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Modos de Existir e Habitar PDF
Modos de Existir e Habitar PDF
Ruy Sardinha Lopes é mestre e doutor em Filosofia, coordenador do Núcleo de Estudos das
Espacialidades Contemporâneas (NEC-USP), professor e pesquisador do Instituto de
Arquitetura da USP- São Carlos.
Chama-nos atenção a relação sugerida pelos dois termos que nomeiam tal programa
– “Minha casa, minha vida”-, que, ultrapassando a questão da moradia como um
direito, coloca-a como vital; ainda que, nesse caso, mediada pelo pronome possessivo
garantidor da propriedade privada.
Mas não seria o habitar uma experiência originária, o modo como os homens são e
estão no mundo? Já terá o leitor certamente percebido que nos aproximamos da
revisitação dos conceitos de Construir, Habitar e Pensar empreendido por Heidegger
em conferência de 1951. Ainda que o filósofo alemão alerte seus ouvintes não tratar
de arquitetura, revela-nos o quanto suas práticas nos deixam desabrigados ao se
afastarem das relações essenciais postas por esses conceitos, só advindas pelo vigor
da linguagem.
É curioso observar que o ano em que Heidegger proferiu tais palavras foi também o da
realização do VIII CIAM, na Grã-Bretanha, ponto de inflexão nos programas urbanos
preconizados pela geração anterior, que opunha às patologias da cidade moderna a
recentralização propiciada pela atenção ao “coração da cidade”. O caminho estava
aberto para que, na década de 1960, as teorias do lugar proliferassem, incorporando
em grande medida as proposições heideggerianas.
Para evitarmos essas nostalgias adâmicas e com isso revisitar o conceito de habitar
de uma maneira mais produtiva à nossa condição, talvez tenhamos de substituir a
figura do camponês primitivo por outra, antevista nos argumentos de Heidegger, a do
artesão-produtor. O trabalho, relação vital, produtor da existência, também pode ser
visto, numa temporalidade pré-moderna, como a expressão de uma relação noética
entre o homem e o mundo, acionando hábitos e atitudes específicos. Entretanto,
alerta-nos Karl Marx, tal atividade vital não ocorre de modo isolado. Os homens não
produzem sozinhos, este trabalho pressupõe uma forma de sociedade, historicamente
determinada.
Neste sentido, a habitação, fruto do trabalho humano, pode ser pensada como coisa
tecnológica, pois resultado de uma techné, indicadora do estado social no qual os
homens vivem e se constituem (Engels). Tal característica, do trabalho e seus frutos,
permite-nos iluminá-los a partir do conceito de individuação (Simondon).
É pois para a co-habitação entre o singular e aquilo que permanece, como resíduo,
universal (ou pré-individual) que as edificações apontam. Não o resguardo de um
sujeito pacificado porque pertencente a uma essência, mas a constante mediação
entre reais díspares. Ciente e cioso da instabilidade e dos influxos que lhe atravessa e
lhe constitui o habitante segue modificando sua relação com o meio e a si próprio.
Referências