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Vol. No.

Rev. Bras. Fisiot. 4, I (1999), 19-25


@Associação Brasileira de Fisioterapia

AÇÃo DO ULTRA-SOM TERAPÊUTICO SOBRE A VASCULARIZAÇÃO PÓS-


LESÃO MUSCULAR EXPERIMENTAL EM COELHOS

Dionísio, V. C. I e Volpon, J. B. 2
I
Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Universidade de Ribeirão Preto, UNAERP
2
Departamento de Cirurgia, Ortopedia e Traumatologia, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP
Correspondência para: Valdeci Carlos Dionísio, Rua Iguape, 1261, ap. 14, Jardim Paulistano,
CEP 14090-090, Ribeirão Preto, SP
Recebido: 07/10/98 - Aceito: 09/08/99
RESUMO
Foi analisado o efeito da aplicação do ultra-som terapêutico na vascularização do músculo após ser provocada uma lesão experimental.
Foram utilizados 10 coelhas da raça Nova Zelândia, com peso médio de 2,5 kg. Os animais foram submetidos à lesão por esmagamento
do músculo reto femoral em ambas as coxas de acordo com o modelo cirúrgico de Allbrook (1962), e após 24 horas, um dos lados foi
tratado com ultra-som terapêutico e, o outro, serviu como controle. A freqüência utilizada foi de 1 MHz e intensidade de 0,5 W/ cm2
por 5 minutos, durante 10 dias consecutivos. Após 48 horas do término do período de tratamento, os animais foram sacrificados.
Realizou-se a lavagem do sistema vascular com solução fisiológica e depois fez-se a injeção de uma solução de sulfato de bário e tinta
da China por meio de um cateter introduzido na aorta abdominal. Os músculos do fêmur foram ressecados e submetidos ao processo
de diafanização, de acordo com a técnica de Spalteholz. Depois que as peças foram fatiadas e tornaram-se transparentes, foram
examinadas por microscópio cirúrgico. Os resultados não mostraram diferenças no padrão da vascularização (artérias e arteríolas)
entre os lados tratados e não-tratados, sugerindo que o ultra-som terapêutico não provocou mudanças no padrão vascular após aplicação
precoce em lesão muscular.
Palavras-chave: ultra-som, neovascularização, músculo esquelético, lesão muscular.

ABSTRACT
The effects of therapeutic pulsed ultrasound was investigated on experimental muscular lesions of rabbits. Ten white New Zealand
rabbits weighing 2,5 kg were operated on and a crush injury of the rectus femoris on both hind limbs was performed according to the
Allbrook technique. Twenty-four hours later therapeutic ultrasound was applied on one side and the other side was kept as a control.
The following parameters were used: frequency 1 MHz, intensity 0,5 W/cm2 , treatment time 5 minutes and a whole of IO sessions
were completed. Two days after completion of the treatment the animals were killed and the arterial system of the hind limbs was
injected with a mixture of barium sulphate and Indian ink. The quadriceps was harvested and processed according the Spalteholz
technique. The vasculature of the specimens, specially in the local of thc injury was studied. The results showed no difference in the
vascular pattern between treated and untreated sides.
Key words: ultrasound, angiogenesis, skeletal muscle, muscular lesion.
INTRODUÇÃO da permeabilidade celular (Dyson & Suckling, 1978),
aumento da síntese protéica e de DNA (Pospisilová, 1976),
As ações biológicas do ultra-som têm sido aumento do trânsito de íons cálcio e metabolitos através da
investigadas desde a introdução deste recurso terapêutico, membrana celular (Roche & West, 1984), aumento da
há mais de 50 anos. Os efeitos considerados térmicos são atividade fibroblástica, desgranulação dos macrófagos
o aumento da elasticidade de estruturas colagenosas, (Young & Dyson, 1990a) e a angiogênese (Young &
diminuição da rigidez articular, diminuição da dor e do Dyson, 1990b), todos em benefício do processo de
espasmo muscular e aumento do fluxo sangüíneo (Dyson, reparação.
1987). Os efeitos tidos como não-térmicos são o aumento

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As lesões musculares por sua vez, têm alta incidência, comprimento. A pele foi afastada e divulsionada para permitir a
sejam no indivíduo sedentário, atletas ocasionais ou de visualização da massa muscular do quadríceps e identificar o
competição que buscam recuperação rápida e de qualidade, septo entre os músculos reto femoral e vasto lateral (Figura Ia).
de modo a recuperar a condição pregressa. O processo de Em seguida,
reparação muscular apresenta uma seqüência básica de foi feita a divulsão muscular pelo mesmo septo e separados
eventos, que inicia-se pela degeneração da fibra lesada, os dois músculos até a face medial da coxa (Figura 1 b).
observada entre 6 e 24 horas pós-Iesão (Crisco et al., 1994), Depois, com régua milimetrada, foi determinada uma
ativação de células satélites e intensa inflamação entre 24 e distância de 3,0 cm do pólo superior da patela, com o joelho
48 horas pós-Iesão (Lehto & Jãrvinen, 1991) e ativação de em 900 de flexão.
fibroblastos depois de 24 a 36 horas (Fisher et al., 1990). O Nessa localização foi introduzida uma pinça
colágeno tem o importante papel de regular o crescimento hemostática do tipo "Kelly", de modo que o músculo reto
da fibra muscular (Allbrook, 1962) e as células satélites, femoral ficasse preso entre suas extremidades (Figura IC).
após ativadas, diferenciam-se em mioblastos e fundem-se O limite de introdução foi padronizado com uma marca na
aos miotubos e aí são produzidas as proteínas musculares própria pinça que foi a mesma utilizada em todos os
específicas para finalizar o processo de reparação. animais. Assim que posicionada, foi efetuado o
Todo esse processo é dependente da vascularização, esmagamento muscular com o fechamento da pinça até o
que fica intensificada do 3 0 até 0 122 dia pós-Iesão (Józsa primeiro dente da cremalheira, por 30 segundos (Figura Id).
et al., 1980). Esta vascularização é necessária à chegada de A pinça foi retirada e a lesão produzida inspecionada
elementos celulares e suprimento de sangue, que tornam o (Figura le). Em seguida, a pele foi suturada (Figura ID e
meio ambiente inicialmente anaeróbio em um meio aplicado novamente álcool-iodado 4%. O mesmo
aeróbio, que parece ser o mais propício para a reparação procedimento foi realizado na coxa oposta. As incisões, em
muscular (Lehto & Jãrvinen, 1991). ambas as coxas foram suturadas e permaneceram expostas
Embora o ultra-som seja muito utilizado para sem que houvesse a realização de curativos.
tratamento da lesão muscular, há muitos questionamentos
quanto a sua eficácia. Gam & Johannsen (1995), em revisão Aplicação do Ultra-som
bibliográfica sobre o ultra-som no tratamento das desordens A primeira aplicação do ultra-som ocorreu 24 horas
músculoesqueléticas, mediante meta-análise, encontraram após a produção da lesão e repetida por dez dias
em apenas nove trabalhos evidências de que o ultra-som consecutivos, no mesmo período do dia. O ultra-som foi
tenha sido o responsável pelos achados e concluíram que o usado no modo pulsado a 50% (1 :2), freqüência de 1,0
tratamento ultra-sônico está baseado em atitudes empíricas. MHz, intensidade de 0,5 W/cm2 (SATA) e tempo de cinco
Todavia, a necessidade de um gradiente hipóxico minutos por aplicação. Antes de cada lote de animais o
inicial para ocorrer o crescimento do capilar sangüíneo aparelho era calibrado com dosímetro de precisão. Os
(Knighton et al., 1981) e a possibilidade de diminuição na animais de numeração par tiveram as coxas esquerdas
pressão de oxigênio no tecido muscular após irradiação tratadas e, os de numeração ímpar, as coxas direitas. A
ultra-sônica (Rubin et al., 1990), sugerem que o ultra-som aplicação deu-se na face anterior da coxa e sobre a região
pode ser benéfico à reparação muscular. Assim, este da lesão. Foi utilizado gel como meio aplicador e o
trabalho propõe a investigação da possível associação direta cabeçote foi modificado para adequar o transdutor ao
do efeito do ultra-som e angiogênese na lesão muscular. tamanho da coxa do animal. O cabeçote tinha formato
cônico que, por meio de dois refletores planos, direcionava
MATERIAL E MÉTODO a onda e provocava a diminuição do comprimento de onda
e o aumento de sua amplitude, sem modificar a energia
Foram utilizadas dez coelhas adultas, albinas da raça Novaliberada (Williams, 1983). O cabeçote foi movimentado
Zelândia, com peso médio de 2,5 kg. Para a realização da lesãopara evitar a geração de calor excessivo.
muscular foi empregado o modelo cirúrgico de Allbrook
(1962), com algumas modificações que consistiram na mudançaTécnica de Injeção de Vasos
do músculo a ser lesado e menor tempo de esmagamento
Dois dias após o término do tratamento os animais
muscular. Os animais foram anestesiados endovenosamente
foram sacrificados com dose letal endovenosa de
com pentobarbital sódico, na dose de 40 mg/kg de peso corporal
pentobarbital sódico. A parede abdominal foi seccionada
e administradas doses adicionais conforme a necessidade de
com uma incisão xifopúbica e a aorta abdominal abordada,
manutenção do plano anestésico. Ambas as coxas foram
dissecada e canulada, no sentido proximal para distal, com
tricotomizadas, os coelhos colocados em decúbito lateral e o
cateter de oxigênio no 6, fixado por fio cirúrgico 50. A veia
joelho em 90 0 de flexão. A anti-sepsia foi feita com álcool-
cava inferior também foi seccionada de modo que seu
iodado 4%. A incisão foi realizada na face externa da coxa,
conteúdo pudesse refluir livremente. Em seguida, foi feita
longitudinal, retilínea e com aproximadamente 2,5 cm de
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a lavagem do sistema vascular com solução fisiológica, fixação e o membro posterior do animal foi amputado
injetada com uma seringa de vidro conectada ao cateter, proximalmente ao osso ílio e distalmente no terço médio
até que o refluxo estivesse límpido (cerca de 500 ml). da perna. A peça resultante foi colocada em solução de
Depois, foi injetada uma solução de sulfato de bário 70% formalina (formol a 10%) por dois dias. Depois, a pele foi
e tinta da China 30% (Volpon & Santos Neto, 1983) com removida, a articulação coxofemoral desarticulada e
seringa de vidro conectada ao mesmo cateter iniciado o processo de diafanização. A peça foi colocada
(aproximadamente 15 ml). em solução de álcool 70% por 48 horas e, depois, mantida
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Figura 1. Principais etapas cirúrgicas de produção da lesão muscular. A — visualização da massa muscular do quadríceps. B — divulsão do músculo
reto femoral. C — posicionamento da pinça até a marca padronizada para produzir a lesão. D — esmagamento muscular. E — músculo
esmagado com demarcação dos dentes da pinça. F — pele em álcool absoluto por nove dias, com troca da solução a
suturada. cada três dias. Foi removido o músculo quadríceps femoral
em bloco, descolando-o da inserção femoral, com secção
do tendão patelar e iniciado o processo
A pressão de injeção foi manual e controlada de clarificação de acordo com a técnica de Spalteholz (Volpon &
empiricamente, de modo a permitir livre fluxo da solução, Santos Neto, 1983). Para tanto, o músculo foi mantido em
evitar excesso de pressão c ruptura dos vasos. Cerca de benzeno puro por cinco dias e, depois, os componentes do
uma hora após a injeção do corante estava completada sua quadríceps foram dissecados e separados, ficando presos apenas
pelo conjunto tendão quadriciptal e patela. Os músculos foram Outros ramos vasculares independentes penetravam
amarrados em quadros de aço de 6 x 12 cm para impedir retração na periferia do músculo e subdividiam-se e realizavam
e preservar o comprimento nas etapas seguintes. Todo o conjunto conexões anastomóticas com os ramos provenientes do
foi mantido em benzeno. Após relativa transparência (em torno de vaso central (Figura 2b).
uma semana) o músculo reto femoral foi separado e regularizado Na região da lesão foi observada a presença de
em fatias longitudinais de 2 a 3 mm de espessura, com auxílio de
derrame difuso de contraste (Figura 3a e 3b). Houve maior
lâminas de barbear. Estas fatias foram colocadas entre duas
quantidade de vasos de pequeno calibre em direções
lâminas de vidro, presas por clipes metálicos e mantidas em
variadas, situados por toda a área da lesão, diferentemente
benzeno por mais 15 dias para completar a diafanização.
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A análise do material foi feita em microscópio cirúrgico das regiões proximal e distal, característica do aumento de
com aumento de 6 e 10 vezes. As peças foram observadas por vascularização local.
transiluminação com luz proveniente de um negatoscópio Na comparação entre os lados houve semelhança
odontológico. qualitativa em toda a rede vascular, inclusive na região da
lesão. Portanto, entre os lados tratado e não-tratado, não
RESULTADOS foram observadas diferenças significativas na morfologia
da rede vascular, do ponto de vista qualitativo.
Os animais toleraram o procedimento cirúrgico e
foram capazes de apoiar e realizar movimentação ativa com
os membros posteriores durante o período experimental.
Os espécimes apresentaram rica trama vascular que
era originada a partir de um vaso principal na porção central
do músculo, distribuído da direção proximal para a distal.
Deste vaso principal havia divisão de vasos de menor
calibre direcionados para a periferia do músculo, dispostos
mais ou menos com a mesma orientação (Figura 2a). Estes
mesmos vasos emitiam outros vasos de menor calibre e
assim sucessivamente, formando a árvore vascular, com
amplas conexões anastomóticas entre os vasos de diferentes
cali bres. Na região próxima do tendão quadriciptal havia
diminuição da vascularização.

Figura 2. A — músculo reto femoral submetido à injeção de vasos. Há um vaso central que penetra na região proximal do músculo e divide-se
sucessivamente. Outros ramos penetram pelas bordas do músculo e, por subdivisão, realizam ampla anastomose (l ,5x). B — detalhe
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da vascularização (5x). todas estas regiões (Pachioni, 1996), sendo mais difícil
padronizá-las e localizá-las para aplicação do ultra-som.
Foi adotado o modelo descrito por Allbrook (1962), com
DISCUSSÃO modificações, pois pretendíamos obter uma lesão
padronizada, que abrangesse massa muscular e
O ultra-som é um recurso terapêutico muito utilizado vascularização suficientes para a análise proposta. O
no tratamento das lesões musculares, geralmente associado tempo de compressão foi menor do que aquele descrito,
a outras terapias como mobilizações ativas e passivas, para evitar uma lesão grave que poderia até levar à rotura
massagens e resfriamento com bolsas de gelo. A incidência do corpo muscular. Procuramos simular o máximo
destas lesões é maior no âmbito esportivo, onde é comum possível as condições clínicas nas quais as lesões
aos atletas serem submetidos ao tratamento com ultra-som, musculares mais freqüentes são leves ou moderadas.
que tem, aparentemente, sido eficiente.
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Figura 3. Vascularização da região lesada do músculo reto femoral tratado (A) e controle (B). Em ambos músculos há espalhamento do contraste

e proliferação vascular com padrão semelhante (5x). Outra modificação foi quanto à escolha do músculo.
Pareceu-nos mais interessante utilizar o músculo reto
femoral devido a sua localização superficial e formato
Desta forma, foi investigado se a aplicação do achatado. Isto favoreceu a dissecação deste músculo em
ultrasom terapêutico poderia provocar mudanças do relação aos outros componentes do quadríceps, bem como
padrão de neoformação de vasos nas lesões musculares, o tornou as etapas cirúrgicas e o processamento da peça
que poderia refletir-se no processo de reparação, tanto em mais seguros. Aliado a estas vantagens o reto femoral
qualidade como em velocidade. também foi escolhido por ser o quadríceps femoral um
A contusão muscular ou esmagamento do músculo dos elementos que comumente é sede de lesão no homem
foi escolhido como modelo por ser o tipo mais comum de (Lopes et ai., 1994).
lesão, sendo também um modelo experimental bastante Na aplicação do ultra-som 24 horas após a lesão, na
descrito na literatura, junto com as lesões por esforço fase aguda de reparação (Oakley, 1978), foi utilizado o
(Crisco et al., 1994). O modelo de agressão muscular modo pulsado, evitando-se a maior produção de calor
provocada por esforço não foi selecionado, pois as lesões (Dyson et al., 1970; Teer Haar, 1987) e que o processo
podem ocorrer na região proximal, média, distal ou em
inflamatório agudo causado pelo traumatismo fosse
exacerbado (Patrick, 1978).
Foi utilizada a freqüência de I MHz para atingir tecidos mais
profundos do músculo (Draper et al., 1995). A intensidade de 0,5
W/cm2 foi selecionada por ser a mais indicada nesta fase da
reparação (Dyson et al., 1970; Dyson, 1987; Young & Dyson,
1990a) e por não provocar a estase de células sangüíneas (Dyson
& Pond, 1973). O tratamento foi realizado durante cinco minutos
por ser o mais recomendado na literatura (Dyson et al., 1970;
Clarke & Stenner, 1976; Pospisilová, 1976; Hogan et ai., 1982;
Young & Dyson, 1990a; Young & Dyson, 1990b). O período de
dez dias consecutivos de tratamento foi realizado para simular
condições clínicas, além de aproveitar os primeiros dias pós-Iesão
quando ocorre a neoformação de vasos (Dyson, 1987; Young &
Dyson, 1990b).

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