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EQUIPAS DE NOSSA SENHORA

HOMEM E MULHER
ELE OS CRIOU

REFLEXÃO CRISTÃ
SOBRE A SEXUALIDADE

EQUIPA RESPONSÁVEL INTERNACIONAL


1.ª EDIÇÃO - 2003

1
“A mão de Deus” Auguste Rodin (1840-1917)
Número de inventário S 988 - Mármore esculpido por Soudbinine em 1916 ou 1917 - 94 x 82,5 x 54,9 cm

Ao modelar esta obra audaciosa, Rodin rompe totalmente com toda a espécie de composição
tradicional e adopta uma forma que se dirige directamente à imaginação. A mão que amassa
poderosamente a matéria de onde surge o ser criado é a divindade que do nada faz emergir a
humanidade; é também a imagem simbólica do artista que inventa um mundo. Rodin possuía um
profundo conhecimento da arte da Idade Média e da Renascença.
Foi possível determinar que a Mão de Deus tem origem num estudo de mão utilizado para duas
personagens do grupo Os Burgueses de Calais, cujos gestos evocam o desespero e o adeus. É
um exemplo particularmente interessante da capacidade de Rodin de dar significados completa-
mente diferentes a obras constituídas de elementos comuns.
Extraído do sítio da Internet do Museu Rodin (http://musee-rodin.fr – 77, rue de Varenne – 75007 Paris – Tel.: 0144186110.

© Imagem da capa: Museu Rodin – Paris


Fotografia: Eric e Petra Hosmerg

2
SUMÁRIO

Introdução .................................................................................................... 5
1. «Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe»
(Gn 2, 24) – O encontro cria-nos .................................................................... 9
2. «E eles se tornam uma só carne»
(Gn 2, 24) – Do carnal ao espiritual ................................................................ 19
3. «Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom»
(Gn 1, 3) – O acto sexual é bom ...................................................................... 29
«O teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará»
(Gn 3, 16) – Construir juntos uma sexualidade harmoniosa ........................... 41
5. «O que Deus uniu, o homem não deve separar»
(Mt 19, 6) – Juntos para sempre, a fidelidade ................................................. 51
6. «Cada um de nós prestará contas a Deus de si próprio»
(Rm 14, 12) – A consciência ............................................................................ 63
7. «Sede fecundos»
(Gn 1, 28) – Dar fruto, a fecundidade ............................................................. 73
8. «Glorificai a Deus no vosso corpo»
(1 Cor 6, 20) – O vosso corpo é templo do Espírito Santo .............................. 89
Bibliografia .................................................................................................. 101

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4
INTRODUÇÃO

«Deus é amor e vive em Si mesmo um mistério de comunhão


pessoal de amor. Ao criar a humanidade do homem e da mulher
à sua imagem e conservando-a continuamente no ser, Deus ins-
creveu nela a vocação ao amor e à comunhão e, portanto, a ca-
pacidade e a responsabilidade correspondentes. O amor é, por-
tanto, a fundamental e original vocação do ser humano» (João
Paulo II, Exortação Apostólica Familiaris Consortio).
Vivemos no nosso casal esta vocação fundamental, e, reto-
mando as palavras que o Papa Paulo VI dirigiu às Equipas de
Nossa Senhora a 4 de Maio de 1970, «é todo o ser que participa
dessa vocação, nas profundezas do seu mistério pessoal, das suas
componentes afectivas, sensíveis, carnais, bem como espirituais,
até constituir cada vez melhor aquela imagem de Deus que o
casal tem por missão encarnar ao longo do tempo, tecendo-a
com as suas alegrias e com as suas provações, porque é verdade
que o amor é mais do que o amor. (…) O cristão sabe que o amor
humano é bom desde a sua origem, e se é, como tudo no homem,
ferido e deformado pelo pecado, encontra em Cristo a sua salva-
ção e a sua Redenção».
Inscrevendo-se nesta perspectiva de salvação, este tema pro-
põe que cada casal cristão descubra com admiração que, logo
nas origens, Deus uniu no mesmo acto a expressão do amor do
homem e da mulher e o poder de dar vida. Assim, cada um será
convidado a deixar-se interpelar pela Palavra de Deus e pela Igre-
ja, a formar a sua consciência relativamente a estas questões tão

5
delicadas e tão essenciais, a fim de ultrapassar a problemática do
permitido e do proibido.
Como escrevia o Padre Bernard Olivier, op, na conclusão do
estudo «Evangelizar a sexualidade» 1 realizado em 1991 e 1992
pelas Equipas de Nossa Senhora, impõe-se à Igreja uma das ta-
refas mais importantes: «formar cristãos adultos responsáveis,
capazes de decidir por si próprios no respeito pelos valores mo-
rais». Esta tarefa está no centro da pedagogia do Movimento
das Equipas de Nossa Senhora.
Este tema, a trabalhar em casal e em equipa durante 8 reu-
niões, pretende ser uma aplicação nesta área particular, rico e
sensível, que é o amor conjugal em todas as suas componentes,
particularmente na sua dimensão mais íntima, a sexualidade.
Tudo isto passa, evidentemente, pelo diálogo em casal, que po-
derá tomar a forma de um frutuoso «dever de se sentar».
O percurso proposto é o seguinte:
* Capítulo 1: o encontro cria-nos;
* Capítulo 2: a Palavra interpela-nos acerca da sexualidade;
* Capítulo 3: a beleza do acto sexual;
* Capítulo 4: as dificuldades da sexualidade;
* Capítulo 5: a fidelidade;
* Capítulo 6: a consciência;
* Capítulo 7: a fecundidade;z
* Capítulo 8: a santificação do nosso amor.
Em cada capítulo encontraremos:
- testemunhos;
- elementos de reflexão;
- questões a debater em casal e em equipa;

1
«Evangelizar a sexualidade»: Uma equipa internacional formada por mem-
bros das Equipas de Nossa Senhora reuniu e resumiu as respostas de 11 000
equipistas do mundo inteiro que tinham aceitado estudar este tema proposto pelo
Movimento na linha do Segundo Fôlego, lançado em Lourdes em 1988, e res-
ponder às perguntas formuladas; os equipistas exprimiram-se em verdade, tendo
sido garantido o anonimato das respostas.

6
- uma oração tirada do Cântico dos Cânticos 2 ou do Novo
Testamento;
- um ou vários textos de acompanhamento.

O Cântico dos Cânticos


“É um cântico de amor dialogado. Duas vozes principais — a
do homem e a da mulher — intervêem equilibradamente para
falarem do desejo, da busca apaixonada do outro, da admiração
diante da sua beleza, da dor da ausência, da alegria da mútua
pertença, dos fugidios instantes de felicidade. As maravilhas da
Criação são convocadas para exprimir a força do amor: a deli-
cada beleza das plantas, a benfazeja sombra das árvores, o odor
saturante dos perfumes, as delícias dos jardins, a doçura dos
frutos, a frescura pura das nascentes e das fontes, o esplendor
das pedras preciosas, a graça dos animais, a embriaguez do vi-
nho. Todo o Cântico está repassado de uma atmosfera sensual.
Mergulha-nos no esplendor da Criação anterior à Queda. Eis-
-nos, como Adão e Eva, hóspedes do jardim das origens”.
“Deste canto de amor por excelência (a repetição da palavra
cântico indica um superlativo) foram feitas diversas interpreta-
ções: amor entre Deus e Israel, entre Cristo e a Igreja, leitura
mística … As várias leituras não se excluem. Em todo o caso, o
Cântico mostra-nos que a Bíblia não receia cantar o amor hu-
mano e fazer dele a linguagem suprema da revelação divina, o
que, consequentemente, confere a este amor uma grande digni-
dade e um grande valor. O amor e a sexualidade não são reali-
dades más nem vergonhosas, uma vez que são adequadas para
falar de Deus e do seu plano de amor para o homem”.
(Jacques de Longeaux, Amour, Mariage et Sexualité, Ed. Mame / Le Cerf, p. 64)

2
Cântico dos Cânticos, tradução do hebraico do Padre José Tolentino Men-
donça. Edições Cotovia Lda., Lisboa, 1997.

No fim do livro, é proposta uma bibliografia não exaustiva, mas cujos elementos poderão
esclarecer nos campos psicológico ou fisiológico ou ainda no que diz respeito à medicina.

7
8
«Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe»
(Gn 2, 24)

CAPÍTULO 1
O encontro cria-nos

TESTEMUNHOS

«O início, exaltação, descoberta, novidade e facilidade. É uma


lufada de oxigénio ou de grisu! Uma maravilha com o desejo
louco de união corporal mas também onde tudo começa: a pro-
fissão, a responsabilidade, a vida conjugal … no amor nada é
melhor do que o início. Mas depois há que recomeçar… com o
mesmo cônjuge».
«Quando somos amados, somos reconhecidos pelo outro. Isto
é muito importante para avançarmos, para nos realizarmos e
para termos confiança em nós próprios».
«Lembro-me de um pequeno aperto no coração quando dei-
xei os meus pais e, sobretudo, os meus irmãos mais novos».

ELEMENTOS DE REFLEXÃO

O ser humano realiza o seu destino na relação: «Ninguém é uma


ilha que se baste a si própria», disse John Donne 1 , «todo o homem é
uma parcela de continente, uma parte do todo»: presta contas a um, é
responsável por outro; assim, ninguém pode trabalhar pelo seu autode-
senvolvimento sem ter em atenção o vizinho. A autonomia implica

1
Poeta metafísico inglês do século XVII.

9
não o individualismo em que cada um faz as suas escolhas sozinho e
por si mas a capacidade de responder pelos seus actos, antes de mais
perante si próprio, mas também perante os outros: a pessoa humana
não pode encontrar em si própria o sentido da vida; tem necessidade
de alimentar o seu desejo de viver, de ser reconhecida, acolhida e
aceite pelos outros. Estamos inseridos num tecido de relações que co-
meça logo no primeiro instante da nossa existência no seio materno.
Nunca estamos sós; mesmo uma pessoa solitária não pode viver sem
contacto com outrem, quanto mais não seja em sonhos, em recorda-
ções, por antecipação … Esse outro «que vem de algures», para nós
que somos cristãos, é o Absolutamente Outro, o próprio Deus.

«Amo-te, porque preciso de ti»

O desejo de encontrar prazer no encontro com o outro está na ori-


gem de toda o impulso sexual. Resume-se a esta frase: Amo-te, por-
que preciso de ti. Este desejo é a expressão de uma necessidade vital
física, do medo da solidão, da preocupação de preencher um vazio.
Quem é a mulher ou o homem que não se lembra do seu primeiro
encontro amoroso? Deslumbrante ou lentamente amadurecido, como-
veu o coração, mudou os olhares e os gestos, alterou o próprio ritmo
da vida: ela, que só estava bem no coração da grande cidade, encontra
de repente tempo para um passeio com ele no bosque ou na serra; ele,
que não podia privar-se da moto ou do carro, passa a noite no com-
boio sem outra razão senão a de passar um dia na companhia daquela
que adora. Pouco importa quem fez o primeiro gesto ou quem disse a
primeira palavra, nada parece faltar à felicidade, o resto do mundo
eclipsa-se — dando ou recebendo sou livre para me afirmar e para
desabrochar. Aqui estou finalmente adulto, eu próprio, sem sombras.
Nesta primeira fase do encontro amoroso, pouco importa que o
outro me conheça ou não verdadeiramente; para mim, o essencial é
ser valorizado por ti. Eu é que sou importante. Na história, o sapo diz
à princesa: «Não quero pérolas nem diamantes, basta que me aceites
como sou». Mas esta busca da comunhão com aquele ou aquela por
quem sentimos simpatia pode tornar-se angustiante. Quem não sofreu
os tormentos nascidos da indiferença, dos silêncios, do ciúme, da re-
jeição? Na verdade, quando um homem e uma mulher se encontram,
acontece por vezes, mesmo que nunca se tenham visto antes, terem a
impressão de se conhecerem desde sempre; e, no entanto, o desejo
que os impele um para o outro remete-os indefinidamente para si
mesmos.

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Assim, a atracção física não basta para prolongar indefinidamente
o encanto da primeira paixão amorosa, apesar do desejo dos que a
vivem de a fazer durar eternamente. A duração transforma o prazer
de estar apaixonado e, por vezes, corrói-o. Surgem as diferenças. Se a
reciprocidade dos impulsos amorosos é, à partida, fonte de descober-
ta e de enriquecimento, em breve corre o risco de se tornar causa de
desencanto, não só por causa da diferença anatómica dos nossos cor-
pos ou dos defeitos que se revelam mas porque o outro não vive ma-
nifestamente no mesmo planeta. Aqui e agora estamos bem juntos;
mas, ao aprofundarmos o conhecimento do outro, descobrimos os tra-
ços que nos separam, as diferenças e as divergências: o outro não vê
o mundo, os acontecimentos, o futuro e a felicidade com os mesmos
olhos.
As nossas sensibilidades são diferentes, não fomos educados da
mesma maneira. Adão desiludido poderia dizer: «Esta não é osso dos
meus ossos nem carne da minha carne». Irá ele ficar na sua decepção,
ou será que o amor o fará descobrir a capacidade de dar um passo em
frente? Esta é a questão crucial que se põe nesta primeira fase do
encontro amoroso. Estamos ainda longe da escolha responsável que
consiste em reconhecer o outro como estranho, em lhe dar o direito de
fazer as suas próprias escolhas, de ter a sua sensibilidade e os seus
gostos, de ter a sua própria percepção da realidade, de fazer as suas
opções no mundo em que vive.

«Como posso conhecer-te, se não és como eu?»

O respeito pelo outro, em toda a amplitude da expressão, é o desa-


fio que resulta da primeira decepção e que determina a segunda eta-
pa. Algumas pessoas reagem ao facto de o outro ser diferente, evitan-
do o que consideram uma perigosa ilusão da juventude ou trocando
de parceiro por julgarem encontrar o segredo da felicidade na busca
de um prazer sem limites. Esgotam-se a procurar o desabrochar da
sua personalidade na fruição do instante.
O «Eu» é incontornável: eu sou um ser singular. A minha própria
história afasta-me daquele para quem me sinto atraído com o coração
e com os sentimentos. É o limite de toda a relação amorosa, relação
particularmente frágil de entre todas as formas de relações humanas
porque fortemente carregada de emoções.
A alteridade — o facto de o outro ser justamente outro, o próprio
fundamento da sexualidade — faz surgir esta tensão dolorosa que re-

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sulta da impossibilidade de eliminar a diferença radical homem-mu-
lher (eu-tu). O desejo de fusão choca com o reconhecimento do ca-
rácter ilusório de uma harmonia total. Estamos prontos a dar na medi-
da em que somos recompensados. Assim que o fascínio dos sentidos
se atenua, já não resta senão a satisfação das necessidades vitais. O
que se procura não é a abertura, o dom a outrem, mas a segurança do
complemento ao que falta: aqui, agora e já. Apesar do sedutor atrac-
tivo da reciprocidade, o medo da perda das fronteiras individuais im-
pede a conivência profunda do casal.
A comunicação amorosa torna-se, então, deficiente: sentimos aquele
que toma lugar na nossa existência ao mesmo tempo como fonte de
prazer e como obstáculo à nossa segurança interior. Para que a rela-
ção progrida, é preciso que quem ama aceite que o ser amado seja
diferente de si próprio.
Por um lado, estou apaixonado e não posso voltar atrás e, por ou-
tro, ainda não estou preparado para ligar para sempre o meu destino
ao de outra pessoa, com medo de perder o que tinha pensado encon-
trar: a segurança e um espaço de liberdade.

«Não posso fazer de conta que não existes»

O outro, o ser amado, chama à responsabilidade. A educação dos


pais tem a preocupação de dar sentido a este desejo sexual, e nós
interpretamo-lo como a expressão de uma vontade de partilhar tudo,
o ser e a relação. Nos nossos dias, a mudança dos costumes numa
sociedade plural — em que a vida sexual está isenta das leis naturais
da vida reprodutiva — faz com que já não se admita a forma de rela-
ção do casal regida pela obrigação moral ou pela má consciência. É
preciso passar de uma solidariedade de facto, fundada no sentimento,
a uma solidariedade fundada numa decisão de natureza moral expres-
sa por um compromisso e por gestos livres.
Os apaixonados, conscientes da distância que os separa, estão pron-
tos a aceitar-se mutuamente, a descobrir-se, a levantar o véu dos ta-
bus. Actualmente, o maior impedimento à aproximação dos apaixo-
nados reside na presunção daquele que se afirma em detrimento do
outro e julga transformá-lo. Brincando aos falsos samaritanos, longe
de valorizar o outro, corre o risco de o reduzir a um objecto que, como
um espelho, reflicta a sua própria imagem.
Em vez de lisonjear a imagem ideal de si e os seus fantasmas, cada
um no casal, para progredir, vai ter que abdicar e saber aceitar a pri-

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vação da posse sem medo de perder o domínio sobre o outro. O meu
próximo é aquele que me ajuda a ser eu próprio. Com toda a liberda-
de, um conduz o outro à autonomia: cada um respeita a originalidade
do outro, os seus carismas e os seus privilégios, as suas fraquezas e as
suas carências.
O percurso dos apaixonados suscita a curiosidade de descobrir o
jardim secreto um do outro. Deixando-se cativar como a raposa do
Principezinho 2 , pode-se abandonar o receio de ser explorado; adqui-
re-se a audácia de enfrentar os riscos do imprevisível e do desconhe-
cido. Pode-se renunciar à protecção paterna, deixar a casa dos pais
para ir viver na sua própria geração e alegrar-se com a alteridade do
outro: a sua diferença é já não uma ameaça mas uma fonte de curiosi-
dade e de ternura. Consente-se em que o outro tome a liberdade de
falar na primeira pessoa do singular. Assim, pela sua intervenção e na
ternura, cada um leva o outro a descobrir a sua identidade real, a sua
masculinidade ou a sua feminidade, e a afirmar-se na franqueza dessa
intimidade. «O eu desperta para a graça do tu», diz Marie Balmary 3 .
Como o homem e a mulher se tornaram sujeitos autónomos, «co-
mendo cada um, sem falsos pudores, o seu naco de pão e bebendo da
sua taça» 4 , assumindo e respeitando inteiramente as diferenças, a sua
aliança já não depende das contingências do desejo, de princípios mo-
rais, sofridos ou não integrados, das opções de uma sociedade tec-
nológica plural que tem a forte marca do imperativo de não dar senão
na medida em que se recebe em troca.

«Preciso de ti, porque te amo»

É a última fase do encontro amoroso, a da autonomia, do despren-


dimento atencioso e da solicitude sem nada esperar. Avançando no
caminho que escolheram, os apaixonados podem deixar-se arrastar
com confiança por uma dinâmica em cujo desenvolvimento já não
receiam perder o domínio. Podem finalmente conhecer-se na paixão
amorosa, ou seja, nascer juntos no abraço, sair de si próprios para
partirem a dois para o futuro, semelhantes mas diferentes. É a meta-
morfose da realização do desejo que nos faz entrever o absoluto: «O
absoluto só se pode atingir pelo amor, seja ele divino ou humano» 5.

2
Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho.
3
Marie Balmary: psicanalista cristã.
4
Khalil Gibran: escritor libanês (1883-1931).
5
Jacques de Bourbon-Busset, membro da Academia Francesa.

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O amor vivido desta forma permite que o eu venha ao de cima.
Eu posso viver e deixar-te viver, posso fruir os sentidos, mas deixo-
te espaço para desabrochares; tu para mim és precioso(a), porque
te amo. Só nos tornamos realmente nós próprios graças ao amor do
outro.
Nós, cristãos, que referências encontramos na fé para explicar este
processo que permite o crescimento na comunhão de amor de uma
relação de duas pessoas completamente diferentes?

PERGUNTAS

Para o diálogo em casal

* Que lembramos do nosso primeiro encontro? (Cada um pode


contar a sua versão por escrito e, depois, trocarem). De que natu-
reza são as recordações que emergem deste olhar para trás e quais
as emoções que as acompanham?

* De que maneira esse encontro provocou em nós alguma mudan-


ça? Antes de encontrar o outro, para quem ou para quê se diri-
giam os nossos interesses?

* Apercebo-me todos os dias (talvez várias vezes por dia) que o meu
cônjuge é diferente de mim, ora príncipe(princesa), ora sapo …
Quais são as cadeias que nos impedem de nos voltarmos para o
futuro numa atitude de confiança total? Como conciliamos as
exigências de uma profunda harmonia amorosa com um grande
respeito pelo outro? Como reagimos ao facto de a vida a dois nos
suscitar renúncias, por vezes difíceis, e em que é que o nosso
projecto comum pode ser fonte de plenitude?

Para o diálogo em equipa

* Podemos começar por um pôr em comum acerca do nascimento


do amor que nos une: como passámos do encantamento dos pri-
meiros dias ao compromisso no sacramento do matrimónio?
* O encontro com o nosso cônjuge pode mudar as nossas relações
com os outros. Como?
* Como é que os outros aceitam o nosso casal e os valores a que
adere? Sentimo-nos apoiados ou desencorajados?

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ORAÇÃO

Texto para a oração da equipa (Jo 1,35-51):

No dia seguinte, João achava-se lá de novo, com dois dos seus dis-
cípulos. Ao ver Jesus que passava, disse: «Eis o cordeiro de Deus!».
Os dois discípulos ouviram-no falar e seguiram Jesus.
Jesus voltou-Se e, vendo que eles O seguiam, disse-lhes: «Que
procurais?». Disseram-Lhe: «Rabi (que, traduzido, significa Mestre),
onde moras?».
Disse-lhes: «Vinde e vede». Então eles foram e viram onde mora-
va, e permaneceram com Ele aquele dia. Era a hora décima, aproxi-
madamente.
André, o irmão de Simão Pedro, era um dos que ouviram as pala-
vras de João e seguiram Jesus. Encontrou primeiramente Simão e
disse-lhe: «Encontrámos o Messias» (que quer dizer Cristo). E con-
duziu-o a Jesus. Fixando-o, disse-lhe Jesus: «Tu és Simão, o filho de
João; chamar-te-ás Cefas» (que significa Pedra).
No dia seguinte, Jesus resolveu partir para a Galileia e encontrou
Filipe. Jesus disse-lhe: «Segue-Me».
Filipe era de Betsaida, a cidade de André e de Pedro. Filipe encon-
trou Natanael e disse-lhe: «Encontrámos Aquele de quem escreveram
Moisés, na Lei, e os Profetas: Jesus, filho de José, de Nazaré».
Perguntou-lhe Natanael: «De Nazaré pode sair algo de bom?».
Filipe disse-lhe: «Vem e vê!».
Jesus viu Natanael vindo até Ele e disse a seu respeito: «Eis um
verdadeiro israelita, em quem não há fraude».
Natanael disse-Lhe: «De onde me conheces?». Respondeu-lhe Je-
sus: «Antes que Filipe te chamasse, Eu vi-te quando estavas sob a
figueira».
Então Natanael exclamou: «Rabi, Tu és o Filho de Deus, Tu és o
Rei de Israel».
Jesus respondeu-lhe: «Crês, só porque te disse: “Vi-te sob a figuei-
ra”? Verás coisas maiores do que essas».
E disse-lhe: «Em verdade, em verdade, vos digo: Vereis o Céu aberto
e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem».

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TEXTOS DE ACOMPANHAMENTO

A voz do meu Amado

A voz do meu amado!


ei-lo que chega
corre pelos montes
salta nas colinas
o meu amado é semelhante a um gamo
ou a uma cria de gazela
ei-lo por detrás dos nossos muros
olha pelas janelas
espreita pelas frinchas
fala o meu amado e diz-me:
Levanta-te minha amada
minha bela vem para mim!
pois que o inverno já acabou
a chuva passou de vez,
despontam flores na terra
chegou o tempo das canções
ouve-se na nossa terra a voz da rola.

Cântico dos Cânticos capítulo 2, versículos 8 a 12

A pessoa, a comunhão e o dom

(Extractos da Encíclica Mulieris Dignitatem, 7)

Penetrando com o pensamento no conjunto da descrição de Génesis


(Gn 2, 18-25) e interpretando-a à luz da verdade sobre a imagem e
semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26-27), podemos compreender ainda
mais plenamente em que consiste o carácter pessoal do ser humano,
graças ao qual ambos — o homem e a mulher — são semelhantes a
Deus. Cada homem, com efeito, é à imagem de Deus, enquanto cria-
tura racional e livre, capaz de O conhecer e de O amar. Lemos tam-
bém que o homem não pode existir «só» (cf. Gn 2, 18); pode existir
somente como «unidade de dois», e portanto, em relação a uma outra
pessoa humana. Trata-se de uma relação recíproca: do homem para

16
com a mulher e da mulher para com o homem. Ser Pessoa à imagem
e semelhança de Deus comporta, pois, também um existir em relação,
em referência ao outro «eu». Isto preludia a definitiva auto-revelação
de Deus uno e trino: unidade viva na comunhão do Pai, do Filho e do
Espírito Santo.
No início da Bíblia, não se ouve ainda dizer isto directamente. Todo
o Antigo Testamento é sobretudo a revelação da verdade sobre a uni-
cidade e a unidade de Deus. Nesta verdade fundamental sobre Deus,
o Novo Testamento introduz a revelação do mistério imperscrutável
da vida íntima de Deus. Deus, que Se dá a conhecer aos homens por
meio de Cristo, é unidade na Trindade: é unidade na comunhão. Des-
se modo lança-se uma nova luz também sobre a semelhança e ima-
gem de Deus no homem, de que fala o Livro do Génesis. O facto de o
homem, criado como homem e mulher, ser imagem de Deus não sig-
nifica apenas que cada um deles, individualmente, é semelhante a
Deus, enquanto ser racional e livre; significa também que o homem e
a mulher, criados como «unidade de dois» na sua comum humanida-
de, são chamados a viver uma comunhão de amor e, desse modo, a
reflectir no mundo a comunhão de amor que é própria de Deus, pela
qual as três Pessoas se amam no íntimo mistério da única vida divina.
O Pai, o Filho e o Espírito Santo, um só Deus pela unidade da divin-
dade, existem como pessoas pelas imperscrutáveis relações divinas.
Somente assim se torna compreensível a verdade que Deus em Si
mesmo é amor (cf. 1 Jo 4, 16).
A imagem e semelhança de Deus no homem criado como homem
e mulher (pela analogia que se pode presumir entre o Criador e a
criatura) exprime, portanto, também a «unidade de dois» na sua co-
mum humanidade. Esta «unidade de dois», que é sinal da comunhão
interpessoal, indica que na criação do homem foi inscrita também
uma certa semelhança com a comunhão divina («communio»). Esta
semelhança foi inscrita como qualidade do ser pessoal dos dois, do
homem e da mulher, e, conjuntamente, como uma chamada e um
empenho. Na imagem e semelhança de Deus, que o género humano
traz consigo desde o «princípio», radica o fundamento de todo o
«ethos» humano: o Antigo e o Novo Testamento irão desenvolver esse
«ethos», cujo vértice é o mandamento do amor.
Na «unidade de dois», o homem e a mulher são chamados, desde o
início, não só a existir «um ao lado do outro» ou «juntos», mas tam-
bém a existir reciprocamente «um para outro».
João Paulo II

17
Um encontro

É uma coisa rara e maravilhosa:


Presença de uma pessoa a outra,
Presentes um ao outro,
Enquanto a vida flui de um para o outro.

Mas podemos estar juntos sem nos encontrarmos.


Podemos viver na mesma casa dia após dia,
Sentarmo-nos à mesma mesa,
Ajoelharmo-nos no mesmo banco,
Ler os mesmos livros,
Sem nunca nos encontrarmos.

Um encontro é uma coisa rara e maravilhosa,


Presença de uma pessoa a outra,
Presentes um ao outro,
Enquanto a vida flui de um para o outro.

Jean Vanier

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«E eles se tornam uma só carne»
(Gn 2, 24)

CAPÍTULO 2
Do carnal ao espiritual

TESTEMUNHOS

«A consciência da comunidade espiritual e da felicidade com-


pleta que se encontra nos momentos de plenitude sexual ajuda a
compreender melhor a imagem de um Deus de dom e de total
acolhimento, pois a nossa espiritualidade conjugal exprime-se
através dos nossos corpos, tal como o Verbo de Deus Se serve
da sua humanidade para nos revelar o amor de Deus».
«Tenho sentido com acuidade a alegria de acolher a sua presen-
ça em mim, de ser invadida pela sua vida, de já não saber onde
está o limite entre um e outro, de vibrar ao mesmo ritmo e de
conhecer com ele esse momento de inefável felicidade feito, com
certeza, de prazer carnal, mas ultrapassando-o em muito para
englobar a totalidade dos nossos seres tornados uma só carne.
E no próprio centro desse prazer, ou melhor, dessa alegria,
mais um vez me falaste de Ti, Senhor! Também Tu — Tu próprio
no-lo disseste — desejas unir-Te a nós através do nosso corpo.
Se quiseste dar-Te em alimento pelo pão e pelo vinho da Euca-
ristia, não será para derramar a tua vida no mais íntimo de nós
e vivificar com a tua seiva a totalidade do nosso ser?».
«As nossas educações humana e religiosa apagaram o nosso
corpo e ensinaram-nos, se não a desprezá-lo, pelo menos a re-
primi-lo. Temos progressivamente tomado consciência de que o
corpo é um suporte vital pelo qual passam espírito e alma. Deus
encarnou no corpo de Cristo. De resto, é pelos gestos quotidia-
nos do corpo que recebemos os sacramentos ...».

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ELEMENTOS DE REFLEXÃO

O matrimónio, sacramento do casal

(Excerto da conferência do Padre Charles Bonnet proferida no colóquio «Quel


couple pour aujoud’hui?» — «Que casal para hoje?» — realizado por ocasião do
quinquagésimo aniversário da promulgação da Carta do Movimento das Equi-
pas de Nossa Senhora.)

Paradoxalmente, é a utilização pelos profetas da imagem do casa-


mento para descrever a Aliança de Deus com Israel que vai dar ao
casal o primeiro lugar no casamento e, dentro deste, a prioridade à
fidelidade no amor. Os profetas (Oseías 1, 3; Jeremias 2, 2-3, 1 e 31,
3; Ezequiel 16 e 23; Isaías 50, 1; 54, 5-7; 62, 1-5) vão comparar com
o casamento a aliança que une Deus e o povo de Israel. É a história de
um casal nem sempre feliz na sua vida a dois por a mulher ser volúvel
mas que o homem procura manter contra ventos e marés, pois ele
nunca desespera de ver a mulher voltar e de poder recomeçar com ela
a grande história de amor outrora iniciada. Mas este casal não tem
nada a ver com o casamento tradicional. É uma aliança que diz res-
peito apenas a duas pessoas, que é concluída pela livre iniciativa do
esposo sem intervenção das famílias e sem que esteja em discussão
os filhos que hão-de vir. É uma Aliança de amor que depende da be-
nevolência do esposo: «achaste graça diante dele». É uma escolha
puramente gratuita, arbitrária mesmo, que não se explica. O esposo
não se impõe: propõe e espera com ansiedade a resposta do outro.
Espera que o outro o ame de corpo e de coração. O mal do adultério já
não é o risco de fazer entrar na família do pai filhos que não são dele,
mas de ser sinal de que já não se é dele mas de outro. O dom do corpo
diz quem eu amo e quem não amo. O que passa a ter a primazia no
casal é a afeição de um ao outro, a fidelidade amorosa.
E é isso que vai fazer a sua fragilidade, pois o amor é «filho da
Boémia», como se cantará mais tarde. A história dos amores de Deus
e de Israel, seu povo, é uma história tumultuosa. Deus não é muito
bem sucedido nas coisas do amor. É muitas vezes um marido engana-
do e iludido. O povo que Ele ama não cumpre as suas promessas e
deixa-se levar ao sabor dos ventos do desejo. Deixa-se continuamen-
te seduzir por algum amor novo. O amor e a duração não se dão bem.
Fazer rimar «amor» (amour) e «sempre» (toujours) é erradamente
tranquilizador. Porque o amor enquanto desejo, emoção, paixão, pa-
rece, por natureza, votado ao efémero. Precisa de encontrar, a cada
instante, a emoção do princípio. A única estação em que se compraz é
a primavera.

20
Assim, para lhe dar consistência e duração, o amor de que aqui se
trata não se baseará no prazer de estarem juntos, na emoção, na infi-
nita repetição do «amo-te, amo-te», mas na submissão à vontade do
outro, na vontade de fazer a sua vontade. Amar será despojar-se da
sua própria vontade para fazer a vontade do outro, despojar-se do seu
desejo para se pôr ao serviço do desejo e da expectativa do outro. E,
como esta concordância das vontades se quebra muitas vezes, o amor
inventa o perdão. É o perdão que dá duração ao amor. Não se trata
necessariamente da reconciliação espectacular depois de rupturas es-
pectaculares, mas do facto de voltar a dar-se de novo e ainda mais do
que antes. O perdão é «re-dom» e «sobre-dom». Face ao que ameaça,
ao que afasta, ao que fere, ao que torna insípido ou arrefece, o perdão
aproxima, trata as feridas, aquece. É a oferta de um novo começo, de
uma nova primavera, mas de uma primavera que é preciso reanimar
continuamente, que não dura senão porque recomeça. (…).
É a partir da realidade deste casal da Aliança que os profetas vão
levar o povo judeu a descobrir o que Deus espera do casamento de um
homem e de uma mulher. A partir deste momento, as duas realidades
estão unidas. É com Deus que o homem vai aprender o que é o casamen-
to. Muito antes de a palavra ter sido inventada, os profetas descobriram
como o casal humano era querido por Deus como sacramento, sinal
visível do seu próprio casal, e como cada casal devia realmente sê-lo
cada vez mais. É que não basta formar um casal para ser semelhante a
Deus; é preciso que esse casal viva à sua imagem: num amor fiel que
se quer para sempre e que, por isso, está sempre pronto a perdoar.

Um casal que é uma só carne

A partir de tradições parcialmente diferentes, o Génesis vai fazer-se


eco desta visão dos profetas. Porque se o Génesis é o primeiro livro da
Bíblia, os primeiros capítulos não foram os primeiros a ser escritos.
Foi preciso tempo para elaborar o essencial destes capítulos, mas, é
precisamente pelo que ali se diz, tão essencial e esclarecedor, que foram
colocados em primeiro lugar. As imagens do casal apresentadas em
cada um dos dois primeiros capítulos não coincidem completamente.
O primeiro relato insiste na fecundidade: “Sede fecundos, multipli-
cai-vos” (Gn 1, 28). O homem recebe todo o poder sobre a criação,
mas a sua missão é da mesma natureza. Ele não é senão um elemento
de um conjunto chamado a encher um mundo informe e vazio. É pre-
ciso que os homens o povoem como já o povoaram as plantas e os
animais que lhes são confiados. Há, no entanto, uma frase que destoa;

21
não é exactamente o «Façamos o homem à nossa imagem, como nos-
sa semelhança» (Gn 1, 26), porque a semelhança poderia limitar-se a
um domínio sobre a criação semelhante ao de Deus. O homem só
teria que ser criador e senhor ao jeito de Deus. O que destoa é o objec-
to da semelhança: «Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de
Deus Ele o criou, homem e mulher Ele os criou» (Gn 1, 27). A seme-
lhança já não está no domínio da criação, mas na relação de dois seres
diferentes, dos quais nenhum por si é suficiente para assegurar a se-
melhança com Deus. É em conjunto que se assemelham a Deus. O
casal homem-mulher é não já, como nos profetas, imagem da Aliança
de Deus com Israel mas imagem do próprio Ser de Deus. O texto
poderia mesmo deixar entender que o Deus único não é um Deus
solitário, visto que são precisos dois para garantir a semelhança.
Todo o segundo relato vai desenrolar-se na relação homem-mu-
lher. É o centro da história. O homem já não é um elemento de um
conjunto que começa antes dele, a fase de uma história que o prece-
deu e que ele tem o encargo de prosseguir no mesmo sentido. É o
começo. Nada existe antes dele; só quando ele é criado é que apare-
cem a natureza e os animais. Mas nada pode preencher a sua solidão.
O seu domínio torna-o ainda mais solitário. Os seres que domina não
podem ser seus parceiros justamente porque ele é o seu senhor. A
relação só será possível quando o outro for outro como ele próprio,
«osso dos seus ossos e carne da sua carne», alguém da sua raça, da
mesma condição, para não dizer da mesma natureza. Então é possível
a relação, o dom ao outro: «Um homem deixa seu pai e sua mãe, une-
-se à sua mulher, e eles se tornam uma só carne» (Gn 2, 24).
O casamento marca um início: largam-se as amarras. É necessária
uma ruptura para que se possa fazer a unidade. Há separação para
haver união. «E eles se tornam uma só carne». Se é permitido ver aqui
uma alusão à união sexual do casal, o texto ainda diz mais: serão um
único ser. Indica a unidade das pessoas, a comunhão profunda entre
elas. Agora o horizonte é a unidade a fazer para que os dois sejam um
só ser. Há todo um caminho a percorrer para que cada um acabe por
considerar o outro como sua própria carne, como alguém inseparável
de si próprio, da sua história, dos seus projectos. Trata-se não de fu-
são mas de comunhão. Continuam a ser dois, ainda que sejam uma só
carne. Comunidade do casal e comunidade dos corpos andam a par. A
comunidade dos corpos é sacramento da comunidade dos seres, sig-
nifica-a, torna-a palpável e realiza-a.
À imagem da Aliança descrita pelos profetas, trata-se ainda aqui
da aliança de um casal que se constitui, longe da família de onde

22
provém e independentemente da família a que dará origem. É o face a
face de um casal nu, que existe por si mesmo.
Todos os elementos estão devidamente apresentados. O Novo Tes-
tamento só terá que os retomar e deles deduzir todas as consequências.

Não separar o que Deus uniu

Não pode dizer-se que a reflexão sobre o casamento tenha um lu-


gar importante nos evangelhos e nos ensinamentos de Jesus. Mas,
ainda que os episódios que lhe fazem alusão sejam muito breves, um
belo futuro lhes está reservado. O que vai ser o núcleo do ensinamento
de Jesus a este respeito (Mt 19, 1-9) vai situar-se na linha dos textos
do Génesis. É a propósito da fragilidade do casamento que pedem a
Jesus que Se exprima. Como parece normal aos que O interrogam
que muitos casamentos acabem em divórcio, pedem a Jesus que le-
gisle sobre o divórcio e fixe as suas normas. «Em que condições é
legítimo?». A resposta de Jesus parece estar tão em desacordo com o
seu tempo como com o nosso. Para os contemporâneos de Jesus, como
para os nossos contemporâneos, o divórcio é evidente. A incompreen-
são a este respeito tem 2000 anos de existência. Ainda que se trate de
repúdio e não de divórcio por mútuo consentimento, isso não muda
nada ao sentido da resposta de Jesus, que ultrapassa o caso concreto a
propósito do qual ela é dada. Ora, ainda que Jesus Se refira aos dois
primeiros capítulos do Génesis, do primeiro cita apenas o que diz res-
peito ao casal — «homem e mulher Ele os criou» — e continua com
o segundo: «Um homem deixa seu pai e sua mãe, une-se à sua mu-
lher, e eles se tornam uma só carne». Jesus vai tirar deste texto um
conclusão que até então nunca ninguém tinha tirado: «O que Deus
uniu, o homem não deve separar». Aqueles que foram uma só carne já
não podem voltar a ser duas. A referência aos textos do Génesis omite
todas as alusões à fecundidade que se poderiam encontrar em Géne-
sis 1. Não é o bem dos filhos que proíbe o divórcio, mas o bem do
casal. A frase «Um homem deixa seu pai e sua mãe, une-se à sua
mulher» tem um carácter irreversível. É o casal que está no centro. O
facto de remeter para o princípio, para o desígnio de Deus ao criar o
casal, mostra que esta afirmação não se dirige apenas ao povo judeu,
mas a todos. Deus espera esta indissolubilidade de todos os casamen-
tos e não apenas do casamento dos crentes. Jesus censura a lei judaica
pelo facto de, para responder à fraqueza dos homens, ter retirado exi-
gência ao desígnio criador. O que foi concedido à fraqueza humana
não se pode fazer passar por lei do casamento para a humanidade. (…).

23
Amar como Cristo amou a Igreja

A Epístola aos Efésios em 5, 21-33 une a tradição do Génesis à


tradição dos profetas. É ainda a mesma frase do Génesis que está no
centro do texto: «Um homem deixa seu pai e sua mãe, une-se à sua
mulher, e eles se tornam uma só carne». Mas esta frase já não se apli-
ca ao casal humano, mas ao casal «Cristo-Igreja», como S. Paulo diz
logo a seguir: «Este mistério é grande: refiro-me à relação entre Cris-
to e a sua Igreja». O casal primordial já não é o casal casado nem o
casal original, mas o casal Cristo-Igreja. É este o verdadeiro casal, o
casal em que todos os outros se devem inspirar. S. Paulo retoma a
tradição dos profetas, mas fazendo uma substituição audaciosa.
O casal tradicional do Antigo Testamento — Deus e o povo de
Israel — é substituído pelo casal Cristo-Igreja. Jesus é apresentado
como o Esposo tal como o Deus de Israel, e a Igreja como o novo
Israel, o novo povo de Deus. É esta a novidade da fé cristã que podia
escandalizar profundamente o povo judaico ao atribuir a um homem
um título que se aplica a Deus e ao afirmar que, em Jesus Cristo,
Deus concluiu uma nova Aliança que vai muito para além do povo de
Israel. Uma vez admitido isto, é a este casal que se aplica em primei-
ro lugar e em toda a verdade a frase do Génesis. Jesus deixou o seu
Pai para Se unir à Igreja e com ela ser um só corpo. São estas as
verdadeiras núpcias, as que Ele concluiu na Cruz ao entregar-lhe o
seu Corpo. Ele entregou-Se por ela. Deu-lhe o seu corpo para com ela
ser um só corpo. O mistério da Cruz é o mistério nupcial por excelên-
cia. E o memorial da Cruz, a refeição Eucarística, também participa
deste mistério das núpcias. Cristo entrega o seu corpo para ser connosco
um único Corpo. O que se passa na Cruz e na Eucaristia é o que se
passa no casamento: entregar-se integralmente para ser um com aquele
a quem a pessoa se entrega. Apenas o dom de Cristo merece tão com-
pletamente o nome de núpcias, de esponsais, de aliança.
Mas o que era verdade em relação ao casal Deus-Israel é-o tam-
bém em relação ao casal Cristo-Igreja. Tal como todo o casamento
entre os judeus era chamado a assemelhar-se à Aliança de Israel e do
seu povo, assim todo o casamento deverá agora assemelhar-se ao de
Cristo e da Igreja. Deve ser à sua imagem e semelhança. Por isso,
toda a passagem do capítulo 5 vai insistir continuamente no termo
«como». Como um marido cuida da sua mulher, Cristo cuida de nós;
da mesma forma, os maridos devem amar as suas mulheres como
Cristo amou a Igreja. Amar como Ele, não dominando mas entregan-
do-se, consagrando-se totalmente a ela. Como Cristo, a sua preocu-

24
pação deve ser a santificação da sua mulher, a sua completa seme-
lhança ao Deus santo. Trata-se de deixar de se centrar em si para se
centrar nela, de se entregar a ela como Cristo Se entregou. Amai-a
como vos amais a vós mesmos, porque sois uma só carne. Paulo dá
todo o seu peso a esta expressão: uma vez que os dois são uma só
carne, amar a sua mulher é amar-se a si mesmo, é querer o bem do
outro como o seu próprio bem, ter afeição ao outro como se tem a si
próprio. O que é bom para o outro é bom para mim; amar o outro faz
parte do amor por si próprio; é a melhor maneira de se amar a si
próprio. (…).

Entregar o seu corpo para serem um só corpo

Se os esposos se amam assim, são sacramento do casal primordial


que é o casal Cristo-Igreja. Fazem existir visivelmente aos olhos de
todos o vínculo nupcial que une Cristo e a Igreja. Mas não o são ape-
nas amando-se com o coração, podem sê-lo também a um nível mais
real e muitas vezes esquecido, unindo-se fisicamente um ao outro.
Ser uma só carne não significa apenas ser um só ser, um só coração,
mas também um só corpo. Também aqui revivem algo da união de
Cristo e da Igreja. Cristo realiza as núpcias, não só amando a Igreja
como o seu próprio corpo, rodeando-a de cuidados, santificando-a e
alimentando-a, mas também entregando-lhe o seu corpo para com ela
ser um só corpo. Esta união que Cristo realizou na sua morte e ressur-
reição é proclamada e tornada presente na Eucaristia. Na Eucaristia,
Cristo entrega-nos o seu corpo para ser um só Corpo com todos aque-
les que se hão-de unir ao seu Corpo.
Todo o casamento é imagem, sacramento, desta Aliança. Entre-
gando o seu corpo àquele ou àquela que ama para serem um só corpo,
cada um dos esposos revive alguma coisa da Aliança eterna de Cristo
e da Igreja. A união sexual em que se realiza e se cumpre o casamento
é sacramento, no sentido em que participa da realidade do dom que
Cristo faz à Igreja para com ela ser um só corpo. Um homem e uma
mulher são sacramento da união de Cristo e da Igreja não apenas
quando se amam como Cristo amou a Igreja, mas também quando se
unem como Cristo Se une à Igreja … A união sexual, e não apenas o
amor conjugal, é sacramento. É o amor conjugal na sua totalidade,
sem excluir a sua dimensão corporal, que é sacramento. Para S. Paulo
e para a Igreja, este dom do corpo é tão bom que Deus não hesita em
fazer dele a imagem do seu próprio dom.

25
Hesitei muito antes de dizer isto, talvez com receio de fazer S. Pau-
lo dizer demasiado, mas talvez também com receio de escandalizar:
como é que uma realidade tão pouco espiritual, dirão alguns, pode ser
comparada com o mistério do Calvário e da Eucaristia? Mas não será
esta reacção desprezo inconsciente pelo corpo e pela sexualidade, in-
capacidade de acreditar que a união sexual é da ordem do espiritual?
S. Paulo já disse isto nas entrelinhas em 1 Cor 6, 15-17. Depois, des-
cobri que grandes teólogos do passado também tinham pensado o
mesmo. Hincmar de Reims, em pleno século IX, escreveu referindo-
-se a Santo Agostinho e a S. Leão: «As núpcias não têm em si o mis-
tério de Cristo e da Igreja se, como diz Santo Agostinho, não forem
vividas conjugalmente, ou seja, se não houver união sexual. S. Leão
demonstra que assim é dizendo: “A sociedade conjugal foi estabelecida
logo no princípio do mundo para que na conjunção dos sexos fosse
inscrito o mistério de Cristo e da Igreja”» (Carta 22, citada por Mathon,
Le mariage des Chrétiens, T. 1, p. 152). Poderíamos encontrar em
João Paulo II reflexões semelhantes.
Compreende-se, assim, o profundo respeito da Igreja pela união de
amor de um homem e de uma mulher. Se a união dos corpos tem por
vocação significar e actualizar a união de Cristo e da Igreja, já não
pode ser um gesto banal, o contacto rápido de epidermes à procura de
um prazer efémero, ou um gesto de afeição banal entre amigos. É,
pelo contrário, sinal do dom total ao outro. O corpo diz a quem per-
tence o coração: onde está o teu corpo, aí está o teu coração. Só da-
mos o nosso corpo àquele ou àquela com quem tivermos feito aliança.
Dar o nosso corpo ao outro é o dom supremo. O corpo é aquilo que
damos em último lugar, quando tivermos ido até ao extremo do amor
e tivermos decidido dar-nos para sempre. Como fez Cristo: «tendo le-
vado o seu amor por eles até ao extremo … disse-lhes … Este é o meu
corpo que será entregue … pela nova e eterna aliança».
Para a Igreja, este dom só pode vir em último lugar, quando o casal
tiver decidido que os dois hão-de percorrer juntos até ao fim o cami-
nho que juntos iniciaram. É sinal de um dom total, conclusão de uma
Aliança para sempre; se não, é prematuro, em todas as acepções do
termo (tem lugar demasiado cedo e é imaturo) ou, ainda pior, menti-
ra. Dou o meu corpo mas não me dou: quando muito, empresto-me.
Este dom não compromete em nada. O dom do corpo é, pois, essen-
cial para que o casamento seja verdadeiramente sacramento da Alian-
ça de Cristo e da Igreja. (…). Padre Charles Bonnet 1

1
Superior provincial dos Padres de Saint-Sulpice, Superior do Seminário de Issy-les-
Molineaux, professor de teologia moral.

26
PERGUNTAS

Para o diálogo em casal

* Em que circunstâncias nos aconteceu associar o nosso corpo à


ideia de dom (por exemplo, palavra, sorriso, dom da vida, etc …)?

* «Glorificai a Deus no vosso corpo» (1 Cor 6, 20). O facto de


Cristo ter dado à humanidade o seu corpo como o dom último e
mais importante tem-nos ajudado a exaltar o nosso corpo e o do
nosso cônjuge?

Para o diálogo em equipa

* Que passagem da Bíblia mais gostaríamos de meditar para nos


ajudar na nossa vida sexual conjugal ou para reflectirmos no sig-
nificado que damos ao corpo?

* «O Deus único não é solitário» (Maurice Zundel). Em que é que


a relação de amor entre o homem e a mulher ajuda a perceber a
relação de amor do Deus trinitário?

ORAÇÃO

Texto para a oração da equipa (Jo 2, 1-12):

No terceiro dia, houve um casamento em Caná da Galileia e a mãe


de Jesus estava lá. Jesus foi convidado para o casamento e os seus
discípulos também. Ora, não havia mais vinho, pois o vinho do casa-
mento tinha-se acabado. Então a mãe de Jesus disse-Lhe: «Eles não
têm mais vinho».
Respondeu-lhe Jesus: «Que queres de Mim, mulher? A minha hora
ainda não chegou».
Sua mãe disse aos serventes: «Fazei tudo o que Ele vos disser».

27
Havia ali seis talhas de pedra para a purificação dos judeus, cada
uma contendo de duas a três medidas. Jesus disse-lhes: «Enchei as
talhas de água». Eles encheram-nas até à borda. Então disse-lhes:
«Tirai agora e levai ao mestre-sala».
Eles levaram. Quando o mestre-sala provou a água transformada
em vinho — ele não sabia de onde vinha, mas sabiam os serventes que
haviam retirado a água — chamou o noivo e disse-lhe: «Todo o ho-
mem serve primeiro o vinho bom e, quando os convidados já estão
embriagados, serve o inferior. Tu guardaste o vinho bom até agora!».
Esse princípio dos sinais, fê-lo Jesus em Caná da Galileia e mani-
festou a sua glória e os seus discípulos creram n’Ele.
Depois disso, desceram a Cafarnaúm, Ele, sua mãe, seus irmãos e
seus discípulos, e ali ficaram alguns dias.

Outro texto

Ah! Se fosses meu irmão


amamentado por minha mãe
ao encontrar-te fora, beijar-te-ia
sem censura de ninguém
eu te levaria a casa de minha mãe
e tu me iniciarias
dar-te-ia a beber vinho perfumado
mosto das minhas romãs.
A sua mão esquerda
está debaixo da minha cabeça
e com a direita me abraça.

Cântico dos Cânticos, capítulo 8, versículos 1 a 4

28
«Deus viu tudo o que tinha feito: E era muito bom»
(Gn 1, 3)

CAPÍTULO 3
O acto sexual é bom

TESTEMUNHOS

«A vida sexual impregna permanentemente os outros momen-


tos da vida; a vida sexual é uma base incontornável da vida do
casal; é impossível dissociar a vida sexual do nosso estilo de
vida ou, muito simplesmente, da nossa vida (…)».
«Para nós, a união carnal é sempre uma festa, e quem diz
festa diz mais qualidade do que quantidade. Festa, gratuitidade
e generosidade são três qualidades do acto sexual. Se elas estão
realmente presentes na nossa sexualidade, ficamos felizes, chei-
os de uma grande alegria que ressoa na nossa vida social e pro-
fissional, e vice-versa. Isto não é fácil, mas é um caminho de
felicidade. É preciso dizê-lo e voltar a dizê-lo à nossa volta. Se
ninguém disser isto aos jovens, muitos deles nunca saberão que
há outras relações para além da procura apenas do próprio pra-
zer, e que essa relações preenchem a vida de outra forma!».
«Nos momentos mais intensos de plenitude sexual, descobri-
mos que a alegria e o júbilo desse encontro são uma manifesta-
ção do amor de Deus. O encontro carnal transforma-se numa
espécie de oração e de acção de graças».
«Os momentos de plenitude sexual fazem-nos perfeitamente
felizes sem desejar mais nada. Pensamos na atitude dos Apósto-
los por ocasião da Transfiguração: não pedimos mais do que
contemplar, viver sempre daquela serenidade, daquela paz, da-

29
quela plenitude. A plenitude sexual abre-nos à contemplação,
ténue antevisão do que havemos de viver sem fim na glória de
Deus».
«Nesse momento em que me realizo plenamente como mu-
lher, sinto uma imensa necessidade de agradecer a Deus tanto
amor e tanta satisfação. Então, sinto o seu amor, a sua bondade.
Ao mesmo tempo, penso em tantos casais que têm graves pro-
blemas de relação, que não encontram aí a sua complementa-
ridade. Penso que essa hora bem vivida nos dá força para todo
o dia porque nos sentimos unidos e receptivos. É por isso que
dou graças a Deus».

ELEMENTOS DE REFLEXÃO

«Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom» (Gn 1, 31).
Deus maravilha-Se com toda a criação, é claro, inclusive com a cria-
ção do homem e da mulher, com o seu destino a serem fecundos, o
que supõe a nossa sexualidade. Maravilhemo-nos nós também com a
bondade do acto sexual.
No primeiro capítulo, dirigimos o olhar para a primeira aborda-
gem, o encontro, que nos surpreende, nos deslumbra, nos muda e,
mesmo sem darmos por isso, nos «cria». Deus tem alguma coisa a
dizer a respeito da aventura humana e espiritual desse casal que se vai
criar para sempre. O acto criador do casal (sem o qual o casamento
não existe) será o encontro carnal, etapa fascinante, verdadeiramente
«vertiginosa», de que tratamos neste capítulo.
É normal que todas as formas de reflexão, de representação, de
organização, se tenham apoderado deste acto «incontornável»: for-
mas literárias (poesia, romance, teatro …), formas artísticas (escultu-
ra, pintura …), formas institucionais (Igrejas, administrações …), etc.
Cada um de nós pode ter sido tocado por esta ou aquela forma de
representação, por este ou aquele livro; como nos orientarmos no meio
desta abundância?
Para avançarmos na nossa reflexão, apoiamo-nos em dois docu-
mentos: o primeiro é uma recolha do Padre Joseph Wresinski, já cita-
do; o segundo é um livro de Xavier Lacroix, O corpo e o espírito.

30
Em contacto com os mais desfavorecidos, o Padre Joseph Wresinski
realça a grandeza da sexualidade, que se mantém quaisquer que se-
jam as condições de vida que a possam desfigurar. Reteremos aqui
apenas algumas da suas reflexões:

«Através de todo o acto sexual, o homem procura criar. É por


isso que não se pode dizer que um homem se lança para os braços
de uma mulher. Ele lança-se para os braços de uma transforma-
ção (…) daquilo em que gostaria que a mulher que encontra se
transformasse (…). A sexualidade é o momento mais extraordiná-
rio de tudo o que um homem vive. É por isso que ela tem tanta
ressonância. Leva o homem àquilo a que eu chamo a vertigem cri-
adora de Deus. Se há momento em que o homem está mais profun-
damente unido a Deus, é no acto sexual. Não só porque pode criar
um novo ser mas porque o acto sexual é o acto fundamental pelo
qual um homem e uma mulher se criam, se criam à imagem da
fonte de que saem. E seja qual for o Deus desse homem ou dessa
mulher, eles farão o que Deus fez ao criar o homem e o universo. A
sexualidade introduz-nos no universo (…).
Porquê ter reduzido a sexualidade ao nível da carne, quando o
amor nos introduz na tomada de posse do universo? Às vezes penso
que, para o homem, a maravilha da mulher é ela representar a
primeira experiência de criação que ele pode fazer. Nela, ele en-
contra o face a face que lhe vai permitir esse confronto com outrem
pelo qual deverá passar na sua necessidade de se completar. Atra-
vés da mulher, ele fará a aprendizagem da criação (…).
A mulher que foi despertada para a possibilidade de completar
um homem, de dar ao mundo um homem completo, e de ela própria
passar a ser eternamente mulher, introduzindo-se assim na eterni-
dade com o filho que há-de nascer, não ampliará essa mulher, de
repente, todas as dimensões da sua alma? Uma mulher que desco-
briu que pode criar outro ser pode rezar e pode ajoelhar-se diante
de Deus. Ela aprendeu o amor».

Xavier Lacroix 1 responde à crítica feita ao cristianismo por um


certo desprezo pelo corpo; a religião da Encarnação, do “Glorificai a
Deus no vosso corpo” de S. Paulo (1 Cor 6, 20), não merece essa

1
Xavier Lacroix: leigo casado, membro das Equipas de Nossa Senhora, Decano da Facul-
dade de Teologia de Lyon.

31
suspeição. Paralelamente a esta atitude, o autor desenvolve os aspec-
tos mais sensíveis da sexualidade:

* o nascimento do desejo: «O corpo apreendido na beleza man-


tém-se à distância. E é só na sua aparência que ele é percebido.
Ora, há momentos em que o desejo se revela menos desinteressa-
do, em que não se contenta com a aparência, em que visa a subs-
tância, o contacto com a carne enquanto tal, na sua densidade e
na sua vida sensível (…) sob o olhar desejoso, a carne surge ao
mesmo tempo como próxima e distante, perceptível e imperceptí-
vel, pessoal e impessoal. Ao mesmo tempo, material e habitada
por uma vida transcendente, está entre o estatuto de coisa e o de
sujeito. Tepidez, doçura, frescura, firmeza, qualidades sensíveis
da matéria, mas também vibrações, palpitação, respiração de uma
vida que vem de tão longe, portadora de mistério … Nela a pes-
soa do outro parece ao mesmo tempo entregar-se e retirar-se.
Pressinto aí como que um infinito no finito» (p. 23-24).

* a ternura: «muitas vezes associada à experiência do desejo, mas


não se confundindo com ela, a experiência da ternura passa tam-
bém pela carne (…) a ternura é como uma fraqueza, uma ruptura
com a dureza ou com as relações de força que, pouco ou muito,
caracterizam as relações sociais. Não se diz “ter um fraquinho
por”? O coração de pedra torna-se coração de carne. O outro
torna-se querido ao converter-se em carne, tal como se torna
carne ao tornar-se querido. A ternura carnal é o reconhecimento
mútuo de duas fraquezas, entrada em ressonância de duas fragi-
lidades (…)» (p. 24-25).
«Mas a união não é apenas sensações. É também, e talvez
ainda mais fundamentalmente, um conjunto de gestos. Ora, estes
não são apenas meios para se chegar a um fim previamente de-
terminado, que seria o orgasmo. Eles próprios são actos, ou seja,
têm sentido em si, são uma linguagem» (p. 41).

* os nossos gestos de ternura: Os nossos gestos de ternura «não


são só nossos delegados ou nossos instrumentos, são nós pró-
prios, ou antes, neles encarnamos e agimos» (p. 42).
- A carícia: «A carícia não é só contacto ou tentativa de apro-
priação (pôr a mão sobre o outro). Mais profundamente, isto é,
mais autenticamente, é celebração do corpo do outro, acção de
lhe dar forma. Consiste em passear sobre o seu corpo, à super-
fície da sua pele a fim de sentir e de o ajudar a sentir a sua pro-

32
fundidade. Por isso é, ao mesmo tempo, tentativa de apropria-
ção ou, pelo menos, de domínio, e experiência de que nem o
outro nem o seu corpo estão em meu poder ou na minha posse.
Experiência de despojamento na maior das proximidades. O
corpo do outro, na sua carne, está ali, debaixo da minha mão;
no entanto, ele continua a ser outro, portador de uma vida que
sinto vibrar nele mas que se mantém para sempre fora do meu
poder.
É por isso que a carícia é desejo, ou antes, é a linguagem
própria do desejo. É uma busca que não sabe o que procura,
sem objectivo preciso, sem projecto nem plano. Passeio livre
sobre o corpo-paisagem, com os seus vales, as suas planícies,
as suas colinas. Mas esta paisagem prolonga um rosto, é habi-
tada por alguém que eu não vejo, demasiado perto para ser
visto, mas que tento atingir através da sua própria face escon-
dida, da sua carne, tão próxima, tão tenra e tão consistente, ao
mesmo tempo penetrável e impenetrável. É a acção do desejo
porque é também expectativa (…).
Carícia (caresse) não rima só com ternura (tendresse), mas
também com promessa (promesse). Também se pode perceber a
carícia como domínio dos dois sexos um pelo outro: do homem
pela mulher e da mulher pelo homem».

- Abraçar: «No primeiro sentido do termo, “abraçar” é “rodear


com os braços”. Isto significa que primeiro os abri para aco-
lher o outro e depois os fechei para o receber realmente. No
meu espaço próprio, no meu espaço íntimo, preparo-lhe um lu-
gar, no sentido em que preparo um lugar, dentro do meu, para o
seu próprio espaço íntimo. Assim é posta em gestos uma vitória
sobre a distância, bem como sobre a relação de confronto. A
luta pode não estar longe, no tempo ou na semelhança dos ges-
tos — fala-se de “luta amorosa” —, mas, quando é verdadeira-
mente amorosa, o abraço traduz a superação da violência e o
acesso a uma relação de reciprocidade consentida, em que se
passa da dureza do choque das existências a uma outra moda-
lidade do ser: a ternura, em que se trata sobretudo de se reco-
nhecer como vulnerável, esperando a salvação da admissão da
sua fraqueza. Já não se trata de se confrontar mas de se rode-
ar; já não se trata de ver qual dos dois é mais forte mas de se
apertarem um contra o outro. Já não se trata de agir contra

33
mas de estar de encontro ao outro, “bem contra”, para resisti-
rem juntos dos tormentos da vida».

- O beijo: «Poisar os lábios na pele ou nos lábios do outro … O


que poderia ser um acto de voragem (não serve a boca, em
primeiro lugar, para absorver?) passa a ser, pelo contrário, a
expressão de uma vitória sobre o apetite. Mais do que devorar-
-se seria beber, como se bebe por uma taça. Depois da palavra,
o regresso às fontes da palavra.
No beijo, a proximidade é ainda maior do que na carícia ou
no abraço. A pele dos lábios é mais fina e mais sensível do que
a das mãos ou dos braços. Rosados e húmidos, os lábios são uma
mucosa: a vida interna do corpo a eles aflora, neles quase comu-
nica com o exterior. A boca é uma das aberturas do corpo (…).
Abandonar-se ao beijo é vencer o clausura dos corpos, não
se contentar em ser prisioneiro do seu “saco de pele”, querer
passar para o outro, conhecer o seu gosto, aproximar-se da sua
substância. Troca de hálitos, de salivas, jogo das línguas, o au-
mento do desejo leva à superação da repugnância habitual as-
sociada a tais contactos. O beijo nos lábios é um início. Muitas
vezes, anuncia e inicia outras trocas entre outras mucosas. Ou-
tras vitórias sobre as resistências ou a violência. Outros avan-
ços no sentido da intimidade, outros passos para o ajustamento
e para a conjunção dos corpos».

- Penetrar: «Penetrar, ser penetrada. Actos de hospitalidade, tanto


do que recebe como do que é acolhido. No corpo da mulher, o
sexo do homem encontra como que uma habitação, um lugar
quente e envolvente. Afunda-se numa profundidade em que a
sua forma encontra, com a sua justificação, um invólucro. A
mulher, aparentemente, é sobretudo receptora; mas ela só vive
a união com felicidade se ela própria for recebida; se ela pró-
pria encontrar o seu lugar entre os braços do homem e se o
próprio dom peniano for receptivo ao seu acolhimento. O mas-
culino experimenta o feminino, e o feminino experimenta o mas-
culino, ambos em si e fora de si. Mas que é feito das fronteiras
do interior e do exterior? Cada um ao mesmo tempo rodeia e é
rodeado, é envolvente e envolvido. O homem é rodeado no seu
órgão sexual central, e rodeia com os seus membros periféricos
(braços, pernas); a mulher é envolvente no seu sexo, mas en-
volvida em todo o seu corpo. Parece então realizar-se um dese-

34
jo muito profundo em cada um, o de ser aconchegado. Esse
desejo mergulha certamente em experiências infantis muito an-
tigas, mas não se pode — como se faz muitas vezes — reduzi-lo
a isso. De facto, o coito não é só a reiteração da infância; como
tal, irredutivelmente, é susceptível de tomar um significado novo.
Voltado para um/a companheiro/a que não a mãe, não proveni-
ente apenas do passado mas, sobretudo, orientado para o futu-
ro, toma um significado de aliança.
É verdade que aqui mal se trata de expressão. O sentido é
subvertido pela sensação. Os movimentos da voluptuosidade
subvertem toda a intenção. Sem desdizer as análises anterio-
res, retenhamos ainda alguns aspectos da diferença entre as
formas masculina e feminina de viver o prazer. Na sua vertente
masculina, este seria vivido sobretudo como descarga, próximo
da violência, mais localizado, mais breve. Na sua vertente fe-
minina, seria vivido sobretudo como irradiação, menos violen-
to, menos localizado, mais lento a vir e a cessar».

* Para além da voluptuosidade: «Uma análise da união que se


ficasse por aqui ficaria incompleta. Esqueceria que o coito tam-
bém é, e inseparavelmente, o acto pelo qual a procriação é, foi ou
poderia ser possível. É um acto inseminador, ousemos lembrar. E
isto não deixa de ter incidências no seu próprio significado. Tra-
ta-se, em primeiro lugar, e não é pouco, de um acto semelhante
àquele que deu origem aos próprios protagonistas. A sua memó-
ria profunda, o seu inconsciente, dizem os psicanalistas, guar-
dam a sua lembrança (a famosa cena primitiva). Mas também,
mais simplesmente, o coito é acompanhado de emissões e de tro-
ca de líquidos: secreções vaginais na mulher e emissão de esper-
ma no homem. Estes dados são muito menos insignificantes do
que muitas vezes se pensa. A possibilidade de fecundação, se nada
for feito para a impedir, faz parte dos dados constitutivos da união.
A fecundação seria o termo desta, como se, pela fusão do óvulo
com o espermatozóide, ela perpetuasse a unidade frágil e efémera
do coito num ser vivo capaz de se manter. Por último, não é,
como diz a sabedoria judaica, no filho que o homem e a mulher
são uma só carne?

Lembremos também aquelas palavras de João Paulo II 2 : «A união


dos corpos foi sempre a linguagem mais forte com que dois seres se
podem dizer um ao outro».

35
PERGUNTAS
Para o diálogo em casal

* Perguntar um ao outro: Que queres que eu mude na minha atitu-


de para que o encontro sexual aumente o nosso amor?
* Cada um diga ao outro o que lhe parece importante na prepara-
ção e na realização do encontro conjugal: afeição, preparação
sentimental durante o dia, pensar no outro mais do que em si
próprio, espiritualidade. Que poderiam ainda acrescentar?
* Sente-se inspirado/a para escrever um poema ao seu cônjuge ou,
pelo menos, a ler-lhe um? (Ó talentos desconhecidos …!).

Para o diálogo em equipa

* Pela nossa alegria de casais na nossa aventura conjugal, deixe-


mos brotar em nós uma oração de louvor e de acção de graças.
* Como apresentar aos jovens uma visão ao mesmo tempo opti-
mista e realista da sexualidade?

ORAÇÃO
Texto para a oração da equipa (Ef 5, 25-33):

“Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e Se


entregou por ela, para a santificar, purificando-a, no banho da água,
pela palavra. Ele quis apresentá-la esplêndida, como Igreja sem man-
cha nem ruga, nem coisa alguma semelhante, mas santa e imaculada.
Assim devem também os maridos amar as suas mulheres, como o
seu próprio corpo. Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo. De
facto, ninguém jamais odiou o seu próprio corpo; pelo contrário, ali-
menta-o e cuida dele, como Cristo faz à Igreja; porque nós somos
membros do seu corpo.
Por isso, o homem deixará o pai e a mãe, unir-se-á à sua mulher e
serão os dois uma só carne.
Grande é este mistério; mas eu interpreto-o em relação a Cristo e
à Igreja.
De qualquer modo, também vós: cada um ame a sua mulher como
a si mesmo; e a mulher respeite o seu marido.”

2
Parque dos Príncipes, Paris, 1980.

36
TEXTO DE ACOMPANHAMENTO

Ah és bela minha amiga

Ah! és bela minha amiga


defeito não há em ti.
Vem do Líbano, esposa minha
vem comigo do Líbano
descerás do cimo de Amaná
do cume de Senir e do Hermon
dos esconderijos dos leões
dos barrancos dos leopardos.
Roubaste-me o coração
minha irmã minha esposa,
roubaste-me o coração
com um só dos teus olhares,
com uma só conta dos teus colares.
Que doces são tuas carícias
minha irmã minha noiva,
as tuas carícias são melhores do que vinho
a fragrância de teus perfumes
é melhor do que todos os odores
teus lábios são favos escorrendo ó minha esposa,
tens mel e leite sob a tua língua
e o aroma dos teus vestidos
é como o aroma do Líbano.

És jardim fechado,
minha irmã, minha esposa
um jardim fechado uma fonte selada.
As tuas plantas um bosque de romãzeiras
com frutos deliciosos
com cipros, nardos e açafrão
cálamo e canela
e toda a sorte de árvores de incenso
mirra e aloés
e os bálsamos escolhidos.
A fonte do jardim é cisterna de água viva
que jorra desde o Líbano.

Cântico dos Cânticos, capítulo 4, versículos 7 a 15

37
Excertos do discurso de Paulo VI às Equipas de Nossa Senhora,
Roma, 4 de Maio de 1970

«De facto, o dom não é uma fusão. Cada personalidade mantém-se


distinta e, longe de se dissolver no dom mútuo, afirma-se e purifica-
se, cresce ao longo da vida conjugal segundo essa grande lei do amor:
darem-se um ao outro para se darem juntos.
O amor é, com efeito, o cimento que dá solidez a esta comunidade
de vida e o impulso que conduz a uma plenitude sempre perfeita. Todo
o ser participa nisto, nas profundezas do seu mistério pessoal, e das
suas componentes afectivas, sensíveis, carnais e espirituais, até cons-
tituir cada vez melhor aquela imagem de Deus que o casal tem por
missão encarnar ao longo dos seus dias, tecendo-a com as suas ale-
grias e com as suas provações, de tal modo que o amor é mais do que
o amor.
Não há amor conjugal que não seja, na sua exultação, impulso
para o infinito e que não se queira, no seu impulso, total, fiel, exclusi-
vo e fecundo (cf. Humanae Vitae, 9).
É nesta perspectiva que o desejo encontra o seu significado pleno.
Meio de expressão tanto como de conhecimento e de comunhão, o
acto conjugal mantém e fortifica o amor, e a sua fecundidade leva o
casal ao seu desabrochar pleno: torna-se imagem de Deus, fonte de
vida.
O cristão sabe que o amor humano é bom na sua origem, e se for,
como tudo o que há no homem, ferido e deformado pelo pecado, en-
contra em Cristo a sua salvação e a sua Redenção. De resto, não é
esta a lição de vinte séculos de história cristã? Quantos casais encon-
traram na sua vida conjugal o caminho da santidade, nessa comuni-
dade de vida que é a única fundada num sacramento!»
Paulo VI

3
A dimensão esponsal do corpo

«O corpo humano, orientado interiormente pelo “dom sincero” da


pessoa, não só revela a sua masculinidade ou a sua feminidade no
plano físico mas revela também um valor e uma beleza tais que ultra-
passam a dimensão simplesmente física da “sexualidade”. Assim se
encontra completada em certo sentido a consciência do significado
esponsal do corpo, ligado à masculinidade-feminidade do ser huma-

3
Discurso de João Paulo II (16 de Janeiro de 1980).

38
no. Esse significado indica, por um lado, uma capacidade particular
de exprimir o amor em que o ser humano se torna dom; por outro
lado, esse ser humano possui a capacidade e a profunda disponibili-
dade para “a afirmação da pessoa”, isto é, literalmente, a capacida-
de de viver o facto de o outro — a mulher para o homem e o homem
para a mulher — ser, através do corpo, alguém que é querido “por si
mesmo” pelo Criador, ou seja, único e singular, alguém que é escolhi-
do pelo Amor eterno».
João Paulo II

4
O abraço

«A linguagem mais elevada, a plenitude espiritual do corpo a cor-


po. Por ti, contigo, junto de ti, vivi o corpo a corpo de duas almas. Só
o corpo a corpo dá ao diálogo das almas a sua força e a sua plenitu-
de. Descobrimos juntos o segredo: o abraço é a aventura extrema do
espírito. O rosto do outro torna-se o rosto do mundo. Desfaz-se e
recompõe-se como fazem as paisagens de vento e de sol. A sombra
dissipa-se sob os rasgos do desejo. A luz do corpo amado treme, jun-
ta-se e expira na alegria que tudo cobre, como o mar cobre a areia na
maré alta. O rosto do amante afoga-se nas algas do cabelo. As mar-
gens femininas encerram o rio masculino. O próprio diálogo do amor
revela a mística da eternidade.
O misticismo do sexo é uma fórmula oca. Em contrapartida, como
negar o poder místico do abraço, em que as forças de vida se juntam,
se ajustam, se desposam num impulso que é o do pensamento à procu-
ra de outro pensamento, da angústia à procura de outra angústia, do
próprio espírito frente ao mundo do qual se sabe ao mesmo tempo
demiurgo e reflexo? Os corpos que se estreitam não ignoram que são
instrumentos de uma exigência que os ultrapassa. Tudo o que conta
está em jogo nessa cumplicidade com laivos de combate. O clarão
que brilha ao fim do confronto é o clarão discreto do absoluto. Um
instante pode extingui-lo. Um instnate também pode transformá-lo
em fogueira.
Logo no primeiro dia, tinhas sentido que nesse país fascinante e
temível era necessário o máximo pudor. O que podia parecer afecta-
ção de pudor era, da tua parte, instinto muito seguro. Quando o es-
sencial está em causa, o próprio bom humor se torna grave. O tom da
brincadeira de mau gosto ou o da precisão anatómica não é muito

4
Jacques de Bourbon-Busset, Lettre à Laurence.

39
conveniente nesses momentos que transcendem a duração e cintilam
como estrelas na noite do quotidiano. Sabias, pelas tuas entoações e
pelos teus gestos, aliar a ordem e a desordem, o apruno e a paixão, a
altivez e o abandono.
O olhar da amante que sucumbe à vertigem é o de uma morta res-
suscitada, onde a esperança triunfa sobre o medo. No palco do teatro
íntimo, a peça que se representa chama-se morte e ressurreição. Nes-
ses minutos em que a união dos corpos é a união das almas, o corpo
torna-se alma, e a alma torna-se corpo. A exaltação leva ao desfale-
cimento, e o desfalecimento é anúncio de uma nova exaltação. Esta
alternância de tempos fortes e tempos fracos é o próprio mistério do
espírito que conhece, como o coração, a sístole e a diástole. Os movi-
mentos do desejo são os movimentos do espírito. O espírito alimenta-
-se da glória do abraço (…).
Foi sobre esse absoluto do abraço que, dia após dia, construímos a
nossa aventura de união sagrada. Vimos sempre no acto de amor o
sinal de que era possível estabelecer uma relação absoluta com o ab-
soluto. Os ditos grosseiros e o deboche provam negativamente a serie-
dade do abraço. Prestam-lhe uma homenagem indirecta ao procura-
rem reduzir a gestos menospresadores o que o ser humano põe em
jogo.
Passei anos a tentar estabelecer uma ponte entre mística e sexuali-
dade. Muita gente se escandalizou ou sorriu. Por que é que o acto de
amor do homem e da mulher provoca tanto medo, quando em princí-
pio todos os tabus são violentamente rejeitados? A única explicação é
que todos sabem que uma vida sexual feliz é a realização suprema. A
infelicidade sexual de muita gente é a razão desse silêncio amedron-
tado. O abraço abre ao absoluto. O abraço é o infinito abarcado. A
glória do abraço é respirar universo.
O abraço não procura derrubar as fronteiras que separam os se-
res. O abraço é a aliança de dois corpos que se servem da sua diferen-
ça para irem além do convencional, do banal, do medíocre. A repeti-
ção não exclui o excesso, dá-lhe uma estrutura. Durante quarenta
anos, esse excesso estruturado foi a linha orientadora da nossa vida.
Os corpos têm pena das almas e querem ajudá-las a unirem-se a
eles. Há que lhes dar liberdade. O abraço é a mais elevada linguagem
do corpo e da alma».

40
«O teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará»
(Gn 3, 16)

CAPÍTULO 4
Construir juntos uma sexualidade harmoniosa

TESTEMUNHOS

«O homem tende sobretudo a espiritualizar o seu desejo fí-


sico e a mulher, a “carnalizar” a sua espiritualidade».
«Realidades da vida sexual: uma dura aprendizagem com fra-
cassos, azedumes devidos a desejos não satisfeitos, porque não
tínhamos as mesmas necessidades, e também desejos tempera-
dos pelo receio do pecado. (…) O acto sexual que cai na rotina
é um factor negativo. (…) A nossa união carnal não foi comple-
ta nem perfeita senão depois da operação da minha mulher, o
que nos leva a dizer que as gerações jovens, com os actuais
meios contraceptivos e um volte-face da nossa religião, não vão
conhecer as mesmas dificuldades que nós, mas hão-de conhecer
outras, pois o êxito da união carnal não é automaticamente
garantido».
«Nada é adquirido antecipadamente; o desejo da mulher é
como um suflê, que pode baixar rapidamente; o homem deve ser
o bom cozinheiro que sabe manter o sabor do festim».
«O João disse-me: Tenho fome de ti, minha mulher. À noite,
quando volto para casa esgotado, é por ti que chamo. Se fazes
de conta que estás a dormir, ignorando o meu tormento, volto-
-me para o outro lado e calo-me.
Se resistes, fecho-me, infeliz por te compreender tão mal e
ainda mais por te parecer exigente. Porque acontece que o meu

41
corpo te procura com demasiada exigência (…). Se tu soubes-
ses, Mulher, que, quando tenho fome de ti, a minha fome ultra-
passa infinitamente o teu corpo: porque para mim tu significas
a inexprimível riqueza do nosso amor total, corpo e alma jun-
tos, obra prima do Criador. (…) A mulher, porém, nem sempre
pode responder, mas isso não é sinal de desamor. “Porquê hoje?
Por que não ontem ou amanhã?”. Não me perguntes, não pode-
ria responder-te. Sei desde o primeiro segundo, desde o primei-
ro instante em que te aproximaste de mim, que não saberia res-
ponder-te hoje. Fica a saber o reverso da medalha: aquela que
vibra como uma corda de uma viola não pode vibrar sempre.
Respeita os seus cansaços, as suas inapetências, essa sede de
paz que se apodera do seu corpo, menos ávido do que o teu.
Deixa-a tranquila».

ELEMENTOS DE REFLEXÃO

Se fosse verdade que a troca dos prazeres ou o desempenho sexual


é garantia de felicidade ou de harmonia entre as pessoas, isso ver-se-
-ia e saber-se-ia.
«Lugar da maior intimidade, a união carnal é também o lugar dos
maiores mal-entendidos. Não é certo que o homem e a mulher procu-
rem a mesma coisa no encontro; muitos são os que sofrem com este
desfasamento: um procura sobretudo o prazer e o outro, a ternura,
por exemplo. Dar prioridade ao valor ternura pode também fazer es-
quecer as afinidades do prazer com a violência. A linguagem dos ges-
tos de ternura, por exemplo, não é tão simples ou tão límpida como se
pensa; acariciar é celebrar, mas também pode ser tentar possuir; abra-
çar é acolher, mas também pode ser cercar; o abraço pode ser su-
focação, o beijo, devoração, a penetração, arrombamento. Entre a
união consentida e a violação há toda uma gama de gradações» 1.
Como diz Inès Pélissié du Rausas 2:
«(…) assim, a mulher que se sente “despida com o olhar” experi-
menta esse olhar como perturbação, porque é um olhar sobre o seu

1
Xavier Lacroix, O corpo e o espírito, col. Vida Cristã, p. 33.
2
Filósofa, autora de O pudor, o desejo e o amor humano (cf. Revista Alliance, n.º 96).

42
corpo visto como um objecto, quando ela própria o considera o
“seu” corpo. Ela pode mesmo revoltar-se interiormente contra o
outro e sentir um ódio profundo, como diz Max Scheler, por aquele
que a obriga continuamente à prostituição do seu ser mais profun-
do, e, o que é mais, sob a aparência de um pretenso dever conjugal.
À violência que se exerce sobre ela, tomando-a como objecto, a
mulher pode responder com outra forma de violência, quando pro-
cura vingar-se do homem através da atitude de passividade, ou
com um falso espírito de abnegação que também a faz sofrer. As-
sim, a avidez de um leva ao ressentimento do outro — da mulher
contra o egoísmo e o desejo de domínio do homem, do homem con-
tra o egoísmo e a passividade da mulher. Enquanto o desejo, como
desejo sexual, é profundamente desejo de unidade e apelo ao outro,
a avidez — a “cupidez” do corpo do outro — leva os seres apenas ao
prazer do corpo e ao domínio sobre o outro, e fecha-os na solidão».
Socorramo-nos agora de alguns comentários do Padre d’Heilly, ex-
traídos do seu livro Aimer en actes et en vérité 3:
«A pergunta que se deve fazer é esta: Os nossos gestos carnais
unem-nos? Se há momento em que um homem e uma mulher se
podem sentir a milhas um do outro, esse momento é uma vida car-
nal falhada. Se há momento em que um homem se pode sentir numa
solidão traumatizante, esse momento é uma união carnal em que a
mulher não reage. Deve, pois, ter-se presente esta afirmação: “Os
nossos gestos carnais não nos unem automaticamente”».
E, já que amar é essencialmente perceber o comportamento do outro,
vejamos os três aspectos importantes do comportamento carnal: o com-
portamento do marido, o comportamento da mulher e os problemas
comuns:
* o comportamento do marido: o marido deve ter a preocupação de
preparar o coração da mulher, de preparar o corpo da mulher,
para chegarem à união profunda, de estar atento a procurar o
sincronismo entre os prazeres de cada um.
* O comportamento da mulher deve ser ditado pela confiança em
si própria e no marido, pela simplicidade (saber participar, dese-
jar, exprimir-se …), pela generosidade (ser capaz de dar o pri-
meiro passo, de se oferecer, de não ser passiva, de não fazer do
marido um mendigo).

3
Publicado nas Éditions du St. Paul/CLERC.

43
Com o facto de as escolas serem mistas e de as mulheres acederem
cada vez mais aos mesmos lugares que os homens na vida profissio-
nal, essas diferenças ter-se-ão atenuado? Não deixa de ser verdade
que continua a ser necessário adaptar-se ao comportamento do outro
e ter a preocupação de atingir uma certa simultaneidade do prazer.
Para ambos, «trata-se de exprimir os desejos e as aspirações de cada
um, bem como as suas reticências e as suas revulsões. Ousar dizer
que se existe como pessoa original e autónoma e recusar ser simples
objecto sexual para os fantasmas do outro não será criar as condi-
ções essenciais a um verdadeiro encontro conjugal?» 4.

* Os problemas comuns: encontrar uma boa frequência nas rela-


ções e visar a qualidade mais do que a quantidade; saber não ter
pressa, preparar-se; não considerar uma relação se o amor esti-
ver ausente; começar por restabelecer as condições para uma re-
lação; tender a encontrar Deus nesse próximo tão próximo que
está nos nossos braços 5; ter presente que o acto sexual não é tudo
na vida conjugal: há muitas outras maneiras de manifestar ternu-
ra, o que exige uma certa criatividade.

Em resumo, para que os nossos gestos carnais nos unam, convém


que sejam respeitadas as exigências psicológicas, fisiológicas e espi-
rituais de cada um. «Há três coisas que me ultrapassam», está escrito
no Livro dos Provérbios, «e uma quarta que não compreendo»:
- o caminho da águia no céu;
- o caminho da cobra na rocha;
- o caminho da nave no mar;
- o caminho do homem com a donzela» (Pr 30,18-19).

PERGUNTAS

Para o diálogo em casal

* Quais são, na nossa opinião, os principais obstáculos da vida quo-


tidiana a uma união carnal bem sucedida? Como ultrapassá-los?

4
Padre Michel Legrain, Revista Alliance, n.º 96.
5
Cf. testemunhos do capítulo 3.

44
* Emprestei o meu corpo ao meu cônjuge ou dei-lho realmente?
Quais são os sinais que permitem estabelecer a diferença (pensar
noutra coisa, fantasmas, etc ...)?

* Não acolher, não suscitar o desejo do outro, não será exercer vio-
lência sobre ele? Como gerir os desejos sexuais de um para os
conciliar com os do outro?

* Como proteger-nos das perversões? Que vigilância? Que formas


de evitar expormo-nos à tentação?

* Como assumimos o nosso corpo (idade, estética, doença …)?

* Como respeitamos o corpo do nosso cônjuge?

Para o diálogo em equipa

* Que ideia se tem do corpo e da relação de casal, segundo os meios


de comunicação, os anúncios, os top models? Que imagem de
sexualidade é veiculada?

* Na nossa sociedade, em que tudo se mostra, em que os mecanis-


mos da reprodução e da sexualidade são ensinados nas aulas de
biologia, como promover a ideia de que a relação sexual deve ser
sempre um acto de amor?

* Como ajudar aqueles que nos rodeiam e os que se cruzam con-


nosco a viver uma verdadeira relação entre pessoas e não apenas
entre epidermes?

45
ORAÇÃO

Texto para a oração da equipa (Gn 3,1-17):

A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que


Yahvé Deus tinha feito. Ela disse à mulher: «Deus disse que vós não
podeis comer de todas as árvores do jardim?».
A mulher respondeu à serpente: «Nós podemos comer do fruto das
árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim,
Deus disse: “Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte”».
A serpente disse então à mulher: «Não, não morrereis! Mas Deus
sabe que, no dia em que dele comerdes, os vossos olhos se abrirão e
vós sereis como deuses, versados no bem e no mal».
A mulher viu que a árvore era apetecível e formosa à vista, e que
essa árvore era desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe o fru-
to e comeu. Deu-o também a seu marido, que com ela estava, e ele comeu.
Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus;
entrelaçaram folhas de figueira e cingiram-se.
Eles ouviram o passo de Yahvé Deus que passeava no jardim à
brisa do dia, e o homem e sua mulher esconderam-se da presença de
Yahvé Deus, entre as árvores do jardim.
Yahvé Deus chamou o homem: «Onde estás?», disse Ele.
«Ouvi os teus passos no jardim», respondeu o homem; «tive medo
porque estou nu e escondi-me».
Ele retomou: «E quem te fez saber que estás nu? Comeste, então,
da árvore que te proibi de comer!».
O homem respondeu: «A mulher que puseste junto de mim deu-me
da árvore, e eu comi»
Yahvé Deus disse à mulher: «Que fizeste?». E a mulher respon-
deu: «A serpente seduziu-me e eu comi».
Então Yahvé Deus disse à serpente: «Porque fizeste isso, és maldi-
ta entre todos os animais domésticos e todas as feras selvagens. Cami-
nharás sobre o teu ventre e comerás poeira todos os dias da tua vida».
À mulher Ele disse: «Multiplicarei as dores das tuas gravidezes,
darás à luz filhos com dor. O teu desejo te impelirá ao teu marido e ele
te dominará».
Ao homem Ele disse: «Porque escutaste a voz da tua mulher e co-
meste da árvore que Eu te proibira de comer, maldito é o solo por cau-
sa de ti! É com sofrimento que te nutrirás todos os dias da tua vida».

46
TEXTOS DE ACOMPANHAMENTO

Eu dormia mas de coração acordado

Eu dormia mas de coração acordado


a voz do meu amado insiste:
“Abre minha irmã
minha amada pomba incomparável
tenho a cabeça coberta de orvalho
meus cabelos enchem-se das gotas da noite”
Já despi a minha túnica
e vou de novo vesti-la?
Já lavei os meus pés
vou sujá-los de novo?
Meu amado passou a sua mão pela fresta da porta
e eu já sou puro temor.
Levantei-me para abrir ao meu amado
minhas mãos gotejavam mirra,
meus dedos eram mirra escorrendo
na aldrava da fechadura.
Quando abro ao meu amado
meu amado havia desaparecido
fora de mim corro atrás das suas palavras.
Procuro
e não o encontro.
Chamo e não me responde ...
Descobrem-me os guardas
que fazem ronda na cidade.
Espancam-me
ferem-me
arrancam-me o véu
os guardas das muralhas!
Mulheres de Jerusalém
eu vos suplico
se encontrardes o meu amado,
sabeis que dizer?
Dizei
que sou a enferma de amor.

Cântico dos Cânticos, capítulo 5, versículos 2 a 8

47
Excertos da exortação apostólica Familiaris Consortio (n.º 11)

«Porque o homem é um espírito encarnado, isto é, uma alma que


se exprime no corpo e um corpo informado por um espírito imortal, o
homem é chamado ao amor na sua totalidade unificada. O amor abraça
também o corpo humano e o corpo torna-se participante do amor
espiritual. (…)
Por consequência, a sexualidade, mediante a qual o homem e a
mulher se dão um ao outro por meio de actos próprios e exclusivos
dos esposos, não é algo de puramente biológico, mas diz respeito à
pessoa humana como tal no que ela tem de mais íntimo. Esta só se
realiza de maneira verdadeiramente humana se é parte integral do
amor com o qual homem e mulher se comprometem totalmente um
para com o outro até à morte. A doação física total seria falsa se não
fosse sinal e fruto da doação pessoal total, na qual toda a pessoa,
mesmo na sua dimensão temporal, está presente. Se a pessoa se reser-
vasse alguma coisa ou a possibilidade de decidir de modo diferente no
futuro, só por isto já não seria uma doação total».
João Paulo II

Entregarem-se um ao outro

Para isso, é preciso, antes de mais, que a união sexual seja sempre
um acto de amor. Isto não é evidente. “Fazer amor” pode muito bem
ser exercer violência. Pode ser vontade de possuir, de dominar ou
muito simplesmente uma procura egoísta de prazer. Esquece-se mui-
tas vezes esta frase da Humanae Vitae: “um acto conjugal imposto ao
próprio cônjuge, sem consideração pelas suas condições e pelos seus
desejos legítimos, não é um verdadeiro acto de amor e nega, por isso
mesmo, uma exigência da recta ordem moral, nas relações entre os
esposos. Assim (…) um acto de amor recíproco, que prejudique a dis-
ponibilidade para transmitir a vida (…) está em contradição com o
desígnio constitutivo do casamento …” (n.º 13). Muitas questões se
levantam em torno do segundo membro desta frase; levantar-se-ão
outras tantas em torno do primeiro? Ora, tão importante é um como o
outro. É preciso que nos interroguemos sempre sobre como a nossa
união é vivida. Amar é entregar-se ao outro, é pôr-se ao serviço do
desejo do outro, e até do seu prazer. Amar não é impor-lhe o que será
por ele vivido como degradante, humilhante, mas também aceitar por
amor ir mais longe do que espontaneamente se teria aceite ou procu-
rado. Há toda uma linguagem de amor a encontrar e a valorizar. Deve-
-se sempre procurar juntos como fazer desse acto cada vez mais um

48
acto de amor, de ternura, de confiança, de aceitação do outro, de dom
ao outro.
Aliás, a experiência ensina bem depressa que esse acto será inca-
paz de exprimir por si só o amor, se não se inscrever em toda uma vida
de amor, de dom, de amizade partilhada. Se contradiz o que se passa
no quotidiano da vida do casal, corre o risco de ser mentira ou violên-
cia, e não enganará por muito tempo, pois o corpo não poderá dissi-
mular indefinidamente o que vai no coração.
Padre Charles Bonnet

O corpo traído

A sexualidade tem, por vezes, aspectos negativos. No encontro se-


xual, queremos que o nosso cônjuge seja totalmente nosso. Se o nosso
cônjuge tem dificuldade em fazer amor, talvez isso não seja por
disfunção dos órgãos genitais mas por ele poder estar ferido sexual-
mente. Pode acontecer que o nosso cônjuge deseje mais encontros
sexuais do que nós; pode acontecer que ele seja desajeitado a fazer
amor ou seja insensível às nossas necessidades. Devemos ser delica-
dos na nossa forma de perdoar ou de procurar mudanças em matéria
sexual, porque neste domínio todos somos sensíveis e vulneráveis.
Se fazemos comentários sobre a inépcia técnica do nosso cônjuge,
corremos o risco de rejeitar toda a sua forma de amar, porque o corpo
ama através da pessoa toda. Rejeitando o aspecto físico, corremos o
risco de rejeitar o coração e tudo o mais do outro. Assim, se as coisas
não correrem bem no campo sexual, é preciso ser paciente e toleran-
te, mostrar como as coisas podem melhorar, sem nunca diminuir a
capacidade de amor do cônjuge 6.

Conquistar a sua sexualidade

Aparentemente, existe um medo amplamente difundido da sexuali-


dade que leva a reprimi-la. Mais uma vez, não se trata de a viver de
maneira incontrolada. Se ela resulta «de um desejo de concupiscên-
cia, de um desejo que provoca corrupção e concupiscência» (cf. 2
Pe 1, 4), leva não à vida mas ao caos. É aí que ela é causa de inúme-
ros dramas relacionais e ocasiona inúmeras feridas, tais como abu-
sos e violências. O dever dos cristãos é também descobrir a natureza

6
Jack Dominian, Conferência proferida no Encontro Internacional das Equipas de Nossa
Senhora, em Santiago de Compostela, Setembro de 2000.

49
divina na sexualidade. Isto leva a ter dela uma visão mais positiva e a
situar-se em relação a ela de uma forma mais consciente e conveniente.
Quem gasta todas as suas energias a reprimi-la e a rejeitá-la faz
mal a si mesmo. Faz, muitas vezes, a experiência de não conseguir
reprimi-la completamente. A sexualidade ataca-o, então, em momen-
tos de depressão ou de tensão e exprime-se sob a forma de auto-ero-
tismo ou, por vezes, de comportamentos incontrolados em relação a
menores. Estas pessoas causam a si próprias sofrimentos ainda mai-
ores. Enterram-se continuamente numa vida sexual que querem repri-
mir. Pelo contrário, quem assume pacificamente a sua sexualidade
encontra nela o gosto de viver, experimenta alegria na sua vida cor-
poral, é capaz, em todos os sentidos do termo, de gozar da natureza,
de experimentar Deus em si, e conhece uma espiritualidade viva e
criadora.
É claro que mesmo este caminho está semeado de obstáculos. A se-
xualidade é uma força que não se deixa canalizar tão facilmente como
gostaríamos. Mas é importante que a consideremos como uma ener-
gia que Deus nos deu de presente, como uma força boa e necessária
para a nossa vida (…) e para a nossa espiritualidade. Então, encon-
traremos caminhos que nos hão-de levar a integrá-la na nossa con-
cepção da vida. O celibatário tomará um caminho diferente do das
pessoas casadas. Mas o que é determinante é considerar a sexualida-
de como uma força que vem de Deus e que também nos pode conduzir
a Ele.
Fico sempre aterrorizado ao verificar o sofrimento que provém de
uma sexualidade repelida e reprimida, ao ver todo o mal que as pes-
soas fazem a si próprias porque não interpretam a mensagem bíblica
num sentido místico mas antes a recebem como uma palavra moraliza-
dora. Isto porque separam totalmente Deus e o mundo e porque gos-
tariam de chegar a Deus evitando o mundo; consideram a sua espiri-
tualidade não como um caminho de vida mas como uma estratégia de
limite para evitar as dificuldades inerentes à vida do homem.
Anselm Grün 7

7
Conquérir sa liberté intérieure, Ed. de l’Atelier. Anselm Grün é abade de Münsters-
chwarzach, mosteiro beneditino do sul da Alemanha.

50
«O que Deus uniu, o homem não deve separar»
(Mt 19, 6)

CAPÍTULO 5
Juntos para sempre, a fidelidade

TESTEMUNHOS

«Fizemos das crises ocasiões de progresso. Houve crises, mas


foram situações de amadurecimento, com o esforço e a renúncia
ora de um, ora de outro. É importante que, nos momentos difí-
ceis, haja um que seja o elemento de salvação».
«A fidelidade não é um peso, é uma grande alegria: sabermo-
-nos únicos para quem é único para nós».
«Esta tentação está em nós, faz parte de nós. Pensar que se
lhe pode escapar é sonhar. Devemos aceitar que somos seres de
desejo. A tentação é humana. Não a culpabilizemos; é impossí-
vel evitá-la. Reconheçamo-nos pecadores. Não julguemos que
estamos acima de tudo».
«As crises e as tentações devem ser analisadas o mais pro-
fundamente possível, mesmo se não se puder fazê-lo a quente;
pelo contrário, um certo distanciamento temporal permite rela-
tivizar os problemas. Em contrapartida, temos que nos conven-
cer de que um casal que sai de uma crise sai fortalecido. Não se
parte do zero, parte-se de muito mais alto. O simples facto de
ter ultrapassado positivamente as provações é um sinal de espe-
rança para as provações futuras».
«Nunca adormecer sem perdoar um ao outro!»
«Se não fosse o perdão e a reconciliação, nenhum casal se
manteria unido depois da lua de mel. E, se é verdade que em
todas as etapas da vida conjugal haverá ocasiões de perdão e de
reconciliação, é no início da vida de casal que saber perdoar e
reconciliar-se é de importância capital».

51
ELEMENTOS DE REFLEXÃO

Juntos para sempre

«O verdadeiro amor é não de um dia mas de sempre», afirmou


Charles-Ferdinand Ramuz 1, e na Bíblia lemos: «Amor e fidelidade
andam de mãos dadas» (cf. Sl 89).
Ao contrário destas afirmações, tudo nos leva a pensar, no mundo
actual, que é disparate acreditar na estabilidade das relações huma-
nas. Então, a fidelidade será uma graça concedida, uma provação so-
bre-humana, um ideal inacessível ou será um desejo partilhado, uma
decisão reflectida?
As estatísticas indicam que, em cada três casais, um está condena-
do ao fracasso. Da mesma forma, os geneticistas dizem que, se no
genoma humano se encontra uma predisposição a apaixonar-se, não
se encontra qualquer suporte que indicie que assim se ficará ou por
quanto tempo os apaixonados são capazes de ficar juntos.
Segundo a psicologia comparativa, poderia parecer natural que os
homens, e também as mulheres, se afastassem dos cônjuges em cer-
tos períodos e, em certas circunstâncias, fossem infiéis. Será, então,
contra a natureza que pessoas que se escolheram livremente se man-
tenham fiéis até que a morte as separe? As leis da natureza não são
leis inelutáveis que regem os nossos comportamentos. Se o homem se
adapta facilmente ao seu ambiente, o seu comportamento continua a
ser flexível: dispõe de remédios para tecer a sua história e para dar
significado às relações e ao diálogo. Para se manter fiel, é preciso to-
mar a decisão de se manter constante, é preciso querer. A vontade
desempenha um papel capital na dinâmica própria da fidelidade.
É fiel aquele «que não falta aos compromissos assumidos e que
demonstra uma afeição constante», diz o dicionário, e acrescenta: «é
fiel aquele que mantém relações amorosas apenas com a pessoa com
quem se comprometeu». A modernidade não encoraja a monogamia
nem a fidelidade, não valoriza o vínculo nem a duração. Duas pesso-
as que se aproximaram uma da outra e que se maravilharam com os
novos sentimentos de ternura que sentem uma pela outra desejam que
esse estado se eternize. Prometem uma à outra fidelidade para toda a
vida. Essa promessa tenta suprir a falta que resulta da inevitável dife-
rença que sempre separa os apaixonados. É o mistério de toda a rela-

1
Escritor suíço (1878-1947).

52
ção humana. Mas qual é o apaixonado que não tem a convicção ín-
tima de que os sentimentos que experimenta pelo outro resistirão à
erosão do tempo e assegurão a permanência?
A tensão da vida que suscita o nosso desejo e alimenta a nossa ex-
pectativa e a nossa imaginação pode, infelizmente, ser fonte de desen-
canto. A harmonia no casal é corroída pelo tempo e pelas dúvidas: as
experiências apaixonadas e intensas com o outro vão diminuindo, e
ninguém se pode instalar na convicção de que o cônjuge lhe pertence
até ao fim dos seus dias. A partir desta dolorosa verificação, é-se le-
vado a interrogar-se sobre se não se terá feito um erro na escolha do
cônjuge.
A ciência não nos dá remédios fáceis para forjar relações duradou-
ras e fecundas. No entanto, as sondagens revelam que a grande maio-
ria dos casais está satisfeita com a sua vida em comum, apesar das
imperfeições do seu comportamento sexual. «Nunca te esqueças de
que, num bom casal, o mais importante não é a felicidade mas a esta-
bilidade», faz o poeta García Márquez 2 dizer a uma das suas persona-
gens em “O amor no tempo da cólera”. A estabilidade é um factor
bem colocado na escala dos critérios necessários ao êxito de uma vida
de casal.

A fidelidade deve ser inovadora

Para os aventureiros do casal, o «duro desejo de permanecer» (Paul


Eluard 3) e a fé forjam a intenção de dar sentido a uma relação, de
inventar um novo estilo de vida, «de escrever uma história numa rela-
ção com o passado, numa atenção ao presente e numa vigilância rela-
tivamente ao futuro» (cf. Gérard Bailhache). E, uma vez que estou
convencido de que só o outro me pode fazer feliz, e que por isso re-
presenta para mim a felicidade, poderá haver a mínima dúvida quanto
à minha competência e aos meus meios para satisfazer o seu desejo,
para querer o seu bem com todo o meu ser?
Mas a parte de incerteza inerente a este pacto de solidariedade e à
promessa de fidelidade pode infelizmente dar lugar também à trai-
ção, se o diálogo no casal não tiver sabido dissipar as tensões que
resultam da oposição entre o desejo e a realidade.

2
Escritor colombiano, Prémio Nobel da literatura 1982.
3
Poeta francês (1895-1952).

53
A fidelidade conjugal «contra ventos e marés» é uma dimensão
fundamental da nossa humanidade. São muitos os lugares da fidelida-
de: a religião, a família, a amizade, os compromissos … Desde Ho-
mero, ela é cantada pelos poetas em todo o mundo; faz vibrar os cora-
ções e faz correr lágrimas. Tem por objecto homens de todas as idades,
mas não pode ser dissociada do amor.
Se o dicionário descreve a fidelidade como qualidade do que res-
peita compromissos assumidos, o aspecto que aqui nos interessa é o
testemunho de pessoas que cumprem a sua promessa e respeitam os
seus compromissos para com o cônjuge até ao limite do possível. Des-
cobre-se, então, a força dessa fidelidade que é a própria força da fé,
tradução do latim fides: fé no vínculo, fé no outro e, para o crente,
abertura à transcendência, à verdade e à eternidade: Deus.
A fidelidade não está em crise, ela própria é crise, porque inces-
santemente e a todo o instante nos obriga a manter uma decisão, to-
mada no impulso do início, de refazer uma promessa abalada pelos
cantos melodiosos das sereias, de voltar a dar uma palavra enterrada
no esquecimento. Nem a fidelidade nem a infidelidade são fatalida-
des. A fidelidade constrói-se, dia a dia, com perseverança e energia.
Estaremos prontos a pagar esse preço por um ideal em que se funda-
mentam a história das nossas comunidades e o futuro do nosso casal?
A construção da fidelidade no casal assenta em quatro pilares:

* A fidelidade conjuga-se com a confiança: iniciar uma relação


de confiança com alguém é uma maneira de dar ao outro a im-
portância a que ele tem direito, de lhe dizer: Tu és uma pessoa e
não um objecto intermutável e manipulável consoante as minhas
emoções, os meus desejos, os meus instintos. Mereces considera-
ção e respeito. A fidelidade pressupõe um contrato, uma declara-
ção de intenção e de crédito. Para dar crédito a alguém é preciso
conhecer esse alguém de verdade: é preciso confiar no ser ama-
do; «o verdadeiro amor não é de um dia … não tínhamos nada
para começar, tudo estava por fazer» (Charles-Ferdinand Ramuz).
É preciso fazer um esforço para manter um vínculo e para respei-
tar uma promessa feita. Nos nossos esforços, somos ajudados pela
representação da felicidade suscitada em nós pela ternura e pela
cumplicidade com o outro, ser de carne e osso. A manutenção do
vínculo não é um apego a si mesmo, uma atitude moral que a
razão nos imponha; é a encarnação de um contrato de vida, e esse
contrato deve ser revisto, corrigido, retomado todos os dias, tendo
em conta os contratempos da vida quotidiana.

54
* A fidelidade desenvolve-se no tempo, e isto pode ser interpreta-
do como um desafio lançado ao tempo. O tempo é irreversível.
Não é um longo rio tranquilo. Quantos meios é preciso pôr em
acção para passar do imaginário ao real, da nostalgia do passado
às previsões do futuro! O tempo é uma oportunidade para a cons-
trução de uma relação. Permite que a vida seja criativa. O tempo
não é só desgaste, é também impulso vital. O amor, sobretudo,
amadurece: pode melhorar como o vinho. A harmonia que se es-
tabelece com o tempo é certamente menos apaixonada e menos
passional do que a do início, mas torna-se mais real. Já não es-
tamos sozinhos a correr o permanente risco inerente a essa rela-
ção paradoxal de entrega de si a outro/a, de oferenda ao outro do
que nos é mais caro: nós próprios. O risco já não é solitário: a fi-
delidade vive-se com outra pessoa, é caminho de descoberta de
si e do outro que passou a ser a pessoa mais próxima. Qualquer
que seja o futuro que tivermos imaginado, ele nunca se realiza
sem que tenhamos sido secretamente desiludidos. A fidelidade,
tal como a ternura, tem incessantemente necessidade de palavras
para se dizer, se partilhar, se construir, se recompor.
* A fidelidade passa pelo perdão. Para o diálogo e para a escuta
no respeito é preciso explorar as alegrias e as provações, as trai-
ções e as decepções que correm o risco de levar ao desencanto.
Por vezes, fazem-se ouvir os apelos dissimulados da tentação:
por que será preciso renunciar? O diálogo é indispensável à cons-
trução de uma relação, ao passo que o silêncio lhe é funesto.
Quando surgem divergências profundas que provocam rupturas
ou traições, a frágil fidelidade humana precisa de ser rodeada de
tacto e de solicitude. Ela não está inscrita nos nossos genes. Po-
demos aprender palavra a palavra e passo a passo a atravessar na
paciência essas obscuridades quando já não sentimos nada, quando
já não compreendemos nada. Toda a falta pode ser perdoada, desde
que se queira. O perdão está no centro da aventura conjugal e,
para lá dos conflitos, é preciso acreditar na reconciliação possí-
vel. Quem ama verdadeiramente é levado a perdoar. Estender a
mão e deixar que nos dêem a mão: eis o segredo do perdão, que
não é resignação mas fonte de fecundidade e de liberdade. O
perdão restitui a paz, enquanto o perdão recusado asfixia.
* A fidelidade é uma arte de viver. Não é uma ascese. Há que
sublinhar a importância do acto sexual, profunda e ligeira ao mes-
mo tempo, e levar a sério a atracção dos sentidos, os seus aspec-
tos de gratuitidade, de poesia e até de desordem. Nos nossos dias,

55
já não é possível silenciar o papel positivo do prazer carnal sobre
o qual se constrói a estabilidade do casal e que não deve ser asfi-
xiado sob o peso das regras morais. A fidelidade deve ser inven-
tiva, não se deve tornar monótona nem enfadonha. Os cônjuges
são chamados a reajustar constantemente a sua vida em comum
a novas referências, a cultivar o prazer de estarem juntos de modo
a que bastem poucas palavras e poucos gestos de ternura para
responder às expectativas do outro. Isto supõe uma grande dispo-
nibilidade e uma grande exigência, pessoal e recíproca. E quan-
do tudo vai tão bem que já não têm vontade de se separar, é pre-
ciso poderem suportar a separação, deslocarem-se para espaços
diferentes, criar lugares de solidão possível. Compete a cada um
descobrir o seu espaço interior e a capacidade de nele se manter
e de o cultivar; isto implica que também se respeitará o jardim
secreto do outro, que nunca se lhe forçará a porta. O amor procu-
ra penetrar os segredos íntimos do ser amado, todavia «o verda-
deiro amor contorna os segredos da solidão do ser amado e per-
mite que ele os guarde para si» (cf. John Merton).

Para concluir:
A fidelidade é uma atitude responsável quotidiana que nos volta
para o infinito, abrindo-nos a uma história imprevisível. Este apelo é
um convite a dar e a receber; precisamos de aceder a questões que
sabemos serem vitais, um desafio “contra todos os riscos” ao desgas-
te do tempo. A fidelidade não é uma palavra, é um sinal. A nossa fi-
delidade pode apoiar-se com segurança na fidelidade de Deus. A fide-
lidade é o atributo mais importante de Deus e está associada à sua
bondade paternal: Ele é o “rochedo” de Israel, nome que simboliza a
sua fidelidade imutável, a verdade das suas palavras, a solidez das
suas promessas. Pelo sacramento do matrimónio, Deus consagra a
nossa fidelidade conjugal através do “Sim” que nos compromete para
sempre.
Não será presunçoso fazer esta afirmação quando se fez a expe-
riência do silêncio de Deus no sofrimento e na aflição? Onde está
Deus no fracasso? Temos a plena revelação disto em Jesus Cristo,
cuja Paixão não é só a partilha zdessa experiência de abandono, mas
é também fundadora de sentido, fazendo dela um caminho de ressur-
reição. Em Jesus Cristo manifesta-se a fidelidade de Deus que vai
além de todas as promessas da Aliança. É um sinal que revela, tor-
nando visível aos olhos dos homens o amor de Cristo pela sua Igreja.
A fidelidade de Deus reclama a nossa. Convida-nos a estar atentos à

56
sua presença, não para esquecer a de um ser amado mas para subir até
à fonte desse amor. «Que, no meio das mudanças do mundo, os nos-
sos corações se fixem onde estão as verdadeiras alegrias» (cf. Missal
Romano).

PERGUNTAS

Para o diálogo em casal

* Que imagem de fidelidade tínhamos quando nos casámos?

* Que aspectos da nossa vida modificaram essa imagem?

* A fidelidade é uma arte de viver: que fazemos, individualmente


e em casal, para tornar a nossa fidelidade inventiva?

Para o diálogo em equipa

* Quais são os lugares onde somos chamados a ser testemunhas da


nossa fidelidade?

* Como ser sinal da felicidade de ser fiel numa cultura que não
encoraja a fidelidade?

* Em que é que a vida nas Equipas de Nossa Senhora é uma ajuda


a viver a fidelidade em casal?

* Em que é que o sacramento do matrimónio nos ajuda a viver a


fidelidade no nosso quotidiano?

57
ORAÇÃO

Texto para a oração da equipa (Ef 4, 1-13):

Exorto-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, a andardes de modo


digno da vocação a que fostes chamados: com toda a humildade e
mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns aos outros com
amor, procurando conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da
paz.
Há um só Corpo e um só Espírito, assim como é uma só a espe-
rança da vocação a que fostes chamados; há um só Senhor, uma só
fé, um só baptismo; há um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos,
por meio de todos e em todos.
Mas a cada um de nós foi dada a graça pela medida do dom de
Cristo, por isso se diz: Tendo subido às alturas, levou cativo o cati-
veiro, concedeu dons aos homens.
Que significa «subiu» senão que Ele também desceu às profundezas
da terra? O que desceu é também o que subiu acima de todos os
céus, a fim de plenificar todas as coisas.
E Ele é que «concedeu» a uns ser apóstolos, a outros profetas, a
outros evangelistas, a outros pastores e mestres, para aperfeiçoar os
santos em vista do ministério, para edificação do Corpo de Cristo,
até que alcancemos todos nós a unidade da fé e do pleno conheci-
mento do Filho de Deus, o estado de Homem Perfeito, a medida da
estatura da plenitude de Cristo.

TEXTO DE ACOMPANHAMENTO

Textos bíblicos
Única é minha pomba

Sessenta são as rainhas


e oitenta as concubinas
e as donzelas sem conta
mas ela é única a minha pomba sem defeito
ela é única para a sua mãe.
Quando a vêem, as donzelas louvam-na
celebram-na rainhas e concubinas.

58
Quem é essa que desponta como a aurora
bela como a lua
fulgurante como o sol
terrível como as coisas insignes?

Cântico dos Cânticos, capítulo 6, versículos 8 a 10

Não traias a esposa da tua juventude

Malaquias 2, 15

Goza com a esposa a tua juventude:


cerva querida, gazela formosa;
que te embriaguem sempre as suas carícias,
o seu amor te satisfaça sem cessar!

Provérbios 5, 18b-19

Para sempre vou manter-lhe o meu amor;


e a minha aliança com ele será firme;
jamais vou profanar a minha aliança
nem mudar o que saiu da minha boca

Salmo 89, 29.35

Eu te desposarei para sempre,


eu te desposarei na justiça e no direito,
no amor e na ternura.
Eu te desposarei na fidelidade
e conhecerás o Senhor.

Oseias, 2, 21-22

59
Outros textos
A confiança mútua

Há uma condição que é absolutamente necessária: é a confiança


mútua, total, sem reservas. A confiança chama a confiança, como a
desconfiança chama a desconfiança. Há uma dinâmica da confiança.
A confiança é contagiosa. É evidente que o entendimento sexual é ab-
solutamente necessário à confiança mútua, mas não chega. Se o abra-
ço deve ser uma conversa, a conversa deve ser um abraço, o que su-
põe renúncia à perigosa quimera da fusão. Se se acarinha este sonho,
ou um domina o outro e o esmaga, ou a verificação de fracasso leva a
um divórcio.
Jacques de Bourbon Busset
Excertos da revista Alliance, n.º 100-101

Lembras-te, mulher?

Lembras-te, mulher?
não tínhamos nada para começar, tudo estava por fazer.

E pusemos mãos à obra, mas é difícil.


É preciso coragem, perseverança.
É preciso amor,
e o amor não é o que pensamos quando começamos.

Não são só beijos que se trocam,


aquelas palavrinhas que segredamos ao ouvido
ou ficarmos apertados um contra o outro;
o tempo da vida é longo,
o dia do casamento é só um dia.

Foi depois,
— lembras-te? —
foi só depois que a vida começou.

É preciso fazer, e está desfeito;


é preciso voltar a fazer e continua desfeito.

Vêm os filhos,
é preciso alimentá-los, vesti-los, educá-los;
nunca mais acaba.

60
Também acontece ficarem doentes;
tu ficavas de pé toda a noite;
eu trabalhava de manhã à noite.
Há alturas em que desesperamos;
e os anos passam e não avançamos.
Parece que voltamos para trás.

Lembras-te, mulher?
Todas aquelas preocupações, toda aquela confusão.
Só que tu estavas ali.

Continuámos fiéis um ao outro.


E assim pude apoiar-me em ti,
e tu apoiavas-te em mim.
Tivemos sorte em estar juntos,
pusemo-nos os dois ao trabalho,
aguentámo-nos,
resistimos.

O verdadeiro amor não é o que se pensa.


O verdadeiro amor não é de um dia, é de sempre.

Charles-Ferdinand RAMUZ

Aliança de Amor 4: O pensamento do Papa João Paulo II sobre a


sexualidade, o matrimónio e a família no mundo moderno:
O dom que um homem e uma mulher fazem um ao outro no
casamento deve ser indissolúvel enquanto ambos viverem. Entre-
gam-se um ao outro e, em troca, recebem o dom do outro. Uma
vez concedido, o dom não pode ser retirado. Uma vez recebido, o
dom do outro nunca pode ser rejeitado. Como sublinha a exortação
apostólica Familiaris Consortio, «a indissolubilidade do matrimó-
nio … [é] sinal e exigência do amor absolutamente fiel que Deus
Pai tem pelo homem e que Cristo manifesta para com a Igreja»
(n.º 20). Por outras palavras, o amor de Deus caracteriza-se sem-

4
Excerto de Richard M. Hogan e John M. Levoir, Covenant of love, Pope John Paul II on
sexuality, marriage and family in the modern world, Ignatius Press, p. 80.

61
pre por uma fidelidade perfeita. O amor humano, por ser reflexo
do amor de Deus, também deve ser fiel para sempre. Deus é sem-
pre fiel no seu amor, pois qualquer grau menor de amor não seria
dom total de si mesmo. Um dom, quando é total, não é limitado
nem por graus nem no tempo!

Espanto-me sempre, diz Deus

Espanto-me sempre, diz Deus,


quando oiço as pessoas dizerem
«Somos casados!»
como se se casassem num dia!
Deixem-me rir.
Como se se casassem de uma vez por todas.
Pensam que aconteceu
e que podem viver,
viver dos seus rendimentos de amor de pessoas casadas.

Como se se casassem num dia,


como se chegasse darem-se uma vez,
de uma vez por todas;
como se eu próprio
tivesse feito o mundo num dia;
como se não precisassem, a todo o custo,
por bom senso,
de se casarem todos os dias que eu faço.

Os homens não duvidam de nada!


Duas metades têm tanto a casar!
Quando se esteve vinte anos sozinho,
rapaz sozinho,
rapariga sozinha,
tão diferentes,
de proveniencias estranhas uma da outra
desde há gerações.
Tantas coisas a dar
e a receber.
Tantas coisas a receber
e a dar, meus filhos!

Charles Péguy

62
«Cada um de nós prestará contas a Deus de si próprio»
(Rm 14, 12)

CAPÍTULO 6
A consciência

TESTEMUNHOS

«A Igreja apresenta-se-nos como um farol erguido no meio


do mar para nos esclarecer e guiar as nossas consciências na
procura do que é bom para o homem».
«A Igreja é perita em matéria de conhecimento do homem; é
mestra em humanidade».
«A Igreja não é demasiado rígida; o homem tem necessidade
de orientações e de exigência. Ela põe a fasquia muito alta, mas
isso não é rigidez. Usa uma linguagem de amor; quer preservar
o amor, a procriação, o respeito pelo outro».
«No nosso mundo demasiado permissivo, é importante mos-
trar que a Igreja não impõe interditos mas quer realizar a pro-
moção humana de todos e do casal em particular».
«A obediência estrita à doutrina da Igreja (segundo a Huma-
nae Vitae) foi para os membros da nossa equipa (todos têm ac-
tualmente mais de 45 anos) causa de perturbação, de problemas
de consciência e, em certos casos, de afastamento temporário
dos sacramentos. Para alguns casais que conhecemos, a aplica-
ção rigorosa destas normas levantou sérios problemas».
«Uma correcta formação da consciência não se faz “de uma
vez por todas”. Há que ter uma atitude permanente de procura,
que se torna estilo de vida. Ao mesmo tempo, é necessária uma

63
disponibilidade para a mudança … Não se pode “normalizar”
a consciência: ela é própria de cada indivíduo e, no matrimó-
nio, do casal. Diversos casais que se prepararam no mesmo es-
pírito de verdade podem ter comportamentos diferentes e tomar
decisões diferentes face aos mesmos problemas».

ELEMENTOS DE REFLEXÃO

Consciência (Cum scientia): saber com Deus, o que o homem conhe-


ce do próprio saber de Deus. Agir segundo a sua consciência? Mui-
tas vezes, esta questão surge quando somos confrontados com um
dilema, com uma situação em que o nosso interesse pessoal parece
opor-se às recomendações do Magistério. Vejamos alguns exemplos
concretos:

Que devemos fazer?

Desejamos loucamente, há anos, um filho, mas a natureza recusa-


-no-lo; recorreremos à fertilização in vitro e transferência de embrião
mesmo sabendo que o Magistério se opõe a isso?
Temos “a consciência tranquila”; respeitamos os métodos de auto-
-observação preconizados pela Igreja, mas só temos dois filhos, quando
nos seria fácil ter mais!
Temos quatro filhos; a minha mulher não tem uma saúde muito
boa e não podemos, de momento, pensar noutro nascimento; os méto-
dos de auto-observação não nos parecem suficientemente seguros.
Será que ela pode tomar a pílula durante algum tempo?
Utilizo um preservativo, durante os períodos férteis, ou privilegio
a continência durante esses períodos?
E aqui estão dois casos que podem parecer casos limite mas que
são reais:
- A minha filha sofre de trissomia e gosta de um rapaz que tem a
mesma deficiência; esse amor fá-los despertar para a vida, mas
eles são incapazes de criar um filho; será de lhes aconselhar um
meio contraceptivo “ilícito”?

64
- A minha mulher e eu (25 anos) descobrimos, depois do nascimen-
to de um filho nado-morto, gravemente anormal, que os exames
do nosso capital genético nos davam duas probabilidades em três
de pôr no mundo crianças altamente deficientes. Mas queremos
ter filhos. Deveremos seguir o parecer do nosso médico, que acon-
selha um aborto terapêutico em caso de grave anomalia detecta-
da na ecografia? Se não, que fazer?

Tentemos ver as coisas com mais clareza

As linhas que se seguem não dão respostas feitas, mas uma “ilumi-
nação” que deveria ajudar cada um a aprender a decidir-se no seu caso
particular único. Não falaremos aqui da consciência psicológica, que
se assemelha ao simples conhecimento (tem-se consciência da ternu-
ra de uma mãe, da iminência de uma tempestade …), mas da consciên-
cia moral, que ultrapassa esse simples conhecimento, dando-lhe um
valor de bem ou de mal que nos compromete pessoalmente.
Na Declaração Dignitatis Humanae do Concílio Vaticano II (n.º 3c),
lê-se: «O homem ouve e reconhece os ditames da lei divina por meio
da consciência, que ele deve seguir fielmente em toda a sua activida-
de, para chegar ao seu fim, que é Deus. Não deve, portanto, ser forçado
a agir contra a própria consciência. Nem deve também ser impedido
de actuar segundo ela». Notemos, já agora, que a Igreja não é a única
a interessar-se pela consciência: em 1948, a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, no seu número 18, afirma: «Toda a pessoa tem
direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião».
Na Constituição Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II (n.º 16)
encontramos uma longa exposição sobre a consciência, que vai servir
de fio condutor para a nossa reflexão:

§ 1. «No fundo da própria consciência, o homem descobre a


presença de uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve
obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e
fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu cora-
ção: faz isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escri-
ta pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por
ela é que será julgado.
§ 2. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do ho-
mem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na
intimidade do seu ser.

65
§ 3. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela
lei que se realiza no amor de Deus e do próximo.
§ 4. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão uni-
dos aos demais homens no dever de buscar a verdade e de nela
resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e
social. Quanto mais, portanto, prevalecer a recta consciência, tan-
to mais as pessoas e os grupos estarão longe da arbitrariedade cega
e procurarão conformar-se com as normas objectivas da moralidade.
§ 5. Não raro, porém, acontece que a consciência erra, por igno-
rância invencível, sem por isso perder a própria dignidade.
§ 6. Outro tanto não se pode dizer quando o homem se descuida
de procurar a verdade e o bem e quando a consciência se vai pro-
gressivamente cegando, com o hábito do pecado».

Analisemos estes seis parágrafos:


No § 1 há dois pontos importantes: a lei é escrita por Deus no cora-
ção do homem (Deus in nobis), Deus no interior de nós próprios, cru-
zando o infinitamente distante e o infinitamente próximo, e nós deve-
mos obedecer-Lhe. Essa voz chama-nos sempre ao amor do bem e à
fuga do mal, e essa obediência deve fazer-se sem considerar aqui a
adequação ou não dessa voz a esta ou àquela norma exterior. Compa-
ra-se, muitas vezes, a consciência a uma bússola. A imagem é apro-
priada: o navegador deve submeter-se à bússola, não pode escolher
outro norte; o barco que se toma a si próprio como ponto de referên-
cia não vai a parte nenhuma.
O § 2, comparando a consciência a um santuário inviolável, insiste
na dignidade da consciência do homem. Este santuário é uma sala
nobre, protegida contra toda e qualquer intervenção exterior, para a
qual o homem se retira para decidir o seu futuro, e na qual ele é a
única pessoa a penetrar com o seu Criador. Mas, mais ainda, este
parágrafo dá a entender que, definitivamente, ninguém pode dizer que
uma pessoa tenha desobedecido à sua consciência ou que a tenha se-
guido. Só a própria pessoa pode «pensar» ter ido ao fundo da sua
consciência, em situações em que nem sempre domina todos os da-
dos …; daí a importância da formação e da escuta, retomada nos dois
parágrafos seguintes.
O § 3 sublinha a importância desta «descoberta»: a escuta e o aco-
lhimento da lei interior por parte da consciência realizam-se «de modo
admirável». É a luz que nos vem de descobrir que nos sentimos em
harmonia com o desígnio de Deus, com a vontade de Deus a respeito

66
da nossa vida. «No mais íntimo de si próprio, o homem experimenta
a irradiação da verdade de Deus no seu ser. É isso a lei. Não é prima-
riamente a percepção de um interdito exterior a si. Não é uma realida-
de fria e impessoal. Trata-se de uma luz, de uma atracção, de uma
revelação pessoal».
O § 4 põe a tónica na necessidade da formação de uma «consciên-
cia recta»; trata-se não de uma «consciência tranquila», como se diz
em linguagem corrente, que seria uma satisfação fácil e sem demasi-
ada reflexão, mas de uma procura clarificada do verdadeiro bem; no
fundo, «ter uma consciência recta é ser recto para com a própria cons-
ciência». Trata-se de esclarecer bem a consciência e de ser responsá-
vel não só «perante» a sua consciência mas também «pela» sua cons-
ciência. «A consciência», escreve o Cardeal Pierre Eyt 1, «não é um
oráculo, mas um órgão que se exercita, se informa, se forma, se ilu-
mina, se desenvolve, se afina».
A Encíclica Veritatis Splendor do Papa João Paulo II apela a «for-
mar a consciência e a fazer dela objecto de uma conversão permanen-
te à verdade e ao bem». A procura de uma consciência é um caminho
de conversão para toda a vida, e quem diz «caminho» diz também
«caminhada», «progressão», «gradualidade». A iluminação da cons-
ciência pode ser orientada:
- pelos acontecimentos (ainda que a sua interpretação nem sempre
seja simples);
- pela reflexão (o exercício da inteligência que se instrói, racioci-
na, argumenta);
- pela oração e pela vida sacramental (eucaristia, reconciliação);
- pela mediação de outras pessoas - pais, educadores, amigos;
- pelo Magistério, essa «memória da Igreja que actualiza as exi-
gências dos apóstolos» (e, por conseguinte, de Cristo), que não
tem que acrescentar leis mas que explicita e precisa o que signi-
fica amar Cristo e segui-l’O.

Finalmente, a consciência toma, por vezes, justamente o aspecto


de uma pessoa: «A minha natureza», diz o Cardeal Newman, «ouve a
voz da consciência como uma pessoa: quando lhe obedeço, fico satis-
feito; quando lhe desobedeço, sinto-me triste, exactamente como quan-
do dou ou não prazer a um amigo que me é muito querido (…). Um

1
Arcebispo de Bordéus, França, falecido em 2001.

67
eco implica uma voz; uma voz, alguém que fala; aquele que fala é
aquele que amo e venero».
Os § 5 e 6 apresentam-nos dois tipos de «consciência errónea». Só
uma é digna: a que erra em consequência de uma ignorância inelutá-
vel. A ignorância inelutável é a ignorância de uma pessoa que, tendo
feito tudo o que estava ao seu alcance para procurar a verdade (oração,
leituras, conversas …), não chegou a perceber a razão de tal atitude
moral proposta pela Igreja. Continuando a prestar atenção, continuan-
do a manter em alerta o seu “radar” para o caso de alcançar uma per-
cepção maior, é dever de cada um obedecer definitivamente à sua cons-
ciência. S. Tomás de Aquino considerará mesmo obrigação obedecer à
sua consciência sob pena de pecado. Porque o nosso dever é ir até onde
a nossa consciência viu que se encontrava o bem. Com efeito, uma
velha máxima da escolástica recorda-nos que nunca é permitido esco-
lher deliberadamente o que em consciência julgamos ser mal.
O § 6, por sua vez, evoca também a realidade da ignorância, mas
aqui trata-se de uma ignorância que é fruto de uma «consciência pre-
guiçosa»; não se fizeram os esforços que poderiam ser feitos; a pes-
soa fechou-se num certo número de certezas mais ou menos confortá-
veis e desligou o seu radar. Esta situação é particularmente grave. O
Catecismo da Igreja Católica não hesita em afirmar que «a ignorân-
cia simulada e o endurecimento do coração não diminuem, antes au-
mentam, o carácter voluntário do pecado» (n.º 1859).
Estas reflexões acerca da consciência devem deixar-nos cheios de
confiança e de serenidade. É claro que, como referimos no início des-
te capítulo, não trazem soluções feitas, mas a nossa «boa vontade»,
com a graça de Deus e o apoio da sua misericórdia, far-nos-á desco-
brir como formar uma «consciência recta», e então poderemos tender
ao «ideal que», como diz Marcel Domergue 2, «consiste em a voz de
Deus se nos tornar interior e agir em nós como o nosso próprio dina-
mismo».

PERGUNTAS

Para o diálogo em casal

* Dialogamos acerca de um problema que a nossa consciência nos


permitiu resolver; como iluminámos a nossa consciência?

2
Padre Jesuíta francês.

68
* Que esperamos um do outro para nos ajudarmos mutuamente a
formar a nossa consciência? A minha consciência preocupa-se
com o desabrochar do meu cônjuge, com o seu desejo, com o
meu, com as suas repugnâncias, com as minhas?

* Em que campos temos uma consciência de casal?

Para o diálogo em equipa

* Que meios temos na equipa, na Igreja, para alimentar a nossa


consciência? Como os utilizamos?

* Que pontos do magistério constituem obstáculo para nós? Por-


quê? Rejeitamos esses pontos por si mesmos ou apenas rejeita-
mos considerá-los para o casal?

* Em que é que esta reflexão acerca da consciência nos poderá


ajudar a passar de uma atitude de obediência passiva ou de rejei-
ção a uma atitude de apropriação pessoal dos ensinamentos do
Magistério?

ORAÇÃO

Texto para a oração da equipa (Jo 3, 4-8):

Perguntou-Lhe Nicodemos: «Como pode um homem nascer, sen-


do já velho? Poderá entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e
nascer?».
Respondeu-lhe Jesus: «Em verdade, em verdade, te digo: quem não
nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus. O
que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do Espírito é espírito.
Não te admires de Eu te haver dito: deveis nascer do alto.

69
O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de
onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que
nasceu do Espírito».

TEXTOS DE ACOMPANHAMENTO

Grava-me em teu coração

Grava-me como selo em teu coração


como selo em teu braço
porque forte como a morte é o amor
voraz a paixão como o abismo
seus ardores são chamas de fogo
labaredas do Senhor
por maiores que sejam as águas
jamais apagarão o amor
nenhum rio o poderá submergir
entregasse alguém
toda a riqueza de sua casa
para comprar o amor
seria ainda tratado com desprezo.

Cântico dos Cânticos, capítulo 8, versículos 6 a 8

A consciência

«A consciência é como o núcleo mais íntimo e secreto do homem;


é lá que ele se refugia com as suas faculdades espirituais numa soli-
dão absoluta, sozinho consigo mesmo, ou melhor, sozinho com Deus,
cuja voz se faz ouvir. É aí que ele se decide pelo bem e pelo mal, é aí
que escolhe entre o caminho da vitória e o da derrota. Mesmo se qui-
sesse, o homem nunca conseguiria desembaraçar-se dela; com ela,
quer ela o aprove quer o condene, ele percorre todo o caminho da vida
e, ainda com ela, testemunha privilegiada, verídica e incorruptível,
ele se apresentará ao juízo de Deus.
Por conseguinte, a consciência é, para retomar uma imagem antiga
mas perfeitamente apropriada, um santuário no limiar do qual todos
devem parar: todos, inclusive o pai, inclusive a mãe, quando se trata

70
de uma criança; só o padre lá entra como médico das almas e como
ministro do sacramento da penitência. Mas nem por isso a consciên-
cia deixa de ser um santuário zelosamente guardado cujo segredo o
próprio Deus quer que seja preservado sob o selo do mais sagrado dos
silêncios».
Pio XII
Texto citado pelo Padre Bruguès

Ousar a liberdade

Se autoridade quer dizer abuso de poder,


então aquele homem deve calar-se.
Se autoridade quer dizer ditador,
então é preciso reduzi-lo ao silêncio.

Mas não abusa do poder


aquele que ousa interpelar o homem,
aquele que ousa dizer a verdade.
Quando as suas armas são o Amor
e a ternura,
quando os únicos soldados que o servem
são simples pescadores,
homens do povo,
então não se pode falar de ditadura!

Aquele que fala aos homens


deste tempo
apela à liberdade de cada um.
Diz: «Vocês têm uma consciência …»
Mas apelar à liberdade
é um crime nesse tempo,
tudo está tão bem inscrito na lei.

O que é espantoso no Evangelho


é esse sopro de vida,
essa Palavra de esperança,
Palavra que nasce com uma criança
e que cresce na vida dos homens.
Então, hoje, ousemos a liberdade …

Charles Singer

71
3
Celebrar o ano 2000 !

Como tudo o que é humano, a consciência humana pode enganar-


-se e expor-se a ilusões e a erros. É uma voz subtil que pode ser aba-
fada pela algazarra de uma forma de viver que desvia, ou quase asfi-
xiada por um persistente hábito de pecado grave.
A consciência deve ser alimentada e formada, e a melhor maneira de
a formar — pelo menos para aqueles que receberam a graça da fé —
é referi-la à revelação bíblica da lei moral, interpretada com autorida-
de, com o auxílio do Espírito Santo, pelo Magistério da Igreja.
Estamos arrependidos ou satisfeitos connosco próprios? «Deve-
mos acolher a mensagem que nos vem da parábola evangélica do
fariseu e do publicano (cf. Lc 18, 9-14). Talvez o publicano pudesse
ter alguma justificação para os pecados cometidos, de modo a dimi-
nuir a sua responsabilidade. Porém, não é nestas justificações que se
detém a sua oração, mas na própria indignidade face à infinita santida-
de de Deus: “Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador” (Lc 18,
13). O fariseu, pelo contrário, justifica-se por si só, encontrando tal-
vez uma desculpa para cada uma das suas faltas 4.
«Defrontamo-nos, assim, com dois comportamentos diversos da
consciência moral do homem de todos os tempos. O publicano apre-
senta-nos uma consciência “penitente”, que está plenamente ciente
da fragilidade da própria natureza e vê nas próprias faltas, indepen-
dentemente das justificações subjectivas, uma confirmação de o pró-
prio ser necessitado de redenção. O fariseu mostra-nos uma cons-
ciência “satisfeita consigo mesma”, que se ilude de poder observar a
lei sem a ajuda da graça e está convencido de não ter necessidade da
misericórdia.
«A todos é pedida uma grande vigilância para não se deixar conta-
giar pela atitude farisaica que pretende eliminar a consciência da pró-
pria limitação e do próprio pecado, e que hoje se exprime particular-
mente na tentativa de adaptar a norma moral às próprias capacidades
e interesses, e até na rejeição do conceito mesmo de norma» (Veritatis
Splendor, 104-105).

3
Reflexões sobre Jesus, o Espírito Santo e o Pai. Textos do Papa João Paulo II, escolhidos
e apresentados por Paul Thigpen.
4
Excerto de Celebrate 2000!, p. 153.

72
«Sede fecundos»
(Gn 1, 28)

CAPÍTULO 7
Dar frutos, a fecundidade

TESTEMUNHOS

«A fecundidade carnal é uma riqueza inaudita que nos faz


participar de uma maneira concreta e maravilhosa na criação,
mas o nosso casamento dá-nos uma vocação ainda mais vasta,
mais prodigiosa: a de tornar fecundo o nosso cônjuge em toda a
sua vida, não apenas no seu corpo. A felicidade é o desabrochar
do cônjuge no casal! (…) O acto sexual não pode limitar-se a
criar filhos, cria o casal, faz desabrochar o cônjuge, continua a
manter-nos, como casal, criadores de bens espirituais, em tudo
o que vivemos na vida quotidiana, na vida profissional, na vida
de relações, nos nossos compromissos (não só de Igreja)».
«Em equipa, percebemos melhor o sentido profundo da fe-
cundidade para um casal sem filhos. Um casal da equipa, con-
frontado com este doloroso problema, explicou-nos a sua cami-
nhada: de um sentimento de revolta, num primeiro tempo, a uma
tomada de consciência de “outro” meio para o casal ser fecun-
do, por tudo o que faz no exterior, no voluntariado, etc.».
«Senti-me pai de repente no momento em que o meu filho
berrou. Por outro lado, tinha o sentimento de que a minha mu-
lher já era mãe há nove meses. Quando fui pai, percebi Deus».
«O sentimento que se revelou foi sempre, em primeiro lugar,
de orgulho e de intensa alegria. O filho era a materialização do
nosso amor, amor que tinha necessidade de sair de nós próprios.

73
Depois, a intensa alegria transformou-se numa enorme espe-
rança, num desejo, em projectos para os filhos; estes são do do-
mínio do sonho. Os nossos filhos ensinaram-nos outra forma de
amor: humildade, escuta, atenção, paciência, disponibilidade».
«Transmitir a vida ultrapassa-nos, faz-nos tocar o mistério
da vida. É um dom de Deus, uma parcela do poder de Deus, uma
grande fonte de alegria. O mistério da vida é uma coisa fantás-
tica. Da felicidade e do amor de um casal, dessa união física
surge um novo ser. Uma nova pessoa. Tão misteriosa e tão dife-
rente de todas as que já existem! E foi a nós, um casal entre
tantos outros, que foi dado ser instrumento da mão divina do
Criador. Ele permite-nos ser criadores, possuir em nós mesmos
os elementos capazes de dar origem à vida. Absurdamente fan-
tástico, divino e real!».
«Maternidade e paternidade responsáveis: este é o ponto crí-
tico; e, sem cessar, levanta-se em nós essa interrogação: onde
está a fronteira entre os nossos cálculos e o projecto de Deus?
Na base de uma estabilidade de casal, há a responsabilidade
comum pelo projecto de fecundidade biológica».
«O importante não é o método em si, mas o comportamento
dos esposos face à sua própria vida e à vida dos filhos; a esco-
lha do método vem a seguir …».

ELEMENTOS DE REFLEXÃO
A fecundidade é um dom de Deus

Antes de falar da regulação da natalidade, sublinhemos, como mui-


tos equipistas nos seus testemunhos, quanto a fecundidade é uma bên-
ção e um dom de Deus. «Na Bíblia, a fecundidade ocupa um lugar es-
sencial. Nunca é considerada de maneira negativa, como um perigo,
a não ser nos períodos de grandes catástrofes, em que a mãe sofrerá a
provação do sofrimento dos seus filhos. A fecundidade é uma bênção
divina e a esterilidade, o pior dos males que podem afectar uma mu-
lher. Uma prática anticoncepcional por parte do homem é um crime,
pois lesa a mulher do direito de ser mãe, e constitui um obstáculo à
bênção de Deus. Uma prole numerosa é a recompensa do justo» 1.

1
Jacques de Longeaux, padre de Paris, em Amour, mariage et sexualité, Ed. Mame/Cerf, p. 7.

74
A questão da fecundidade do casal não pode ser reduzida à da re-
gulação da natalidade. O dinamismo do amor leva-o para além do
instante presente e até mesmo para além da pessoa amada. Se permite
habitar o presente, o amor não se contenta em se fechar no presente.
Se se experimenta e se recebe como um dom, o amor é portador do
desejo de que esse dom se prolongue, se redobre, tenha repercussões
dando frutos, encarnando em vidas que ultrapassam as das pessoas
que se amam. Isto já se experimenta no próprio amor carnal: o desejo
tende para a unidade, ao passo que o prazer é vivido como uma verti-
gem em que o sentimento dos limites individuais parece momentane-
amente abolido. “O homem une-se à sua mulher, e eles tornam-se
uma só carne” (Gn 2, 24). Tudo se passa como se, no momento em
que os amantes têm o sentimento de “cair um no outro”, tivessem a
intuição confusa de que a sua unidade só se pode realizar para além
deles próprios, numa terceira vida que sobreviverá àquela união pas-
sageira e em que se misturarão os seus traços, os seus sangues, os
seus patrimónios genéticos. Esta aspiração muito profunda é uma das
causas de sofrimento dos casais que não podem ter filhos. De facto, o
sofrimento é o reverso desse grande desejo; essa impossibilidade é
vivida como uma falta, uma provação.
E se, como todos sabemos, muitos casais privados de fecundidade
biológica se mantêm, é porque, muitas vezes, depois de terem ultra-
passado essas dificuldades específicas, descobriram outras formas de
fecundidade. Porque a fecundidade carnal através da vinda do filho,
sendo muito valiosa, não é a única forma de fecundidade; outras for-
mas são dadas a viver a todo e qualquer casal, seja ele quem for.

. OUTRAS FORMAS DE FECUNDIDADE


- Em primeiro lugar, a fecundidade interpessoal. O primeiro fruto
do amor é o próprio amor e tudo o que ele suscita de força de viver em
cada uma das pessoas e entre elas. Trata-se, com efeito, de uma vida
nova que brota entre as pessoas, vida para a qual cada um poderá
descobrir ou redescobrir uma parte de si mesmo, manifestar riquezas
escondidas, curar certas feridas. O amor autêntico é fonte de uma
geração mútua, o amor autêntico consiste em dar vida um ao outro.
- A fecundidade também pode ser social. A vida de um casal es-
tável é a de uma comunidade, e está na lógica dessa comunidade não
se manter isolada. Que seria dessa comunidade em que nunca nin-
guém fosse acolhido? A hospitalidade de um casal tem algo de espe-
cífico em relação à de uma pessoa solteira. O mesmo se passa quanto
aos compromissos que o casal poderá assumir na vida social, asso-

75
ciativa, política ou eclesial. Aquilo com que um casal contribui está
profundamente ancorado no que ele vive no mais íntimo de si mesmo,
nesse permanente intercâmbio bipolar masculino-feminino. Aliás, pelo
testemunho da sua fidelidade, o casal contribui com uma nota de esta-
bilidade num ambiente por vezes muito instável.
- A fecundidade é também, e talvez sobretudo, espiritual. A pa-
ternidade e a maternidade autenticamente vividas são, em primeiro
lugar, espirituais: ligam almas que passam por Deus, mediador e fon-
te de toda a fecundidade. A paternidade e a maternidade espirituais
geram uma relação em que uma pessoa permite à outra descobrir uma
parte de si mesma, comunicando-lhe não apenas um saber ou um sa-
ber-fazer mas, para além disso, uma vida.
Casar-se é, pois, comprometer-se a construir um lugar em que pos-
sam acontecer e crescer vidas novas. Querer viver as fecundidades de
um casal é ter em vista mais do que o casal, é ter em vista a realização
de uma comunidade, a integração desta numa comunidade mais am-
pla, tomar consciência de que o casal apaixonado é chamado a dar
origem a algo maior do que ele, a uma família, a um ambiente famili-
ar, a um lugar de intercâmbios e de crescimento.

. O MAGISTÉRIO E A REGULAÇÃO DA NATALIDADE


O domínio desta fecundidade é uma aposta essencial para o casal.
Inscreve-se num projecto conjugal e parental que procura valorizar as
diversas formas de fecundidade. Passa, na maior parte dos casais,
pelo domínio da fertilidade carnal. Porque, muitas vezes, entre o de-
sejo de um filho que nos habita mais ou menos a todos, ainda que de
forma diferente e variável, e o desejo de gravidez na mulher vão in-
terpor-se múltiplos factores a nível pessoal, conjugal e familiar.
Não se podem criar todos os filhos que a natureza é susceptível de
nos poder dar e, durante séculos, a impossibilidade de controlar os
nascimentos foi vivida como uma fatalidade. A partir do fim do sé-
culo XX, esse domínio passou a ser cientificamente possível e, por
conseguinte, sujeito de discussão. Que podemos dizer sobre isto?
O Padre Xavier Thévenot 2 dá-nos aqui algumas reflexões a este
respeito:
«A Igreja é favorável à regulação da natalidade desde que as moti-
vações dos cônjuges sejam conformes à exigência do amor evangéli-

2
Reflexões extraídas do seu livro Repères éthiques pour un monde nouveau, Ed. Salvator,
1982, pp. 79-83.

76
co»; facilmente se concordará com este ponto: não se trata, bem en-
tendido, de evitar em todos os casos a vinda de um filho, mesmo que
o casal tenha todas as razões para assim esperar.
«Todo o método exige um diálogo regular e profundo entre os dois
cônjuges»; cada um deve sentir-se implicado na escolha fundadora do
lar, e o diálogo deve ser retomado com a mesma seriedade quando a
situação do casal tiver evoluído. Além disso, «um método ideal de re-
gulação deveria satisfazer as seguintes condições:

* A contracepção deveria, se possível, ser suportada equitativamente


pelos dois cônjuges … cada um deve respeitar o outro na sua
diferença.

* A contracepção não deveria medicalizar excessivamente a rela-


ção sexual, por razões simultaneamente sociais (limitar a inter-
venção da medicina, cujos desenvolvimentos levantam mais pro-
blemas do que resolvem) e íntimas (conservar na relação sexual
a sua “poesia” … “e sobretudo a sua profundidade e o envolvi-
mento de todo o ser”).

* A contracepção deveria ser da responsabilidade dos cônjuges e


não ser sujeita a uma obrigação governamental.

* Finalmente, a contracepção deveria ser eficaz, reversível e o mais


satisfatória possível, tendo em conta a situação particular do casal
que procura limitar o número de filhos».

«A Igreja», escreve o Padre Thévenot, «no seu Magistério, procu-


ra ter em conta estas realidades. Ela recorda com vigor que o que está
em jogo a nível humano na regulação da natalidade é muito impor-
tante. Mais, ela esforça-se por indicar aos cristãos que tipo de méto-
do mais se aproxima do método “ideal” definido acima».
«Segundo o Magistério, os métodos chamados “naturais” 3 são os
que têm mais hipóteses de ser humanizantes. Com efeito, estes méto-
dos apresentam, apesar dos seus inconvenientes, muitas vantagens.
Em primeiro lugar, são pouco medicalizados e escapam completa-
mente ao apertado controlo dos governos. Sobretudo, implicam os
dois cônjuges. Como nota João Paulo II, “a escolha dos ritmos natu-

3
Neste contexto, “natural” significa que respeita a natureza do acto e não perturba o
ritmo da natureza. É melhor falar de “métodos de auto-observação” do que de “méto-
dos naturais”.

77
rais comporta a aceitação do ritmo biológico, e com isto também a
aceitação do diálogo, do respeito recíproco da responsabilidade co-
mum, do domínio de si. Aceitar o tempo e o diálogo significa reconhe-
cer o carácter conjuntamente espiritual e corpóreo da comunhão con-
jugal, como também viver o amor pessoal na sua exigência de
fidelidade” (Familiaris Consortio, 32). Os cristãos são, pois, convida-
dos pelo Papa a reconhecer que o ensinamento de Paulo VI na encíclica
Humanae Vitae constitui uma “normativa para o exercício da sexua-
lidade” (ibid., 34)».
«Mas é importante compreender bem qual é o papel da norma na
vida quotidiana. Uma norma não é uma receita. Tem por função indi-
car o caminho mais usual de humanização. É para cada pessoa como
que uma referência que obriga a sair das suas impressões imediatas
para avaliar o que realmente está em jogo nos seus comportamen-
tos. É o fruto de uma reflexão sobre a experiência humana e cristã
que teve em conta todas as dimensões do agir, inclusive as suas di-
mensões sócio-colectivas, e as suas repercussões a longo prazo. A
norma é o que faz ver a acção à luz do objectivo último a atingir e
perceber o crescimento em nós da imagem de Deus. Em resumo, cada
norma é um desafio à reflexão para ver se se está a acolher o Reino de
Deus».
«Todavia, há que considerar dois factos: em primeiro lugar, nem
todas as normas são observáveis simultaneamente. Por exemplo, é
frequente a norma “não recusarás a fecundidade” estar em confli-
to com a norma “velarás pelo desabrochar do teu cônjuge”. Em se-
gundo lugar, cada norma nem sempre é aplicável aqui e agora por de-
terminada pessoa, em virtude de dificuldades pessoais ou sociais
incontornáveis. Por exemplo, há mulheres com um ciclo tão irregular
que lhes é impossível recorrer a métodos contraceptivos “naturais”.
Para tomar consciência destes dois factos, João Paulo II introduz,
na sua exortação apostólica, a noção de “lei da gradualidade”, que é
um convite a caminhar com mais amor, tendo bem em conta as situa-
ções na sua complexidade».
«Concretamente, um casal cristão que escolhe um método deve
deixar-se interpelar pelo Magistério e ver se, para si, um método na-
tural não será realmente possível. Se o recurso a um método “artifi-
cial” se revelar indispensável, o casal cristão pode então considerar
que a recomendação do Magistério não é para ele uma norma a ob-
servar imediatamente. (…)».

78
«Depois de uma reflexão comum feita com todo o cuidado que exi-
ge a grandeza da sua vocação conjugal, os esposos optarão por outro
tipo de método, mantendo “o coração disponível ao apelo de Deus,
atentos a toda a nova possibilidade que ponha em causa a sua escolha
ou o seu comportamento de hoje”» 4.

Os métodos de regulação da natalidade

Embora estes métodos sejam conhecidos, pareceu-nos útil relembrá-


-los, ainda que de forma não exaustiva.

* Métodos de planeamento natural:


- o mais antigo: “Ogino” (para memória);
- os métodos de auto-observação baseados na observação que a
própria mulher faz dos sinais que a natureza lhe apresenta du-
rante o seu ciclo; podem incluir-se nesta categoria:
. o método das temperaturas;
. o método sintotérmico (que tem em conta ao mesmo tempo o
muco cervical e a posição do colo do útero);
. o método “Billings” (unicamente o muco cervical);
. os métodos do tipo “Persona”.

No contexto destes métodos, sendo o conhecimento do período fértil


assim adquirido, e, é claro, na hipótese de o casal não desejar a vinda
de um filho, podem considerar-se vários comportamentos: a absti-
nência periódica, nos períodos férteis, a «ternura continente», que dá
lugar a uma ternura afectuosa muito mais desenvolvida.

* Métodos contraceptivos em que se intervém para impedir o en-


contro do espermatozóide e do óvulo:

- os espermicidas;
- os preservativos;

4
Comentário dos bispos franceses à encíclica de Paulo VI Humanae Vitae sobre a regulação
da natalidade.

79
- os contraceptivos (a pílula), que bloqueiam a ovulação, ou, não
a bloqueando, tornam o muco cervical infértil, o que respeita
mais o ciclo hormonal da mulher.

* Outros métodos:

- os dispositivos intra-uterinos, antinidatórios, que impedem não


a fecundação mas a nidação;

- as “pílulas do dia seguinte”, que impedem a nidação (RU486) e


provocam uma menstruação, tenha ou não havido nidação ou mes-
mo fecundação; e, mais recentemente, as pílulas do tipo Norlevo.

* Lembremos também decisões mais extremas:

- a modificação voluntária da capacidade de procriação (laqueação


das trompas, vasectomia, etc.);

- e, infelizmente em certos casos, o aborto, terapêutico ou não.

Para cada um destes métodos, convém considerar o ensino do Ma-


gistério e os aspectos práticos — inocuidade, eficácia, facilidade de
utilização, reversibilidade, independência — e tomar conscientemen-
te as decisões relativas ao casal, na sua situação actual. As reflexões
em torno da consciência vistas no capítulo anterior e as questões que
se seguem devem ajudar no discernimento.

A respeito da fecundidade, que nos diz, em síntese, o Magistério,


intérprete encarnado da Palavra de Deus?

* No mesmo acto, desde a criação, estão unidos a expressão do


amor entre o homem e a mulher e o poder de transmitir a vida;
para respeitar este plano de Deus, convém que estes dois aspec-
tos continuem intrinsecamente unidos.

* «Não matarás» foi sempre um dos mandamentos essenciais da-


dos por Deus ao seu povo. A Igreja tem-se mantido constante
relativamente a esta exigência de respeito pela vida, desde a sua
origem.

80
PERGUNTAS

Para o diálogo em casal

* Que significa para o nosso casal a palavra «fecundidade»? Quais


são as várias fecundidades do nosso casal? Como têm evoluído
ao longo da nossa vida conjugal?

* Poderemos expressar o que, no nosso casal, é fonte de fecundidade


interior: vida sexual, relação amorosa, outras fontes de fecun-
didade …?

* Num “dever de se sentar”, vejamos juntos a nossa atitude face à


fecundidade, na situação em que estamos: método de regulação
da natalidade, procura de procriação, fecundidade social, associa-
tiva, política, eclesial …

* Vejamos como a nossa sexualidade está imbuída do respeito pelo


outro e visa a procura de um equilíbrio face à expressão da sexu-
alidade de cada um.

Para o diálogo em equipa

* Logo no início, Deus fez de modo que estivessem unidos no mes-


mo acto a expressão do amor entre o homem e a mulher e a pos-
sibilidade de transmitir a vida. A Igreja sempre pediu que esta
intenção inicial de Deus fosse respeitada. Como manter o encan-
to que esta união suscita para que ilumine os nossos juízos de
valor e as nossas escolhas?

81
* «A vida humana é sagrada, pois desde a origem requer a acção
criadora de Deus» 5. Estamos aqui na linha directa do Decálogo:
«não matarás». Procuramos formar a nossa consciência neste
aspecto, procurando, por exemplo, conhecer os movimentos que
trabalham em prol do respeito pela vida ou lendo a encíclica Evan-
gelium Vitae?

* Dedicamos tempo a informar-nos acerca dos progressos da ciên-


cia e dos graves problemas éticos levantados por algumas das
suas aplicações - estatuto do embrião, clonagem, fertilização in
vitro e transferência de embriões, inseminação, diagnóstico pré-
natal, aborto terapêutico …?

ORAÇÃO

Texto para a oração (Gn 1, 28-31):

Deus abençoou-os e disse-lhes: «Sede fecundos, multiplicai-vos,


enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves
do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra».
Deus disse: «Dou-vos todas as ervas que dão semente, que estão
sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão frutos que
dão semente; isso será o vosso alimento. A todas as feras, a todas as
aves do céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de
vida, Eu dou como alimento toda a verdura das plantas». E assim se
fez.
Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom. Houve uma tarde
e uma manhã: sexto dia.

5
João XXIII, Encíclica Mater et Magistra.

82
TEXTOS DE ACOMPANHAMENTO

Vem, meu amado

Eu pertenço ao meu amado


seu desejo o impele para mim.

Vem meu amado


corramos ao campo
passemos a noite sob os cedros
madruguemos pelos vinhedos
vejamos se as vides rebentam
abrem os seus botões
se já brotam os cachos.

Lá te darei as minhas carícias


as mandrágoras exalam o seu perfume
à nossa porta há toda a sorte de frutos
frutos novos, frutos secos que eu tinha guardado
meu amado para ti.

Cântico dos Cânticos, capítulo 7, versículos 11 a 14

Aspecto libertador e construtivo da Lei

«Só a pouco e pouco o ser humano consegue hierarquizar e inte-


grar as suas múltiplas tendências até as ordenar harmoniosamente nessa
virtude de castidade conjugal em que o casal descobre o seu pleno de-
sabrochar humano e cristão. Esta obra de libertação, porque assim é
de facto, é fruto da verdadeira liberdade dos filhos de Deus, cuja cons-
ciência exige ao mesmo tempo ser respeitada, educada e formada,
num clima de confiança e não de angústia, em que as leis morais,
longe de terem a frieza desumana de uma objectividade abstracta,
existem para orientar o casal na sua caminhada. Com efeito, quando
os esposos se esforçam, paciente e humildemente, sem se deixarem

83
desencorajar pelos fracassos, por viver em verdade as profundas exi-
gências de um amor santificado que as regras morais lhes recordam,
estas deixam de ser rejeitadas como um entrave e passam a ser reco-
nhecidas como um poderoso auxílio».
Extraído do Catecismo da Igreja Católica 6

Discernir o essencial

É com um acto capaz de transmitir a vida que duas pessoas mani-


festam o seu amor. É com o mesmo gesto que dão vida e dizem o seu
amor. Dissemos que devia ser sempre um acto de amor. Deverá ser
sempre um gesto que dá vida? Que dá sempre vida sabemos que não
é. Mas, para a Humanae Vitae, «qualquer acto matrimonial deve per-
manecer aberto à transmissão da vida» (n.º 11), o que implica «que
não deve prejudicar a disponibilidade para transmitir a vida».
Que quer isto dizer? Será preciso que, de cada vez que um casal se
une, deseje transmitir a vida? Certamente que não. A Igreja reconhe-
ce aos pais o direito de determinarem o número de filhos e, conse-
quentemente, de decidir não os ter de momento ou de não ter mais. A
Humanae Vitae recorda: «A paternidade responsável exerce-se tanto
com a deliberação ponderada e generosa de fazer crescer uma famí-
lia numerosa como com a decisão, tomada por motivos graves e com
respeito pela lei moral, de evitar temporariamente, ou mesmo por tem-
po indeterminado, um novo nascimento» (n.º 10).
Se «qualquer acto matrimonial deve permanecer aberto à trans-
missão da vida», será legítimo um casal unir-se quando sabe que esse
gesto não pode realmente transmitir a vida (esterilidade, após a meno-
pausa, durante a gravidez ou nos períodos estéreis do ciclo da mu-
lher)? Houve algumas hesitações a este respeito nos primeiros tem-
pos da Igreja, mas a resposta é, sem hesitação, sim. Esses actos, mesmo
que sejam apenas actos de amor, mantêm todo o seu valor.
Para citar a Humanae Vitae: «não deixam de ser legítimos se, por
causas independentes da vontade dos cônjuges, se prevê que vão ser
infecundos, pois que permanecem destinados a exprimir e a consoli-
dar a sua união» (n.º 11).

os
6
N. 2360 a 2379.

84
Se «qualquer acto matrimonial deve permanecer aberto à trans-
missão da vida», poderá um casal escolher unir-se apenas durante os
períodos estéreis? Claro que sim, se não se tratar de uma recusa abso-
luta à vida. É preciso formular esta pergunta: por que recusamos ter
filhos de momento? Por egoísmo? Por amor ao conforto? Para con-
servar a nossa liberdade (carro, casa, viagem)? Ou por amor (bem-
estar dos filhos que já existem, saúde da mãe)? Um motivo egoísta
não justifica nenhum método, mesmo aprovado pelo Papa. É, em pri-
meiro lugar, no coração que é preciso manter-se aberto à vida.
Poderá um casal unir-se impedindo voluntariamente que esse acto
transmita a vida? É aqui que intervém a recusa da Humanae Vitae: «É
de excluir toda a acção que, ou em previsão do acto conjugal, ou
durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das
suas consequências naturais, se proponha, como fim ou como meio,
tornar impossível a procriação» (n.º 14). É com um acto que não tenha
sido voluntariamente privado da sua capacidade de transmitir a vida
que um casal deve amar-se. Se o casal quiser unir-se e não ter filhos, é
preciso que isso seja feito com um gesto da mesma natureza que aquele
que teria permitido ter filhos noutra altura. Caso contrário, perde-se a
intenção inicial: já não é com um gesto que poderia dar vida que eu
manifesto o meu amor. É isto que a Humanae Vitae explica: há uma
«conexão inseparável que Deus quis e que o homem não pode alterar
por sua iniciativa entre os dois significados do acto conjugal: o signi-
ficado unitivo e o significado procriador … Salvaguardando estes dois
aspectos essenciais, unitivo e procriador, o acto conjugal conserva
integralmente o sentido de amor mútuo e verdadeiro e a sua ordena-
ção para a altíssima vocação do homem para a paternidade» (n.º 12).
A Igreja acredita que a sexualidade se desvaloriza se se separar o
amor da abertura ao filho. Ninguém contesta isso. A discussão tem a
ver com o facto de se saber se essa abertura diz respeito apenas ao co-
ração ou se deve ter necessariamente um significado físico e corporal
em cada acto. Se um casal recusa os filhos para o bem dos filhos que
já existem ou prefere esperar para acolher o filho em melhores cir-
cunstâncias, poderá dizer-se que essa recusa da vida agora é uma re-
cusa total da vida? A recusa da fecundidade hoje não é fechar-se à
vida, mas consequência do acolhimento de ontem à vida ou da dispo-
nibilidade para a acolher amanhã. Esta abertura de toda a vida não
será suficiente? A abertura a nível do coração não bastará sem ser
necessário significá-la sempre ao nível do corpo? Era esta a opinião
da maioria dos teólogos consultados por Paulo VI, mas o Papa res-

85
pondeu categoricamente: é também na estrutura física de cada acto
de união que isso se deve manifestar. É a verdadeira forma de mani-
festar a união dos dois aspectos indissociáveis da sexualidade.
É verdade que o desejável era que cada acto pudesse unir os dois.
Os casais que viveram tranquilamente esta forma de regulação po-
dem dizer quanto isso foi benéfico para eles. Experiências de infor-
mação e de sensibilização mostram que esta regulação é mais fácil de
concretizar do que se diz. Seria mesmo desejável do mero ponto de
vista humano ou médico. O método de contracepção menos pesado
do ponto de vista humano, o que tem menos consequências nefastas,
é certamente a abstinência periódica. Esta contracepção sem violên-
cia, em que se vive em harmonia com os ritmos do corpo, aproveitan-
do os seus períodos estéreis, é certamente menos perigosa para o cor-
po do que os métodos que o agridem, tais como as pílulas utilizadas
durante longos períodos, já para não falar do dispositivo intra-uterino
ou dos «mini-abortos» repetidos.
Curiosamente são hoje os ecologistas, preocupados com as agres-
sões que as técnicas modernas infligem à natureza, que reconhecem
que havia sabedoria nas palavras do Papa. Se se tivesse despendido
bastante dinheiro para afinar indicadores fiáveis para anunciar a
iminência da ovulação e, logo, reduzir ao mínimo a abstinência ga-
rantindo a segurança, ter-se-ia talvez trabalhado num caminho mais
prometedor. Se um casal pode, sem dificuldade, garantir assim uma
regulação eficaz da natalidade, é com certeza dessa forma que se deve
agir. Algumas pessoas decidiram talvez demasiado depressa que não
havia nada a procurar por este lado.
Isto é desejável, mas nem sempre realizável. Pode acontecer que
alguns casais devam ou queiram legitimamente evitar um novo nasci-
mento e não tenham outros meios senão o recurso a contraceptivos
para garantir eficazmente essa regulação. A adesão ao pensamento do
Papa não deve levar a afirmar demasiado depressa que quem elimina
artificialmente a possibilidade de conceber um filho reduz a união
conjugal a uma ocasião para satisfazer o egoísmo de cada um. Isso
seria admitir que, de cada vez que a concepção não é possível, o acto
de união não passa de um acto de egoísmo. É que se podem utilizar
os meios artificiais com muito amor no coração pela mulher e pelos
filhos. É porque um homem ama a mulher que não quer lhe impor
cargas demasiado pesadas para ela, para a sua saúde e para a famí-
lia, e porque, neste caso particular, não se encontraram outros meios
eficazes.

86
Era o que diziam os bispos franceses em 1968: «Ninguém ignora
as angústias espirituais com que se debatem os esposos sinceros, no-
meadamente quando a observância dos ritmos naturais não consegue
dar uma base suficientemente segura à regulação da natalidade. Por
um lado, têm consciência do dever de respeitarem a abertura à vida
de todo o acto conjugal; por outro lado julgam, em consciência, dever
evitar ou adiar um novo nascimento e não podem confiar nos ritmos
biológicos.
Por outro lado, no que lhes diz respeito, não vêem como renunciar
à expressão física do seu amor sem que a estabilidade do seu lar seja
ameaçada. A este propósito, lembraremos apenas o ensino constante
da moral: quando se está perante uma alternativa de deveres em que,
qualquer que seja a decisão tomada, não se pode evitar um mal, a
sabedoria tradicional prevê que se procure diante de Deus qual é o
dever maior no caso presente. Os esposos decidir-se-ão após uma
reflexão comum feita com todo o cuidado que a grandeza da sua voca-
ção conjugal exige». Não havia aqui desprezo algum pela palavra do
Papa. Como tudo o que é importante não é simultaneamente possível,
há que salvaguardar o que é mais importante. E o que é mais impor-
tante é a sobrevivência do casal.
Havia quem estivesse pronto a dizer aos casais: «Nesse caso, só há
uma solução: abster-se enquanto essa situação durar». Mas o casal
tem tanta necessidade de amor como de filhos. Por que é que os espo-
sos deveriam esperar por ser definitivamente infecundos para de novo
expressarem fisicamente o seu amor? Por que é que os que têm a
sorte de ser fecundos haviam de ser penalizados em relação aos que o
não são? Se estes podem usar a sexualidade «para exprimir e conso-
lidar a sua união», como reconhece a Humanae Vitae, não terão aqueles
a mesma necessidade? E poder-se-á pedir aos casais que se abste-
nham tanto tempo, correndo o risco de esquecer a resposta de S. Pau-
lo a quem lhe perguntava se seria bom que o homem se abstivesse da
sua mulher: «Não vos recuseis um ao outro, a não ser de mútuo acor-
do e por algum tempo, para vos dedicardes à oração; depois, voltai de
novo um para o outro, para que Satanás não vos tente» (1 Cor 7, 5)
Será S. Paulo menos actual hoje do que outrora?
Eis o que está em jogo. Compete a cada casal decidir o que deve
fazer procurando o que é mais importante e mais urgente a seus olhos.
Porque é sempre à consciência que compete decidir em última instân-
cia. A consciência não pretende determinar o que em si é bem ou mal,
mas tem a missão de escolher o que se deve fazer numa situação

87
concreta para salvaguardar o essencial, tendo em conta os apelos es-
cutados, as obrigações e o que é possível. Nunca ninguém o pode fa-
zer em seu lugar. Apesar de tudo, será sempre necessário recordar
que estas questões de métodos contraceptivos, por mais importantes
que sejam, não são nem o todo da sexualidade nem tudo da vida do
casal. Nem toda a vida cristã se joga aí.
O essencial continuará sempre a ser a orientação espiritual profun-
da da vida do casal. Se um casal coloca toda a sua vida sob o signo do
amor, de uma profunda união ao Senhor e de um dom autêntico aos
outros, tanto na família como no conjunto das suas relações, esse ca-
sal saberá encontrar o seu caminho, mesmo nas situações mais difí-
ceis. Pode hesitar ou enganar-se, pode mesmo conhecer fraquezas,
mas nunca se perderá por muito tempo. Não há melhor garante para
discernir diante de Deus o que é verdadeiramente essencial.

Padre Charles Bonnet,


«À propos de Humanae Vitae», artigo publicado na revista Alliance, n.º 71.

88
«Glorificai a Deus no vosso corpo»
(1 Cor 6, 20)

CAPÍTULO 8
O vosso corpo é templo do Espírito Santo

TESTEMUNHOS

«Estou cansado até à indiferença daqueles que dizem mal da


carne. Ou a chicoteiam e a cansam como um animal de carga e,
depois de lhe terem pedido o que ela não quis dar, queixam-se
da sua fragilidade; ou então acorrentam-na como um animal
feroz que estivesse à espreita do espírito para o devorar, sem ver
que o grande combate se trava no próprio interior desse espíri-
to. Isto não é senão a projecção na carne da impureza da alma,
em suma, a necessidade de um bode expiatório»
1
Gustave Thibon

«O corpo é feito para a alma, para a traduzir, para a fazer


desabrochar e para a dar»

Jean Mouroux 2

ELEMENTOS DE REFLEXÃO

Introdução

Nesta etapa do tema, chegamos, de certa forma, ao cume da nossa


reflexão, pois não se fala de elementos dissociados ou de etapas isola-

1
Escritor e filósofo francês.
2
Teólogo francês.

89
das e de teorias mais ou menos bonitas e talvez utópicas, mas da nos-
sa realidade concreta de casais cristãos que vivem um sacramento da
Igreja. Temos que integrar os dados de que falámos nos capítulos an-
teriores e procurar fazer a sua síntese, uma recapitulação que possa
dar-nos uma visão de conjunto de toda a nossa procura e de todos os
dados da nossa experiência.
Com efeito, é intenção deste último capítulo encontrar a chave que
possa abrir-nos à convicção de que a nossa vida de casal se baseia
numa vontade muito explícita do Deus Criador, e que, a todos os ní-
veis da nossa vida a dois, essa vontade se explicita através de uma
descoberta da nossa dimensão transcendente. Passar, como sugere o
título do capítulo, do corpo à pessoa, do carnal ao espiritual, numa
palavra, acreditar na extraordinária possibilidade da santificação do
nosso amor, em todos os domínios da nossa relação conjugal.

Abordagens

Na nossa preocupação de exactidão, e no nosso desejo de encon-


trar a expressão do pensamento actual, retomemos muito simples-
mente, e quase sem comentários, uma série de textos, documentos e
alocuções do Papa João Paulo II 3.

Para uma teologia mais positiva da sexualidade

* A sexualidade é dom de Deus. Por isso, é boa em si e, quando


utilizada como Deus a entende, enriquece e enobrece. Este ponto deve
ser realçado de forma a romper com o pensamento dualista do passa-
do, e também do nosso tempo, que rebaixa o corpo e a sexualidade.
* A sexualidade é uma força orientada para a relação. Não é ape-
nas a capacidade de realizar actos específicos. Faz parte da nossa for-
ça ou capacidade natural que Deus nos dá para estabelecer relações
com outrem. Dá cor às qualidades de sensibilidade, de calor, de aber-
tura e de respeito mútuo nas nossas relações interpessoais. A este ní-
vel, é importante notar que a sexualidade humana se reveste também
de uma dimensão social. Enquanto parte integrante da nossa nature-
za, influencia as nossas relações e o nosso equilíbrio a nível da socie-
dade, bem como as nossas relações pessoais com outras pessoas.

3
Documentação católica - Questões actuais, n.º 8 «A sexualidade um dom de Deus».

90
* Assim entendida, a sexualidade não pode confundir-se com a
genitalidade, conceito mais restrito que diz respeito às expressões fí-
sicas da sexualidade orientadas para a união genital. O contexto par-
ticular do casamento é necessário na suprema expressão física da
sexualidade, para servir o amor humano e a vida humana com gene-
rosidade, sem a ilusão que constituem as relações antes do casamento
e fora dele. A complementaridade da sexualidade (homem e mulher)
e o seu dinamismo ardente orientado para a união reflectem em ter-
mos humanos a unidade dinâmica que existe no Deus Trino. Assim, a
diferença entre os sexos é visivelmente boa e querida por Deus desde
o princípio como parte integrante da sua própria revelação. E também
se percebe a necessidade de integridade simultaneamente física e psí-
quica no acto da união sexual, pela qual os esposos se exprimem e se
realizam.
«O homem tornou-se “imagem e semelhança de Deus” não só me-
diante a própria própria humanidade, mas ainda mediante a comunhão
de pessoas que o homem e a mulher formam desde o princípio … O
homem torna-se imagem de Deus não tanto no momento da solidão
mas principalmente no momento da comunhão. Ele, de facto é desde
“o princípio” não só imagem em que se espelha a solidão de uma
Pessoa que governa o mundo, mas também e essencialmente imagem
de uma imperscrutável comunhão divina de Pessoas» (entre aspas: o
pensamento de João Paulo II nas suas alocuções; ver L’Osservatore
Romano de 18 de Novembro de 1979 4).
«Precisamente a função do sexo que é, em certo sentido, “constitu-
tivo da pessoa” (não apenas “atributo da pessoa”), mostra quão pro-
fundamente o ser humano, com toda a sua solidão espiritual, com a
unicidade e irrepetibilidade própria da pessoa, é constituído pelo cor-
po como “ele” e como “ela”. A presença do elemento feminino, ao
lado do masculino e juntamente com ele, tem o significado de um
enriquecimento para o homem em toda a perspectiva da sua história,
incluindo a história da salvação» (Ibid., 25 de Novembro de 1979).
«O homem e a mulher constituem quase dois modos diversos do
humano “ser corpo”, na unidade daquela imagem [de Deus]» (Ibid., 6
de Janeiro de 1980). «O corpo humano, com o seu sexo, e a sua mascu-
linidade e feminidade, visto no mistério mesmo da criação, é não só
fonte de fecundidade e de procriação, como em toda a ordem natural,

4
Citações transcritas da edição semanal portuguesa de L’Osservatore Romano, cujas da-
tas são referidas (N. do T.).

91
mas encerra desde “o princípio” o atributo “esponsal”, isto é, a capa-
cidade de exprimir o amor: exactamente aquele amor em que o ho-
mem-pessoa se torna dom e — mediante esse dom — pratica o senti-
do mesmo do seu ser e existir» (Ibid., 20 de Janeiro de 1980).
«A consciência do significado do corpo que dela deriva — em par-
ticular do seu significado “esponsal” — constitui o elemento funda-
mental da existência humana no mundo … O corpo tem significado
“esponsal” porque o homem-pessoa, como diz o Concílio, é criatura
que Deus quis por si mesma, a qual, ao mesmo tempo, não pode en-
contrar-se plenamente senão mediante o dom de si mesma» (Ibid., 20
de Janeiro de 1980).

5
O homem, imagem do Deus amor

Deus criou o homem à sua imagem e semelhança (Gn 1, 26-27).


Chamando-o à existência por amor, chamou-o ao mesmo tempo ao
amor.
Deus é amor (1 Jo 4, 8) e vive em Si mesmo um mistério de comu-
nhão pessoal de amor. Ao criar a humanidade do homem e da mulher
à sua imagem, e conservando-a continuamente no ser, Deus inscre-
veu nela a vocação ao amor e à comunhão e, portanto, a capacidade e
a responsabilidade correspondentes (Gaudium et Spes, 12). O amor é,
portanto, a fundamental e original vocação do ser humano.
Porque o homem é um espírito encarnado, isto é, uma alma que se
exprime no corpo e um corpo informado por um espírito imortal, o
homem é chamado ao amor na sua totalidade unificada. O amor abra-
ça também o corpo humano e o corpo torna-se participante do amor
espiritual.
A Revelação cristã conhece dois modos específicos de realizar a
vocação da pessoa humana na sua totalidade ao amor: o Matrimónio e
a Virgindade. Quer um quer outro, na sua respectiva forma própria, é
a concretização da verdade mais profunda do homem, o seu «ser à
imagem de Deus».
Por consequência, a sexualidade, mediante a qual o homem e a
mulher se dão um ao outro com os actos próprios e exclusivos dos
esposos, não é algo de puramente biológico, mas diz respeito à pessoa
humana como tal no que ela tem de mais íntimo. Esta só se realiza de

5
Exortação Apostólica Familiaris Consortio, 11.

92
maneira verdadeiramente humana se é parte integral do amor com o
qual homem e mulher se comprometem totalmente um para com o
outro até à morte. A doação física total seria falsa se não fosse sinal e
fruto da doação pessoal total, na qual toda a pessoa, mesmo na sua
dimensão temporal, está presente. Se a pessoa se reservasse alguma
coisa ou a possibilidade de decidir de modo diferente no futuro, só
por isso já não seria uma doação total.
Esta totalidade, pedida pelo amor conjugal, corresponde também
às exigências da fecundidade responsável: orientada como está para a
geração de um ser humano, supera, por sua própria natureza, a ordem
puramente biológica, e abarca um conjunto de valores pessoais, cujo cres-
cimento harmonioso exige dos pais contributo permanente e concorde.
O «lugar» único, que torna possível esta doação segundo toda a
verdade, é o matrimónio, isto é, o pacto de amor conjugal ou escolha
consciente e livre, pela qual o homem e a mulher aceitam a comuni-
dade íntima de vida e de amor, querida pelo próprio Deus (Gaudium
et Spes, 48), que só a esta luz manifesta o seu verdadeiro significado.
A instituição matrimonial não é uma ingerência indevida da socieda-
de ou da autoridade, nem a imposição extrínseca de uma forma, mas
uma exigência interior do pacto de amor conjugal que publicamente
se afirma como único e exclusivo, para que seja vivida assim a plena
fidelidade ao desígnio de Deus Criador. Longe de diminuir a liberda-
de da pessoa, esta fidelidade protege-a contra o subjectivismo e relati-
vismo e fá-la participante da Sabedoria Criadora.

6
O matrimónio e a comunhão entre Deus e os homens

A comunhão de amor entre Deus e os homens, conteúdo funda-


mental da Revelação e da experiência de fé de Israel, encontra ex-
pressão significativa na aliança nupcial, realizada entre o homem e a
mulher.
É por isso que a palavra central da Revelação, «Deus ama o seu
povo», é também pronunciada através das palavras vivas e concretas
com que o homem e a mulher declaram o seu amor conjugal. O seu
vínculo de amor torna-se a imagem e o símbolo da Aliança que une
Deus e o seu povo (cf. Os 2, 21; Jr 3, 6-13; Is 54). E o pecado, que
pode ferir o pacto conjugal, torna-se imagem da infidelidade do povo

6
Exortação Apostólica Familiaris Consortio, 12.

93
para com o seu Deus: a idolatria é prostituição (cf. Ez 16, 25), a infide-
lidade é adultério, a desobediência à lei é abandono do amor nupcial
para com o Senhor. Mas a infidelidade de Israel não destrói a fideli-
dade eterna do Senhor. Por isso, o amor sempre fiel de Deus é apre-
sentado como modelo das relações do amor fiel que devem existir en-
tre os esposos (cf. Os 3).

7
Jesus Cristo, esposo da Igreja, e o sacramento do matrimónio

A comunhão entre Deus e os homens encontra a sua definitiva re-


alização em Jesus Cristo, o Esposo que ama e Se dá como Salvador
da humanidade, unindo-a a Si como seu corpo.
Ele revela a verdade originária do matrimónio, a verdade do «prin-
cípio» (cf. Gn 2, 24; Mt 19, 5) e, libertando o homem da dureza do seu
coração, torna-o capaz de a realizar inteiramente.
Esta revelação atinge a plenitude definitiva no dom do amor que o
Verbo de Deus faz à humanidade, assumindo a natureza humana, e no
sacrifício que Jesus Cristo faz de Si mesmo sobre a cruz pela sua
Esposa, a Igreja. Neste sacrifício manifesta-se inteiramente o desíg-
nio que Deus imprimiu na humanidade do homem e da mulher, desde
a sua criação. O matrimónio dos baptizados torna-se assim o símbolo
real da Nova e Eterna Aliança, selada no Sangue de Cristo. O Espíri-
to, que o Senhor infunde, dá um coração novo e torna o homem e a
mulher capazes de se amarem, como Cristo nos amou. O amor conju-
gal atinge a plenitude para a qual está interiormente ordenado: a cari-
dade conjugal, que é o modo próprio e específico com que os esposos
participam e são chamados a viver a mesma caridade de Cristo que
Se entrega sobre a Cruz.
Numa página merecidamente famosa, Tertuliano exprimiu bem a
grandeza e a beleza da vida conjugal em Cristo: «Como conseguir
expor a felicidade do matrimónio, que a Igreja favorece, que a oblação
eucarística reforça, que a bênção sela, que os anjos anunciam e que o
Pai ratifica? Que jugo o de dois fiéis unidos por uma só esperança,
uma só disciplina, uma só servidão! Ambos são filhos do mesmo Pai,
servos do mesmo Senhor; nada os separa, nem no espírito nem na
carne; pelo contrário, são verdadeiramente dois numa só carne. Ora a
carne é uma só, um só é o espírito» (Tertuliano, Ad uxorem, II, VIII,
6-8, Sources chrétiennes 273, p. 49).

7
Exortação Apostólica Familiaris Consortio, 13.

94
Acolhendo e meditando fielmente a Palavra de Deus, a Igreja tem
solenemente ensinado e ensina que o matrimónio dos baptizados é
um dos sete sacramento da Nova Aliança (Concílio de Trento, Ses-
sio XXIV).
De facto, mediante o baptismo, o homem e a mulher estão defini-
tivamente inseridos na Nova e Eterna Aliança, na Aliança nupcial de
Cristo com a Igreja. E é em razão desta indestrutível inserção que a
íntima comunidade de vida e de amor conjugal, fundada pelo Criador
(cf. Gaudium et Spes, 48), é elevada e assumida pela caridade nupcial
de Cristo, sustentada e enriquecida pela sua força redentora.
Em virtude da sacramentalidade do seu matrimónio, os esposos
estão unidos um ao outro da maneira mais profundamente indissolúvel.
Pertencendo um ao outro, representam realmente, através do sinal
sacramental, a relação de Cristo com a Igreja.
Os esposos são, portanto, para a Igreja a recordação permanente
do que aconteceu sobre a Cruz. São um para o outro, e para os filhos,
testemunhas da salvação da qual o sacramento os torna participantes.
Deste acontecimento de salvação, o matrimónio, como cada um dos
sacramentos, é memorial, actualização e profecia: «Enquanto me-
morial, o sacramento dá-lhes a graça e o dever de recordar as grandes
obras de Deus e de as testemunhar aos filhos; enquanto actualização,
dá-lhes a graça e o dever de realizar no presente, um para com o outro
e para com os filhos, as exigências do amor que perdoa e que redime;
enquanto profecia, dá-lhes a graça e o dever de viver e de testemu-
nhar a esperança do futuro encontro com Cristo» 8.
Como cada um dos sete sacramentos, também o matrimónio é sím-
bolo real do acontecimento da salvação, mas de um modo próprio.
«Os esposos participam nele enquanto esposos, a dois como casal, a
tal ponto que o efeito primeiro e imediato do matrimónio (res et sacra-
mentum) não é propriamente a graça sacramental, mas o vínculo con-
jugal cristão, comunhão a dois tipicamente cristã porque representa o
mistério da encarnação de Cristo e o seu Mistério de Aliança. O con-
teúdo da participação na vida de Cristo é também específico: o amor
conjugal comporta uma totalidade na qual entram todos os compo-
nentes da pessoa — chamamento do corpo e do instinto, força do sen-
timento e da afectividade, aspiração do espírito e da vontade. O amor
conjugal tem por fim uma unidade profunda pessoal, aquela que, para

8
João Paulo II, discurso aos delegados do «Centre de Liaison des Equipes de Recherche»
(3 de Novembro de 1979).

95
além da união numa só carne, conduz a um só coração e a uma só
alma; exige a indissolubilidade e a fidelidade da doação recíproca de-
finitiva e abre-se à fecundidade (cf. encíclica Humanae Vitae, 9). Numa
palavra, trata-se de características normais do amor conjugal natural,
mas com um significado novo que não só as purifica e as consolida
mas as eleva a ponto de as tornar expressão dos valores propriamente
cristãos» 9.

A nossa reflexão

Os textos citados colocam-nos numa óptica sobrenatural, enraizada


na realidade humana que vivemos. Lembram-nos os etapas da nossa
caminhada, conduzindo-nos à santificação do amor através do sacra-
mento que vivemos no nosso matrimónio. O encontro dos nossos cor-
pos é um encontro de pessoas que se amam e que receberam do Cria-
dor o dom de poderem exprimir o seu amor numa intimidade sempre
nova e cada vez mais orientada ao e pelo amor infinito de Deus. É
uma comunhão de corpos que se torna comunhão de pessoas e que,
pela graça do sacramento, se torna também lugar a que se pode cha-
mar sagrado, pois a presença de Deus e da sua graça dá-lhe uma di-
mensão que ultrapassa a ordem natural.

Texto de apoio

«A partilha total entre dois seres é impossível e, de cada vez que se


pensar que se realizou tal partilha, está-se perante uma união que
priva um dos parceiros, ou até os dois, da possibilidade de se desen-
volver plenamente.
Mas, quando se tiver tomado consciência da distância infinita que
haverá sempre entre dois seres humanos, quaisquer que eles sejam, é
possível uma vida maravilhosa “lado a lado”: será necessário que os
dois parceiros se tornem capazes de amar essa distância que os sepa-
ra e graças à qual cada um deles descobre o outro na sua totalidade,
recortado no céu» (Rainer Maria Rilke 10).

9
João Paulo II, discurso aos delegados do «Centre de Liaison des Equipes de Recherche»
(3 de Novembro de 1979).
10
Escritor austríaco.

96
O Novo Testamento …

Caríssimos,
se Deus assim nos amou,
devemos, nós também, amar-nos uns aos outros.
Ninguém jamais contemplou a Deus.
Se nos amarmos uns aos outros,
Deus permanece em nós,
e o seu amor em nós é elevado à perfeição …
Deus é amor:
aquele que permanece no amor
permanece em Deus e Deus permanece nele.

(1 Jo 4)

PERGUNTAS

Para o diálogo em casal

* Lemos com atenção os textos do Magistério citados? Recomen-


da-se uma leitura progressiva em certos momentos de paz …

* Esses textos dão-nos uma dimensão mais profunda do sentido


transcendente do nosso matrimónio, no plano criador de Deus?

* Vemos o sentido de dom total e de promessa que não falha (o


sentido do amor esponsal indica um dom mútuo e irreversível)?

* Como é que esta reflexão reforça a nossa união, dando-lhe uma


base sobrenatural no contexto da dinâmica dos sacramentos?

97
* Reflectir com profundidade no sentido espiritual do sacramento
e na necessidade de dar testemunho dele.

Para o diálogo em equipa

* Partilhar as descobertas feitas em casal … Confrontar os vários


pontos de vista e as perspectivas novas de cada um.

ORAÇÃO

Texto para a oração da equipa (1 Cor 6, 5-15):

Digo isto para confusão vossa. Não se encontra entre vós alguém
suficientemente sábio para poder julgar entre os seus irmãos? No en-
tanto, acontece que um irmão entra em litígio contra seu irmão, e isto
diante de infiéis! De qualquer modo, já é para vós uma falta a existên-
cia de litígios entre vós. Por que não preferis, antes, padecer uma in-
justiça? Por que não vos deixais, antes, defraudar? Entretanto, ao
contrário, sois vós que cometeis a injustiça e defraudais - e isto con-
tra os vossos irmãos!
Então não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus?
Não vos iludais! Nem os impudicos, nem os idólatras, nem os adúlte-
ros, nem os depravados, nem os enfeminados, nem os sodomitas, nem
os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os injuriosos her-
darão o Reino de Deus. Eis o que vós fostes, ao menos alguns. Mas
vós lavastes-vos, mas fostes santificados, mas fostes justificados em
nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do nosso Deus.
«Tudo me é permitido», mas nem tudo convém. «Tudo me é permi-
tido», mas não me deixarei escravizar por coisa alguma. Os alimen-
tos são para o ventre e o ventre para os alimentos, e Deus destruirá
aqueles e este. Mas o corpo não é para a fornicação, e, sim, para o
Senhor, e o Senhor é para o corpo. Ora, Deus, que ressuscitou o Se-
nhor, ressuscitar-nos-á também a nós, pelo seu poder.
Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei
então os membros de Cristo para fazê-los membros de uma prostitu-
ta? Por certo, não!

98
TEXTOS DE ACOMPANHAMENTO

Que ele me beije

Beije-me com beijos da sua boca


melhores tuas carícias que vinho
o aroma dos teus perfumes é melhor
tua fama é odor que se derrama
por isso as raparigas amam-te
arrasta-me contigo, corramos
faz-me entrar o rei em sua penumbra
folgaremos e alegrar-nos-emos contigo
lembrar-nos-emos de teus amores mais do que do vinho
com razão as raparigas amam-te.

Cântico dos Cânticos, capítulo 1, versículos 2 a 4

Os dois sacramentos

Aquando da segunda das três audiências gerais do seu pontificado,


João Paulo I falou brevemente aos jovens casais acerca do sacramen-
to do matrimónio. Transcrevemos aqui essa palavra pronunciada a 3
de Setembro de 1978:
«(…) No século passado, havia em França um grande professor
que ensinava na Sorbonne, Frédéric Ozanam. Era eloquente e muito
generoso. Era amigo de Lacordaire, que dizia: “Ele é tão generoso
e tão bom que ainda há-de ser padre; há-de ser um grande bispo”.
Mas não foi assim. Conheceu uma rapariga e casaram-se. Lacor-
daire, mal refeito da surpresa, dizia: “Pobre Ozanam, também ele
caiu na armadilha!”. Dois anos mais tarde, Lacordaire veio a Roma
e foi recebido por Pio IX: “Então, Padre, disse-lhe este. Sempre
ouvi dizer que Jesus instituiu sete sacramentos. E agora você vem
dizer-me que instituiu seis e uma armadilha! Não, Padre, o matri-
mónio não é uma armadilha, é um grande sacramento”. É por isso
que dirigimos os nossos melhores votos a estes queridos jovens
casais. Que o Senhor os abençoe. (…)».
Documentação católica 1978, n.º 1750, p. 866

99
Um outro olhar sobre o homem

O Deus único não é solitário. Quantos disparates se disseram acer-


ca da Santíssima Trindade quando se procurou mostrar que a Santís-
sima Trindade é uma coisa ao mesmo tempo incompreensível e não
contraditória!
Para a experiência mística, não há nada mais simples. A Santíssima
Trindade quer dizer que Deus não é Alguém que Se olha e gira em
torno de Si mesmo, que Se deleita consigo próprio, mas que, pelo
contrário, é Alguém que Se dá. Isto significa que Deus não é solitário,
que não está diante de um rosto com que Se repetisse num terrível
narcisismo.
Na Santíssima Trindade, o Pai está diante do Filho, o Filho diante
do Pai no beijo do Espírito Santo. Isto significa que Deus é uma co-
munhão, uma respiração de amor, um despojamento, uma infância
eterna, um nascimento inesgotável, uma novidade que brota sem ces-
sar, enfim, uma pobreza inultrapassável, como S. Francisco bem adi-
vinhou.
Descobrir a Presença para não sermos entregues aos nossos ins-
tintos primitivos. É certo que a actual crise moral só será vencida na
medida em que encontrarmos o verdadeiro Deus no fundo dos nossos
corações, na medida em que encontrarmos o sentido da sua presença
na nossa intimidade como uma exigência criadora, como uma exi-
gência de grandeza, de liberdade e de universalidade.
A moral não é um travão; é o único meio de realizarmos a nossa
vocação de deuses, o meio de chegarmos a ser deuses.
Na ausência de Deus, o nosso corpo escapa-se-nos como uma coi-
sa, como um objecto entregue às solicitações mais cegas. O nosso
espírito desregra-se na obscuridade dos seus jogos e das suas curiosi-
dades doentias, os nossos contactos com os outros distanciam-se e
quebram-se porque deixamos de estar no circuito de luz e de amor
onde o ser se afirma na plenitude da sua dádiva. É neste circuito de
luz e de amor que o ser «existe» como um «êxtase», como um impul-
so para o outro, como um dom que corresponde ao dom eterno que
Deus é.
Padre Maurice Zundel 11

11
Un autre regard sur l’homme, edição Le Sarment – Fayard, p. 78, 299.

100
BIBLIOGRAFIA

Publicações

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1994.
HENRI CAFFAREL - O pensamento de Paulo VI sobre a sexualidade,
casamento e amor. Introdução e notas do cónego Henri Caffarel.
Texto integral do discurso do Papa às Equipas de Nossa Senhora
em 4 de Maio de 1970. Edições Feu Nouveau, Paris, 1970. Repro-
dução do trabalho apresentado por Jean Allemand, editado pelas
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Colectivo: Catecismo da Igreja Católica, n.os 2360 a 2379.
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ALPHONSE D’HEILLY - Amar em actos e em verdade. Edições S. Paulo,
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PASCAL IDE - O corpo no coração. Edições S. Paulo, 1996.
PAULO VI - Encíclica Humanae Vitae, 1968.
JOÃO PAULO II - A imagem de Deus, homem e mulher, 1981.
JOÃO PAULO II - O corpo, o coração e o espírito, 1984.

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JOÃO PAULO II - Encíclica Familiaris Consortio. Documentação cató-
lica, 1982, n.º 1821, pp. 1 a 37.
JOÃO PAULO II - Discurso aquando da viagem a Ste Anne d’Auray.
Documentação católica, 1996, n.º 2146, pp. 863 a 865.
BISPOS DE FRANCA - Nota pastoral sobre a encíclica Humanae Vitae.
Documentação católica, 1968.
XAVIER LACROIX - O corpo e o espírito. Edições Vida Cristã, 1995.
XAVIER LACROIX - O corpo e o amor. Sobre as dimensões éticas, es-
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FRÉDÉRIC MOUNIER - O amor, o sexo e os católicos. Edições Centurião,
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XAVIER THÉVENOT - Referências éticas para o mundo novo. Edições
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KAROL WOJTYLA - Amor e responsabilidade. Edições Stock, 1978.
JOSEPH WRESINSKY - Escritos e palavras aos Voluntários do Movi-
mento. Quarto Mundo. Edições S. Paulo, 1967.

Periódicos

Alliança (bimestral) n.os 33-34, 69-70, 71, 96, 106-107, 112-113, 120
e 127.
Amor e família (bimensal) CLER - Estabelecimento de Informação
da Educação e de Conselho Conjugal e Familiar.

102
MAGNIFICAT

A minha alma glorifica o Senhor


e o meu espírito se alegra em Deus meu salvador.
Porque pôs os olhos na humildade da Sua serva,
de hoje em diante me chamarão bem-aventurada
todas as gerações.
O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas,
Santo é o Seu nome.
A Sua misericórdia se estende de geração em geração
sobre aqueles que O temem.
Manifestou o poder do Seu braço,
e dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos de Seus tronos,
e exaltou os humildes.
Aos famintos encheu de bens
e aos ricos despediu de mãos vazias.
zAcolheu a Israel Seu servo,
lembrado da Sua misericórdia,
como tinha prometido a nossos pais,
a Abraão e à Sua descendência para sempre.
Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo,
como era no princípio, agora e sempre.
Ámen.

103

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