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1. Introdução
• Conferência, em 25 de abril de 1994, no I Fórum de Direito Econômico, promovido pelo Instituto dos
Advogados de São Paulo e o Primeiro Tribunal de Ações Civil do Estado de São Paulo.
A moeda, segundo a História, é uma invenção dos Lídios, cerca de 600 a.c.,
tendo surgido como um instrumento para facilitar e agilizar o comércio, em substi-
tuição ao primitivo sistema de trocas:
Sob esse aspecto, a' moeda passou a cumprir, desde então, a. dupla função de
meio de troca e de riqueza intermediária, características fundamentais que até hoje
mantém.
A Ciência Econômica atual define a moeda em termos de uma ou mais do que
tem como suas três funções principais: I' - meio de troca, 2' - depósito de poder
aquisitivo e 3' - padrão de valor. I
A Ciência do Direito também dá especial ênfase a essa terceira função, como,
por exemplo, no consagrado jusmonetarista Tulio Ascarelli, que nela encontra duas
funções essenciais: a de instrumento de troca e a de mensurador de valor. 2
A tríplice função econômica é tradicionalmente adotada nos textos didáticos,
como informa Ross M. Robertson 3 , podendo considerar-se, assim, como moeda "tudo
aquilo que é habitualmente usado e geralmente aceito como meio de troca ou padrão
de valor".4
Enquanto meio de troca, a moeda é meio de pagamento, dotada de poder
liberatório de quaisquer dívidas, tanto no sistema de.curso legal (cours légal ou
Zahlungsmittel), que admite sua convertibilidade vinculada a qualquer outro bem,
como ouro, prata etc., como no sistema de curso forçado (coursforcé ou Zwangkurs),
que determina sua inconvertibilidade e, em conseqüência, torna sua aceitação obri-
gatória, como único meio liberatório possível sob uma ordem jurídica.
A adoção, quase universal, do sistema de curso forçado, como se vê, tornou a
moeda e os sistemas monetários nacionais matéria de direito público, suportada na
I The Monetary System of the United States, Federal Reserve Bulletin, fev. 1953, p. 98.
2 Verbete "maneta", in Dizionario Pratico dei Diritto Privado, v. m, § m, p. 1.2\3.
3 Verbete "money", in A Dictionary of Social Sciences, Free Press of Glencoe, N. York e Tavistock
Publications, Londres, 1964.
4 R.P. KENT, Money and Banking, Rinehart, N. York, 3' ed., 1956, p. 4, apud A Dictionary of Social
Sciences, ibidem.
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ficção jurídica de seu valor liberatório, independentemente de qualquer valor intrín-
seco, elevada a expressão indeclinável da soberania naciona1. 5
Enquanto depósito de poder aquisitivo, a moeda cumpre uma função de merca-
doria, entesourável, instrumento de poupança imprescindível ao desempenho de uma
economia capitalista, que necessita de substancial acumulação de riquezas para
realizar investimentos em grande escala,
Finalmente, enquanto padrão de valor, a moeda é o instrumento de mensuração
universal para todas as mercadorias e serviços. É no desempenho desta funcão que
ela apresenta sua mais delicada problemática contemporânea, pois embora ela possa
se apresentar com um valor nominal atribuído juridicamente pelo Estado que a emite,
ela também pode sofrer uma flutuação valorativa de fato que a tome inapta para
servir de medida de valor. Quando isso ocorre, dissocia-se a moeda, enquanto
dinheiro de curso forçado do valor que deve representar, provocando o surgimento
de sucedâneos valorativos da moeda.
3. A Moeda Defectiva
Quando uma determinada moeda não é idônea para desempenhar uma ou duas
das três funções essenciais - meio de troca, depósito de poder aquisitivo ou padrão
de valor - ela é defectiva.
A moeda de um país será sempre defectiva em qualquer outro em que perca seu
poder liberatório forçado como meio de troca. A moeda de um país de economia
débil ou instável também é defectiva, na medida em que não cumpre a função de
entesouramento. A moeda inflacionária a taxas significativas também é defectiva,
pois se toma inservível tanto como padrão de valor tanto como depósito de poder
aquisitivo.
Como tem curso forçado, a moeda defectiva nacional conserva sua função de
meio de troca, mas o público usuário procurará valer-se de um outro referencial,
monetário ou não, para servir de padrão de valor, bem como de um sucedâneo
amealhável, monetário ou não, para guardar suas poupanças.
4. O nominalismo
5 LETÁCIO JANSEN, o mais distinto autor do Direito Monetário no País, assim o afirma: "um dos
atrihutos de soherania nacional é a emissão da moeda" (A Face do Dinheiro, Ed. Renovar, Rio de Janeiro,
1991, p. 147).
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trajetória, desde a menção aristotélica. na Ética (/ Nicômallo: recordando MOLI-
NAEUS e POTHIER; lembrando o importante marco da criação do real português
em 1427 e sua consagração. mais tarde. nos reinos ibéricos; assinalando sua essen-
cialidade na construção das economias liberais dos Estados Unidos, da França e da
Inglaterra: invocando a autoridade de autores como NUSSBAUM, MANN e, até
certo ponto, ASCARELLI, e. além de tudo, destacando sua imprescindibilidade para
superar as grandes crises monetárias históricas, como na reforma monetária alemã,
de 1948, e na reforma monetária francesa gaullista. de 1958. 1i
É intuitivo que só a observância rigorosa do nominalismo pode assegurar à
moeda a qualidade desejada para o atendimento simultâneo de sua tríplice função
juseconômica. Sob a abordagem estritamente jurídica. porém, deve-se destacar que
só o nominalismo corresponde ao conceito de soberania monetária: se o Estado
desrespeita sua moeda, desrespeita também sua própria ordem jurídica.
5. A Inflação
6 Portugal, adiantando-se à Europa feudal, criou o real como moeda nacional declarando "pertencer ao
rei somente fazer moeda, mudá-la e pôr-lhe a valia" (grifos nossos) (apud LETÁClO JANSEN, op. cit.,
pp. 121 a 123 e 165 a 168).
7 Assim, AJ. BROWN, em The Great Inflation. 1939-1951 (Oxford U. Press, \955, p. 2), e A.G. HART,
em Mone)', Debt und Economic Activity (Prentice Hall, \954, p. 256).
8 STEPHEN L. McDONALD, Dicionário de Ciêncius Sociais, FGV, Rio de Janeiro, \986, p. 595.
9 Interessante circunstância observada por LETÁCIO JANSEN, in op. cit .. p. 6\
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nacional para pagá-las, podem ser apontados, especialmente no caso brasileiro, entre
as variantes historicamente estudadas.
6. O Valorismo
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o art. 1 I, da Constituição, e ainda se constitui numa intervenção expropriatória não
Q,
7. A Correção Monetária
8. Antecedentes e Evolução
13 op. cit., p. 4.
14 Op. cit., p. 4.
15 Letácio Jansen, A Curreçãu Monetária em Juízo. Forense, Rio de Janeiro, 1986. p. 3.
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Distintamente, anota o estudioso jusmonetarista, a expenencia brasileira da
correção monetária não foi um episódio isolado e, por isso, veio a se constituir numa
variedade de valorismo que se distingue das demais "por sua amplitude e estabili-
dade" e, com a permissão do ilustre autor, por sua permanência, pois há trinta anos
se mantém como doutrina monetária oficial do País, por oito governos, autoritários
ou eleitos, e sob quatro Constituições (1946, 1967, 1969 e 1988).
Com efeito, embora suas origens no Brasil possam ser traçadas desde a década
de cinqüenta, como forma de solucionar a questão indenizatória dos concessionários
de serviços de utilidade pública l6 , foi em 1964 que, "de incipiente doutrina de
oposição, a correção monetária transformou-se de chofre em doutrina oficial, da
qual se torna o principal protagonista nos meios forenses o agora Professor Amoldo
Wald" 11.18.
Assim, até 1964, a aplicação da correção monetária foi restritiva, admissível
apenas em lei expressa ou como prudente aplicação da teoria da imprevisão e da
teoria das dívidas de valor, mas, adotada de início como uma tática transicional para
controle da inflação ou, pelo menos, para absorver alguns de seus efeitos detrimentais
sobre a economia, ela acabou se tornando permanente e até instrumental para a
política econômica dos governos.
Desde então, uma série de leis instituiu um amplo sistema de correção monetária
para vários tipos de dívidas: a Lei n° 4.357/64, para dívidas tributárias; a Lei nO
4.380/64, para os contratos imobiliários, e a Lei nO 4.944/64, institucionalizando-a,
em termos gerais, para os contratos.
Estava iniciado um período de três décadas de emprego caótico de índices, de
indexadores, de pseudomoedas, de escalas móveis e de "tablitas" que acabariam
decretando a falência da moeda nacional em suas sucessivas "ressurreições" e a
desmoralização das regras áureas da imutabilidade do ato jurídico perfeito e da coisa
julgada, divorciando a vida monetária brasileira dos princípios do Estado de Direito.
A correção monetária, que tinha vindo para reabilitar a moeda atacada pela inflação,
acabou por realimentar esta e desmoralizar aquela.
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manutenção a despeito dos efeitos perversos sobre a economia e a sociedade como
um todo.
Ascarelli, distinguindo, como se expôs, as duas funções monetárias principais,
reconhecia nela um valor não monetário - o poder aquisitivo, e procurava conciliar
o nominalismo, no qual acreditava, com a existência de dívidas não monetárias,
representativas de uma determinada quantidade de poder aquisitivo: dívidas de valor,
enfim, e não de moeda.
Com esse expediente, pretendia o renomado autor salvaguardar o nominalismo,
que teoricamente professava, e, ao mesmo tempo, solucionar o problema da justiça
comutativa nas obrigações de pagar quantia certa diante da corrosão do valor real
da moeda de pagamento.
Em que pese seu esforço, as distinções não resistem à crítica autorizada, como
a de Letácio Jansen 20 , mas, ainda que se possa e até se deva ressaltar o seu conteúdo
positivo, deve-se registrar, em homenagem ao mestre peninsular, que ela não respal-
da, em absoluto, a caótica e abusiva manipulação dos instrumentos de correção
monetária que caracterizaram as últimas três décadas da vida monetária brasileira.
10. Indexadores
A técnica dos índices e dos indexadores monetários foi que tomou possível a
ascensão do valorismo no Brasil e a manutenção por trinta anos da correção monetária
como seu instrumento.
Os índices, utilizados ampla, sistemática e compulsoriamente, passaram a ser
um cripto padrão monetário, alternativo e espúrio, manipulado administrativamente
para a execução de políticas econômicas governamentais; um exercício muito apro-
priado para o modelo de Estado hipertrofiado e interventivo que o Brasil vem
mantendo há três décadas, independentemente de qualquer regime ou doutrina po-
lítica ostensivamente adotada.
O índice, usado para corrigir o valor da moeda nesse perverso sistema valorista,
onde pouco ou quase nada vale o direito, é sempre discriminatório, pois beneficia
alguns créditos e avilta outros. Seria possível escrever-se a história da política
econômica dos últimos oito governos deduzida da sucessão, da incidência e da
extensão dos índices utilizados em cada período.
O primeiro índice surgiu para corrigir as Obrigações Reajustáveis do Tesouro
Nacional - ORTN (Lei n° 4.357/64). A seguir, para corrigir as prestações dos
::ontratos do Sistema Nacional da Habitação, criou-se a Unidade Padrão de Capital
- UPC (Lei n° 4.380/64). Desde então, até 1975, acumularam-se índices de todo
tipo e para variados efeitos, distinguindo e privilegiando créditos, até que a crise de
liquidez internacional, os choques do petróleo e a persistência do modelo estatizante
economicamente esgotado reverteram o quadro de prosperidade até então existente,
iniciando-se a grande recessão nacional, que começa com o Governo Geisel e se
20 Para maior desenvolvimento, remete-se o leitor à Crítica da Doutrina das Dívidas de Valor de Ascarelli,
ill A Face Legal do Dillheiro. op. cit., pp. 116 a 120.
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agrava com a incapacidade dos constituintes de 1988 de mudar o modelo falido. Sob
o impacto da recessão começa a fase de troca de indexadores, quase sempre com-
primindo os salários e privilegiando a poupança e os investimentos, de modo que
esse longo período ficou marcado pelo agravamento das desigualdades sociais, uma
velha deformação que surgira com o primeiro surto industrial do País, nas décadas
de trinta e quarenta, mas que atingiu seu paroxismo pela desatenção dos governos
militares ao planejamento familiar e, após 1967, ao Estatuto da Terra e à necessidade
de abrir a economia21 • Surgiram, dessa forma, entre outros, o Maior Valor de Refe-
rência - MVR (Lei n 6.205/75), a ORTN rediviva (Lei n 6.423/77) e o Índice
Q Q
Essa sucessão demonstra cabalmente que nesses últimos cinqüenta anos o Brasil
teve abundante manipulação monetária mas, nunca mais, gestão monetária e, ainda,
que, até hoje, as reformas monetárias foram paliativos e não lograram recuperar a
credibilidade e a seriedade da moeda nacional.
A tal ponto a cultura inflacionária permeou o direito brasileiro que, não sem
certa tristeza, perpassa do texto, Letácio Jansen constata que a Constituição de 1988
em vez de combatê-la a estimulou, mantendo a correção monetária em mais de um
dispositivo de seu texto. Assim é que, na parte permanente ela está presente no art.
21 Diagnósticos insuspeitos de Roberto Campos como erros do período revolucionário. no artigo Pingos
nos ii ...• in "O GLOBO". 3 de abril de 1994. p. 7.
22 Milton Flaks. em exposição feita em 14 de março de 1994. na Procuradoria Geral do Estado do Rio
de Janeiro. alinhou os dados acima e calculou em um quintilhão por cento a inflação desses 42 anos. se
medida apenas pela desvalorização da moeda. O cálculo não considerou a próxima transformação. que
elevará. pelo menos, em mil vezes mais esta cifra astronômica.
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201, § 3°, que manda "corrigir monetariamente" os salários de contribuição; no art.
202, que assegura a aposentadoria nos termos da lei, calculando-se o benefício sobre
a média dos trinta e seis últimos salários de contribuição, "corrigidos monetaria-
mente" mês a mês e, no mesmo artigo, a menção à preservação de "valores reais".
Na parte transitória o número é ainda maior: arts. 33,46,47 e 57, caput, o que levou
o ilustre jusmonetarista a referir-se a uma verdadeira "ideologia do valor real", que
perverte o correto conceito de valor nominal e, saindo do Executivo, passou à Lei,
à Constituição e, finalmente, aos mores do povo lJ •
Finalmente, mesmo depois de introduzido o último dos índices. o mais complexo
deles, a URV, pela Medida Provisória n2 434/94, novamente como sentido de unifi-
cação que parece ter sido a intenção do legislador, precursor de futura moeda, o real,
a cultura dos indexadores ou "ideologia do valor real" mostra sua persistência na
manutenção de inúmeros índices: a TR, para transações financeiras, do mercado de
capitais e de seguros; a UFIR, para as obrigações fiscais federais; os índices setoriais,
para reajuste ou revisão de contratos com periodicidade mínima de um ano e, ainda,
toda a bateria de indexadores fiscais estaduais e municipais existentes.
Como se pode observar, ainda que tenha havido propósito de devolver o País
ao nominalismo, a Reforma Monetária em curso continua a tratar, como todas as
precedentes, com embaraçosa desigualdade os diferentes tipos de créditos, tendo
sido mantidos, por exemplo, os privilégios do setor fiscal (UFIR e unidades locais),
mas como resultado de pressões, acabaram sendo discriminados os servidores pú-
blicos estaduais e municipais que não ficaram expressamente cobertos pela URV,
.condenados a perder o "poder aquisitivo" ou o "valor real" de seus respectivos
vencimentos, soldos, proventos e pensões. Nenhum indexador, enfim, é bom, salvo
se for universal, confundindo-se, assim, com a nova moeda. Se a transição era para
que o País se acostumasse ao "novo" indicador, não era necessária, pois já de décadas
que os yonhecemos bem e seus efeitos perversos. O que se quer do Governo é apenas
uma moeda estável; o resto, uma economia próspera, a sociedade o faz.
11. Jurisprudência
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e a derrocada dos princípios que deveriam suportá-la. O Estado gastador logrou
gastar também, juntamente com a sua moeda, a sua própria lei.
Como resultado inercial já não é mais de se estranhar que a correção monetária
tenha sido adotada jurisprudencialmente com fundamento na eqüidade, como resul-
tado de formulações distorcidas dos planos monetários denominados "Cruzado
Novo", em 1989 e "Collor", em 199024 •
O Supremo Tribunal Federal não tem conhecido de recurso extraordinário a
respeito dessa correção monetária por eqüidade entendendo que se trata de matéria
interpretativa de lei infraconstitucional.
Existe, todavia, pronunciamento da Suprema Corte quanto ao delicado o mo-
mentoso tema jurídico da alteração do padrão monetário, reconhecendo a execução
imediata das leis que a instituem, não se podendo opor a um novo regime legal da
moeda "limitações de direito adquirido ou do ato jurídico perfeito"25
Essa jurisprudência confirmou assim, o entendimento que o autor dessas notas
ex pendeu nas conclusões de um trabalho especialmente dedicado ao exame da
Reforma Monetária de 1990 e à retenção dos ativos líquidos por ela decretada:
"A raiz do equívoco está na insistência no setorial: não se está diante de matéria
tributária, nem de matéria civil, nem tampouco de intervenção no domínio econô-
mico.
A real natureza jurídica dos fenômenos examinados é monetária e, assim, seu
fundamento é constitucional e os princípios que lhes são aplicáveis não são encon-
trados nos Títulos VI e VII da Constituição, mas no Título III (art. 22, m, VI e VII).
Para que se possa afirmar a existência ou não de violação constitucional de uma
reforma monetária e do regime de conversão adotado, é preciso partir de conceitos
monetários constitucionais.
São, portanto, erros de percepção e de enquadramento sistemático que conduzem
às hipóteses de inconstitucionalidade."
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porém, suficiente abrangência para evitar os erros cometidos nos Planos anteriores:
as obrigações continuam a receber tratamento diferenciado segundo sua natureza:
há obrigações em URV e há obrigações em cruzeiros reais e há, ainda, deflatores
para a conversão (art. 21, para salários, vencimentos e soldos; art. 22, para proventos
e pensões e art. 36. em geral, precedendo a emissão do real; aliás, o caso deste art.
36 é bem revelador da patologia econômica que resulta do manejo tecnocrático dos
índices, violando o princípio constitucional do direito adquirido).
A característica do novo Plano é a adoção provisória de um dúplice padrão
monetário no País: um padrão de valor - a URV, e uma moeda de pagamento - o
cruzeiro real, dissociando as duas principais funções da moeda: o padrão de curso
forçado e o padrão do valor. Essa situação deverá subsistir até a substituição do
cruzeiro real pelo real, quando, então, deixará de existir a URV e, espera-se, todos
os demais índices oficiais de valor. O que seria mais um indexador é, portanto, um
padrão monetário de valor, dissociado da moeda corrente, cumprindo-lhe as funções
de mensurador universal de valores econômicos. No interregno, até a adoção do real,
subsistem, entretanto, como já apontado, não obstante a URV, índices obrigatórios
e facultativos (setoriais) para a correção monetária de certos créditos (art. 11).
Para evitar a chamada "dolarização" da economia, que já se esboçava antes do
Plano em curso, tomou-se explícita a vedação de contratar-se reajuste vinculado à
variação cambial (art. 62 ). Isso deixou a impressão de que antes não existiria tal
vedação, pois ainda hoje há divergências na interpretação do Decreto-Lei n2 857/69,
que proscreve o pagamento em ouro ou moeda estrangeira, salvo nos casos que
excepciona, de financiamentos estrangeiros, de importação e exportação.
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Aristóteles, para quem a palavra nômisma, que significava dinheiro em grego, tinha
sua origem em nomos, que quer dizer Lei. Fiel a essa tradição, Molineu, no século
XVI, atribui a origem da palavra nominalismo a nômisma. Nominal, por tanto,
significa que é proveniente da Lei. Como norma e valor, na lição de Kelsen, são
conceitos correspectivos, norma legal corresponde a valor nominal. A moeda, como
um valor nominal, é uma norma legal." E prossegue o autor adiante:
"Foi o nominalismo que, aliado ao padrão-ouro nas relações financeiras inter-
nacionais, propiciou ao século XIX uma estabilidade, até então nunca vista, da ordem
econômica interna, protegendo o mercado das alterações monetárias tão freqüente-
mente condenadas pela burguesia nos séculos anteriores. Enquanto preconizava um
rígido nominalismo no plano das relações jurídico-econômicas internas, a burguesia
esperava-se em preservar o ouro, no plano externo, como padrão internacional. Para
compatibilizar esses dois princípios os governos mantinham parcialmente em circu-
lação (ou guardavam em depósito como lastro) os metais preciosos. "26
A correção monetária foi uma terapia de urgência que se transformou na própria
doença terminal. Ao nos livrarmos dela teremos acesso à comunidade econômica
mundial, que a desconhece e a vê até como curiosidade.
Apesar de seus equívocos e dos problemas técnicos que apresenta, deve-se
esperar que a Reforma Monetária em curso tenha todo o apoio da sociedade e do
Congresso Nacional que, de sua parte, deveria direcionar também a revisão consti-
tucional para a adoção plena de um rigoroso nominali~mo monetário, inclusive com
a instituição de um Banco Central independente, capaz de zelar pela moeda nacional
com a mesma autonomia e isenção com que o Supremo Tribunal Federal tem a seu
cargo zelar pela Constituição nacional.
Quem produz é a sociedade. O dinheiro é a expressão de seu produto econômico.
O Estado apenas administra. Administração Pública é mister de quem não é dono
mas tem a seu cargo gerir interesses alheios, definidos por lei como interesses
públicos. A moeda pertence à sociedade, enquando reflexo da sua economia; cabe
ao Estado administrá-la e não dela se assenhorear para finalidades estranhas à ordem
jurídica.
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