propriamente dita e na relação entre esta e a atividade prática”
(SdE, § 121). Em outras palavras, é dizer que “a organização revolucionária não pode
reproduzir em si as condições de cisão e de hierarquia que são as da sociedade
dominante” (SdE, § 121). É assim que ela afirma sua “separação radical com o mundo
da separação” (SdE, § 119).182

182
Na verdade, ao fazer a diferenciação entre Conselho e a organização revolucionária, me parece não
haver problema em se compreender que Debord não está oferecendo nenhum ‘guia’ de como deva se dar
a revolução e que papéis devam ser assumidos. Se lembramos do contexto de extremo vazio no terreno da
crítica tanto teórica quanto prática no momento de surgimento da IS, é fácil perceber que não se poderia
dizer da mesma que se tratava de um movimento conselhista (pois a sua atuação nem sempre se deu pela
109
Quanto a nossa discussão acerca dos Conselhos, é importante ter em mente que,
no que diz respeito à forma de organização, eles não surgem como simples teoria, mas
como resultado espontâneo da luta prática:

O aparecimento dos Conselhos foi a realidade mais elevada do movimento


proletário no primeiro quarto do século, realidade que passou despercebida ou
disfarçada porque desaparecia com o resto do movimento que o conjunto da
experiência histórica de então desmentia e eliminava. No novo momento da crítica
proletária, esse resultado volta como o único aspecto não vencido do movimento
vencido (SdE, § 118).

Na Rússia revolucionária, por exemplo, os soviets foram fator decisivo na luta


pela derrubada do regime czarista, tendo, no entanto, seu poder esgotado pelo governo
bolchevique já a partir de um primeiro esboço da representação operária própria ao
espetáculo em sua forma concentrada. Como Rudolf Rocker explica em Os sovietes
traídos pelos bolcheviques (1921), Lênin, consciente do poder da organização popular
autônoma dos Conselhos, desde sempre via neles um desafio a sua estratégia de
organização da luta pelas bases da teoria do partido centralizador. No entanto, como os
bolcheviques não se constituíam numa maioria dentro do complexo quadro de agitações
sociais da Rússia daqueles dos anos 1910, sua estratégia foi a de manter um discurso de
aparente proximidade, o que, óbvio, se mostrou completamente ilusório no momento da
subida ao poder. Sob o slogan de “todo poder aos soviets!”, o regime de Lênin afirma
de vez a derrota da revolução na instauração da mentira da representação operária,
estabelecendo como norma que acima do “poder total” dos sovietes deveria estar o
poder do partido.183

prática), todavia, podendo ser dito muito menos que ela se pretendia como liderança de uma nova
tentativa revolucionária. De fato, ao definir por meio de sua crítica à ideologia que a organização
revolucionária não pode se pretender como liderança do processo revolucionário, o que Debord de fato
me parece afirmar é que a distancia entre o ‘agir’ e o ‘fazer’ seja superada e que efetivamente “os
operários se tornem dialéticos e inscrevam seu pensamento na prática” (SdE, § 123).
183
Onde não foi possível aos bolcheviques limitar as ações dos Conselhos pela imposição de sua
ideologia, eles o fizeram pela força. Os exemplos mais significativos são o massacre de Kronstadt (março
de 1921) e a revolução social ucraniana, ocorrida entre os anos de 1917 e 1921. A revolta de Kronstadt
tem início em 1º de março de 1921 após uma assembleia geral, onde os marinheiros da fortaleza naval de
Kronstadt lançaram uma resolução contendo 15 reivindicações junto ao governo bolchevique. Em seu
conjunto, essas demandas são um bom retrato da situação econômica da Rússia da época e dos rumos da
política de Lênin, que se era perversa diante dos camponeses e trabalhadores das cidades, mostrou de fato
todo o seu terror na sua resposta. Em 13 de março, um último apelo foi lançado pelos insurgentes onde se
podia ler: “Permanecemos fieis à causa da qual fizemos nossa – a libertação do povo do jugo que lhe foi
imposto pelo fanatismo de um partido – e morremos gritando: ‘viva aos sovietes livremente eleitos!’.
Possa o proletariado do mundo inteiro sabê-lo” (Rocker, R, op cit, p. 73). No caso da Ucrânia, os sovietes
110
A conclusão de Rocker não poderia ser outra:

O sistema dos conselhos não suporta qualquer ditadura, partindo ele próprio de
pressupostos totalmente diferentes. Nele se encarnam a vontade da base, a energia
criadora do povo, enquanto na ditadura reinam a coação de cima e a cega
submissão aos esquemas sem espírito de um diktat: os dois não podem coexistir. O
que resta deles é apenas uma cruel caricatura da ideia dos sovietes, um irrisório e
risível produto.184

Na Alemanha, por sua vez, os Conselhos se estabelecem durante a revolução


espartaquista de 1918-1919, quando chegaram a ocupar durante algum tempo a região
da Baviera. No entanto, a desorganização e radicalização de algumas ações a partir das
resoluções do partido comunista alemão185 foram fundamentais para sua derrota frente à
violenta intervenção militar do governo do socialdemocrata Ebert, com a execução dos
principais líderes do movimento que deu nome à revolução, ainda que esta não tenha se
resumido a sua atuação.186

Mas não percamos de vista o fato de que o surgimento dos Conselhos como
correta prática de organização é anterior às agitações do século XX. 187 Sua primeira
manifestação histórica significativa foi de fato a Comuna de Paris, e, se é assim, isso

surgiram como manifestações espontâneas de organização da produção, durante um período de relativa


tranquilidade no país motivado pelo envolvimento da Rússia na 1ª Guerra. O fim desta e a entrega do
território, antes dominado pelo Czar, ao jugo da Alemanha e da Áustria não apenas põe fim a um ano de
revolução, mas inicia um extenso movimento de libertação nacional que, logrando seguidos êxitos, se
estende a um movimento de revolução social. Nestor Makhno foi o principal nome entre os insurgentes.
Juntamente com seu exército negro, não só tentou promover a revolução em sua terra natal, como foi
fundamental para o êxito da própria revolução russa, evitando por mais de uma vez que ela fosse
derrotada pelas forças da contra-revolução. Ainda assim, por negar submissão à liderança bolchevique,
Makhno e seus aliados foram combatidos seguidas vezes até que, numa emboscada, vários makhnovistas
foram assassinados, tendo o próprio Makhno escapado por pouco e se refugiado na França até sua morte.
184
Rocker, R., Os sovietes traídos pelos bolcheviques, São Paulo: Hedra, 2007, p. 77-78.
185
Surgido da união de radicais egressos do partido socialdemocrata e da Liga Espartaquista, que, no
entanto, permaneceu como grupo mais ou menos autônomo no interior do partido.
186
Uma boa análise da revolução espartaquista pode ser vista em Uma revolução na encruzilhada da
história, de Perla Haimovich, presente em Rosa, a vermelha: vida e obra da mulher que marcou a
história da revolução no século XX (São Paulo: Busca vida, 1987). Neste artigo, a autora explica como
um dos motivos da falha da revolução o fato do próprio grupo Espártaco ter assumido uma posição “ultra-
esquerdista, que exigia do movimento operário e da Revolução Alemã mais do que estes podiam dar e
colocando-se eles próprios acima do processo real” (op. cit., p. 23-24). Explicando a recusa do partido
em participar da Assembleia Geral convocada pelo governo em favor da convocação da insurreição que a
impedisse, a autora completa: “Rosa Luxemburg compreendia que a situação revolucionária estava
deteriorada, que o capitalismo ‘ferido de morte’ se revitalizava e a república se consolidava e que seria
necessário se organizar e se preparar para o momento oportuno de uma insurreição. Mas, apesar de sua
autoridade no partido, ficou em minoria e teve que acatar as decisões. O mesmo ocorreu na controvérsia
da insurreição de janeiro, à qual Rosa Luxemburgo se opôs por considerá-la prematura” (ibidem, p. 24).
187
O movimento dos conselhos não se resume às revoluções russa e alemã. Outras manifestações do
período em questão incluem a Hungria (1919), Itália (1919-20), Irlanda (1920-21), China (1926-27) e a
Espanha (1936-39).
111
nos leva a traçar sua gênese à própria origem da teoria revolucionária enquanto esta
esteve firme como teoria unitária. É o próprio Rocker quem faz essa referência:

Ela desenvolveu-se no seio da fração mais avançada do movimento operário


europeu, quando a classe operária organizada preparava-se para despojar os
últimos restos e escorias do capitalismo burguês e voar com suas próprias asas; ou
seja, quando a Associação Internacional de Trabalhadores fez a grande tentativa de
reunir os proletários dos diferentes países para preparar e conduzir sua libertação
do jugo da escravidão do salariado.188

Ora, de fato, a teoria em sua concepção unitária pode ser entendida como a
perfeita expressão dos Conselhos. Entendemos assim essa complexa relação que
enxerga a organização revolucionária já ela mesma como crítica ao não compactuar com
nenhuma forma de poder separado, e a teoria já como forma de organização ao não
conceber a separação entre consciência e ação prática.

Por fim, concluímos reafirmando que a autonomia da prática dos Conselhos


deve se expressar com o êxito da revolução para Debord na própria humanidade
tomando o controle da história sob suas próprias mãos. É dizer que ela deva por fim de
uma só vez à sociedade da separação e ao jugo das forças econômicas em sua
autonomia irracional. Tal realização histórica implica necessariamente passar à
consideração das necessidades como necessidades históricas, tendo em vista que “a
pseudonecessidade imposta pelo consumo moderno não pode ser contrastada a nenhuma
necessidade ou desejo autêntico que não seja, ele mesmo, produzido pela sociedade e
sua história” (SdE, § 68). A teoria revolucionária, da forma que Debord a concebe é,
portanto, a realização consequente da indagação dos situacionistas acerca do uso da
vida, que por sua vez não se separa do uso do tempo. Ora, ele afirma:

O tempo irreversível da produção é antes de tudo a medida das mercadorias.


Assim, o tempo que se afirma oficialmente em toda a extensão do mundo como o
tempo geral da sociedade significa apenas os interesses especializados que o
constituem: é um mero tempo particular (SdE, § 146).

Discussão muito parecida é a de Benjamin em sua crítica à ideologia do


progresso, onde apresenta a concepção de “‘infinito temporal qualitativo’ (qualitative
zeitliche Unendlichkeit)”189 em oposição à de “tempo infinitamente vazio (leere

188
Ibidem, p. 78.
189
Löwy M., Walter Benjamin: aviso de incêndio, uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”,
São Paulo: Boitempo, 2005, p. 125.
112
Unendlichkeit der Zeit)”190, o primeiro se tratando, portanto, do tempo ligado à
realização histórica, realização que não é a linearidade do tempo da produção e do
consumo, mas, ao contrário, consideração do tempo por seu uso. Do outro lado, o tempo
vazio é o tempo da modernidade, do ‘pseudocíclico’ (Debord) que escraviza os homens
entre produzir e contemplar o que produzem. Ora, como bem lembra Michael Löwy em
seu Walter Benjamin: aviso de incêndio, Benjamin, em Das Passagen-Werk, com base
em sua síntese única entre marxismo e messianismo judaico, alude à própria
condenação quando afirma que “a quintessência do inferno é a eterna repetição do
mesmo”.191 A alusão não poderia ser melhor para fazer relação à crítica do espetáculo.

Para Debord, como história consciente humana, “a história que ameaça este
mundo crepuscular é também a força que pode submeter o espaço ao mundo vivido”
(SdE, § 178). Sendo assim, para ele, a ideia mais revolucionária acerca do urbanismo
“não é uma ideia urbanística, tecnológica ou estética” (SdE, § 179), mas a retomada do
reconhecimento do uso do tempo e da vida pela superação da separação imposta no
espaço, ou seja, “a decisão de reconstruir integralmente o território de acordo com as
necessidades do poder dos Conselhos de trabalhadores, da ditadura anti-estatal do
proletariado, do diálogo executório” (idem). Como crítica total do mundo da
mercadoria, também “a revolução proletária é a crítica da geografia humana através da
qual os indivíduos e as comunidades devem construir os locais e os acontecimentos
correspondentes à apropriação, já não apenas de seu trabalho, mas de sua história total”
(SdE, § 178). A nova sociedade, portanto, são os homens ditando as próprias regras de
seu jogo, conscientes de sua experiência como algo muito maior que a busca por
reconhecimento e espaço num mundo do qual se está alheio; é o “reconhecer a si
mesmo em seu mundo” (SdE, § 179), ou seja, é “trazer de volta a realidade da viagem, e
da vida entendida como uma viagem que contém em si mesma todo o seu sentido”
(SdE, § 178). Na dissolução da separação está a dissolução da ideologia e o
estabelecimento do diálogo. Não se trata de resolver todas as questões, mas de colocá-
las como resultado da história prática que já não se realiza mais como prática invertida
resultado de um mundo invertido. “Emancipar-se das bases materiais da verdade

190
Ibidem, p. 21.
191
Ibidem, p. 90.
113
invertida, eis no que consiste a auto-emancipação de nossa época” (SdE, § 221); com
essas palavras Debord abre a última tese de A sociedade do espetáculo.

Considerações Finais

Debord retoma a teoria crítica em suas bases fundamentais ao analisar o


espetáculo como a sociedade histórica de classes em seu desenvolvimento mais recente,
a partir da perspectiva de uma oposição entre as forças produtivas autonomizadas e o
conjunto do mundo prático. Sua crítica, portanto, retoma a ideia fundamental de que se
nessa relação os homens são escravos do mundo que eles mesmos criaram, cabe aos
mesmos a tarefa de retomar o controle desse mundo, tendo em vista que nisso implica
tomar controle de suas próprias vidas.

O que ele traz de novo é a compreensão do mais recente momento de


desenvolvimento do capitalismo surgido a partir das derrotas das lutas revolucionárias
ocorridas nas primeiras três décadas do século XX. Por se tratar de um novo momento,
trata-se para ele, portanto, de se fazer uma nova crítica, trazendo uma nova perspectiva
e novos elementos. Segundo Debord, o espetáculo é resultado do domínio total da
mercadoria sobre o mundo no momento em que esta estabelece um modelo de controle
social que permite aos países atrasados realizar a acumulação de capital que lhes foi
historicamente negada. Esse modelo é o da representação burocrático-estatal, e tem sua
primeira experiência na contrarrevolução operada na Rússia pelos bolcheviques. Tal
modelo, todavia, só é possível como resultado do desarranjo e do esgotamento do
movimento operário a partir da falsidade dessa representação, difundida em nível
mundial a partir da Terceira Internacional, e do uso da força, caso da Alemanha nazista.
Portanto, a razão de ser da representação é a própria ideologia da qual ela não pode se
separar, ideologia que apresentada sob diversos matizes é, no essencial, a ideologia do
progresso econômico. Entendê-la, com isso, é entender os mecanismos que fazem – ou
faziam – a sociedade capitalista superdesenvolvida aparecer como incontestável, daí
ficando evidente o papel da crítica da vida cotidiana nos anos de atuação da IS.

Mas se num primeiro momento o espetáculo se mostrava dividido, tal qual a


sociedade sobre a qual havia surgido, sua afirmação como força econômico-estatal
organizada para a sujeição se confirma no momento em que suas duas formas,

114
espetacular difuso e espetacular concentrado, se fundem no que Debord chamou de
espetacular integrado. Esse novo momento surge em resposta às lutas contestatórias
surgidas de modo espontâneo dessa vez no interior da própria forma difusa, esta onde a
mercadoria se mostrava até então incontestável, por meio de liberdade total afirmada na
ideologia da representação pelo consumo. Se o espetáculo até aí mostrava sua face de
terror explícita apenas na exploração do trabalho do regime concentrado, no espetacular
integrado já não se trata de esconder sua natureza. Ele se mostra como o que é de fato, e
pune violentamente a todos os que o contestam. Em realidade, o tempo do espetacular
integrado é o nosso tempo...

Nesse trabalho procurei discutir a profundidade da crítica do espetáculo com


base na crítica da ideologia espetacular. Resultado do domínio histórico da mercadoria
sobre o mundo, essa ideologia se mostra sob a complexidade do poder do capital de
criar uma visão distorcida e ilusória da realidade tanto por meio da produção da
consciência social quanto na construção do mundo objetivo, tudo isso concorrendo para
seu reforço no movimento incessante de autocontemplação. Ao fazê-lo, portanto, impõe
à consciência mundana a contemplação de sua própria vida na impossibilidade de
afirmar seus desejos e necessidades como desejos e necessidades históricos, permitindo
apenas a participação no seu mundo por meio das pseudonecessidades e da falsa
felicidade do consumo mercantil.

Desse modo, para entender o espetáculo e seu corolário ideológico partimos da


discussão da economia sem, contudo, desligá-la do movimento prático; este que na
forma das lutas do século XX assistiram a origem e desenvolvimento do próprio
espetáculo – se colocando agora, portanto, a tarefa de destruí-lo.

Ressaltamos que, pela complexidade do fenômeno, a questão da ideologia


espetacular não pode prescindir de uma análise profunda com base no desvio das
conquistas das próprias pesquisas no campo da produção da consciência, isto é, da
psicanálise, entendida aqui como ciência histórica dos fenômenos da consciência
burguesa. Debord, por exemplo, desvia a teoria freudiana do sonho como metáfora,
explicando a passividade do espectador como alguém adormecido no pesadelo do
espetáculo – ainda que esse evento angustioso apareça a ele como sonho, impedindo-o
de ‘acordar’ para as conquistas históricas das quais ele deve se apropriar. Contudo,
115
como procuramos mostrar, é no desvio da teoria da falsa consciência de Gabel, que
encontramos os elementos que de fato nos permitem compreender a crítica da ideologia.
Ademais, o fato do autor de A falsa consciência ter sido, de certa forma, marginalizado
por sua “ousadia” em juntar psicologia e crítica social, nos ajudam a entender a atenção
de Debord a sua obra.

Finalizamos discutindo os aspectos essenciais da teoria revolucionária,


especialmente na discussão da unidade indissociável entre teoria e prática, o que se
manifesta na história das lutas revolucionárias na figura dos Conselhos. Estes, enquanto
movimentos surgidos de maneira espontânea, não são resultado da teoria, mas sua
confirmação, ou, melhor dizendo, a confirmação da teoria enquanto compreensão da
luta prática. Dessa maneira, na teoria dos Conselhos, tal qual Debord a compreende, a
linguagem, na discussão de sua crise moderna, ganha sua realização definitiva. Ora, se a
discussão acerca da autodestruição da arte dos primeiros anos da IS se transforma
progressivamente, “por feliz consequência da marcha ousada nessa direção”, 192 em
crítica social sistemática, “lutando no meio dos inimigos irreconciliáveis do espetáculo”
e admitindo “estar ausente lá onde eles estão ausentes”, o desenvolvimento consequente
da crítica da linguagem também só pode ser a dissolução da separação por meio da
revolução. De fato, o assunto é de extrema relevância, e mesmo não o tendo explorado
em primeiro plano nessa discussão, espero não tê-lo negligenciado em seus aspectos
essenciais, especialmente no que toca a uma melhor compreensão do problema da
ideologia.

Por fim, concluímos afirmando mais uma vez a importância e infeliz atualidade
da crítica de Debord, que para seu mérito e triste constatação em muito tem se
confirmado a cada novo movimento do espetáculo no momento atual da luta de classes.
Todavia, como afirma Debord no “Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do
espetáculo”, “o maior resultado da decomposição catastrófica da sociedade de classes é
que, pela primeira vez na história, o velho problema de saber se a maioria dos homens
ama a liberdade está superado: agora, eles vão ser obrigados a amá-la”.193

192
Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo. In: Debord, G., op. cit., p. 151.
193
Ibidem, 162.

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