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TEORIAS DA INTERCULTURALIDADE

E FRACASSOS POLÍTICOS

Perguntamo-nos como encaixar em algo que pareça real,


tão real como um mapa, este feixe de comunicações distantes e
incertezas cotidianas, atrações e desenraizamentos, que se nomeia
como globalização. Setenta canais de televisão acessados por cabo,
acordos de livre comércio que nossos presidentes assinam aqui
e acolá, migrantes e turistas cada vez mais interculturais que che-
gam a esta cidade, milhões de argentinos, colombianos, equa-
torianos e mexicanos que agora vivem nos Estados Unidos ou na
Europa, programas de informação, vírus multilingues e publici-
dade não pedida que aparecem no computador: onde encontrar
a teoria que organize as novas diversidades?
Estudar as diferenças e preocupar-se com o que nos homo-
geneíza tem sido uma tendência distintiva dos antropólogos. Os
sociólogos costumam deter-se na observação dos movimentos que
nos igualam e dos que aumentam a disparidade. Os especialistas
em comunicação costumam pensar diferenças e desigualdades em
termos de inclusão e exclusão. De acordo com a ênfase de cada
disciplina, os processos culturais são lidos em chaves distintas.
Para_as^mrop^lo^jaLda diferença, cultura é pertejicimento
comunitário e contraste com os outros. Para algumas teorias
sociológicas da desigualdade, a cultura é algo que se adquire fa-
zendo parte das elites ou aderindo aos seus pensamentos e gostos;
as diferenças culturais procederiam da apropriação desigual-dos
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recursos económicos e educativos. Os estudos comunicacionais se a distribuição estrita de etnias e migrantes em regiões geográfi-
consideram, quase sempre, que ter cultura é estar conectado. Não cas, a distribuição de bairros prósperos e carentes, que nunca foi
há um processo evolucionista de substituição de algumas teorias por inteiramente pacífica mas era mais fácil governar, uma vez que os
outras: o problema é averiguar como coexistem, chocam ou se igno- diferentes estavam distanciados. Todos - patrões e trabalhadores,
ram a cultura comunitária, a cultura como distinção e a cultura.com. nacionalistas e recém-chegados, proprietários, investidores e turis-
É uma questão teórica e é um dilema-chave nas políticas so- tas - confrontamo-nos, diariamente, com uma interculturalida-
ciais e culturais. Não só como reconhecer as diferenças, como corrigir de de poucos limites, frequentemente agressiva, que supera as insti-
as desigualdades e como conectar as maiorias às redes globalizadas. tuições materiais e mentais destinadas a contê-la.
Para definir cada um destes três termos, é necessário pensar os mo- De um mundo multicultural— justaposição de etnias ou gru-
dos pelos quais se complementam e desencontram. Nenhuma des- pos em uma cidade ou nação - passamos a outro, intercultural e
tas questões tem o formato de há trinta anos. Mudaram desde que globalizado. Sob concepções multiculturais, admite-se a diversidade
a globalização tecnológica passou a interconectar simultaneamente de culturas, sublinhando sua diferença e propondo políticas relati-
quase todo o planeta e a criar novas diferenças e desigualdades. vistas de respeito, que frequentemente reforçam a segregação. Em
contrapartida, a interculturalidade remete à confrontação e ao en-
1 trelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em re-
lações e trocas. Ambos os termos implicam dois modos de produção
As transformações recentes fazem tremer a arquitetura da
do social: multiculturalidade supõe aceitação do heterogéneo; inter-
multiculturalidade. Os Estados e as legislações nacionais, as políticas
culturalidade implica que os diferentes são o que são, em relações
educacionais e de comunicação que ordenavam a coexistência de
de negociação, conflito e empréstimos recíprocos.
grupos em territórios delimitados são insuficientes ante a expansão
das misturas interculturais. As trocas económicas e midiáticas globais, Aos encontros episódicos de migrantes que há pouco chegaram
assim como os deslocamentos de multidões aproximam zonas do e devem adaptar-se, às reuniões de empresários, académicos ou ar-
mundo pouco ou mal preparadas para se encontrarem. Resultados: tistas que se vêem durante uma semana, para férias, congressos ou
cidades onde se falam mais de cinquenta línguas, tráfico ilegal entre festivais, somam-se milhares de fusões precárias, armadas, sobretudo,
países, circuitos de comércios travados porque o Norte se entrincheira em cenários midiáticos. A televisão a cabo e as redes de internet
em barreiras agrícolas e culturais, enquanto se despoja o Sul. As falam línguas múltiplas dentro da nossa casa. Nas lojas de comida,
consequências mais trágicas: guerras "preventivas" entre países, den- discos e roupa, "convivemos" com bens de vários países num mesmo
tro de cada nação e também no interior das megacidades. Militari- dia. Encontramos os melhores jogadores argentinos, brasileiros,
zam-se as fronteiras e os aeroportos, os meios de comunicação e os franceses e ingleses em equipes de outros países. E as decisões sobre
bairros. o que vamos ver, ou quem vai jogar onde, implicam não só misturas
interculturais: tal como na televisão e na música, no esporte não
Parecem esgotar-se os modelos de uma época na qual acre-
jogam só Beckham, Figo, Ronaldo, Veron e Zidane, mas também
ditávamos que cada nação podia combinar suas muitas culturas, e
as marcas de roupas e de carros que os patrocinam, os canais que
mais as que iam chegando, num só "cadinho", ser um "crisol de
entram em disputa para transmitir as partidas ou já compraram os
raças", como declaram constituições e discursos. Está por acabar-
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clubes. O que mantém a credibilidade das identidades no futebol, têmicas e morais muito sutis que ocorrem entre culturas, dentro
das referências nacionais e locais, quando sua composição é tão hete- das culturas, entre indivíduos e também dentro dos indivíduos
rogénea, projetada como co-produção internacional e com fins mer- mesmos, ao lidar com a discrepância, a ambiguidade, a discordância
cantis? Será que a aceitação de estrangeiros no esporte dá pistas sobre e o conflito" (Benhabib, 2002, p. 31).
certas condições que facilitam a aceitação e a integração dos diferentes? A atenção a estas ambivalentes negociações tem caracterizado
É difícil estudar esta vertigem de confusões com os instrumen- os estudos socioantropológicos. Talvez por isso a antropologia possa
tos que usávamos para conhecer um mundo sem satélites nem tantas registrar melhor, empiricamente, a reestruturação culturalào mundo
rotas interculturais. Os livros sobre estes temas, a maioria escritos como chave do final de uma época política.
em inglês e pensando nos formatos de multiculturalidade existen- Até há quinze anos - para tomar como data de condensação
tes nos Estados Unidos, Grã-Bretanha ou suas ex-colônias, concen- a queda do Muro de Berlim - , havia uma divisão do planeta na
tram-se em relações interétnicas ou de género, mas no horizonte qual Oriente e Ocidente pareciam hemisférios antagónicos e pouco
atual se entrecruzam outras conexões nacionais e internacionais: de conectados. As nações tinham culturas mais ou menos autocontidas,
níveis educativos e idades, midiáticas e urbanas. com eixos ideológicos definidos e duradouros, que regiam a maior
parte da organização económica e dos costumes cotidianos. Acre-
2 ditava-se saber o que significava ser francês, russo ou mexicano. Os
Este é um livro sobre teorias socioculturais e fracassos sociopo- países abriam seu comércio e, portanto, recebiam fábricas, objetos
líticos. Uma primeira consequência desta delimitação do campo de de consumo diário e mensagens audiovisuais cada vez mais variadas.
análise é que, embora os leitores aqui encontrem discussões filosófi- Mas, na sua maior parte, estes provinham da região oriental ou
cas, interesso-me por elaborá-las em relação com as atuais condições ocidental a que se pertencia e eram processados numa matriz nacio-
sociais e midiáticas nas quais se verificam os desacertos políticos. nal de significados.
Penso que as polémicas entre sistemas de ideias - por exemplo, so- Em poucos anos, as economias dos países grandes, médios
bre universalismo e relativismo, ou sobre as vantagens do universalis- e pequenos passaram a depender de um sistema transnacional no
mo como justificação estratégica (Gadamer, Rorty ou Lyotard) ou qual as fronteiras culturais e ideológicas se desvanecem. Fábricas
como opção ética (Rorty ou Rawls) - têm o valor de situar as condi- estadunidenses, japonesas e coreanas instalaram maquiladoras em
ções teóricas modernas e pós-modernas da incomensurabilidade, in- nações como México, Guatemala e El Salvador, que acreditavam
compatibilidade e intradutibilidade das culturas. Aqui preferi traba- aliviar assim o desemprego insolúvel com recursos internos. A inserção
lhar à maneira de cientistas sociais, como Pierre Bourdieu e Clifford de estilos de trabalho e formas exógenas de organização do trabalho
Geertz, ou filósofos, como Paul Ricoeur, atentos aos obstáculos so- incrementou o estoque de automóveis, televisores e, naturalmente,
cioeconómicos, políticos e comunicacionais postos à interculturali- culturas (Reygadas, 2002). Aqueles que não conseguiam emprego
dade pela efetiva desestabilização atual dos ordenamentos nacionais, ou que aspiravam a ganhar mais enviavam alguns membros das suas
étnicos, de género e geracionais, operada pela nova interdependência famílias aos Estados Unidos, à Espanha ou a outras sociedades que
globalizada. Observa acertadamente Seyla Benhabib que a ênfase ainda aceitavam pessoas sem documentos com o objetivo de bara-
teoricista na "incomensurabilidade nos desvia das negociações epis- tear os custos internos de produção e de competir na exportação.
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Os antropólogos estudávamos a continuidade das tradições de traba- tório, ou seja, alteram a articulação dos cenários que davam sentido
lho, línguas e hábitos de consumo, que mantinham identidades ter- aos bens e mensagens.
ritoriais mesmo no desterro. Os sociólogos políticos discutiam se, A rigor, trata-se de um processo que tem mais de 15 anos.
nos países latino-americanos, devia-se permitir que votassem os mi- Não esqueço que, ao fazer, em fins da década de 1970, a etnografia
grantes residentes no exterior, e imaginavam os efeitos da influência das festas indígenas e mestiças em Michoacán, nas danças de origem
latina no futuro de zonas estadunidenses onde começavam a repre- purépecha ou espanhola - todas vividas como signos identificadores
sentar um quarto da população. de tradição local - , os migrantes para os Estados Unidos, que regres-
Repentinamente, muitas mudanças desfiguram esta paisagem. savam ao México para participar, exibiam roupas com frases em in-
Quando as ciências sociais lidavam com um mundo mais ordena- glês e colocavam sua contribuição em dólares no arranjo ritual da
do, considerar-se-ia como ecletismo apressado reunir num mesmo cabeça dos dançarinos. A diferença é de escala e intensidade: em
parágrafo estes fatos: a) muitas maquiladoras saem dos países lati- Michoacán, não mais do que 10% da população emigravam naquela
no-americanos para a China, aproveitando os salários mais baixos época; agora, em números redondos, vivem nesse estado mexicano
desse país; ou seja, o regime chinês, visto até uma década atrás como 4 milhões de michoacanos, enquanto 2,5 milhões residem nos Estados
o maior inimigo ideológico do capitalismo, gera desemprego e en- Unidos. Uns e outros seguem interconectados não só pelo dinheiro
fraquece economias ocidentais não mediante desafios ideológicos, mas também por mensagens afetivas, informação nas duas direções,
eficácia produtiva ou poderio militar, mas graças à maior exploração frustrações e projetos mais ou menos comuns.
do trabalho; b) na Califórnia, leis como a 187, que privam de di- Podem-se avaliar as diferenças recentes em muitas sociedades
reitos à saúde e à educação as pessoas sem documentos, e a eleição latino-americanas e também nos Estados Unidos. As exportações
de Arnold Schwarzenegger como governador efetivaram-se com boa chinesas para este país aumentaram em 40% nos últimos três anos,
parte do voto chicano; c) as remessas de dinheiro dos migrantes, de modo que a sociedade estadunidense se converteu em destino
dos Estados Unidos para a América Latina, aumentam de ano para de 25% do que os chineses vendem ao exterior. Nestas remessas
ano, a ponto de se converterem no México, com 14 bilhões de dó- asiáticas chegam milhares de objetos sem os quais é difícil imaginar
lares em 2003, numa fonte de receitas semelhante à exportação de o que distingue os estadunidenses: os troféus com que se premiam
petróleo e mais elevada do que o turismo; d) as roupas, os celulares, as crianças em competições esportivas, as bolas de beisebol e de bas-
os aparelhos eletrodomésticos e até os adornos de Natal têm em quete, os esquis, aparelhos de televisão e móveis early american.
comum etiquetas que anunciam sua fabricação no Sudeste asiático.
Seria ingénuo pensar que tantas etiquetas com identificações
Vimos bandeiras nacionais agitadas em celebrações da independência
asiáticas, em artigos de consumo estadunidense ou em bandeiras
da Argentina e do México com a etiqueta made in Taiwan.
argentinas e mexicanas, atenuarão o nacionalismo destes povos,
Estes processos não são facilmente agrupáveis numa mesma aproximando-os e facilitando sua compreensão. As^rela^fes_en s

série socioeconómica nem cultural, porque implicam tendências di- tre aproximações de mercado, nacionalismos políticos e inércias
versas de desenvolvimento, às vezes contraditórias. Mais do que ge- cotidianas de gostos e afetos seguem dinâmicas divergentes, como
neralizar conclusões, mudam as perguntas sobre o local, o nacional se não tivessem se inteirado das redes que reúnem economia, políti-
e o transnacional, sobre as relações entre trabalho, consumo e terri- ca e cultura em escala transnacional. Esta nova situação das relações
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interculturais é o que me estimula às revisões teóricas dos trabalhos as pós-modernas oferecem alternativas teóricas ou modelos sociocul-
antropológicos, sociológicos e comunicacionais das décadas recentes. turais que substituam os dilemas modernos.
O interesse em entender, ao mesmo tempo, as teorias socio-
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culturais e os fracassos políticos exige analisar, ao lado daquilo que
A indagação sobre as possibilidades de convivência multicultu- os autores declaram nos textos teóricos, as polémicas e as relações
ral tem certa analogia com a construção de projetos interdisciplinares. com instituições, meios de comunicação e movimentos sociais, por
Se estamos numa época pose multi, se há tempos é impossível insta- meio das quais constroem sua argumentação. Por isso, ocupo-me
lar-se no marxismo, no estruturalismo ou outra teoria como se fosse de vários livros-chave, ao lado de simpósios nos quais cientistas so-
a única, o trabalho conceituai precisa aproveitar diferentes contribui- ciais e líderes indígenas discutem sobre as diferenças étnicas e os
ções teóricas, debatendo suas interseções. Depois de utilizar durante Estados. Analiso os textos de Bourdieu e também seu modo de atuar
anos a concepção bourdieana - ela mesma uma teoria que articula na televisão. Nas situações de enunciação e interação, escutamos o
e discute Marx, Weber e Durkheim — para realizar investigações que nos textos aparece como pressuposto ou silêncio.
sobre campos intelectuais, consumos culturais e o vínculo socieda- Quanto aos políticos, o livro pretende focar seus fracassos
de-cultura-política, avalio melhor os limites dos seus enfoques. culturais não só como resultado de erros ou corrupção, da asfixia
Ajudam-me, como os leitores logo verão, as críticas de Grignon- que a economia neoliberal impõe ao jogo democrático, mas tam-
Passeron e os raciocínios de Boltanski-Chiapello, que oferecem uma bém como frustrações teóricas. Faltam interpretações sobre o modo
visão mais complexa das contradições atuais do capitalismo. Interes- errático e não representativo em que deambula a política. Não
sei-me, nesta linha, em entender por que Bourdieu reproduziu até encontro, sobre estes últimos anos, textos equivalentes àqueles que
as últimas investigações sua máquina reprodutivista e, nos anos fi- se escreveram sobre as grandes catástrofes do século XX: o nazismo,
nais, quando quis acompanhar protestos contra o neoliberalismo e o autoritarismo soviético e suas sombras. De modo que, ao nos per-
reencontrar um papel para sujeitos críticos, não superou a repetição guntarmos pela política e pelos políticos, os fracassos de que os jor-
mais ou menos sofisticada do anticapitalismo da primeira metade nais falam rotineiramente aparecerão aqui como cenografia, ruído
do século XX. Vejo a chave destes limites na dificuldade da sua de fundo, perguntas sobre os atuais desentendimentos entre cultu-
obra para incluir as formas de industrialização-massificação da ras e posições de poder.
cultura e o papel não simplesmente reprodutivista dos setores po-
pulares.
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A atenção que dou às posições que sublinham as diferenças,
Talvez estas páginas iniciais já tenham sugerido as razões da
do etnicismo até a posição de Clifford Geertz, me leva a valorizar
mudança de foco que prometem em relação a outros textos sobre
criticamente as contribuições daqueles que vêem a modernidade a
interculturalidade. Como se sabe, os estudos anglo-saxões neste
partir do pré ou do não-moderno. Por outro lado, as opções apresen-
campo se concentraram na comunicação intercultural, entendida,
tadas pelo pós-modernismo na antropologia e nos estudos culturais
primeiro, como relações interpessoais entre membros de uma mes-
tampouco nos permitem ignorar as incertezas da modernidade.
ma sociedade ou de culturas diferentes, e, depois, abrangendo tam-
Nem as concepções diferencialistas, que rechaçam o Ocidente, nem
bém as comunicações entre sociedades distintas, facilitadas pelos
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com inércias que o populismo celebra e a boa vontade etnográfica


meios de comunicação de massas (Hall, Gudykunst, Hamelink). Na
admira por causa da sua resistência, trata-se de prestar atenção.às
França e em outros países preocupados com a integração de migrantes
misturas e aos mal-entendidos que vinculam os grupos. Para enten-
de outros continentes, prevalece a orientação educativa que formula
der cada grupo, deve-se descrever como se apropria dos produtos
os problemas da interculturalidade como adaptação à língua e à cul-
materiais e simbólicos alheios e os reinterpreta: as fusões musicais
tura hegemónicas (Boukons). Na América Latina, predomina a con-
ou futebolísticas, os programas televisivos que circulam por estilos
sideração do intercultural como relações interétnicas, limitação de
culturais heterogéneos, os arranjos natalinos e os móveis early american
que vêm escapando autores que circulam fluidamente entre antropo-
fabricados no Sudeste asiático. Naturalmente, não só as misturas:
logia, sociologia e comunicação (Grimson, Martin Barbero, Ortiz).
também as barreiras em que se entrincheiram, a perseguição ocidental
A intensificação dos cruzamentos entre culturas induz a ampliar a indígenas ou muçulmanos. Não só os intentos de conjurar as dife-
o campo destas contribuições. Não se trata de "aplicar" os conheci- renças mas também os dilaceramentos que nos habitam.
mentos gerados por estas investigações, na sua maioria restritas à
Tampouco se trata de passar da diferença às fusões, como se
dinâmica interpessoal ou condicionadas pelos objetivos pragmáticos
as diferenças deixassem de importar. A rigor, trata-se de tornar com-
e pedagógicos da integração de minorias, a processos de mediação
plexo o espectro. Vamos considerar, junto com diferenças e hibridis-
tecnológica e de escala transnacional. O crescimento de tensões em
mos, como tenta o capítulo 2, os modos pelos quais as teorias das
todas as áreas da vida social, em interações massivas entre sociedades,
diferenças precisam articular-se com outras concepções das relações
nas expansões do mercado e nos fracassos da política, está incorporando
interculturais: aquelas que entendem a interação como desigualdade,
as perguntas sobre a interculturalidade a disciplinas que não usavam
conexão/desconexão, inclusão/exclusão.
a expressão e reclamam novos horizontes teóricos.
A perspectiva emic, ou seja, o sentido intrínseco que os atores
Adoto aqui uma perspectiva interdisciplinar, com ênfase nos
dão às suas condutas, continua a ser uma contribuição maior da
trabalhos antropológicos, sociológicos e comunicacionais. Divirjo
antropologia e um requisito ético e epistemológico indispensável
daqueles antropólogos para os quais a particularidade da sua disciplina
para entender uma dimensão chave do social. Mas, numa época em
consiste em assumir inteiramente o ponto de vista interno da cultu-
que a investigação antropológica demonstra capacidade para captar,
ra escolhida, e penso que grandes avanços desta ciência decorrem
além daquilo que cada um toma ou rechaça dos outros, o que sucede
de ter sabido situar-se na interação entre culturas. Mais ainda: como
nestas atrações e repulsões em ambos os lados, mesmo em trocas
explico no primeiro capítulo, Mare Abélès, Arjun Appadurai e
globais, não podemos reduzir esta disciplina, nas palavras de Geertz,
James ClifFord, entre outros, estão renovando a disciplina ao redefinir
a um saber sobre verdades domésticas.
a noção de cultura: não mais como entidade ou pacote de caracte-
rísticas que diferenciam uma sociedade de outra. Concebem o cultu-
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ral como sistema de relações de sentido que identifica "diferenças,
contrastes e comparações" (Appadurai, 1996, p. 12-13), "veículo Adotar uma perspectiva intercultural proporciona vantagens
ou meio pelo qual a relação entre os grupos é levada a cabo" (Jame- epistemológicas e de equilíbrio descritivo e interpretativo, leva a
son, 1993, p. 104). conceber as políticas da diferença não só como necessidade de re-
sistir. O multiculturalismo estadunidense e o que, na América Lati-
Esta reconceituação muda o método. Em_^ez_-de--CQmparar
na, chama-se mais propriamente de pluralismo deram contribuições
culturas que operariam como sistemas^regxistentes e compactos,
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para tornar visíveis os grupos discriminados. Mas seu estilo relativista ve cotas de representatividade em museus, universidades e parlamen-
bloqueou os problemas de interlocução e convivência, assim como tos, como exaltação indiferenciada das realizações e misérias daque-
sua política de representação - a ação afirmativa - costuma gerar les que compartilham a mesma etnia ou o mesmo género, entrinchei-
mais preocupação com a resistência do que com as transformações ra-se no local sem problematizar sua inserção em unidades sociais
estruturais. complexas de ampla escala.
O multiculturalismo chegou a funcionar em alguns países Por estas razões, este livro trata de escapar dos traços do pen-
como interpretação ampliada da democracia. Fez-nos ver que esta samento teórico pós-moderno: a exaltação indiscriminada da frag-
significa algo mais do que a rotina de votar a cada dois ou quatro mentação e do nomadismo. Permanecer numa versão fragmentada
anos: participar de uma sociedade democrática implica ter direito do mundo afasta as perspectivas macrossociais necessárias para com-
a ser educado na própria língua, associar-se com os que se parecem preender e intervir nas contradições de um capitalismo que se trans-
conosco para consumir ou protestar, ter revistas e rádios próprias nacionaliza de modo cada vez mais concentrado. Quanto ao noma-
que nos distingam. dismo das décadas de 1980 e 1990, não podemos esquecer que cor-
No entanto, deve-se também considerar as críticas dirigidas responde ao momento em que o livre comércio e a abertura de fron-
ao multiculturalismo e ao pluralismo, sobretudo na sua versão se- teiras apareciam como recursos para recolocar-se na competição
gregacionista. Objeta-se que a auto-estima particularista conduz a económica; agora vemos por toda parte - sobretudo no Sul - que
novas versões de etnocentrismo: da obrigação de conhecer uma a desregulamentação também acarreta desamparo trabalhista, des-
única cultura (nacional, ocidental, branca, masculina) passa-se a cuido da saúde e do meio ambiente e migrações em massa. Co-
absolutizar acriticamente as virtudes, só as virtudes, da minoria a nhecemos repertórios e inovações de mais culturas, mas perdemos
que se pertence. O relativismo exacerbado da "ação afirmativa" a proteção sobre a propriedade intelectual, ou os direitos de difusão
obscurece os dilemas compartilhados com conjuntos mais amplos, se concentram em poucas corporações, especialmente no campo
seja a cidade, a nação ou o bloco económico a que o livre comércio musical e digital. Mercados livres? Em vez do livre jogo estético e
nos associa. Cumprir as cotas - de mulheres, de afro-americanos, económico entre produtores culturais, os interesses de empresas de-
de indígenas — na ocupação de postos pode tornar insignificantes dicadas ao entretenimento ou às comunicações é que influem naquilo
os requisitos específicos que fazem funcionar as instituições acadé- que se edita, se filma ou pode abrigar-se em museus. Por isso, dedico
micas, hospitalares ou artísticas. A vigilância do politicamente corre- os dois capítulos finais a propor uma visão intercultural crítica do
to às vezes asfixia a criatividade linguística e a inovação estética. mercado cinematográfico e deste outro mercado absolvido das suas
posições injustas sob o nome de "sociedade do conhecimento".
Não é fácil fazer um mapa com usos tão díspares do multicul-
turalismo. Nem avaliar seus significados múltiplos, dispersos, nas Não se impõe, como há anos se temia, uma única cultura
sociedades. É útil, pelo menos, estabelecer a diferença entre multi- homogénea. Os novos riscos são a abundância dispersa e a concen-
culturalidade e multiculturalismo. A multiculturalidade, ou seja, a tração asfixiante. Concordo com Jean-Pierre Warnier: o problema
abundância de opções simbólicas, propicia enriquecimentos e fu- que as sociedades contemporâneas enfrentam é mais "de explosão
sões, inovações estilísticas mediante empréstimes-temados de muitas e dispersão das referências culturais do que de homogeneização"
partes. O multiculturalismo, entendido como programa que prescre- (Warnier, 2002, p. 108). Mas, simultaneamente, as megacorpora-
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ções tentam controlar amplas zonas desta proliferação mediante ta- Mas não ajuda a distinguir as lógicas diversas da intercultu-
rifas preferenciais, subsídios, dumpinge acordos regionais desiguais. ralidade amontoar desterros, vagabundagens, migrações, tribalismos
A multiculturalidade, reconhecida no catálogo de muitos museus, urbanos e navegações pela internet, esquecendo seu sentido social,
de empresas editoriais, discográficas e televisivas, é administrada tal como ocorre em certos livrinhos franceses e latino-americanos.
com um sistema afunilado que se completa em alguns poucos cen- Um dos seus representantes mais traduzidos, Michel Maffesoli, que
tros do Norte. As novas estratégias de divisão do trabalho artístico já banalizara as formas contemporâneas de desintegração, reduzin-
e intelectual, de acumulação de capital simbólico e económico atra- do-as a "tribalismos", agora diz que nos uniria a todos - "hippies,
vés da cultura e da comunicação concentram nos Estados Unidos, freaks, índios metropolitanos", judeus da diáspora, guaranis e Rolling
em alguns países europeus e no Japão os lucros de quase todo o Stones, exilados e buscadores de viagens de iniciação - uma des-
planeta e a capacidade de captar e redistribuir a diversidade. Como preocupação dionisíaca "pelo amanhã, o gozo do momento, a aco-
reinventar a crítica num mundo em que a diversidade cultural é modação ao mundo tal como é". É preciso esquecer o que as ciências
algo que se administra nas corporações, nos Estados e nas ONGs? sociais e tantos testemunhos dramáticos dizem sobre a intercultu-
Poucos autores e movimentos sociais percebem as consequên- ralidade para escrever, em 1997, que "deixa de ser válida a contra-
cias desta nova paisagem. George Yúdice observa que as manifesta- posição entre a errante vida elitista - a Ao jet set — e a vida caracte-
ções fóbicas em relação à globalização, de Seattle e Génova até Can- rística dos pobres - a da migração em busca de trabalho ou de l i -
cún e Porto Alegre, oferecem críticas severas à desregulamentação, berdade" (Maffesoli, 2004, p. 142).
às privatizações, aos programas de austeridade do Banco Mundial Quando recuperamos esta função básica do pensamento, que
e do F M I , aos efeitos do neoliberalismo sobre a agricultura e o meio é discernir no amálgama o que é distinto, enfrentamos ásperas frus-
ambiente, mas não encaram as questões culturais e comunicacio- trações: a maioria dos migrantes são desvalorizados nas sociedades
nais, ou, quando o fazem, continuam prisioneiras do rústico "modelo" que escolheram com admiração; cineastas argentinos, espanhóis e
de macdonaldização do mundo. Carecem de propostas para a circula- mexicanos filmam em Hollywood, mas não os roteiros que trouxeram.
ção democrática ou mais equitativa dos bens simbólicos num tempo Por outro lado, também encontramos frustrações que se combinam
em que a multiculturalidade não desaparece, mas é administrada com resistências e conquistas: Pinochet e dezenas de torturadores
seletivamente segundo a lógica da transnacionalização económica argentinos foram absolvidos nos seus países, julgados na Espanha,
(Yúdice, 2002). detidos na Inglaterra ou no México e, finalmente, alguns foram pro-
cessados nos lugares onde cometeram seus crimes.
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O que é um lugar na mundialização? Quem fala e a partir
Pode-se entender que os deslizamentos interculturais exitosos de onde? O que significam estes desacordos entre jogos e atores,
tenham fomentado os elogios pós-modernos do nomadismo e da triunfos militares e fracassos político-culturais, difusão mundial e
fragmentação: alguns poucos atores e diretores de cinema asiáticos, projetos criativos? O fascínio de estar em toda parte e o desassossego
europeus e latino-americanos conseguem atuar em Hollywood, de não estar em nenhuma com segurança, de ser muitos e não ser
músicas do Terceiro Mundo são aplaudidas no Primeiro. É possível ninguém mudam o debate sobre a possibilidade de ser sujeito: já
citar alguns migrantes populares que chegam a enriquecer. aprendemos nos estudos sobre a configuração imaginária do social
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o quanto de construídos ou simulados os processos sociais e os perspectiva do pensamento crítico: o lugar da carência. Mas colocar-
sujeitos podem ter^Talvez esteja começando um tempo de recons- se na posição dos despossuídos (de integração, de recursos ou de
truções menos ingénuas de lugares e sujeitos, estejam aparecendo lOnexões) ainda não é saber quem somos. Imaginar que se podia
ocasiões para atuarmos como atores verossímeis, capazes de fazer prescindir deste problema foi, ao longo do século XX, o ponto cego
pactos sociais confiáveis, com alguma duração, em interseções com- de muitos campesinistas, proletaristas, etnicistas ou indianistas, de
partilhadas. Por que a arte recente está redescobrindo o sujeito ou feministas que suprimiam a questão da alteridade, de subalternis-
busca recriá-lo? Muitos artistas do passado e da atualidade convertem- tas e quase todos aqueles que acreditavam resolver o enigma da iden-
se em ícones das principais exposições, de filmes europeus, chineses tidade afirmando com fervor o lugar da diferença e da desigualda-
e estadunidenses, de interpretações musicais grandiosas. Os editores de. Ao ficar deste lado do precipício, quase sempre se deixa que ou-
registram o aumento de vendas de biografias e autobiografias. As tros - deste lado e daquele - construam as pontes. As teorias comu-
identidades pessoais ressuscitam como marcas para reativar os mer- nicacionais nos lembram que a conexão e a desconexão com os ou-
cados ou há algo mais neste desejo de ser sujeito ou tê-lo como refe- tros são parte da nossa constituição como sujeitos individuais e
rência? coletivos. Portanto, o espaço inter é decisivo. Ao postulá-lo como
centro da investigação e da reflexão, estas páginas buscam com-
O que pretende, sob os escombros da noção de sujeito, o en-
preender as razões dos fracassos políticos e participar da mobiliza-
contro ritual mais importante dos empresários do mundo, o Fórum
ção de recursos interculturais para construir alternativas.
Económico de Davos, em 2004, ao chamar um seminário de "Eu
S.A."? A novidade não é a sugestão de que "cada qual deve levar
sua vida como uma empresa", mas o paradoxo de re-consagrar o
eu como sociedade anónima. O moderador do debate disse que, na
realidade, há tempos Davos é "a Olimpíada do narcisismo". A me-
táfora de Jacques Atali - "gerir a própria vida como se fosse uma
carteira de títulos" - é pelo menos inquietante, uma vez que conhe-
cemos a instabilidade dos títulos e astúcias inconfiáveis com que
se manipulam os movimentos financeiros. Estes empresários e inte-
lectuais, ao recolher os estilhaços da noção de sujeito, vão muito
mais longe do que o pós-modernismo, quando os mostrou dispersos
ou simulados. Parece urgente discernir aqueles que podem ser
sujeitos nesta época de mercados canibais e aqueles que - indivíduos
e coletivos (partidos, ONGs etc.) - somos intimados, ao mesmo
tempo, a ser flexíveis e a ser alguém na selva das siglas.

Diferentes, desiguais e desconectados? Formular os modos da


interculturalidade em chave negativa é adotar o que sempre foi a

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