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Modos de existir e habitar

Ruy Sardinha Lopes é mestre e doutor em Filosofia, coordenador do Núcleo de Estudos das
Espacialidades Contemporâneas (NEC-USP), professor e pesquisador do Instituto de
Arquitetura da USP- São Carlos.

Num momento onde a questão habitacional torna-se um dos carros-chefes das


políticas públicas do governo federal, assumindo inaudita extensão publicitária e
também rearticulando, sobre novas bases, assistencialismo, financeirização e
mercados de trabalho, a revisitação conceitual proposta por este número da Revista
V!RUS nos parece providencial.

Chama-nos atenção a relação sugerida pelos dois termos que nomeiam tal programa
– “Minha casa, minha vida”-, que, ultrapassando a questão da moradia como um
direito, coloca-a como vital; ainda que, nesse caso, mediada pelo pronome possessivo
garantidor da propriedade privada.

Deixando de lado a questão, igualmente importante, sobre o rebatimento da


privatização da vida nas formas de se habitar e nos hábitos aí gestados, gostaríamos
de nos deter na relação entre habitação e vida. Nosso ponto de partida, um programa
habitacional, aponta ainda para a construtibilidade destes modos de vida e,
conseqüentemente, para o artefato arquitetônico. Assim, da casa adâmica à edificação
de sistemas funcionais que visam atender às necessidades humanas calculáveis
observaríamos a passagem do habitar à habitação, desmitologização do existir em
prol de uma vida cada vez mais administrável.

Mas não seria o habitar uma experiência originária, o modo como os homens são e
estão no mundo? Já terá o leitor certamente percebido que nos aproximamos da
revisitação dos conceitos de Construir, Habitar e Pensar empreendido por Heidegger
em conferência de 1951. Ainda que o filósofo alemão alerte seus ouvintes não tratar
de arquitetura, revela-nos o quanto suas práticas nos deixam desabrigados ao se
afastarem das relações essenciais postas por esses conceitos, só advindas pelo vigor
da linguagem.

Assim, Heidegger nos mostra o quanto o significado original do verbo bauen


(construir), a saber, habitar, perdeu-se. É que além de indicar um tipo de
comportamento, ao lado de outros, bauen tem a mesma origem de ser (explicitada na
forma bin (sou)). Portanto, o Buan, o habitar, é “a maneira como tu és e eu sou, o
modo segundo o qual somos homens sobre essa terra.”

Experiência constitutiva, o habitar traz, agora em saxão primitivo wuon, o sentido de


resguardo, não simplesmente a preservação da ameaça e do dano, mas o de-morar-
se, permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento, resguardado em sua
essência. Relação eidética a partir da qual o assenhorar-se do espaço institui,
necessariamente, um lugar, isto é, espaço existencialmente determinado, com seus
altos e baixos, seus lados, limites, proximidades e distâncias, luz e sombra e, por fim,
seu teor afetivo (temeroso, confortável etc.)” (FURTADO, 2005).
Caberia às construções o deixar-habitar, aí reside sua “coisicidade”, a liberação de
lugares para a morada dos homens. Habitar pressupunha, então, uma experiência
(Erfahrung) em seu sentido forte, nos termos benjaminianos. Nas palavras de
Heidegger:

Pensemos, por um momento, numa casa camponesa típica da Floresta Negra,


que um habitar camponês ainda sabia construir há duzentos anos atrás. O que
edificou essa casa foi a insistência da capacidade de deixar terra e céu, divinos e
mortais serem, com simplicidade, nas coisas. Essa capacidade situou a casa
camponesa na encosta da montanha, protegida contra os ventos e contra o sol do
meio-dia, entre as esteiras dos prados, na proximidade da fonte. Essa capacidade
concedeu-lhe o telado de madeira, o amplo vão, a inclinação íngreme das asas do
telhado a fim de suportar o peso da neve e de proteger suficientemente os cômodos
contra as longas tormentas das noites de inverno (...) Quem construiu a casa
camponesa foi um trabalho das mãos surgido ele mesmo de um habitar que ainda
faz uso de suas ferramentas e instrumentos como coisas”.

Não estaria, com o desenvolvimento das forças produtivas acionado pela


Modernidade, esta experiência interditada? Não seria a arquitetura do vidro e da falta
de vestígios a expressão moderna desse desenraizamento? Não deveria, pois, a
arquitetura responder às novas necessidades, cada vez mais universais, postas em
ação pelo universo produtivo?

É curioso observar que o ano em que Heidegger proferiu tais palavras foi também o da
realização do VIII CIAM, na Grã-Bretanha, ponto de inflexão nos programas urbanos
preconizados pela geração anterior, que opunha às patologias da cidade moderna a
recentralização propiciada pela atenção ao “coração da cidade”. O caminho estava
aberto para que, na década de 1960, as teorias do lugar proliferassem, incorporando
em grande medida as proposições heideggerianas.

Seriam estes gestos ônticos, afirmadores da poeticidade da arquitetura e do


urbanismo, capazes de rearticular os cacos da experiência dispersos pela cidade
contemporânea ou a inautenticidade é nosso destino? Ao correr os olhos pelos
eventos arquitetônicos e urbanísticos atuais percebemos que, em grande medida, a
estetização dos genii loci constitui poderoso instrumento de atenção às novas
funcionalidades do capital.

Para evitarmos essas nostalgias adâmicas e com isso revisitar o conceito de habitar
de uma maneira mais produtiva à nossa condição, talvez tenhamos de substituir a
figura do camponês primitivo por outra, antevista nos argumentos de Heidegger, a do
artesão-produtor. O trabalho, relação vital, produtor da existência, também pode ser
visto, numa temporalidade pré-moderna, como a expressão de uma relação noética
entre o homem e o mundo, acionando hábitos e atitudes específicos. Entretanto,
alerta-nos Karl Marx, tal atividade vital não ocorre de modo isolado. Os homens não
produzem sozinhos, este trabalho pressupõe uma forma de sociedade, historicamente
determinada.

Neste sentido, a habitação, fruto do trabalho humano, pode ser pensada como coisa
tecnológica, pois resultado de uma techné, indicadora do estado social no qual os
homens vivem e se constituem (Engels). Tal característica, do trabalho e seus frutos,
permite-nos iluminá-los a partir do conceito de individuação (Simondon).

Pensando a individuação como um processo contínuo, em oposição às tendências


substancialistas que concebem o indivíduo com um dado, Simondon afirma a
necessidade de vê-lo como um indivíduo que constantemente está se individualizando.
Se o pré-individual pode ser entendido como a natureza (o indeterminado) que o
indivíduo leva consigo, como a percepção sensorial, a língua histórico-natural ou as
relações sociais de produção dominantes, constitui o meio (milieu) no qual o indivíduo
emerge ao tempo em que nele age. Enquanto campo de possibilidades, o pré-
individual habita-lhe, constituindo-lhe como indivíduo social.

É pois para a co-habitação entre o singular e aquilo que permanece, como resíduo,
universal (ou pré-individual) que as edificações apontam. Não o resguardo de um
sujeito pacificado porque pertencente a uma essência, mas a constante mediação
entre reais díspares. Ciente e cioso da instabilidade e dos influxos que lhe atravessa e
lhe constitui o habitante segue modificando sua relação com o meio e a si próprio.

Ao reagir aos avanços das forças produtivas que caracterizavam a modernidade do


início do século XX, operou-se, segundo Walter Benjamin, uma mudança do conceito
(e das formas) do habitar - que se no século XIX se traduzia pelas marcas de uma
singularidade oposta ao mundo exterior e no início do século XX se tornaria um
espaço indiferenciado. A pergunta que nos resta inquirir – e cuja atenção às moradas
contemporâneas podem indicar um caminho – é justamente sobre as individuações
decorrentes deste novo embate, contemporâneo, entre os indivíduos e a vida, a
existência e as condições do existir, o desejo e o que lhe constitui, minha casa e
minha vida.

Referências

FURTADO, José Luiz. Fenomenologia e crise da arquitetura. Kriterion, Belo


Horizonte, v. 46, n. 112, Dec. 2005 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-
512X2005000200022&lng=en&nrm=iso>. access on 18 Apr. 2011. doi:
10.1590/S0100-512X2005000200022.

HEIDEGGER, M. Construir, Pensar, Habitar . Tradução de Marcia Sá Cavalcante


Schuback. Disponível em
http://www.prourb.fau.ufrj.br/jkos/p2/heidegger_construir,%20habitar,%20pensar.pdf

SIMONDON, G – La Individuation Psychique et Coleective. Paris: Aubier, 2007.

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