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Autonomia e Mobilização:
Por uma estratégia alternativa para os movimentos sociais
Rio de Janeiro
2014
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Escola de Ciência Política
Curso de Ciência Política
Autonomia e Mobilização:
Por uma estratégia alternativa para os movimentos sociais
Rio de Janeiro
2014
ii
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Escola de Ciência Política
Curso de Ciência Política
Banca Examinadora:
Rio de Janeiro
2014
iii
Agradecimentos
Agradeço ao professor José Paulo Martins Júnior por todo apoio e experiência
fornecidos durante dois anos de pesquisa, sem os quais não conseguiria desenvolver os
pensamentos e métodos aqui expostos. Agradeço também ao professor Luiz Otávio
Barreto pela ajuda fornecida com diversas obras aqui utilizadas.
Agradeço à minha mãe Denise (que tanto escutou minhas apresentações), a meu pai
Rômulo, a meu irmão Vinícius e a meu amigo e jornalista Alex Campos, pelo apoio
fornecido nesses quatro anos de faculdade, sem o qual certamente não conseguiria cursá-
la.
Por fim devo agradecer à minha amiga e companheira Joyle Moreira por ter lido e
relido esta monografia diversas vezes, me auxiliando no que foi preciso.
Obrigado.
iv
Dedicado a todas e todos que lutam cotidianamente por um mundo melhor.
v
Resumo
Abstract:
The comprehension of the ways for autonomy social mobilization becomes essential
for the grass-roots social movements on their seek to exchange, with their own means,
the social reality of their members and in general life. This form of mobilization is
especially important for those social movements that get along with repressive and closed
governments, or with progressive governments who aim co-opt them. To reach that, the
question that has to be faced here is: How the Social Movements can exchange the social
reality independently of the State and the political parties. On this way, we’re going to
observe some methods for analyze theses struggles, like, for example, through the
concepts provided by the anarchist theory, the dynamics and the analysis instruments
supplied by the theories of the Social Movements, and by the structuralist comprehension
of Pierre Bourdieu. The final objective is to check how theses theories can aid the
understanding of the reality for the Social Movements.
vi
SUMÁRIO
2. Anarquia Pág. 13
2.1 Contexto Histórico Pág, 13
2.2 Autogestão Pág. 17
2.3 Autonomia Pág. 19
2.4 Revolução Social Pág. 23
2.5 Sociabilidade Libertária Pág. 25
6. Conclusões Pág. 62
Referências Pág. 66
vii
1. “Um Outro mundo é possível”.
“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais
alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de
caminhar.”
(Eduardo Galeano – A Utopia)
1.1 Introdução
O século XXI assistiu a outros tipos de revoltas e insurreições, assim com o surgimento
de temas novos e o ressurgimento de questões não resolvidas. O ciclo de protestos contra
a globalização neoliberal surgiu no fim dos anos 90, sob a nomenclatura de
Altermundialismo, atuando por redes globais e afirmando que “um outro mundo era
possível”, deixou a marca de grandes mobilizações como em Seattle, 1999 e Gênova, 2001
(GOHN, 2002). A luta contra o neoliberalismo ainda deu origem ao Exército Zapatista de
Libertação Nacional, que desde 1994 luta pela emancipação de comunidades indígenas
mexicanas, e pode ser visto como um exemplo bem-sucedido de mobilização autônoma.
8
autogestão de meios de comunicação e organização de defesa nas ruas, contra a polícia e
paramilitares1.
Por fim, as jornadas de Junho e as mobilizações atuais trazem o Brasil para o foco das
movimentações de rua. Devemos lembrar, no entanto, que além das mobilizações
ocorridas neste último ano (marcadamente sob o uso do repertório de movimentação
chamado “Black Bloc”, do ciclo de protestos anterior), a centralidade das mobilizações
ainda se encontram na luta de Movimentos Sociais de Base, que ganham cada vez mais
expressão.
Para entendê-la devemos incluí-la em seu contexto ideológico, o Anarquismo, que nos
traz ainda outros conceitos centrais ao tema, como: Autonomia, Autogestão, Democracia
Direta, Poder Popular, Política pré-figurativa, Revolução Social etc. Dessa forma, cada vez
mais vivemos sob uma realidade marcada pela desigualdade social e autoritarismo estatal,
e o que estes movimentos representam é, precisamente o repúdio e a revolta à forma
disciplinada e controlada em que vivemos nos dias de hoje.
1
Para informações mais completas sobre o levante popular em Oaxaca assistir o documentário: “Un poquito
de tanta verdad”, dirigido por: Jill Irene Freidberg. Eua-México, 2007.
9
Portanto, há dois movimentos simultâneos que devem ser compreendidos como
alternativas para a forma como vivemos na Alta Modernidade. Primeiro, a luta contra o
capitalismo e contra o autoritarismo estatal, num processo de contestação das
autoridades, sejam elas econômicas ou políticas; e segundo, a construção de outras formas
de sociabilidades possíveis, principalmente através da autogestão dos recursos disponíveis,
como alternativa à que vivemos. Dessa forma, é sobre essa construção e mudança da
realidade social que trataremos aqui, sob o ponto de vista dos Movimentos Sociais.
1.2 Metodologia
Ao pretendermos um estudo sociológico visando conhecimento para os socialmente
oprimidos, devemos ter o cuidado de não perpetuar as formas de dominação e controle
simbólicos, e assim, as hierarquias impostas na sociedade em que vivemos. Dessa forma, o
“radicalismo epistêmico” de Bourdieu (1994, p. 92), se faz central pra ressaltarmos a
natureza do pensamento sociológico e o fim que lhe é característico, a imposição estatal
de formas particulares de visão e divisão.
“As verdadeiras revoluções simbólicas são, sem dúvida, aquelas que, mais do que
o conformismo moral, ofendem o conformismo lógico, desencadeando a repressão
impiedosa que suscita tal atentado contra a integridade mental” (Ibidem, p. 93).
E ainda:
Dessa forma, devemos ter o cuidado de, ao utilizarmos os instrumentos providos pela
sociologia e pela ciência política, não pensarmos pelo Estado e pelas categorias de
pensamento que Este nos inculca, mas antes, pôr em constante dúvida (o que o autor
chama de “dúvida radical”, Ibidem, p. 95) a finalidade do que estamos produzindo.
Portanto, o estudo aqui proposto não visa tratar os Movimentos Sociais como objeto e
analisá-los em suas minúcias, mas sim, produzir um conhecimento que seja utilizável para
estes, em sua luta como sujeitos políticos.
10
Outro ponto importante: para que seja possível essa utilização para além da academia
é necessário que as produções providas por esta não se fechem, através de sua linguagem
específica, ao público interno da sociologia ou da ciência política. É necessário fugir de
uma espécie de linguagem-barreira que diversos textos acadêmicos produzem ao tentar
tornar demasiadamente complexas explicações sobre questões simples. Dessa forma,
precisamos romper com essa especialização exacerbada e tornar tais questões acessíveis,
em sua explicação, às pessoas que sofrem mais diretamente as consequências dos
problemas mencionados. Nas palavras de Chomsky:
“Uma das coisas que os intelectuais mais fazem é justamente tornar essas
questões inacessíveis, por várias razões, inclusive por razões de dominação e de
interesse pessoal. É muito natural para os intelectuais fazerem as coisas simples
parecerem difíceis. [...] muitos jovens militantes sentem-se simplesmente intimidados
pelo jargão incompreensível que vêm dos movimentos intelectuais da esquerda,
impossível de entender e que faz com que as pessoas sintam que não podem fazer
nada porque, a não ser que de algum modo entendam a última versão pós-moderna
disso e daquilo, não podem sair às ruas e organizar as pessoas, pois não são
suficientemente inteligentes”. (CHOMSKY, 2001, p. 102 e 103).
Para atingir as metas até aqui traçadas tratarei no próximo capítulo, “Anarquia”, dos
principais conceitos que nortearão à mobilização autônoma e a sociabilidade libertária
que citei aqui. Na terceira parte do trabalho, chamada “Confronto e Movimento”,
apresentarei de forma sucinta a evolução das teorias dos movimentos sociais, atentando
para a importância das teorias: do Confronto Político, desenvolvida por Sidney Tarrow,
Doug McAdam e Charles Tilly, e das Sociedades em Movimento, de Raúl Zibechi, para dar
conta da explicação sobre movimentos sociais autônomas, em sua construção de “outros
mundos” (ZIBECHI, 2007, p.23).
2
A ideia de poder-saber está diretamente vinculada ao pensamento foucaultiano, em sua preocupação com a
produção da Verdade, permitida pelos mecanismos de poder e que, em contrapartida, produzem “efeitos de
poder que nos unem, nos atam”. (FOUCAULT, 2003, p.229).
11
estrutura do sistema político. Neste mesmo capítulo, tentarei mostrar as possibilidades de
pensar as questões colocadas no debate estruturalista sob a ótica dos agentes, visando a
mudança social.
1.3 Justificativa
A necessidade de se estudar contextos ligados aos Movimentos Sociais se faz
importante dentro da Ciência Política pela precária abertura que esta possui em relação a
termos da Sociologia Política. Podemos dizer que a Ciência Política é uma ciência
estadocêntrica, apesar da Política não estar somente relacionada ao Estado. Nos fechando
para outros debates, perdemos de vista formas de atuação e resistência política ao
priorizamos as formas de poder (e saber) monopolizadas pelo Estado.
Por sua vez, o estudo do Anarquismo se faz importante num contexto acadêmico
extremamente debilitado para explicar mobilizações sociais que não visam à tomada do
poder Estatal. Basta lidarmos com algumas experiências de mobilização que não são
explicáveis por teorias estadocêntricas para ficarmos completamente perdidos em sua
explicação (caso dos Black Blocs).
Por fim, a escolha do objeto e das teorias selecionadas se deu por contato pessoal em
diversas vivências que pude realizar durante o tempo de graduação. O tema dos
Movimentos Sociais em vivências relacionadas ao Estágio Interdisciplinar em áreas
destinadas à Reforma Agrária (EIV), o Anarquismo em vivências de participação pessoal –
principalmente no Ocupa Câmara e com a “Cambada de Teatro em Ação Direta Levanta
Favela” em Porto Alegre – ou seja, em atividades ligadas diretamente à ideia de
Propaganda pela Ação, que será citada mais a frente, e, por fim, a escolha pela teoria
sociologia de Bourdieu pela vivência obtida na Universidade.
12
2. Anarquia
“Nem a hereditariedade, nem a eleição, nem o sufrágio universal, nem a excelência
do soberano, nem a consagração da religião e do tempo fazem a realeza legítima. Sob
qualquer forma que se apresente monárquica, oligárquica, democrática, a realeza ou o
governo do homem pelo homem, é ilegal e absurdo”.
O termo anarquismo possui sua origem na palavra grega “an archos”, traduzida
literalmente por “sem governo”, e foi utilizada pela primeira vez com conotação pejorativa,
sendo sinônimo de bagunça ou de desordem. Assim foram apontados os Levelers durante
a Guerra Civil Inglesa, e os que se situavam à esquerda no espectro político durante a
Revolução Francesa (WOODCOCK, 1967).
“Que forma de governo vamos preferir? - Eh! Podeis perguntá-lo, responde, sem
dúvida, algum dos meus leitores mais novos; sois republicano. - Republicano sim; mas
essa palavra nada precisa. Res publica, é a coisa pública; ora quem quer que queira a
coisa pública, sob qualquer forma de governo que seja, pode dizer-se republicano, Os
reis também são republicanos. Pois bem! sois democrata? - Não. - Quê! sereis
monárquico? - Não. - Constitucionalista? - Deus me livre. - Sois então aristocrata? -
Absolutamente nada.
Quereis um governo misto? - Ainda menos. - Então que sois? - Sou anarquista. Estou
a ouvir-vos: estais a brincar; dizeis isso dirigido ao governo. -De maneira nenhuma:
acabais de ouvir a minha profissão de fé séria e maduramente reflectida”. (Pierre-
Joseph Proudhon, 1975, p. 234).
Assim, através de tal obra e tal afirmação, Proudhon deu vida e corpo à concepção
moderna do que conhecemos hoje como Anarquismo, não como algum tipo de desordem
generalizada, mas como uma forma de ordem social livre, onde as relações interpessoais
estivessem baseadas no princípio da liberdade. Porém, apesar da explicitação de um
sistema calcado em proposições racionais e bem delineado, o termo anarquismo
continuou a conviver, até os dias de hoje, com sua utilização pejorativa, criando grandes
confusões no que as pessoas acreditam e afirmam ser tal ideologia.
13
Proudhon teve suas ideias influenciadas tanto pelo racionalismo iluminista, quanto
pela atmosfera de revoltas e tentativas socialistas de revolução do século XIX,
apresentando uma perspectiva bastante diferenciada em relação às propostas
revolucionárias de seus contemporâneos. Podemos retroceder ainda mais e encontrar
raízes do pensamento libertário em William Godwin e em Gerrard Winstanley, figura
influente no movimento dos Diggers na Inglaterra do século XVII3 (WOODCOCK, 1967).
E ainda:
Assim, através da posse dos instrumentos de trabalho seria gerada uma igualdade de
condições, já que eliminados o lucro e a renda obtidos pelo proprietário, os trabalhadores
terão seu esforço convertido diretamente em valor de troca, e, portanto, em igual
proporção. A partir da equivalência dos produtos, o benefício desproporcional, a miséria, o
luxo, a opressão e a fome serão impossíveis e desaparecerão.
3
Podemos ainda situar outros autores como precursores do pensamento libertários, entre eles os teóricos do
Cinismo, do Estoicismo e do Taoísmo, assim como outros autores como Etienne La Boétie. Ver
WOODCOCK, 1967, p. 4.
14
Assim, através de uma demonstração serial (ver Ibidem, p. 195), Proudhon nos afirma
que, apesar das diversas variações de tipos de governo, não há uma perspectiva evolutiva
clara neste processo, sendo tais formas de governo variações do mesmo princípio, o da
Autoridade. Assim, a dualidade de tal perspectiva não encontra uma unidade na síntese,
mas antes, encontra-se em relações de negação, e a liberdade só pode encontrar sua plena
realização sob a Anarquia, ou seja, sob a federação de produtores e consumidores.
Pois:
15
O desafio que Bakunin trouxe aos marxistas e que foi muito bem formulado em sua
obra “Estatismo e Anarquia”, de 1873, foi basicamente em relação à possibilidade da
criação de um Estado popular, ou de uma ditadura do proletariado:
“Sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se
ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares se
faz por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-
á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem
governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e pôr-se-ão a
observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas a
si mesmos e suas pretensões de governá-lo” (BAKUNIN, 2003, p. 213).
O próximo salto qualitativo dado pela corrente anarquista foi realizado pela
constituição do Anarquismo-Comunismo, que encontrou em Piotr Kropotkin um grande
expoente. As contribuições que diferenciaram o Anarquismo-Comunismo do Coletivismo
foram: em primeiro lugar, a mudança do foco da Autogestão das fábricas e locais de
trabalho para a Autogestão pela e para a Comunidade local; e em segundo lugar, a
substituição do lema “de cada um pelo seu trabalho” para “de cada um de acordo com
suas necessidades” (KROPOTKIN, 1953, p. 14 e 15).
16
a qual passa a esbanjar e a ostentar riquezas, as quais grande parte dos trabalhadores que
estão diretamente ligados à produção coletiva não possui.
E, portanto:
Em seu grande apogeu, nas últimas décadas do século XIX, o Anarquismo ainda foi
responsável pelo aparecimento de novas fortes vertentes como o Anarco-Sindicalismo e o
Anarco-Individualismo. A primeira se trata, basicamente, de tomar os sindicatos operários
como sujeitos responsáveis pelo surgimento da futura sociedade livre, e a ação direta, por
meio da greve, como forma de sabotar e parar o Estado. Com o Estado paralisado, os
sindicatos se transformariam, de sujeitos revolucionários, para unidades básicas da nova
sociedade (WOODCOCK, 1967). Entre seus principais expoentes esteve Rudolf Rocker.
O Anarco-Individualismo, por sua vez, teve como um de seus maiores autores Max
Stirner, em sua maior obra “O único e sua propriedade”, afirmou a perspectiva da absoluta
independência do Ego em relação à sociedade e aos outros Egos. A grande contribuição
dessa corrente foi demonstrar que não só o Estado é fonte de injustiças, mas também,
todo tipo de “dominação”, como o heterocentrismo, o patriarcado, o racismo, o especismo
etc. (GORDON, 2005, p. 72).
17
de Moura, no Brasil4, enfatizando, basicamente, a luta da mulher contra o regime de
dominação do patriarcado e toda forma de machismo na sociedade. O
anarcoindividualismo ainda foi influente sob o princípio do insurreicionismo ligado a ações
individuais, particularmente, o magnicídio.
Durante o fim do século XIX, alguns grupos anarquistas, como os ligados ao ilegalismo,
promoveram diversos ataques a monarcas e burgueses como forma de propaganda pela
ação, o que levou o Anarquismo a ser tomado como sinônimo de nihilismo5 e de
terrorismo, contribuindo para a conotação negativa do termo. Com a virada do século XX,
o Anarquismo continuou sendo a corrente mais influente na esquerda em países como
Espanha, Itália, França, na América Latina e nos países eslavos, se apresentando como
motor ideológico de diversos movimentos no início deste século, como a Revolução
Mexicana de 1910, como maior exemplo da época.
Tal situação foi completamente alterada com a revolução russa em 1917. Com a
subida ao poder dos Bolsheviks, o Anarquismo sofreu dois golpes substanciais: primeiro, a
grande perseguição ocorrida dentro da Rússia, em suma, nos sovietes, sindicatos, na
revolta em Kronstadt, e na aniquilação da confederação Nabat e do exército negro de
Makhno, na Zona Livre da Ucrânia (situação descrita em ROCKER, 2007). O segundo golpe
ocorreu com a vitória ideológica do Marxismo, e principalmente do Marxismo-Leninismo,
na esquerda, que conquistou a hegemonia nesse espectro ideológico até os dias de hoje.
Dessa forma, o Anarquismo deixou de ser uma das principais correntes políticas, como
fora na metade do século XIX e início do século XX, e voltou a ser sinônimo de desordem,
acumulando também acusações de terrorismo e inviabilidade, o que fez com que tal
corrente caísse no esquecimento durante boa parte do século XX.
4
Para mais informações sobre Maria Lacerda de Moura, ver: “Maria Lacerda de Moura – Trajetória de uma
rebelde”. Direção: Ana Lúcia Ferraz e Míriam Moreira Leite. Realização: LISA-USP (2003).
5
Ver: WOODCOCK, 1962, p. 15.
6
Para maiores informações sobre o anarquismo na Revolução espanhola, ver: Livros, “Lutando na Espanha”
George Orwell - 1938, “A guerra civil espanhola” Francisco Salvadó – 2008. Filmes e documentários: “Terra
e Liberdade” 1995, “A mulher do Anarquista” 2008 e “Libertárias” 1996.
18
2.2 Autogestão
A ideia de Autogestão dos meios de produção não é uma exclusividade da linha de
pensamento anarquista, como nos mostra a abordagem liberal do tema, apresentada por
Robert A. Dahl em “Prefácio à Democracia Econômica” (2003). O autor apresenta um
modelo de autogestão de empresas como alternativa ao capitalismo de sociedades
anônimas, que tanto provoca distorções na Igualdade Política e afeta a participação e a
qualidade da Democracia Representativa (DAHL, 2003).
Podemos comparar tal concepção com a forma que o coletivismo de Bakunin aborda a
ideia de Autogestão para verificarmos suas qualidades e defeitos sob a óptica anarquista. A
maior diferença entre tais linhas de raciocínio está em suas concepções de Democracia.
Bakunin fornece seu modelo autogestionário pensando na participação direta dos
trabalhadores, não só em seu local de trabalho, como nos assuntos sociais mais amplos.
Tal modelo propõe processos decisórios construídos de baixo para cima, e da periferia para
o centro, através do Federalismo, portanto, sem a existência de um Estado.
A grande questão é que Robert Dahl, como expoente do liberalismo, acredita haver
uma boa dose de igualdade política no sistema representativo por si só, e que igualando os
cidadãos em relação à liberdade econômica, traria maior funcionamento ao objetivo deste
sistema (aumentando a possibilidade de participação e contestação). O anarquismo, por
sua vez, lhe responderia que não pode haver igualdade política numa realidade social que
possui um ente regulador e opressor, por princípio, e detentor de uma complexidade
imensa, a qual mal podemos perceber, visto a sua naturalização (BOURDIEU, 2008), quanto
mais controlar.
19
Assim, não somente a propriedade privada e as sociedades anônimas são fontes de
desigualdades, mas também a presença de estruturas impessoais e especializadas que
cotidianamente entram em contato com a nossa vida, e, no geral, mal possuímos
conhecimento aprofundado sobre elas, sendo o Estado, a maior destas estruturas
(também podemos incluir aqui os chamados “sistemas abstratos” (GIDDENS, 2002, p. 24),
sobre os quais trataremos mais à frente). Mesmo que Este seja limitado pela
representatividade e pela accountabily (GUTMANN, 1995, p.23), o fato de haver o
funcionamento paralelo entre uma estrutura altamente hierarquizada e unidades
autogestionadas e horizontais representa uma dificuldade ao modelo proposto por Dahl.
20
2.3 Autonomia
A Autonomia se apresenta como conceito correlato à Autogestão no campo da política
e se mostra vital para a existência de realidades autogestionárias independentes, assim
como para as formas libertárias de associação e convívio na sociedade. O conceito possui
grande importância, não só no pensamento Anarquista, mas também para o pensamento
liberal. Devemos, porém, assim como fizemos com a Autogestão, traçar as diferenças
nestas perspectivas para verificarmos qual concepção de Autonomia que queremos utilizar
e qual é mais útil para descrever e prescrever o tipo de realidade social que desejamos.
Dentro do pensamento liberal, Immanuel Kant foi quem nos forneceu os pilares do
que a teoria política trata como Autonomia. Basicamente, a teoria do autor defende uma
valorização objetiva dos indivíduos. Por possuírem valor intrínseco, estes não podem ser
tratados como simples meios, mas antes, devem ser vistos como fim em si mesmos (KANT,
2006a). O que faz os indivíduos levarem em conta tal premissa é a Razão, que os leva
também a orientar suas ações segundo o Imperativo Categórico: “devo agir sempre de
maneira que eu possa querer também que a minha máxima torne-se uma lei universal”
(Ibidem, p. 94).
É dessa forma que Kant assegura a autonomia dos indivíduos, limitando os fins
subjetivos de todos através das leis racionais. Todo ser racional deve ser respeitado como
autônomo. A autonomia é vista aqui, basicamente, como autogoverno, ou seja, a
obrigação de se sujeitar somente às leis que “pode-se considerar como autora” (Ibidem, p.
98). A grande questão é que Kant não leva esse princípio à sua radicalização, pois, mesmo
que as leis sejam injustas, o cidadão autônomo não pode rebelar-se, mas antes, deve
permanecer como súdito fiel ao pacto que consagrou:
John Stuart-Mill é outro autor de referência para o pensamento liberal (ainda que não
esteja completamente vinculado a esta corrente), que faz grande menção à importância da
autonomia. A liberdade de defender seus próprios fins e interesses pelas próprias pessoas
é o que lhes garante que seus interesses serão respeitados a longo prazo e o que
desenvolve suas faculdades morais. A intervenção tirânica é negativa para o indivíduo até
mesmo quando déspota é um bom déspota, ou quando o faz pensando no indivíduo.
“Uma condição inerente aos assuntos humanos é a de que nenhuma intenção, por
mais sincera que seja, de proteger os interesses dos outros pode tornar seguro ou
salutar amarrar-lhes as mãos. [...] apenas por suas próprias mãos as pessoas podem
promover melhoras [...] em suas condições de vida” (MILL, 1981, p.33).
21
Amy Gutmann, em sua defesa pela Democracia Deliberativa nos apresenta uma
diferença importante entre o Liberalismo Negativo e o Liberalismo Positivo. O primeiro se
trata, basicamente, do liberalismo da forma que conhecemos, defendendo os direitos dos
cidadãos de não sofrer interferências do Estado em assuntos de sua vida privada. Já o
segundo, inclui o elemento da participação e da Autonomia:
“Assim, nenhum Estado, por mais democráticas que sejam as suas formas, mesmo a
república política mais vermelha, popular apenas no sentido desta mentira conhecida
sob o nome de representação do povo, está em condições de dar a este o que ele
precisa, isto é, a livre organização de seus próprios interesses, de baixo para cima, sem
nenhuma ingerência, tutela ou coerção de cima, porque todo Estado, mesmo o mais
republicano e mais democrático, mesmo pseudopopular como o Estado imaginado
pelo Sr. Marx, não é outra coisa, em sua essência, senão o governo das massas de cima
para baixo, com uma minoria intelectual, e por isto mesmo privilegiada, dizendo
compreender melhor os verdadeiros interesses do povo, mais do que o próprio povo”
(BAKUNIN, 2003, p. 47).
7
Para saber melhor sobre a diferença entre Liberdade Positiva e Liberdade Negativa, ver: BERLIN, 1969.
22
encontra na Participação Direta e Autônoma sua forma de realização. Sua grande diferença
com o Liberalismo está na forma de defender essas liberdades e no nível de sua
radicalização.
A Autonomia ainda é importante nas relações dos Movimentos Sociais com outros
grupos de esquerda que, mesmo com boas intenções acabam querendo lutar pelo
Movimento Social, imobilizando-o:
23
A busca pela Revolução Social também distingue Anarquistas linhas de pensamento
Insurreicionistas e Organizativas. Proudhon e Kropotkin acreditavam que o Anarquismo é
uma tendência inata da natureza humana e de suas formas organizativas, a organização
social, portanto, evoluiria até encontrar sua forma mais ideal e conforme à sua natureza, o
Anarquismo8. Bakunin e Malatesta, por outro lado, acreditavam que não bastava acreditar
no ideal anarquista, pois, este só viria através da ação e organização revolucionária das
classes trabalhadoras, considerando certa violência necessária durante a ruptura.
Portanto, a luta social e a construção do Poder Popular via organização autônoma são
objetivos que se situam para além do puro espontaneísmo e possuem uma busca por uma
revolução construída de baixo, e pelos de baixo (a questão foi muito bem trabalhada pelo
Anarquismo especifista nas últimas décadas, como podemos ver em FARJ, 2009). A
construção do Poder Popular representa uma estratégia maior do que a simples melhora
da condição social provocada por determinado processo autogestionário, ou determinada
8
Kropotkin cita em “A Conquista do Pão” a necessidade da Revolução Social, porém, o mesmo acredita,
como fica claro em “Ajuda Mútua” (2009) que esta viria de qualquer forma, como um salto em relação à
evolução. “A anarquia conduz ao comunismo, assim como o comunismo leva à anarquia, sendo ambos a
expressão da tendência das sociedades modernas para a procura da igualdade” (1953 p.14).
24
greve geral, e provoca uma solidariedade e uma organização entre todos os envolvidos
nestes processos de emancipação, não só política, mas em grande medida, social.
É possível que mesmo após a Revolução Social e com a criação de uma realidade
social constituída por unidades autogestionadas ainda sejamos reféns dos Sistemas de
Dominação. O Anarquismo não está livre destes sistemas - vide a misoginia de Proudhon e
o antigermanismo de Bakunin, por exemplo. Muito longe de representar preocupações do
que Bookchin chama de Anarquismo de estilo de vida (“Lifestyle Anarchism”; BOOKCHIN,
2009, p. 7), tal perspectiva mostra, antes, uma complementaridade entre as correntes do
anarquismo, umas mais ligadas ao indivíduo, outras à comunidade, como nos apresentou
Volin (1934) em sua Síntese.
25
Dessa forma, Uri Gordon vê a arquitetura do movimento anarquista de hoje como
uma:
E ainda:
Dessa forma, Uri Gordon afirma que podemos tomar o Anarquismo de hoje, não como
um movimento operário, como no século XIX, mas como Cultura Política, ou seja, um
9
Tradução de: “The architecture of today’s anarchist movement can be described as a decentralised network
of communication, coordination and mutual support among autonomous nodes of social struggle. Lacking any
one centre or permanent channels of interaction […] a structure based on principles of connection,
heterogeneity, multiplicity and non-linearity”.
10
“those network-based forms of political organization and practice based on non-hierarchical structures,
horizontal coordination among autonomous groups, open access, direct participation, consensus-based
decision making, and the ideal of the free and open circulation of information. . .While the command-oriented
logic of traditional parties and unions is based on recruiting new members, developing unitary strategies,
political representation through vertical structures and the pursuit of political hegemony, network-based
politics involves the creation of broad umbrella spaces, where diverse organizations, collectives and networks
converge around a few common hallmarks, while preserving their autonomy and identity-based specificity.
Rather than recruitment, the objective becomes horizontal expansion and enhanced “connectivity” through
articulating diverse movements within flexible, decentralized information structures that allow for maximal
coordination and communication”. * Os “hallmarks” que norteiam de foram valorativa essas redes.
26
conjunto de valores, orientações, processos inteligíveis, dado um padrão ideológico
(Ibidem, p. 41). Essa é a forma que, para o autor, o Anarquismo ressurgiu no fim do século
XX, como um padrão de comportamento libertário para os Movimentos Sociais.
A Política Pré-figurativa ainda dialoga com o que Hakim Bey chama de “alternativas
positivas” (BEY, 1991, p. 27). Ou seja, devemos atentar para a importância, não só da
reação negativa às estruturas de poder, mas também às alternativas positivas de formas
sociais para além destas estruturas, como fontes de energia alternativa em comunidades
(para citar algo similar ao que foi dito na página 10 desta monografia), por exemplo.
11
Para mais informações históricas, para além desta breve contextualização, sobre a história do anarquismo
ver: WOODCOCK, 1962. No Brasil, ver: Anarquismo no Brasil in: FARJ, 2009. Na Rússia revolucionária,
ver: ROCKER, 2007. Em Cuba, ver: Revolução Cubana – BELLÉ, Júnior, editora Faísca, 2009. Para mais
questões sobre o anarquismo ver CHOMSKY, 2011, e sobre seu funcionamento prático ver: SANTILLÁN,
1980.
27
3.Confronto e Movimento
“Nós, os operários, saberemos construir outros para tomar o lugar dos que forem
destruídos. E ainda melhores. Não temos medo de ruínas. Nós herdaremos a terra.
Quanto a isso não há a menor dúvida. Os burgueses podem fazer explodir e destruir o
seu mundo antes de abandonarem o palco da história. Nós trazemos um novo mundo
em nossos corações. E esse mundo está crescendo a cada minuto que passa”.
(Buenaventura Durruti)
28
p. 29). Possuindo influências de autores como Foucault, Giddens e Bourdieu, essa corrente
foi responsável por criar a novidade dos novos movimentos sociais, ao focar e dar
relevância a sujeitos e temáticas até então esquecidos e invisibilizados, como em relação
às mulheres, jovens, índios, negros etc. Sua grande contribuição foi mostrar a possibilidade
da construção de novos significados e formas de vida alternativa por parte dos
movimentos sociais.
Nos final dos anos 70 e início dos anos 80 abre-se uma nova fonte de estudos sobre
movimentos sociais com os movimentos populares urbanos nos países rotulados como do
terceiro mundo, trazendo à tona novos atores e novas perspectivas marginalizadas. Nos
anos 90 altera-se completamente o cenário das lutas sociais e, consequentemente, o
quadro paradigmático das teorias dos movimentos sociais. Novos atores como ONGs e
organizações do terceiro setor são incluídos numa realidade social marcada pela crise das
utopias clássicas.
Por sua vez, os novos paradigmas não substituem as teorias mais antigas, mas antes,
coexistem com estes, “ora impo-se a estas, ora convivendo conflituosamente ou
paralelamente” (SCHERER-WARREN, 1993, p. 14). Dessa forma, as teorias contemporâneas
se apresentam como ruptura à noção clássica de movimento social, como sujeito histórico
único num metadiscurso, para dar vida a noções diversas sobre os “novos movimentos
sociais” (GOHN, 2008).
Assim, houve uma mudança paradigmática com o fim do socialismo real no Leste
europeu e uma concomitante crise das esquerdas, deixando como saldo um abandono
significante de teorias macroestruturais, passando a pautar temas mais pontuais como a
exclusão social (juntamente com seus atores marginalizados, como moradores de rua,
sem-teto e setores do que Marx chamou de Lúmpen Proletariado – MARX, 2006),
proveniente do funcionamento do mercado de trabalho neoliberal, e dos efeitos da
globalização. Os movimentos sociais passam a serem vistos, não como movimentos
revolucionários, mas como grupos de pressão agindo através de protestos sociais e da
desobediência civil.
29
Novas temáticas surgem, como a territorialização, e a questão da emancipação deixa
de estar sob o crivo da teoria marxista (GOHN, 2008). Diversas propostas são pensadas
como alternativas à hegemonia neoliberal, e o saber cotidiano do oprimido se torna mais
valorizado em relação ao saber acadêmico. Este último passa a ter um valor mais
estratégico-instrumental, visando “informar as ações de intervenção junto a grupos
organizados” (GOHN, 2008, p. 43), como na forma aqui utilizada.
O cenário brasileiro – e na América Latina, como um todo - dos anos 90 e início dos
anos 2000 é preocupante para os movimentos sociais. Uma das explicações para a
fragilidade dos movimentos sociais neste período é a conquista do poder político por
setores progressistas de oposição, fato este que levou à ampliação das políticas sociais
para os excluídos, por um lado, e a uma sistemática cooptação das lideranças de
movimentos importantes, por outro. Dessa forma, grande parte destes atores perderam o
conceito-chave de sua mobilização: a autonomia.
30
conflito com o Anarquismo. Por não estar centrada na mudança social como a teoria de
Raúl Zibechi, e por tratar de aspectos internos à própria dinâmica dos movimentos sociais,
em contraste com o Estruturalismo de Pierre Bourdieu.
A metodologia do Confronto Político, porém, traz muitas outras questões além das
citadas, como por exemplo, a “institucionalização da ação coletiva” (BRINGEL, 2001, p. 66),
o que nos fornece instrumentos de análise sobre as diversas formas de relacionamento
entre os movimentos sociais e partidos políticos, em relação à sua autonomia. Tal
metodologia pode servir ainda para nos dar base no estudo das dinâmicas relacionais
próprias dos movimentos sociais.
Alguns elementos da ação coletiva dos movimentos sociais se mostram como chave
para entendermos seu funcionamento são eles: repertórios de ação; identidade coletiva;
“ciclos de protestos” (MCADAM et alii, 2009, p. 21); “enquadramento interpretativo”
(Ibidem, p. 23); outros “atores” (Ibidem, p. 26), como inimigos, rivais, interlocutores e
aliados; e forma de organização (TARROW, 2011). Outros fatores são essenciais para
estudarmos a influência de redes transnacionais no confronto político, como a difusão de
práticas e valores internacionalmente (DELLA PORTA e TARROW, 2005).
Outro ponto importante são os atores que se relacionam com o movimento social. É
necessário que esses movimentos não se submetam a líderes e vanguardas que, desejando
a condução do movimento social, queiram lutar por ele. Este é um ponto importante na
relação entre movimentos sociais autônomos e marxistas. Se por um lado, o movimento
marxista representa um forte aliado aos movimentos sociais autônomos, principalmente
31
em suas versões mais libertárias. Por outro, sua ambição por atingir a hegemonia dentro
destes movimentos, por buscar sua “centralização” e unidade (LÊNIN, 2007, p. 72), por seu
vanguardismo partidário contra o “espontaneismo” (LÊNIN, 1902, p. 15), podem torná-lo
um forte inimigo em relação à autonomia destes movimentos.
Essa organização deve buscar sua dinâmica e meios próprios, assim como a adesão
livre daqueles que desejam somar suas forças ao coletivo. Pontos importantes são aqui, o
da autodisciplina (FARJ, 2009), na qual cada um deve carregar consigo ao procurar não
colocar seu ego antes da realização comum, e o da horizontalidade, buscando não
representar um espelho dos aparelhos de dominação que se busca destruir.
Muitos dos problemas enfrentados pelos movimentos sociais poderiam ser sanados
por uma maior coordenação com outros movimentos sociais autônomos. Isto se faz
importante não somente em relação à proteção contra os ataques do Estado, mas
principalmente para os movimentos territorializados em relação à complementaridade do
que é produzido (desde bens físicos até conhecimento, por exemplo) e movimentado. Uma
rede horizontalizada entre movimentos sociais autônomos torna estes mais
independentes, tanto em relação ao mercado capitalista, quanto ao financiamento
público, os fornecendo maior potência de agir e, conseqüentemente, maior capacidade de
garantir sua autonomia.
32
A questão do enquadramento interpretativo é especificamente interessante quando
tratamos de movimentos sociais que valorizam não a sua autonomia, mas antes, a
centralização estatal. Este é o caso, por exemplo, da fábrica ocupada Flaskô que busca a
sua estatização – muito para salvar seus postos de trabalho, é verdade. Podemos imaginar
o peso gigantesco positivo que uma fábrica como a Flaskô teria ao participar de redes
horizontalizadas de movimentos sociais autônomos. Este, porém, já é outro assunto.
Sem-tetos possuem na ocupação de prédios que não cumprem sua função social
como forma de territorialização de seus movimentos sociais. Estes movimentos são
fortemente ajudados pela solidariedade anarquista em sua busca por poder popular. Sem-
terras por sua vez possuem como repertório já estabelecido a ocupação de terras que não
respeitam a Constituição, e seu maior contato com anarquistas e movimentos de caráter
libertário é através da Agroecologia12.
12
A reforma agrária possui pouco embasamento na teoria marxista, pois, se bem sucedida, esta pode tornar
trabalhadores do campo em pequeno-burgueses, ver: SOBRINHO, José de Souza, “O camponês geraizero no
Oeste da Bahia”. São Paulo, 2012, p.141. Por outro lado, no momento em que dialoga com o Estado também
encontra dificuldades na teoria anarquista, porém, não podemos ver tais ideologias como pacotes fechados.
33
como uma fórmula para os movimentos sociais, as relações são dinâmicas e cada
movimento deve utilizar os meios que mais se adaptam aos seus fins e suas valorações na
vida social.
13
“A diferencia del viejo movimiento obrero y campesino (en el que estaban subsumidos los indios), los
actuales movimientos están promoviendo un nuevo patrón de organización del espacio geográfico, donde
surgen nuevas prácticas y relaciones sociales. […] El territorio es el espacio en el que se construye
colectivamente una nueva organización social, donde los nuevos sujetos se instituyen, instituyendo su
espacio, apropiándoselo material y simbólicamente”.
34
“Tendem a visualizar a terra, as fábricas e os assentamentos como espaços de se
produzir sem patrões nem capatazes, de promover relações igualitárias e horizontais
com escassa divisão do trabalho, assentadas, portanto, em novas relações técnicas de
produção que não gerem alienação nem sejam depredadoras do ambiente” (Ibidem, p.
25, tradução minha14).
“O panorama que surge, a cada dia com maior intensidade, é que o ansiado mundo
novo está nascendo em seus próprios espaços e territórios, incrustado nas brechas que
abriram no capitalismo. É “o” mundo novo real e possível, construído pelo os
indígenas, camponeses e pelos pobres das cidades sobre as terras conquistadas, tecido
com base em novas relações sociais entre os seres humanos, inspirado nos sonhos de
seus antepassados e recriado graças às lutas dos últimos vinte anos. Esse mundo novo
existe, já não é um projeto nem um programa, mas múltiplas realidades, incipientes e
frágeis” (Ibidem, p. 27, tradução minha)15.
A educação popular faz parte desta construção e se mostra importante ao, por um
lado, não reproduzir os ensinamentos e construções simbólicas planejados pelo Estado
desde cima, e por outro, ao formar “intelectuais” (ainda que se busque eliminar a
separação entre trabalho intelectual e trabalho físico) na própria base, para que esta
forme suas próprias visões de mundo, baseadas em seus saberes ancestrais. Nesta busca
por reconstruir saberes destruídos16, os movimentos sociais se transformaram em
14
“Tienden a visualizar la tierra, las fábricas y los asentamientos como espacios en los que producir sin
patrones ni capataces, donde promover relaciones igualitarias y horizontales con escasa división del trabajo,
asentadas por lo tanto en nuevas relaciones técnicas de producción que no generen alienación ni sean
depredadoras del ambiente”.
15
“El panorama que surge, cada día con mayor intensidad, es que el ansiado mundo nuevo está naciendo en
sus propios espacios y territorios, incrustado en las brechas que abrieron en el capitalismo. Es «el» mundo
nuevo real y posible, construido por los indígenas, los campesinos y los pobres de las ciudades sobre las
tierras conquistadas, tejido en base a nuevas relaciones sociales entre los seres humanos, inspirado en los
sueños de sus antepasados y recreado gracias a las luchas de los últimos veinte años. Ese mundo nuevo existe,
ya no es un proyecto ni un programa sino múltiples realidades, incipientes y frágiles”.
16
Um exemplo interessante dessa reconstrução dos saberes ancestrais é a nota que foi publicada por
pesquisadores guaranis sobre sua verão da história de Sepé Tiarajú no Rio Grande do Sul, ver: “Guaranis
desmentem livros e revelam nova história” em A Nova Democracia, Ano VI, nº 40, fevereiro de 2008.
35
“sujeitos educativos” (Ibidem, p. 31), apontando por uma educação em movimento contra
saberes instituídos e institucionalizados.
36
“Mudança nas atitudes e valores dos atores sociais em relação ao manejo e
conservação dos recursos naturais” (Ibidem, p. 12).
Outro ponto importante é a coordenação entre estes movimentos sociais, o que nos
leva diretamente à questão da criação de centros de informação autônomos, como a
Central de Mídias Independentes, criada durante as mobilizações altermundialistas
(GORDON, p. 175), e a ocupação das rádios em Oaxaca, 2006. Em relação à articulação
entre estes movimentos, Zibechi ainda nos faz informações importantes sobre tal processo
e a autonomia destes movimentos sociais.
Por fim, devemos citar duas ameaças, dentre outras explicitadas por Raúl Zibechi.
Primeira: o aprisionamento de suas ações por saberes instituídos, e segunda: o
relacionamento com governos progressistas e de esquerda. Quanto ao primeiro ponto, o
autor chama a atenção para não tentarmos (a Academia) enquadrar estes movimentos
sociais em categorias pré-definidas, ditando o que devem e o que não devem fazer. Antes,
precisamos verificar o que são esses movimentos e ajudar em sua compreensão do mundo
desde baixo. Assim, os movimentos sociais não possuem menor valor que a política
profissional por não possuírem planos bem detalhados, mas antes, é isso que corresponde
à sua natureza espontânea.
37
Esse ponto dialoga com a segunda ameaça. Na América Latina há três grandes
cenários no início do século XXI que influenciam diretamente a forma de organização e
ação dos movimentos sociais. Primeiro: quando estes se relacionam com governos
neoliberais aliados com os Estados Unidos; segundo: aqueles que se relacionam com
governos progressistas que, em questões fundamentais, representam uma continuidade
com o modelo hegemônico e, terceiro: os que atuam em países que buscam romper com
esse modelo (ZIBECHI, 2006b).
Falar sobre cooptação dos movimentos por parte do governo progressista talvez seja
uma grande simplificação teórica, pois, estes novos cenários precisam também de novas
categorias conceituais que traduzam melhor tais relações. Estes novos cenários são
resultados da construção conjunta dos governos e movimentos sociais, que não foram
cooptados ou comprados, mas antes, possuem seu apoio baseado em “sólidas e profundas
convicções” (ZIBECHI, 2006b, p. 227). Estes movimentos:
“Oscilam entre o apoio crítico e a crítica sem apoio a seus governos, porém, amplos
setores de nossas sociedades parecem estar compreendendo que o melhor cenário
possível consiste na continuidade de administrações progressistas, as quais é sempre
necessário pressionar para que não se limitem a administrar a situação herdada”
(Idem, tradução minha17).
O fato, porém, é que esses governos não representam grande ruptura com o sistema
hegemônico, nem com os interesses das elites nestes países e muito menos conseguiram
uma substantiva distribuição de renda (Ibidem). O que eles conseguirem, por outro lado,
foi um tríplice desarme (ideológico, político e organizativo) em relação aos movimentos
17
“Oscilan entre el apoyo crítico y la crítica sin apoyo a sus gobiernos, pero amplios sectores de nuestras
sociedades parecen estar comprendiendo que el mejor escenario posible consiste en la continuidad de
administraciones progresistas a las que siempre es necesario presionar para que no se limiten a administrar la
situación heredada”.
38
sociais, que hoje não mostram a mesma força que possuíam nos anos 90, no Brasil, ao
menos.
Desta forma, estes são os pontos importantes explicitados por Raúl Zibechi, em
relação ao que o ator chama de movimentos antisistêmicos, ou não estadocêntricos,
chamados também de autoorganização autônoma (LANDSTREICHER) e de movimentos
sociais autônomos durante todo o texto. Sua capacidade de mudar o mundo de baixo para
cima, da periferia para o centro, se relaciona diretamente com questões básicas que
necessitamos para viver como saúde e educação.
18
Podemos verificar um exemplo do entendimento destes movimentos na ameaça feita pela polícia cubana ao
Observatório Crítico, ver em: “A polícia dificulta a ação e reflexão dos anarquistas em Cuba”. Agência de
Notícias Anarquistas. 4 de Dezembro de 2013.
19
Para mais exemplos sobre a criação deste “novo mundo”, a obra estudada de Zibechi (2007 e 2008) ainda
nos fornece 13 exemplos de Sociedades em Movimento. Para conhecer mais sobre o EZLN, ver: “GENNARI,
Emilio. EZLN: Passos de uma rebeldia”. Editora Expressão Popular. São Paulo, 2005. Ver também o
documentário “Zapatistas: Construindo Autonomias”, dirigido por: Cassio Brancaleone, 2013. Para ver sobre
outras propostas de autogestão, ver: GIARRACAe MASSUH (org) “El trabajo por venir. Autogestión y
emancipación social”. Editorial Antropofagia, 2008.
39
4. Mobilização, Agência e Estrutura
"A política é primeiramente o conflito em torno da existência de uma cena comum,
em torno da existência e da qualidade daqueles que estão ali presentes. [...] Existe
política porque aqueles que não tem direito de ser contados como seres falantes
conseguem ser contados, e instituem uma comunidade pelo fato de colocarem em
comum o dano que nada mais é que o próprio enfrentamento, a contradição de dois
mundos alojados num só".
4.1 Estruturalismos
A Revolução Social deve, para ser eficaz no que propõe, promover uma expressiva
alteração nas categorias de visão e divisão, assim como nas formas que nos relacionamos
como seres humanos. As mudanças devem envolver não só as estruturas que moldam
nossa forma de enxergar a vida, como também as estruturas hierárquicas que possibilitam
a dominação e a opressão estatal. É exatamente para verificarmos como funcionam essas
estruturas que utilizaremos a teoria estruturalista.
Muito foi dito até aqui sobre as possibilidades de ação e organização dos movimentos
sociais autônomos, porém, pouco foi mencionado sobre a questão contextual e o
ambiente que esses movimentos sociais encontram durante sua mobilização. Além disso,
ao procurarmos uma visão crítica em relação ao poder estatal, colocamos de lado boa
parte da teoria de um autor que dedicou toda sua vida ao estudo e à produção teórica de
esquerda, como o foi Karl Marx. Perdemos de vista, portanto, não somente seus aspectos
negativos, como o seu autoritarismo e a sua metafísica, como também todo seu
pensamento macro-estrutural (como foi explicitado no subcapítulo 2.1).20
O estruturalismo pode preencher essas lacunas e apontar para uma apreensão macro
e micro estrutural das relações sociais encontradas pelos movimentos sociais autônomos
durante sua luta pela emancipação social. Esta corrente de análise mostra importante para
áreas como a antropologia e a lingüística, e possui diversos grandes autores como seus
expoentes, entre eles Marcel Mauss e Claude Lévi-Strauss. Na Ciência Política, o
Estruturalismo é influenciado pela questão do Poder e as conseqüências deste sobre a
sociedade, principalmente depois de alguns ocorridos durante as décadas de 50 e 60 do
20
Devemos perceber a substituição valorativa de algumas características visando uma apreensão libertária dos
movimentos sociais. Assim, a Revolução Política é substituída por Revolução Social, o desenvolvimento da
Luta de Classes é substituído pela criação e desenvolvimento do Poder Popular, a centralidade do proletariado
como sujeito histórico é substituída pela valoração de diversos outros atores sociais e a busca pela hegemonia
pelo pluralismo de atores e linhas de pensamento diversas.
40
século XX (como a Revolução Húngara de 1956 e a Primavera de Praga em 1968). Estes
acontecimentos trouxeram à tona questões para além da economia, sobre as estruturas de
poder que moldam e influenciam nossas formas de vida (FOUCAULT, 2003).
“Nenhum dos dois existe sem o outro. Antes de mais nada, na verdade, eles
simplesmente existem – o indivíduo na companhia de outros, a sociedade como uma
sociedade de indivíduos – de um modo tão desprovido de objetivo quanto as estrelas
que, juntas, formam um sistema solar, ou os sistemas solares que formam a Via-
Láctea. E essa existência não-finalista dos indivíduos em sociedade é o material, o
tecido básico em que as pessoas entremeiam as imagens variáveis de seus objetivos”
(ELIAS, 1994, p. 18).
“A ordem invisível dessa forma de vida em comum, que não pode ser diretamente
percebida, oferece ao indivíduo uma gama mais ou menos restrita de funções e modos
de comportamento possíveis. Por nascimento, ele está inserido num complexo
funcional de estrutura bem definida; deve conformar-se a ele, moldar-se de acordo
com ele e, talvez, desenvolver-se mais, com base nele. Até sua liberdade de escolha
entre as funções existentes é bastante limitada” (Ibidem, p. 21).
Para Elias, portanto, essa rede de relações contínuas e interdependentes possui uma
dinâmica própria de mudanças na qual o indivíduo possui pouca ou nenhuma capacidade
de alterar o rumo. Alguns indivíduos possuem, através de cargos de poder, maior escolha
sobre o destino dos outros, o que por outro lado diminui a capacidade destes de interferir
no processo. As mudanças estruturais, portanto, são fruto da própria dinâmica autônoma
de rede em constante movimento.
41
As mudanças ocorridas na história de uma sociedade, portanto, possuem origem em
aspectos interiores – e não em aspectos exteriores à natureza humana, como o
desenvolvimento do espírito hegeliano, por exemplo – a esta e corresponde a aspectos
específicos de sua estrutura. Basicamente estão ligadas à concentração de poder:
Com isso, Elias retira as origens metafísicas das mudanças estruturais, tornado-as
imanentes à própria dinâmica de cada rede dinâmica de relações interpessoais. O autor,
porém, ao retirar a capacidade dos indivíduos de construírem essas mudanças estruturais,
pouco nos responde como podemos, nós mesmos, provocar estas mudanças estruturais. O
que Norbert Elias nos afirma na verdade é que não podemos prever e nem direcionar a
forma como se dão estas mudanças, tornando-as impessoais.
42
econômico, capital cultural, ou melhor, de informação, capital simbólico, concentração
que, enquanto tal, constitui Estado como detentor de uma espécie de metacapital,
com poder sobre os outros tipos de capital e sobre seus detentores. A concentração de
diferentes tipos de capital (que vai junto com a construção dos diversos campos
correspondentes) leva, de fato, à emergência de um capital específico, propriamente
estatal, que permite ao Estado exercer um poder sobre os diversos campos e sobre os
diferentes tipos específicos de capital, especialmente sobre as taxas de cambio entre
eles (e, concomitantemente, sobre as relações de força entre seus detentores)”.
(Ibidem, p. 99).
Assim indo para além da definição weberiana, o Estado não só se caracteriza pelo
monopólio do uso legítimo da violência física num determinado território, mas também
pelo monopólio do uso da violência simbólica, sobre o conjunto da população
correspondente. O Estado é resultado de um processo de concentração da coerção física,
passando dos senhores feudais para o Rei. A concentração de capital de força física tornou
necessária também a unificação do espaço econômico, instituindo o imposto para lidar
com as despesas de guerra (Ibidem).
“O capital simbólico é uma propriedade qualquer (de qualquer tipo de capital; físico,
econômico, cultural, social), percebida pelos agentes sociais cujas categorias de
percepção são tais que eles podem entendê-las (percebê-las) e reconhecê-las,
atribuindo-lhes valor. [...] Mais precisamente, é a forma que todo tipo de capital
assume quando é percebido através das categorias de percepção, produtos da
incorporação das divisões ou das oposições inscritas na estrutura da distribuição desse
tipo de capital”. (Ibidem, p. 107).
43
Portanto, não somente há uma forte concentração de capital simbólico pelo Estado,
como essa concentração é vista como legítima (e, natural, em grande parte) por parte de
sua população. Essa legitimidade é construída e inculcada através das estruturas do Estado
- muito similares aos aparelhos ideológicos de Estado de Louis Althusser 21- que produzem
e reproduzem a realidade social através do discurso oficial da Academia. Essa legitimidade
pode ser encontrada ainda sob o capital jurídico, em suas diversas simbologias e
linguagem própria que coloca na ordem do dia a universalidade do Estado.
"As relações de força mais brutais são, ao mesmo tempo, relações simbólicas e os
atos de submissão, de obediência, são atos cognitivos que, como tais, põem em prática
as estruturas cognitivas, as formas e categorias de percepção, os princípios de visão e
de divisão: os agentes sociais constroem o mundo social através de estruturas
cognitivas [...] suscetíveis de serem aplicadas a todas as coisas do mundo e, em
particular, às estruturas sociais" (Ibidem, p. 115).
E ainda:
“O mundo social está semeado de chamados à ordem, que só funcionam como tais
para aqueles que estão predispostos a percebê-los, e que reanimam disposições
corporais profundamente enraizadas, que não passam pelas vias da consciência e do
cálculo". (Ibidem, p. 117).
É exatamente essa estatização dos seres humanos que torna necessário, àqueles que
procuram romper com o metadiscurso do Estado, o radicalismo espistemológico, citado na
metodologia desta monografia (página 10), e o que Bourdieu chama de “Dúvida Radical”
(Bourdieu, 1989, p. 34). A realidade social, porém, não é monolítica, antes é constituída de
21
Ver ALTHUSSER, Louis “Aparelhos Ideológicos de Estado”. Graal. Rio de Janeiro, 1998.
44
diversos campos nos quais os agentes22 estão inseridos, e onde estes buscam maiores
níveis hierárquicos.
Os campos sociais são universos sociais particulares que possuem suas lógica e leis
próprias, os agentes ocupam neles espaço hierarquizados, no qual dependem do volume e
da estrutura do capital que dispõem, para determinar sua posição nestes. Além disso,
estes agentes estão ligados ao campo pelo que é chamado de illusio (KREITLON, 2008), ou
seja, uma crença social no valor da luta simbólica dentro do campo, como algo
essencialmente positivo.
“A illusio é estar preso ao jogo, preso pelo jogo, acreditar que o jogo vale a pena ou,
para dizê-lo de maneira mais simples, que vale a pena jogar”. (BOURDIEU, 2008, p.
139).
A illusio faz parte de nosso habitus. Este, por sua vez, é definido basicamente como:
Não aderir à illusio do campus significa ir contra a estatização dos indivíduos, contra a
busca pelos benefícios que o capital simbólico traz àqueles que o concentram. Significa,
precisamente, ser contra à divisão entre oprimidos e opressores, entre o trabalho braçal e
o intelectual, significa ser contra à hierarquia nesses campos. É exatamente por isso que
em nenhum momento falamos na Educação Pública, já que esta reproduz a lógica do
Estado (assim como a Educação Privada, subordinada indiretamente aos ministérios da
educação de cada Estado), mas sim em Educação Popular, em restabelecer os saberes
comunitários e desconcentrar o capital simbólico nas comunidades. É exatamente sobre
reverter a concentração de capital, apresentada por Bourdieu, que se trata o Anarquismo.
22
É importante notar a utilização do termo agente pelo estruturalismo, ao invés de ator como utilizado nas
teorias da Ação Social e da Ação Racional, como bem nos afirma KREITLON, 2008, p. 58.
45
Porém, tocamos aqui no ponto central que liga a teoria estruturalista à proposta
emancipadora deste trabalho: “como pensar a transformação?” (ORTIZ, 1983, p. 21).
Renato Ortiz nos coloca exatamente a questão da mudança estrutural que procuramos ao
utilizar Bourdieu nesta monografia:
“Os estudos de Bourdieu nos parecem de grande importância e podem ser da maior
valia desde que os consideremos fora de uma perspectiva imobilista do processo de
reprodução. A análise é extremamente rica quando se trata de desvendar os
mecanismos profundos de poder, perspectiva tão peculiar aos autores modernos
franceses, mas que, no fundo, se caracteriza por um certo pessimismo político e
social”. (Ibidem, p. 24).
Portanto, devemos encarar o que foi dito através da teoria estruturalista de Pierre
Bourdieu com precauções, para reproduzirmos as estruturas de visão e divisão inculcadas
em nós pelo Estado. Portanto não devemos deslegitimar discursos contrários aos nossos
como se pertencessem a um habitus ilegítimo, muito menos quando estes discursos fazem
46
parte de um saber popular. Tal artifício poderia gerar uma afirmação de falsa consciência
de inúmeros agentes, o que comumente recai sobre as categorias menos favorecidas pelo
sistema econômico. Giddens faz uma importante distinção entre a consciência prática e a
consciência discursiva, afirmando a importância daquela, mesmo que não tenha a
desenvoltura desta para explicar a realidade social:
E ainda:
47
a própria ideia de Poder em Giddens. Para o autor, o poder pode ser entendido através de
dois aspectos próprios:
“A relação entre poder e interação pode assumir um duplo sentido: enquanto algo
que se encontra institucionalmente envolvido nos processos de interação, e enquanto
algo utilizado para obter determinados resultados através da conduta estratégica”.
(Ibidem, p. 81).
48
Devemos, para buscar o objetivo aqui traçado, verificar o que esses dois conceitos de
poder implicam para atingir as metas da emancipação social aqui explicitadas, verificando
suas possíveis conseqüências.
O que o estruturalismo nos ensina é que podemos ver essa sociedade e suas formas
de dominação de um outro ponto de vista que não o racionalista. Portanto, para
destruirmos a sociedade de classes não precisamos acabar com os membros da classe
dominante, para destruirmos o machismo não precisamos acabar com os machos e nem
para destruirmos o racismo precisamos acabar com a etnia dominante. Antes, o que causa
49
a dominação são as estruturas de poder. São elas que devem ser combatidas, assim como
seus efeitos (dando sempre ênfase aos sistemas de dominação que estão para além dessas
estruturas), como a opressão de gênero, por exemplo.
É importante frisar que a estratégia não pode estar em associar-se a estas formas de
dominação estrutural, contida nos aparelhos verticalizados, como as diversas estruturas de
poder disputadas via eleição (Estado, partidos políticos etc). A potência de agir desses
movimentos está principalmente no seu grau de autonomia, e, portanto, de perseguir seus
próprios fins e meios, independentemente daqueles que querem ditar-lhes ordens. No
momento em que ocorrer o diálogo com estas estruturas a autonomia dos movimentos
sociais deve ser inegociável. É exatamente este ponto que caracteriza a mobilização dos
movimentos sociais como possibilidade de mudança frente às estruturas de poder que
oprimem, normatizam e controlam as vidas de todas e todos.
50
5. Direito à Cidade
“Cinco anos: 2006 a 2011. 13 de Outubro, um navio pirata atraca no porto
(Anarquia!). Em meio ao seco asfalto das minas do Capital: utopias e discórdias,
confrontos à obediência e à normalidade social. Uma ruptura do concreto. Onde só
havia horror e solidão, houve uma flor, que nos deixa sempre lembranças e extrema
revolta”.
Muito anteriormente a David Harvey, Henri Lefebvre e Milton Santos, o estudo sobre
as implicações das características da cidade grande nas formas de vida dos indivíduos que
nelas habitam já estava sendo desenvolvido por Georg Simmel, através do ângulo da
psicologia social e da psicologia econômica (e por isso de forma distinta do que é
comumente referido como estruturalismo). Ainda que o autor não tivesse percebido tais
influências e relações a partir de uma concepção crítica da sociologia urbana, podemos
utilizar alguns de seus pontos estudados para verificarmos certas características
importantes da grande cidade, principalmente no que tange à normatização e ao controle
da vida humana.
51
igualdades e desigualdades, a uma univocidade nos acordos e combinações” (SIMMEL,
2005, p. 580).
E assim:
“A técnica da vida na cidade grande não é concebível sem que todas as atividades e
relações mútuas tenham sido ordenadas em um esquema temporal fixo e supra-
subjetivo” (Idem).
Essas características causam respostas como o caráter blasé citado pelo autor, assim
como a forte impessoalização das relações sociais, as quais são, cada vez mais, abordadas
de forma unilateral e autocentrada. A todas essas imposições da vida econômica enérgica
da cidade grande em relação aos sujeitos, podemos perceber o surgimento de resistências.
A fuga dessa homogeneização e da opressão, que o capitalismo provoca ao totalizar-nos, é
marcante na valoração positiva de respostas irracionais e apaixonadas de um
comportamento mais humano, “peculiar e não-esquemático” (Ibidem, p. 581).
Portanto, a cidade não somente é o locus da luta política entre os diversos atores
divergentes, como também “participa efetivamente da conformação das modalidades
interacionais” (NUNES, 2012, p. 445), o que nos possibilita a análise dos fenômenos
urbanos a partir do prisma das ciências sociais (Ibidem). A cidade se apresenta, não só,
como local da interação física e simbólica, mas também, como fator determinante nas
formas como as relações interpessoais se dão, influindo diretamente na percepção e na
vida das pessoas.
Para Iris Marion Young, a visão da política como algo racional, impessoal e imparcial é
uma forma de conceber o discurso dos privilegiados como legítimo, por este abraçar o
ponto de vista de todos os indivíduos. A política, portanto, é vista como um local onde
deve reinar o ideal da imparcialidade, sendo vetados os atores percebidos como
apaixonados e/ou parciais, como na maioria dos casos, mulheres, negros e índios (YOUNG,
2012).
“O ponto de vista dos privilegiados, sua experiência e seus padrões particulares, são
interpretados como normais e neutros. [...] Nesse caso, não apenas a experiência e os
valores dos oprimidos são ignorados e silenciados mas também são prejudicados por
suas identidades situadas. [...] O ideal da imparcialidade legitima as hierarquias no
processo decisório e permite que o ponto de vista dos privilegiados apareça como
universal”. (Ibidem, p. 193).
52
são vistos, a partir de uma racionalização das vontades e da normatização da vida social
através da Constituição, da Administração Pública e, principalmente, do Direito Civil.
Dessa forma, o último ponto mencionado aqui sobre a mobilização autônoma diz
respeito à necessidade de romper com o processo, no qual a cidade importância central,
de racionalização e normatização da vida social, e, portanto, por reconquistar fisicamente
e simbolicamente os espaços ocupados pelo Capital e pelo Estado. A procura é por
possibilitar os bens simbólicos e materiais, necessários à vida em sociedade, para os
membros dos movimentos sociais, e universalizá-los para todas e todos que desejam
compartilhar e participar desta ressiginificação.
53
As exceções a este processo de centralização dos recursos - e por isso desde já, são
tomadas como resistências a este processo - são as favelas, principalmente as que se
situam geograficamente próximas ao centro e à zona sul da cidade, assim como as
ocupações urbanas, que procuram justamente uma moradia próxima ao centro para os
que dela necessitam.
A primeira situação foi muito bem explicitada por Marcelo Freixo, em sua campanha
pela prefeitura do Rio em 2012. Esta se mostra clara quando verificamos que o mapa das
UPPs está completamente ligado aos interesses econômicos dos megaeventos e
distanciado das comunidades ocupadas por milícias, as quais não interferem nesse projeto
de cidade27. A segunda situação está vinculada à primeira no que tange à utilização da
cidade como fonte de recursos estratégicos para o capital. A expulsão dos moradores se
mostra extremamente unilateral e autoritária em flagrante desrespeito ao direito à
moradia, na maioria das vezes sem se quer apresentar alternativas viáveis de realocação.
24
Segundo MAGNI e MARQUES, 2010, o déficit habitacional - quando não há moradia adequada - no estado
do Rio de Janeiro chega a quase 430 mil, nos quais 75% se concentra na região metropolitana.
25
Dados de 2010, retirados de: “Ocupação Manoel Congo: uma experiência na luta urbana do Rio de Janeiro”
de Caroline Rodrigues da Silva. Apresentado em Londrina, 2010.
26
Segundo Ligia Coelho, da Rede Nacional de Jornalistas Populares, há hoje no estado do Rio de Janeiro,
cerca de 5 mil imóveis abandonados. Em: http://www.renajorp.net/2006/07-ocupacoes-rj.html acessado em 7
de janeiro de 2014 às 23:50.
27
Ver “Por que as UPPs não chegam para todos”em: < http://www.marcelofreixo.com.br/site/noticias
_do.php? codigo=104> acessado em 7 de janeiro de 2014 às 00:10.
54
No caso da área portuária, esse processo é muito bem descrito no panfleto circulado
na Caminhada das comunidades da Região Portuária28 quando estas denunciam o
fechamento de locais vitais para os habitantes da zona portuária como Colégio Estadual
Benjamin Constant e o Colégio Estadual Vicente Licínio Cardoso. A denúncia também se
refere à remoção de 800 famílias no Morro da Providência e de grande parte dos
moradores da comunidade de Pedra Lisa, assim como a violência estatal às ocupações
urbanas, como o Quilombo das Guerreiras, ao cortar seu abastecimento de luz e água, por
exemplo.
28
Ver: “Caminhada das comunidades da Região Portuária: Moradia, Saúde e Educação!” em:
<http://terraeliberdade.org/sample-page/panfletos/>
29
É importante reforçar o que foi afirmado na Metodologia (página 10), ou seja, que o objeto de estudo aqui
proposto não são os movimentos sociais, mas antes, suas ações, procurando empreender, não uma descrição
acrítica destes movimentos o que visaria catalogá-los, mas sim, analisar suas ações e organização procurando
fornecer um estudo utilizável para outros movimentos sociais autônomos.
55
O casarão da rua Mata Machado foi doado para a União por Luis Augusto Maria Eudes,
o duque de Saxe, genro de D. Pedro II, no ano de 1865 para a construção de um centro de
investigação indígena. Em 1910, Cândido Mariano da Silva Rondon, o Marechal Rondon,
criou, neste casarão, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que vem a ser hoje a FUNAI. O
Museu do Índio fora criado em 1953, após anos de pesquisas etnológicas e lingüísticas,
neste mesmo prédio, se mantendo até 1977 quando o museu foi transferido para o bairro
de Botafogo, ficando desde então abandonado30.
“Todo mundo vai pro Maracanã ver futebol, até olha, mas não enxerga [...] estava
completamente coberto, com a chegada ali nós começamos a descobrir [...] e passar
mais visível, é muito invisível, como a questão indígena” (URUTAU, 2014).
Segundo ele, os mais de 20.000 indígenas no Rio de Janeiro contabilizados pelo IBGE
em 2013 se encontram nos maiores complexos da cidade: o complexo do Alemão, da
Maré, da Rocinha e do Juramento. Em conexão direta com a desmobilização dos indígenas
está a perda da conexão entre os moradores do Rio de Janeiro e seus ancestrais indígenas,
o que se configura, não só como uma perda da história, da ancestralidade e da cultura
indígena, mas também como uma perda de memória da nossa população.
Portanto,
30
Ver: Centro de Mídia Independente, CMI-Brasil, 24/10/2011, “Museu do Índio teme desalojo e exige
direitos frente ao Estado”. Acessado em 20/01/2013, às 16:33; e O GLOBO, 15/01/2013 “Museu do índio
funcionou nos arredores do Maracanã, na Zona Norte, de 1953 a 1977”. Acessado em: 20/01/2013, às 16:29.
31
Ver: Carta da Aldeia Maracanã, escrita em Junho de 2012:
<autogestao.org/wpcontent/uploads/2012/07/carta.doc>
32
Entrevista gravada concedida por Urutau, conhecido como José Guajajara, a mim, no dia 24/01/2014, às
17:20.
56
É exatamente esse vínculo, esse cordão umbilical, que a Aldeia, quanto ocupação
cultural, traz à tona em suas aulas de língua tupi, de maraká, e em suas manifestações
culturais de canto e dança, por exemplo, o que torna visível, não só a cultura indígena, mas
também os próprios indígenas.
Em relação à procura pela construção das árvores genealógicas, feitas pelas jovens
que vão à Aldeia:
“Tanto a árvore por parte paterna quanto por parte materna nunca vai dar na
Europa, o filho não vai estar na Europa. O filho está aqui, nunca saiu daqui. Se você for
puxar, e montar a árvore genealógica, por parte paterna e parte materna, vai acabar
aqui. Os ossos estão enterrados aqui, não estão na Europa, não estão em outra parte
das Américas. Eles estão enterrados aqui” (Idem).
“Os biotipos são diversos. [...] A partir dali as pessoas começaram a ver, a observar, a
olhar a diversidade, tirar aquele senso comum do índio genérico. Passar a pluralizar os
povos indígenas. [...] Você começa a falar em povos, em nação, em línguas, você já
começa a falar diferente” (Idem).
Por outro lado, quando Urutau fala sobre aumentar o número de índios, está
dialogando também com o que o “Manifesto do Movimento Universidade-Aldeia Indígena
Marakà ànànà !” 33 chama de indianização do mundo, ou seja, com o processo de reaver a
conexão perdida com nossos ancestrais:
“É um caminho sem retorno, depois que você adentrar em sua árvore genealógica,
cada vez mais você vai pesquisar, cada vez mais você vai querer ver seus ancestrais e os
próximos a você. Você vai ser um pesquisador de seu próprio Eu. (Idem)”.
33
O Manifesto pode ser encontrado em: <http://racismoambiental.net.br/2013/08/manifesto-do-movimento-
universidade-aldeia-indigena-maraka-anana/> .
57
Portanto, a Aldeia-Universidade Maracanã, nos momentos em que esteve ocupada
pelos indígenas, trouxe à tona os problemas daquelas e daqueles que têm ancestralidade
indígena, assim como trouxe à tona também a própria ancestralidade indígena dos
cidadãos do Rio de Janeiro. Esse movimento se mostrou importante como ocupação
cultural, perpetuando as tradições indígenas, mas também, se mostrou importante como
espaço de referência para encontros entre todas e todos que resistem às arbitrariedades
do Estado e do Capital, mostrando, assim, a importância da coordenação com outros
movimentos sociais, e não somente, mas também, o movimento indígena.
“Os indígenas começaram a vir para a Aldeia Maracanã, como referência nacional,
para conhecer, participar, e fazer parte desta história” (Idem).
Uma característica central, e que foi mais reforçada ainda no segundo momento da
ocupação, foi a autonomia deste movimento social. Assim, a Aldeia-Universidade
Maracanã, mostrou que, mais do que um objeto de estudo antropológico, os indígenas são
capazes de contar sua própria história e perpetuar sua cultura. Além de um campo de
estudos para a questão indígena, portanto, a Aldeia mostrou que os índios possuem a
“excelência da cultura” (Idem), o que os possibilitou a discutir, em seminários e
congressos, de igual para igual com os especialistas.
A ocupação cultural passou a ser cada vez mais ameaçada pelos interesses do Capital,
ligado à Copa, principalmente, no Maracanã. A primeira tentativa de remoção se deu no
dia 12 de janeiro de 2013, quando não havia documentos de integração de posse (não
poderia haver a reintregração, porque o Estado não estava na posse do prédio). A segunda
se deu, de forma truculenta, no dia 22 de março. A resistência, porém, seguiu com toda
força, sendo o nome da Aldeia sempre lembrado nas jornadas de Junho. A reocupação
veio no dia 5 de agosto de 2013.
58
Assim, a luta da Aldeia Maracanã se mostra como um exemplo positivo de
mobilização autônoma, pois, ainda que não esteja hoje na posse do prédio que lhe
configura como movimento social territorializado, certamente conseguiu criar novos laços
sociais. Além da criação de laços sociais não-capitalistas e antiautoritários, a luta pela
construção da primeira universidade indígena no Brasil, ainda traz outras características -
muitas das quais já enunciadas - que são interessantes para o estudo aqui proposto como:
o reconhecimento do Estado como origem de repressão histórica; o protagonismo
indígena na luta; a fraternidade e a “indianização” (ALDEIA MARACANÃ (R)EXISTE, 2013); a
coordenação da luta com outros movimentos sociais; e, por fim, a importância da
educação popular como eixo de resistência e construção coletiva.
59
movimentos sociais – sempre mantendo a importância da autonomia nestas relações, os
quais são de solidariedade e não de caridade (opondo alianças horizontalizadas às
verticalizadas).
Esta coordenação mostra como a luta pela aldeia-universidade vai para além de suas
próprias conquistas, no momento em que manifesta apoio a outros movimentos sociais –
como os atingidos pela obra do Comperj, por exemplo – e a conquistas mais
universalizadas, como no combate à privatização. A Aldeia-Universidade Maracanã,
portanto, se mostra completamente aberta a todas e todos que desejam somar em sua
luta e com suas lutas.
34
Em: “Bases e Princípios do Manejo Indígena da Universidade-Aldeia Intercultural Maraká’ànà” presente
somente na plataforma de facebook, como em:
<https://www.facebook.com/anonymousrio/posts/655366754513676>
60
própria luta por parte daquelas e daqueles que estão diretamente interessadas e
interessados nesta reconquista simbólica da vida em sociedade.
61
6. Conclusões
Através de tudo o que foi visto até aqui podemos fortalecer substantivamente o
argumento proposto em defesa da mobilização autônoma, como alternativa em relação às
mobilizações tuteladas, tomando os movimentos sociais por sua característica de
movimentos nãoestadocêntricos (portanto, em contraposição aos movimentos políticos).
A autonomia se mostra vital para estes movimentos – sejam estes sendo chamados de
movimentos antisistêmicos (ZIBECHI, 2007 y 2008) movimentos-comunidades (Idem),
movimentos antiestatais (ZIBECHI, 2006a), autoorganizações autônomas (LANDSTREICHER,
2007) ou movimentos sociais autônomos, como neste trabalho – dando vida e força a
estes durante sua mobilização.
Não há aqui uma preocupação purista, a qual poderia tratar o anarquismo como uma
teoria fechada a novas percepções advindas da realidade prática. A consciência prática -
62
como foi colocado ao aplicarmos a teoria de Giddens – se mostra importante para
valorizarmos a experiência dos próprios atores destes movimentos sociais, os quais
enfrentam diversas questões que não estão prescritas na teoria, como por exemplo, no
diálogo com o Estado. Nesse sentido, a teoria deve servir para dar instrumentos analíticos
aos movimentos e não como gaiolas, que possam imobilizá-los. A inovação e a imaginação
serão sempre úteis para a mobilização autônoma, já que esta procura fugir da tutela de
vanguardas e teorias fechadas.
63
Para o contrapeso da agência, em relação à estrutura, a teoria de Giddens se mostrou
bastante útil ao tomarmos a mobilização autônoma sob o ponto de vista estratégico,
situando ao mesmo tempo os limites desse ponto de vista estratégico. Por fim, o
anarquismo afirma a necessidade de uma revolução feita de baixo para cima, no quadro
social e da periferia para o centro, no quadro espacial. Em consonância à tal afirmação, a
cidade deve ser vista, por um lado, como parte do espaço que se deseja reconquistar, e por
outro, pela importância da periferia e da participação direta dos excluídos nesse processo
de mobilização autônoma pelo direito à cidade.
Dessa forma, este é um estudo que visa à contribuição em relação a estes movimentos
sociais autônomos, principalmente, em relação ao meio que se busca para atingir as
finalidades próprias de cada um deles. Possui, portanto, a pretensão – com toda a
limitação que um trabalho de conclusão de graduação possui - de estudar questões que
facilitem de alguma forma a mobilização de movimentos como a Aldeia-Universidade
Maracanã (e, tantos outros mobilizados contra as arbitrariedades no Rio de Janeiro). E
ainda, de movimentos territorializados, como os que promoveram o Segundo Encontro de
Economias Coletivas, no Morro do Timbau, localizado no Complexo da Maré, em
novembro de 2013.
Para estes últimos, a ideia de autogestão e as relações com o Estado, sempre tentando
manter um satisfatório grau de autonomia, são questões cruciais para seus projetos de
emancipação e de produção/comercialização. Certamente, o tema dos movimentos sociais
autônomos é muito mais extenso que o esforço empreendido aqui assim como as
questões encontradas por estes movimentos são muito mais complexas que essa,
mostrando sempre que a prática é sempre mais rica que a teoria, e que a imaginação é
importante para resolver casos não previstos.
35
Um estudo que pode ser colocado em diálogo com a importância da participação dos que se sentem
excluídos e de como estes se comportam em relação à política tradicional, é o trabalho de Anthony M. Orum,
em: “Social Constraints in the Political Arena” Political Behavior, Vol. 1, No. 1 (Spring, 1979), pp. 31-52.
64
Por fim, o Anarquismo se mostra importante para levar a Ciência Política a outras
reflexões, que não as relacionadas aos problemas institucionais e estatais. O poder estatal
deve ser visto de forma crítica, caso contrário, podemos cair na naturalização desta imensa
estrutura, como bem salienta Bourdieu. Neste sentido, a Sociologia Política se faz
importante para irmos além do institucionalismo, tão caro à Ciência Política. O
Anarquismo ainda pode responder a questões importantes desta ciência, como na questão
da participação, na teoria da democracia, e como na questão do multiculturalismo (como
em SCOTT, 2005 e mesmo em TAYLOR, 2005, quando temos um caso que vai de encontro
tanto ao Estado liberal quanto às hierarquias tradicionais conservadoras), na teoria
política.
Um esforço central para os que desejam realizar um estudo crítico dentro da Ciência
Política, é para utilizá-la como instrumento de leitura para os excluídos e as excluídas, que
sofrem com as arbitrariedades cotidianas das estruturas de poder e dos sistemas de
dominação. Um passo para isso, talvez seja, o de perceber o poder como potência de agir,
e não como algo a ser conquistado, que visaria a imposição de uma situação aos demais.
Para lidar com estas questões críticas em relação ao poder, o estudo de movimentos não-
estadocêntricos se mostra um bom caminho.
65
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