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CASTRO, J. C. L. Père-version: a relativização do Nome-do-Pai. VI Jornada de Apresentação de Monografias


da Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisas em Psicanálise (CLIPP), São Paulo, 9 de maio de 2015.

Père-version: a relativização do Nome-do-Pai*

Julio Cesar Lemes de Castro

Sinthoma e perversão
No Seminário XXIII, Lacan (1975-1976/2005) introduz o conceito de sinthoma, que
recupera a antiga grafia de sintoma em francês (sinthome). Diferentemente do sintoma
(symptôme), uma formação do inconsciente, o sinthoma constitui uma suplência da carência
paterna e permite o enlaçamento borromeano dos registros.
Em diversos momentos desse seminário, Lacan alude a um elo entre sinthoma e
perversão (perversion), por meio do jogo de palavras père-version. Por exemplo:
A perversão não é definida porque o simbólico, o imaginário e o real estão rompidos, mas sim porque
eles ja são distintos, de modo que é preciso supor um quarto, que, nessa ocasião, é o sinthoma. Digo
que é preciso supor tetrádico o que faz o laço borromeano – perversão [perversion] quer dizer apenas
versão [version] em direção [vers] ao pai [père] –, que, em suma, o pai é um sintoma, ou um sinthoma,
como quiserem. Admitir o laço enigmático do imaginário, do simbólico e do real implica ou supõe a
ex-sistência do sintoma (ibid., p. 19).
Ou, mais adiante: “A pai-versão [père-version] é a sanção do fato de que Freud faz tudo se
apoiar na função do pai. E o nó bo é isso” (ibid., p. 150).
Uma dimensão teórica fundamental embutida na ideia de père-version, que constitui o
tema deste trabalho, é a relativização do Nome-do-Pai, em seus aspectos de abstração,
universalidade, normatividade e efetividade.

A abstração do Nome-do-Pai em xeque


A chave de leitura para começarmos a entender a conexão entre perversão e sinthoma
sugerida por Lacan está na primeira referência a père-version, que tem lugar na sessão de 21
de janeiro de 1975 do seminário anterior (LACAN, 1974-1975/s.d.):
Um pai só tem direito ao respeito, para não dizer ao amor, se o dito amor, o dito respeito está – vocês
não vão acreditar em seus ouvidos – pai-versamente [père-versement] orientado, isto é, faz de uma
mulher o objeto a que causa seu desejo. Mas o que essa mulher a-colhe disso, se posso exprimir-me
assim, nada tem a ver com a questão. Aquilo de que ela se ocupa é de outros objetos a, que são os
filhos, junto aos quais o pai, no entanto, intervém – excepcionalmente, na melhor das hipóteses – para
manter na repressão, no justo meio-Deus [juste mi-Dieu, alusão a juste milieu, justo meio-termo], se me
permitem, a versão que lhe é própria de sua perversão, única garantia de sua função de pai, que é a
função de sintoma tal como a escrevi. Para isso, basta que ele seja um modelo da função. Eis o que
deve ser o pai, na medida em que só pode ser exceção. Ele só pode ser modelo da função realizando seu
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tipo. Pouco importa que ele tenha sintomas, se a eles acrescentar o da perversão paterna, isto é, que sua
causa seja uma mulher que ele tenha conseguido para lhe dar filhos, e que a esses, querendo ou não,
dispense cuidados paternos.
Père-version envolve pois uma alusão ao pai real, em sua relação com uma mulher e
com os filhos que ele tem com ela. O aspecto perverso, no caso, está relacionado ao
componente de gozo nele presente, como alguém que goza de uma mulher e cujo gozo serve
de modelo para o dos filhos. A associação do gozo com a perversão, por seu turno, remete à
concepção freudiana de uma natureza perversa da sexualidade, que evade os desígnios
reprodutivos e qualquer padrão natural que autorize a falar em normalidade. “Em nenhuma
pessoa sadia falta algum acréscimo que possa ser chamado de perverso ao alvo sexual
normal” (FREUD, 1905/1968, p. 60). Essa concepção é citada, aliás, no Seminário XXIII:
“Toda sexualidade humana é perversa, se acompanhamos bem o que diz Freud. Ele nunca
conseguiu conceber tal sexualidade sem ser perversa” (LACAN, 1975-1976/2005, p. 153). É
no mesmo diapasão que Miller (1989/1996) aproxima a pulsão da perversão, deduzindo daí a
ideia de uma perversão generalizada.
Levar em conta o pai real, com seu componente de gozo, contrasta com o modelo que
vigorava anteriormente no ensino de Lacan. Na metáfora paterna por ele teorizada na segunda
metade dos anos 1950, enfatiza-se um aspecto mais abstrato, asséptico, impessoal do pai: “O
verdadeiro pai, o pai simbólico, é o pai morto” (LACAN, 1956/1966, p. 469). Ou seja, o que
importa então não é tanto o pai de carne e osso, o “pai natural” (LACAN, 1955-1956/1981, p.
111), mas o pai como ser de linguagem, sustentado enquanto tal pela fala da mãe, e que por
isso se autonomiza, subsistindo ainda que aquele esteja ausente, pois “essa ausência é mais
que compatível com a presença do significante” (LACAN, 1958/1966, p. 557). O pai consiste
pois em uma posição, uma função – a “função paterna”.
O aspecto abstrato do pai simbólico está relacionado à forma de atribuição da
paternidade, que consiste numa operação mental, pois não há um vínculo evidente entre a
criança e aquele que é designado como seu genitor, em contraste com a ligação imediata entre
a criança e a mãe que a dá à luz. Num caso, a relação ocorre em torno de uma ausência, de
algo não visível, sendo estabelecida com base em uma inferência; no outro, ela ocorre em
torno da contiguidade material com a criança, sendo estabelecida a partir da simples
percepção. Mater semper certa est; pater is est quem nuptiæ demonstrant. Como observa
Lacan (1968-1969/2006, p. 152), “a essência e a função do pai como Nome, como pivô do
discurso, derivam precisamente do fato de que, afinal, jamais se pode saber quem é o pai.
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Podem ir procurar, é uma questão de fé”. E ele acrescenta, fazendo referência aos avanços
científicos em tal seara: “É absolutamente certo, aliás, que essa introdução da pesquisa
biológica da paternidade de modo algum pode deixar de ter incidência sobre a função do
Nome-do-Pai” (ibid., p. 152).
Na leitura lacaniana de Freud, o pai real corresponde, em termos filogenéticos, ao pai
da horda primeva, que goza de todas as mulheres, no mito de Totem e tabu (FREUD, 1912-
1913/1961). Ele remete a algo de real que se perdeu na bruma da história, mas que, ainda
assim, está na origem da cultura humana: “Se, afinal, essa hipótese parecer bastante
improvável, isso não representará uma objeção contra a possibilidade de que ela se aproxime
com maior ou menor precisão da realidade tão difícil de reconstruir” (p. 4). Quando o pai da
horda é assassinado pelos próprios filhos, observa-se então que, como totem, “o morto se
tornou agora mais forte do que fora vivo” (p. 173). Em Freud, com efeito, é a morte como
homem que abre caminho para a emergência do pai simbólico: “A necessidade de sua
reflexão o levou a ligar a aparição do significante do Pai, enquanto autor da Lei, à morte, até
mesmo ao assassinato do Pai” (LACAN, 1958/1966, p. 556).
Mesmo que o pai simbólico se tenha tornado prevalente na cultura, sua vinculação
perversa ao pai real pode ser identificada na leitura psicanalítica de grandes edifícios
simbólicos. Em Freud, o Nome-do-Pai aparece de modo equivalente como realidade psíquica
e como realidade religiosa (LACAN, 1974-1975/s.d., 11 de fevereiro de 1975). Lacan
(1965/1966) lamenta “ter precisado renunciar a relacionar ao estudo da Bíblia a função do
Nome-do-Pai” (p. 873-874), mencionando o “Seminário que tínhamos anunciado para 1963-
64 sobre o Nome-do-Pai” (p. 874n.1), num aparente lapso, visto que esse seminário tinha
como objeto, na verdade, os Nomes-do-Pais, no plural, algo que antecipa sua formulação
sobre a père-version1. Não obstante, fica claro que, inclusive nas configurações mais
sublimadas do pai simbólico, se conservam os traços perversos de sua origem.
No mito freudiano, a lei instituída subsequentemente ao assassinato do pai é
acompanhada pelo sentimento amoroso:
É pelo menos o que Freud avança em Totem e tabu com a referência à primeira horda. É na medida em
que os filhos são privados de mulher que eles amam o pai. Eis alguma coisa totalmente singular e

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Lacan (1967/2001, p. 587) incorre novamente nessa imprecisão na primeira versão da “Proposição de 9 de
outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, ao referir-se a “um seminário sobre o Nome-do-Pai, sobre o
qual mantenho que não foi por acaso que não pude fazer”.
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perturbadora, que apenas a intuição de Freud sanciona (LACAN, 1975-1976/2005, p. 150).


Ela consiste, portanto, numa lei perversa, numa lei do amor. E, como em Freud a filogênese é
replicada pelo ontogênese, isso se aplica também à lei edipiana.
Em Moisés e o monoteísmo, Freud (1939/1961) atribui a exaltação gerada pela
instituição de um Deus único e onipotente pelo judaísmo, o sentimento de que isso preenchia
expectativas longamente acalentadas, ao ponto culminante de um longo percurso de retorno
do reprimido – essa encarnação da divindade perfaz, enfim, o resgate da memória do
poderoso pai da horda primordial (p. 237).
Se o mito da origem da Lei se encarna no assassinato do pai, é daí que saíram esses protótipos que se
chamam sucessivamente o animal totem, depois tal deus mais ou menos poderoso e ciumento, e no fim
das contas o deus único, o Deus Pai (LACAN, 1959-1960/1986, p. 209).
Em princípio, trata-se de um conceito puro, despido de representações imaginárias:
O reconhecimento daquele que se anuncia como Eu sou o que sou, nomeadamente o Deus dos Judeus,
exige recusar-se não somente à idolatria pura e simples, a saber a adoração de uma estátua, mas, mais
longe que isso, à nominação por excelência de toda hipóstase imaginada (LACAN, 1957-1958/1998, p.
70).
Ora, até no Deus judaico, argumenta Lacan (1974-1975/s.d.) no Seminário XXII, pode-se
detectar o ingrediente de père-version: “Deus é pai-verso (père-vers), é um fato tornado
patente pelo próprio judeu” (8 de abril de 1975). Poderíamos pensar, a propósito, nas
numerosas instâncias no Antigo Testamento em que os judeus incorrem em lapsos de fé,
tendendo a representações sensíveis da divindade, como o Bezerro de Ouro, ou na própria
postura dessa divindade, de vigilância implacável sobre seu povo e de colocar sua fé à prova,
como no episódio do sacrifício do próprio filho demandado a Abraão. Entretanto, Lacan, na
sessão seguinte do seminário, toma outro caminho:
Eles [os judeus] nos explicaram bem que isso era o Pai, o Pai que eles chamam, o Pai que eles fazem
em um ponto de furo que não se pode mesmo imaginar: ‘Sou o que sou’, isso é um furo, não é? Bem, é
daí que, por um movimento inverso... pois um furo, se vocês crêem em meus esqueminhas, um furo
turbilhona, mais exatamente engole, e logo há momentos em que cospe. Cospe o quê? O Nome. É o Pai
como Nome (15 de abril de 1975).
Esse movimento de engolir e cuspir tem algum paralelismo com o banquete totêmico, mas o
que se descreve não parece a passagem do real para o simbólico: o ponto de partida já está no
próprio simbólico (o furo, “Sou o que sou”), e é como se se tratasse de recuperar algo de real
a ele inerente.
O passo seguinte ao resgate da memória do pai da horda primordial, argumenta Freud
(1939/1961), é o retorno, com toda a intensidade, da culpa por sua morte. Instala-se então
entre os povos mediterrâneos um mal-estar difuso, um anseio de remissão; uma vez associada
a Jesus Cristo, a expiação pela culpa original redunda numa nova religião, que rapidamente se
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espraia (p. 243-244). E, no cristianismo, o aspecto perverso é explícito:


A imaginação de ser o redentor, em nossa tradição pelo menos, é o protótipo da pai-versão [père-
version]. É na medida em que há relação do filho com o pai que surge essa ideia tresloucada do
redentor, e isso há muito tempo. O sadismo é para o pai, o masoquismo é para o filho (LACAN, 1975-
1976/2005, p. 85).
Pode-se dizer que, na cultura ocidental, por influência do cristianismo, Deus funciona como o
modelo do Outro de cujo gozo ele se coloca como instrumento: o perverso é “um defensor da
fé”, “um auxiliar singular de Deus” (LACAN, 1968-1969/2006, p. 253). Vale notar que o
conceito cristão de Trindade também é recuperado via nó borromeano, que pretende enodar
“essa Trindade infernal du simbólico, do imaginário e do real” (LACAN, 1974-1975/s.d., 18
de fevereiro de 1975).
Até quando discute a proibição do incesto, nos anos 1950, Lacan admite que nenhum
pai exerce seu papel de forma puramente simbólica. “Ele faz obstáculo entre a mãe e o filho,
ele é o portador da lei, mas em direito, posto que, de fato, ele intervém de outro modo, e é
também de outro modo que se manifestam suas falhas em intervir” (LACAN, 1957-
1958/1998, p. 187). A père-version, de qualquer forma, vai mais longe, evidenciando a
perversão do pai simbólico. De certa forma, há até uma a-version a este, uma oposição a ele
da perspectiva do objeto a, no sentido do mais-de-gozar, do real. Em português, poderíamos
explorar o sentido de “verso” como envers, o outro lado de alguma coisa: o pai-verso seria o
outro lado do pai. E, em inglês, como observa Aubert (1976/2005, p. 176) a propósito de
passagens de Joyce, perverso tem o sentido adicional de renegado. Uma asserção do último
Lacan (1975-1976/2005) mostra que, neste, se pode observar uma reversão em alguma
medida do processo de autonomização do pai em relação a seu suporte: “É na medida em que
o Nome-do-Pai [Nom-du-Père] é também o Pai do Nome [Père du Nom] que tudo se
sustenta” (p. 22). Ou seja, passa-se a enfatizar a dependência do pai simbólico (Nome-do-Pai)
em relação ao pai real (designado simetricamente como Pai do Nome), concomitantemente,
como veremos, com a abertura da possibilidade de outros Nomes-do-Pai.
A explicitação, por parte de Lacan, da contaminação da função simbólica pela
dimensão de gozo do pai real que lhe serve de suporte coincide, não por acaso, com uma
mudança progressiva em sua concepção de gozo. Essa mudança é indicada pelo esquema dos
paradigmas de gozo proposto por Miller (1999). O gozo significantizado dos anos 1950 não
dá conta efetivamente do gozo enquanto tal, enquanto o gozo do real ou gozo impossível (das
Ding) do Seminário VII (LACAN, 1959-1960/1986), o mais distante do simbólico, não dá
conta da relação com este. O desafio com o qual doravante se depara Lacan, manifesto nos
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paradigmas seguintes – o gozo normal ou fragmentado (via pulsões parciais) do Seminário XI


(LACAN, 1964/1973), o gozo discursivo (mais-de-gozar) do Seminário XVII (LACAN, 1969-
1970/1991), e o gozo da não-relação (gozo do Um) do Seminário XX (LACAN, 1972-
1973/1975) –, é justamente o de elucidar a articulação entre gozo e simbólico. Tal articulação,
assim, espelha a aproximação entre pai real e pai simbólico via père-version.
Essa aproximação é viabilizada especialmente no contexto do nó borromeano, referido
pela primeira vez por Lacan (1971-1972/2011) no Seminário XIX (p. 91) e associado pela
primeira vez aos três registros no Seminário XXI (LACAN, 1973-1974/s.d., 13 de novembro
de 1973). Nele, não mais se verifica a precedência do simbólico em relação ao real. Quando
Lacan (1974-1975/s.d.) propõe uma “correspondência da consistência, da ex-sistência e do
furo a cada um mesmo dos termos que eu avanço como Imaginário, Simbólico e Real” (18 de
fevereiro de 1975), os três registros aparecem com idêntico peso, imbricados e
interdependentes. E, na concepção de sinthoma como o quarto anel que permite o enodamento
borromeano dos anéis dos três registros, isso se dá por meio de uma nominação que não é
necessariamente simbólica, podendo ser também imaginária ou real. Essas nominações
correspondem, respectivamente, ao sintoma, à inibição e à angústia (13 de maio de 1975), a
tríade proposta por Freud (1926/1948) com a qual Lacan (1962-1963/2004) já trabalhara no
Seminário X. Quanto ao nó borromeano por si só, como o dispositivo que articula os três
registros, Lacan (1974-1975/s.d.) o situa ora no imaginário, ora no real, mas não no
simbólico.

A universalidade do Nome-do-Pai em xeque


As incidências perversas do pai real no pai simbólico incluem a singularidade que o
primeiro empresta ao segundo. Se o pai real mítico é a exceção que sustenta a universalidade
do homem nas fórmulas de sexuação, quando consideramos o pai real concreto, submetido
nesse caso à castração, a universalidade do pai simbólico é posta em xeque. Cada pai aparece
em sua singularidade, a partir do acesso a uma mulher, e isso o dissocia do estatuto universal
da divindade:
A perversão paterna é precisamente que o desejo do pai seja ligado a uma mulher entre todas, isto é, a
uma mulher como única, e é na medida em que essa única, que esse Um o marca, que ele reconhece não
ser Deus (MILLER, 2011/s.d., 6 de abril).
Mais precisamente, a singularidade do pai é definida a partir da assimetria e do
fracasso que caracteriza o acesso a uma mulher, na medida em que ele se defronta a seu modo
com o impossível da relação sexual: “Mas o que essa mulher a-colhe disso, se posso exprimir-
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me assim, nada tem a ver com a questão. Aquilo de que ela se ocupa é de outros objetos a,
que são os filhos” (LACAN, 1974-1975/s.d., 21 de janeiro de 1975). No caráter perverso da
sexualidade humana, que não se atém à complementaridade anatômica entre os sexos, já está
presente, aliás, a ideia lacaniana da não-relação sexual. “Dizer ‘não há relação sexual’ parte
da ideia de uma physis, a saber, de alguma coisa que faria do sexo um princípio de harmonia.
Relação, isso quer dizer até hoje, para nós, proporção” (LACAN, 1974-1975/s.d., 8 de abril
de 1975). Dizer “não há relação sexual” envolve também, em alguma medida, a
desconstrução da metáfora paterna, visto que essa “escreve, de uma certa maneira, a relação
sexual sob a forma da prevalência viril sobre a posição feminina materna” (MILLER, 2013, p.
9).
Além disso, a universalidade do pai simbólico é diretamente questionada quando
levamos em conta outro sentido de père-version, interpretando-a como versão do pai:
“Perversão [perversion] quer dizer apenas versão [version] em direção [vers] ao pai [père]”
(LACAN, 1975-1976/2005, p. 19). Com efeito, quando se fala em père-version, a ênfase se
desloca da função paterna para a versão paterna. A primeira tem algo de constitutivo e
universal, a segunda, de eventual e singular. Por isso mesmo, não há uma só, mas múltiplas
père-versions possíveis, eventualmente contraditórias entre si, as quais são tomadas uma a
uma. “O Pai precisamente não existe na prática da análise, só existem pais, no singular”
(MILLER, 2011/s.d., 25 de maio). Em outros termos, pai é o que funciona como pai para cada
um. A perda da universalidade da função é contrabalançada pela multiplicação das versões
singulares.
Essa é, na verdade, uma maneira alternativa de recolocar a pluralidade dos Nomes-do-
Pai, título do seminário que seria o décimo primeiro, mas só teve uma sessão (LACAN,
1963/2005). Como se sabe, esse seminário é interrompido por ocasião da “excomunhão” de
Lacan (1964/1973, p. 7) pela International Psychoanalytical Association, e seu título
representa a gota d’água numa longa lista de atitudes desafiadoras da ortodoxia que despertam
a contrariedade da IPA. O desconforto de Lacan com o incidente manifesta-se inclusive nas
referências equivocadas, citadas anteriormente, ao tema deste seminário como sendo o Nome-
do-Pai, no singular. Somente no contexto da borromeidade do nó a pluralidade dos Nomes-
do-Pai é retomada com plena força: “Quando eu digo Nome-do-Pai, isso quer dizer que pode
haver dele, como no nó borromeano, um número indefinido” (LACAN, 1974-1975/s.d., 15 de
abril de 1975). A ideia de veRSIon do pai já inclui em seu background a articulação dos
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registros.
A pluralização dos Nomes-do-Pai é preparada, por sua vez, pelo enunciado
apresentado no Seminário VI como “o grande segredo da psicanálise”: “Não há o Outro do
Outro” (LACAN, 1958-1959/2013, p. 353). Se o Nome-do-Pai aparecia até então em Lacan
como sustentáculo da ordem simbólica, a ideia de que ela em última instância não está
fundamentada num Outro do Outro a torna inconsistente. As consequências plenas disso são
extraídas no último Lacan: o Nome-do-Pai dá lugar a uma multiplicidade de semblantes,
nenhum dos quais podendo ser tomado em termos absolutos. “Mas o Pai tem tantos e tantos
que não tem Um que lhe seja conveniente, senão o Nome de Nome de Nome. Não há um
Nome que seja seu Nome-Próprio, senão o Nome como ex-sistência. Ou seja, o semblante por
excelência” (LACAN, 1974/2001, p. 563).

A normatividade do Nome-do-Pai em xeque


Père-vers pode ser lido ainda, se considerarmos a preposição vers, como em direção
ao pai. E um caminho adicional que podemos seguir é examinar como o sujeito se arranja
com o modelo de gozo herdado do pai real.
Uma fórmula proposta por Lacan (1975-1976/2005) parece ser um ponto de partida
apropriado: “É nisso que a psicanálise, ao ser bem-sucedida, prova que se pode prescindir do
Nome-do-Pai. Pode-se sobretudo prescindir dele com a condição de dele se servir” (p. 136).
Essa fórmula recorda a passagem do Fausto, de Goethe, “Was du ererbt von deinen Vätern
hast, erwirb es, um es zu besitzen” (“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para
possuí-lo”), citada em Totem e tabu (FREUD, 1912-1913/1961, p. 190) e em Esboço de
psicanálise (FREUD, 1940 [1938]/1941, p. 138). Note-se que é a figura paterna propriamente
dita que está aí na berlinda, pois “pais” refere-se a vários pais, do sexo masculino (Vätern),
não ao casal composto de pai e mãe (Eltern). Temos um movimento duplo, que envolve a
negação pelo sujeito do modelo paterno, mas simultaneamente sua aceitação.
Desde cedo, Lacan (1938/2001) faz igualmente referência ao “duplo papel que
desempenha o pai, na medida em que ele representa a autoridade e é o centro da revelação
sexual” (p. 79). São as tarefas, respectivamente, da repressão e da sublimação. “Por esse
processo duplo, o progenitor do mesmo sexo aparece ao mesmo tempo para a criança como o
agente da interdição sexual e o exemplo de sua transgressão” (p. 46). Mais tarde, esses papéis
são associados aos conceitos freudianos de supereu (Überich) e ideal do eu (Ichideal): “Há aí
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duas concepções que, desde que as façamos intervir numa dialética qualquer para explicar um
comportamento patológico, parecem dirigidas exatamente em sentido contrário. O supereu é
constrangente e o ideal do eu exaltante” (LACAN, 1953-1954/1975, p. 118). Ou seja, o pai
desdobra-se em duas vertentes, o pai que diz não e o pai que diz sim ao sujeito confrontado
com o gozo (conquanto a interdição associada à ação do supereu constitua também uma fonte
de gozo). A relação entre pai simbólico e pai real ecoa essa duplicidade: um remete ao
bloqueio ao gozo, outro a sua afirmação.
Quando se considera tal duplicidade, faz-se mister supor uma divisão semelhante no
próprio sujeito confrontado com ela, que teria uma certa homologia com a Verleugnung. Cabe
lembrar que Freud (1940 [1938]/1941), no final de sua vida, sugere que uma divisão do eu, na
linha da Verleugnung, está presente em todo o mundo:
O ponto de vista que postula uma divisão do eu em todas as psicoses não poderia chamar tanta atenção
caso não se mostrasse aplicável a outros estados mais semelhantes às neuroses e, finalmente, às
próprias neuroses. Convenci-me primeiro disso nos casos de fetichismo (p. 133, destaque do autor).
Se na perversão a castração materna é negada, mas a mesmo tempo aceita, na père-version a
relação com o pai simbólico é minada pela relação com o pai real. Na proporção em que, em
cada sujeito, a conciliação entre atitudes divergentes em relação ao pai é algo contingente, a
normatividade, já problematizada de forma embrionária e sutil em Freud, agora se vê
francamente em discussão.
Posto diferentemente, a associação do pai simbólico com a père-version, sua
contaminação pelo gozo do pai real, sugere em princípio algo fora dos cânones, perturbador,
transgressivo – patológico, em suma. No entanto, a normatização simbólica a partir de um pai
morto, evacuado de gozo, reduzido a puro significante, seria algo impossível, pois ninguém
seria capaz de cumprir tal papel. “Na verdade, a imagem do Pai ideal é uma fantasia do
neurótico” (LACAN, 1958/1966, p. 824). Contrapondo-se à concepção tradicional do pai
como encarnação da norma, Lacan (1974-1975/s.d.) assevera que “a normalidade não é a
virtude paterna por excelência” (21 de janeiro de 1975). Se ao caracterizar a sexualidade
humana a perversão representa o que está fora da norma, ao ser alçada à posição em tese
normalizadora do pai a perversão a descaracteriza como tal. O pai agora é sintoma, ou
sinthoma (LACAN, 1975-1976/2005, p. 19). Quando o pai simbólico é associado ao gozo do
qual o pai real é portador, algo muda na relação do sujeito com o pai. Se este aparece como
alguém que goza concretamente, e não como uma função evacuada de gozo, tal fato não é
indiferente a quem se relaciona com ele. E não apenas a subtração do gozo ao sujeito pelo pai
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é deficiente, mas o próprio gozo do pai é afinal transmitido ao sujeito: “Esse nódulo de gozo
faz lei para o sujeito, lei de sua conduta, lei de seu estilo de vida: é, em suma, seu traço
perverso” (LAURENT, 1997, p. 130). O gozo do sintoma e, em seu aspecto irredutível, o
gozo do sinthoma, em sua singularidade, e na singularidade do desejo a ele subjacente, sabota
de certa forma a normatização simbólica. Em princípio, pode até ser favorecida uma postura
perversa tout court, porquanto se evidencia um gozo no Outro e o perverso é justamente
alguém que se coloca como instrumento do gozo do Outro.
A ideia de versão paterna, em lugar de função paterna, aponta, ademais, para a
ausência de um padrão. Podemos considerar que a versão do pai no sentido de genitivo
objetivo ou passivo (ou seja, cada versão que pode assumir o pai) se desdobra na versão do
pai no sentido de genitivo subjetivo ou ativo (ou seja, cada versão fornecida pelo pai).
Trocando em miúdos, cada avatar do pai oferece um modelo distinto a ser seguido. Da
multiplicidade de modelos decorre a ausência de normatividade. Tendo apresentado, no
Seminário XXI (LACAN, 1973-1974/s.d.), os Nomes-do-Pai como “os não tolos erram” (Les
non-dupes errent, título desse seminário, faz um trocadilho com les Noms-du-Père, expressão
homófona em francês), Lacan (1974-1975/s.d.) comenta no seminário seguinte:
“Evidentemente eles não podem senão errar, pois, quantos mais deles existirem, mais eles se
confundirão” (15 de abril de 1975). Talvez seja possível traçar uma homologia estrutural com
a customização da lei que ocorre na perversão: o perverso está ligado à autoridade paterna,
mas de uma forma particular, via um contrato.
E, se o mont Nébo é onde Moisés teria recebido as tábuas da Lei2, mon nœud bo é a
via pela qual em Lacan a normatividade da Lei é repensada:
A essa intuição eu tento dar um outro corpo em meu nó bo, que é tão adequado para evocar o monte
Nebo, onde, como se diz, a Lei foi dada – essa Lei que não tem absolutamente nada a ver com as leis do
mundo real, as quais são, aliás, uma questão que permanece inteiramente em aberto. A Lei da qual se
trata aqui é simplesmente a lei do amor, isto é, a pai-versão [père-version] (LACAN, 1975-1976/2005,
p. 150).
Para recorrer uma vez mais à homofonia, essa é a heresia de Lacan, a hérésie sugerida na
pronúncia de RSI e que o identifica com Joyce – “como eu, um herético” (LACAN, 1975-
1976/2005, p. 15).

2
Na verdade, segundo o relato bíblico, o monte Nebo é o lugar de onde Moisés contempla a Terra Prometida
antes de sua morte (ver Deuteronômio 32:49 e 34:1), enquanto as tábuas da lei lhe são entregues no monte Sinai
(ver Êxodo 31:18, Levítico 26:46 e 27:34, Neemias 9:13).
11

A efetividade do Nome-do-Pai em xeque


Outro caminho ainda para explorar os sentidos da père-version é constatar que a
efetividade do pai simbólico se depara com limitações, pois o pai real nunca está à altura dele,
pecando pela falta ou pelo excesso em relação a seu mandato.
O questionamento dessa efetividade, na verdade, perpassa todo o ensino de Lacan. O
texto sobre os complexos familiares contrapõe à família estendida das sociedades tradicionais,
na qual as tarefas de repressão e sublimação não são exercidas por uma única pessoa, a
família nuclear da sociedade moderna, na qual ambas são desempenhadas precipuamente pelo
pai. O resultado dessa concentração é que, dividindo-se entre duas tarefas, enfatizando ora
uma, ora outra, o pai normalmente não consegue desincumbir-se delas satisfatoriamente,
mostrar-se a sua altura. Isso manifesta-se como uma falha “na personalidade do pai, sempre
carente de algum modo, ausente, humilhada, dividida ou postiça” (LACAN, 1938/2001, p.
61). A diminuição de poder e prestígio social do pai é constatada também em “O mito
individual do neurótico”: “Pelo menos em uma estrutura social tal como a nossa, o pai é
sempre, por algum lado, um pai discordante em relação a sua função, um pai carente, um pai
humilhado, como diria M. Claudel” (LACAN, 1953/1979, p. 305). No pequeno inventário dos
estatutos do pai em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”,
enfatiza-se sua desvalorização:
Ainda nessa pesquisa tateante sobre a carência paternal, cuja repartição não deixa de inquietar-se entre
o pai tonitruante, o pai bondoso, o pai todo-poderoso, o pai humilhado, o pai atarracado, o pai
derrisório, o pai do lar, o pai em perambulação... (LACAN, 1958/1966, p. 578).
O Seminário VIII contém uma extensa discussão sobre a trilogia Coûfontaine, de Claudel, que
engloba as peças L’otage, de 1911, Le pain dur, de 1918, e justamente Le père humilié, de
1920 (LACAN, 1960-1961/2001). Numa intervenção no congresso de Estrasburgo, Lacan
(1968/1969) chega a usar a expressão “evaporação do pai” (p. 84) para designar o que
acontece em nossa época.
A inadequação do pai a seu papel desempenha importante papel em diferentes
categorias clínicas. Nos casos paradigmáticos de Freud, deparamo-nos com a impotência do
pai de Dora, a mediocridade do pai do Homem dos Ratos, a tibieza do pai de Hans, a doença
do pai do Homem dos Lobos, a extrapolação indevida de seu mandato por parte do pai de
Schreber. E, analisando este último caso, Lacan (1958/1966) chega a sua primeira formulação
paradigmática sobre a psicose, distinguindo na foraclusão do Nome-do-Pai “o padrão que dá à
psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose” (p. 575). Quando
12

malogra na criança a referência ao pai simbólico, é colocada em xeque a metáfora paterna e


compromete-se a castração simbólica. Nos termos de Santner (1996), Schreber representa o
exemplo mais agudo de um problema de investidura simbólica disseminado socialmente
numa dada conjuntura histórica.
Por ocasião da segunda formulação paradigmática de Lacan sobre a psicose, em torno
de Joyce, o problema de investidura simbólica é generalizado. Idealmente, os registros
entrelaçar-se-iam num nó borromeano de três. Na prática, porém, o enodamento é
inevitavelmente imperfeito, e é necessário que os três anéis sejam completados por outro:
“Esse quatro termo, sobre o qual quis simplesmente lhes mostrar hoje que ele é essencial ao
nó borromeano” (LACAN, 1975-1976/2005, p. 38). Trata-se do Nome-do-Pai, ou sinthoma:
Nosso Imaginário, nosso Simbólico e nosso Real estão talvez para cada um de nós ainda num
estado de dissociação suficiente para que só o Nome-do-Pai faça nó borromeano e mantenha
tudo isso junto, faça nó do Simbólico, do Imaginário e do Real (LACAN, 1974-1975/s.d., 11
de fevereiro de 1975).
Num nó com unicamente três anéis estes se dispõem homogeneamente e é impossível
distingui-los entre si, a não ser pela cor. Ademais, a necessidade do quarto anel decorre de
lapsos existentes entre os demais, que variam segundo as estruturas clínicas, como mostra
Soria Dafunchio (2008, 2010). Além de o dispositivo depender de correção, quem faz esse
papel, o Nome-do-Pai, se desdobra em Nomes-do-Pai, versões do pai, père-versions, a
pluralidade destas indicando as diferentes declinações do pai simbólico a partir de sua
determinação pelo pai real. Assim, o efeito esperado de um modelo único e puramente
simbólico já não se sustenta, e fica mais claro por que o pai costuma de algum modo falhar. A
agência do pai simbólico, que em princípio é uma defesa contra a perversão materna e previne
a psicose, é viabilizada pela agência do pai real, que tem um efeito perverso. E certas versões
do pai, ligados a certos estilos de gozo paterno, têm mesmo um papel psicotizante. Moritz
Schreber é o pai excessivo, o “protofoucaultiano pai disciplinar” (ŽIŽEK, 1997, p. 11) de
Schreber. Nele, a normatização é levada às últimas consequências; como o pai real não tem
como sustentar nesse patamar o pai simbólico, este acaba aparecendo como uma impostura,
uma fraude. “Nada pior que o pai que profere a lei sobre tudo: nada de pai educador
sobretudo” (LACAN, 1974-1975/s.d., 21 de janeiro de 1975). Em contraposição, John Joyce é
o pai insuficiente de Joyce: “Seu pai não foi jamais um pai para ele” (LACAN, 1975-
1976/2005, p. 88). Embora o questionamento da efetividade do pai atravesse todo o ensino de
Lacan, é só nesse momento que ele recebe uma fundamentação mais precisa.
13

Relativização do Nome-do-Pai via père-version


A insistência mesma das ocorrências de jogos de palavras em torno de père-version na
época do Seminário XXIII de Lacan, em que prolifera a sobredeterminação da linguagem por
efeitos de sentido (técnica que encontra um mestre justamente em Joyce, protagonista desse
seminário), sugere uma diversidade de acepções, abrindo caminho para várias possibilidades
de interpretação.
O que está em jogo aqui, certamente, não é a perversão como uma categoria
nosológica determinada, mas a identificação de mecanismos constitutivos que têm homologia
com a perversão e que perpassam as diversas categorias da clínica. No episódio de juventude
em que apanha, descrito em O retrato do artista quando jovem, Joyce (1916/2004, p. 71) não
extrai disso um gozo masoquista, o que indica, supõe Lacan (1975-1976/2005), não se tratar
de um perverso: “Isso leva, aliás, a pensar que, se Joyce se interessou tanto pela perversão,
talvez fosse devido a outra coisa. Talvez, depois de tudo, da surra, isso o repugnasse. Não era
talvez um verdadeiro perverso” (p. 151). Também o neurótico, embora aspire ao gozo do
perverso, não tem coragem de ir às últimas consequências em seu encalço. Seu gozo contém-
se dentro de certos limites, ele satisfaz-se com uma espécie de gozo perverso virtual: “O
neurótico é alguém que não chega àquilo que é para ele a miragem onde ele encontrará
satisfação, a saber, uma perversão. Uma neurose é uma perversão falhada” (LACAN, 1974-
1975/s.d., 18 de fevereiro de 1975). Constatar uma certa polivalência da perversão, assim,
implica que há algo de perverso em cada um, mas não que todos sejamos perversos
propriamente ditos. É verdade que considerar apenas a dimensão constitutiva da père-version
pode não ser suficiente para dar conta, na clínica borromeana, das incidências específicas da
estrutura perversa: se não há nós distintivos da perversão, será que esta se manifestaria como
mera radicalização dos elementos perversos presentes em nós que em princípio seriam
característicos da neurose ou da psicose?
O conceito de père-version serve, na verdade, para relativizar quatro diferentes
aspectos do pai – abstração, universalidade, normatividade e efetividade. Quando se considera
o pai real que lhe serve de suporte, fica evidente que, ao contrário do que pode parecer, o pai
simbólico tem algumas limitações. Não por acaso, o seminário interrompido sobre os Nomes-
do-Pai (LACAN, 1963/2005) segue-se ao Seminário X (LACAN, 1962-1963/2004), sobre a
angústia, que abre caminho para a valorização do real no ensino de Lacan. O movimento de
“relativização do Nome-do-Pai”, detectado por Miller (1991/2010, p. 79) já por ocasião da
14

pluralização dos Nomes-do-Pai, torna-se passível de ser completado justamente quando, no


âmbito do nó borromeano, o simbólico claramente perde a preeminância em relação aos
outros registros. E o limite ao simbólico é dado justamente pelo real. Na representação
borromeana dos registros, aliás, o anel correspondente ao real passa duas vezes sobre o anel
correspondente ao simbólico.
Pode-se considerar, de outro ângulo, que abstração, universalidade, normatividade e
efetividade não são atributos em si mesmos do pai simbólico, ou do simbólico em geral.
Assim, a topologia ajudaria a corrigir impressões enganosas, associadas ao período mais
conhecido do ensino de Lacan. No contexto de seu último ensino, a père-version funcionaria
como antídoto contra uma certa nostalgia do simbólico, herança de uma época em que este,
tanto na psicanálise como no tecido social em geral, gozava de maior prestígio.
Quiçá tudo isso se manifeste de modo ainda mais acentuado numa proposta de Lacan
em A topologia e o tempo. Nessa altura, a idade e os problemas de saúde cobram seu preço,
que transparece no tom claudicante e nos erros frequentes em sua fala. Ainda assim, Lacan
(1978-1979/s.d.) logra chegar, com a colaboração de matemáticos próximos, ao que denomina
“nó borromeano generalizado” (13 e 20 de março de 1979), que representa o corolário de suas
investigações topológicas. O ponto de partida é um nó borromeano de quatro anéis, que
corresponde aos três registros mais o sinthoma (père-version) garantidor do enodamento.
Estabelecendo-se uma continuidade entre dois desses anéis, chega-se a um nó borromeano de
três. Este, que é o nó borromeano generalizado, tem três pontos de homotopia: invertendo-se,
nesses pontos, a linha de cima e a linha de baixo (que fazem parte de um mesmo anel), o nó
desfaz-se. O que se indica é não só uma reversão (via continuidade) da passagem do nó de
três ao nó de quatro, que fora proposta no Seminário XXII (ao longo do qual Lacan constatara
a necessidade do quarto anel), mas também o desfazimento potencial (via homotopias) do
próprio nó.
Qualquer leitura do nó borromeano generalizado do ponto de vista da psicanálise seria
uma extrapolação, pois Lacan não especifica quais são de fato os anéis postos em
continuidade, nem, mais genericamente, qual o sentido desse nó para a clínica, chegando a
declarar na época, provocado pelo auditório, que “o que me inquieta no nó borromeano é uma
questão matemática, e é matematicamente que pretendo tratá-la” (LACAN, 1978-1979/s.d.,
20 de fevereiro de 1979). Se tomarmos, todavia, um outro contexto em que Lacan
(1965/1966) aborda a questão da generalização, ele indica nessa operação a permanência de
15

algo anterior a ela:


Sabe-se que a teoria física ou matemática, após cada crise que se resolve na forma pela qual a expressão
“teoria generalizada” não pode de nenhum modo ser tomada como querendo dizer “passagem ao geral”,
conserva frequentemente em sua classe o que ela generaliza em sua estrutura precedente (p. 869).
Ora, se a generalização do nó proposta em A topologia e o tempo coroa anos de uma reflexão
que articula o estatuto do pai com o nó borromeano, é legítimo inferir que ainda se trate disso.
E, mais concretamente, com relação aos anéis em continuidade na passagem do nó de quatro
para o de três, inferências mais específicas também são possíveis. Certamente um desses anéis
é o do sinthoma, que é reabsorvido nessa passagem, visto que, no novo anel de três, esses
naturalmente correspondem aos registros. E o outro, que ao reabsorver o anterior acaba
destacando-se dos demais? O mais razoável é supor que se trata do real, levando em conta a
importância do real no último ensino de Lacan, o fato de que o nó como um todo se situa no
real (em que pese ter uma dimensão imaginária) e, mais diretamente, a circunstância de que o
real está por trás da relativização do Nome-do-Pai. Ora, tomando-se os anéis do real e do
sinthoma como aqueles que são postos em continuidade e considerando que isso abre
caminho para a possível dissolução do nó, evidencia-se que o real não apenas suporta a père-
version, mas concorre para sua precariedade. O nó borromeano generalizado funcionaria
assim como o limite da père-version, se esta fosse levada às últimas consequências.
Observe-se que relativizar o Nome-do-Pai via père-version significa explorar suas
limitações e desfazer equívocos em torno dele, mas não anular simplesmente sua potência
simbólica. Esta resiste, por exemplo, na homofonia alternativa entre père-sévère e persévère,
à qual Lacan (1980/2001, p. 318) recorre para situar a si próprio no final de sua trajetória.
Nesse sentido, a relativização do Nome-do-Pai, e por extensão do simbólico, concorre para o
equilíbrio entre os três registros.

Père-version no laço social contemporâneo


O movimento de relativização do simbólico, interno ao ensino de Lacan, coincide com
um contexto social em que se patenteia o declínio da importância do simbólico. Nesse ponto,
é possível um paralelo com o desenvolvimento da psicanálise por Freud numa conjuntura
histórica de enfraquecimento da figura paterna, como mostra Lacan (1938/2001, p. 61). A
père-version corresponde a uma quadra ainda mais pronunciada de declínio, e ela própria
retoma a generalização freudiana da Verleugnung no “Esboço de psicanálise”. Não se trata de
mostrar que nas condições vigentes em nossa época há mais perversos, mas que nelas aparece
de forma mais evidente o aspecto constitutivo da perversão. Se a “economia libidinal”
16

(LYOTARD, 1974), ou regime de gozo, muda ao longo da história, a père-version, que leva
em conta o gozo, dá conta disso.
Em termos de laços sociais, é o discurso do capitalismo, proposto por Lacan
(1972/1978) em Milão, que parece levar a père-version às últimas consequências.
Nele a abstração é comprometida, pois, com o rearranjo das setas, desaparecem as
disjunções de impossibilidade, na linha superior, e de impotência, na linha inferior, que estão
presentes nos demais discursos, e isso indica que não há limitações ao gozo. Além disso, o
gozo parece determinar o sujeito (seta a → $, que remete, aliás, à fórmula da perversão). Esse
discurso, portanto, expressa melhor que qualquer outro “a ascensão ao zênite social do objeto
chamado por mim de pequeno a” (LACAN, 1970/2001, p. 414) ou, posto de outro modo, o
“imperativo do gozo” (LACAN, 1972-1973/1975, p. 10). O próprio pai aparece como
imbuído de gozo. “O mais-de-gozar provém da père-version, da versão a-pèr-itiva do gozar”
(LACAN, 1974-1975/n.d., 8 de abril de 1975).
No discurso do capitalismo, variante do discurso do senhor, que é o discurso do
inconsciente, é como se este passasse a seguir outra lógica, na qual a universalidade é
comprometida: a lei é customizada (o sujeito parece comandar o significante-mestre, indica a
seta $ → S1) e cada sujeito tem de haver-se por conta própria com o gozo (a → $).
Também a normatividade encontra-se comprometida nesse discurso. O que se retrata
nele não é tanto a situação do neurótico, que deseja por conta da lei (isto é, deseja o que é
proibido, porque é proibido pela lei) e não é capaz de entregar-se ao gozo, mas justamente o
oposto. A seta a → $, a completando $, indica que este, como o perverso, nega a falta, não é
movido por ela. Ademais, $ na posição dominante, e parecendo comandar S1, remete ao
perverso que, de sua posição, conjura a função paterna e a lei, tenta fazer com que elas se
realizem; como o sujeito neoliberal do discurso do capitalismo, o perverso parece estar
sempre em controle.
No discurso do capitalismo, enfim, a efetividade é comprometida, visto que o colapso
das disjunções problematiza o modelo de operação do simbólico.
De qualquer forma, cabe não perder de vista que a ideia de père-version, formulada no
último Lacan e evidenciada no laço social contemporâneo, apresenta-se também, sob outros
aspectos, conforme foi mostrado anteriormente, em traços disseminados na cultura judaico-
cristã ocidental, como se operasse aqui o que Freud denomina Nachträglichkeit e Lacan,
après-coup, ou seja, um efeito de retroação.
17

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*
Monografia final do curso “Os casos clínicos de Freud e o ensino de Lacan” (2011-2013), na Clínica Lacaniana
de Atendimento e Pesquisas em Psicanálise (CLIPP), sob orientação de Sandra Arruda Grostein.

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