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Ismail Xavier Sertaéo Mar Glauber Rocka e a estética de fome COSACNAIFY PROGRAMA INSTITUTOS LELAQUISIGAG TIENTO - CNP B 3 8 85 7 199 207 a 235 235 Apresentagio Introdugio carfroto 1 Barravento:alienagio versus identidade caPiruto 11 Contraponto 1: O pagador de promessas €as convengies do filme clissico capiroto mt Deus ¢ 0 diabo na terra do sol as figuras da revolugio capfruto 1 Contraponto 1: O cangaceiro, ou o bandido social como espetéculo, carituno ¥ Consideragdes sobre a estética da violéncia Posficio Leandro Saraiva Bibliografia geral Sobre o autor indice onoméstico 1s citados Ficha téenica dos filmes analisados (ter Roche sign Uo Sha] Gado Dl Rey em Dus data ra era do sok Apresentaciio ‘Meu intento neste livro, publicado originalmente em 198s, foi tratar de forma mais incsiva uma questao central na experiéneia do cinema novo: a da relagdo entre seu didlogo com a heranga modernistae os imperativos de uma militancia de efeito politico imediato na conjuntura dos anos 1960. ‘A demanda gerada pela insergo criativa na reflexio de longo prazo sobre a sociedade e a cultura brasileira era posta em correlagio com uma vontade de intervengao diretana vida pote, antes e mesmo depois do golpe militar de 1964, quando foi vivida em rermos distintos face ao periodo populisa ‘A retomada criativa do modernismo e a pedagogia politica forma- am, no entanto, uma equagio nem sempre bem resolvida, e 0 enorme saldo positivo do movimento muito deve & sua adogéo do principio de ‘awcoria que definiu — em nitida tensio com as cobrangas pela “corresio” do recado politico urgente ~a forma dos seus melhores filmes, ua estética. Neste sentido, meu propésito foi superar o cardter redutor e excessiva- mente ideolégico do debate em torno de Glauber Rocha, renovar a visiio dos seus filmes pela atenglo a forma, discutindo, em outros termos, 0 sentido politico de sua mise-en-scéne dentro de sua peculiar jungio entre oc olhar do documenrarista #0 cerimonial dos atores ~ gesto e palavra.! Era preciso assumir de modo mais radical o reiterado reconheci~ mento do que sempre houve de figurativo em seu cinema, de religioso em 1. Quanto a esa tenso enteespagoaberto « mie-anicinetetaizant,entendida como central no estilo de Glauber, ver Ismail Xavier, "Glauber Rocha edi de Phisoir”, in Paulo Paranagus (org), Le Cinéma bd, 1987, 9p. 145-4: Text include no livre de Ismail Navie,Ocinama Brae moderna, 3008, sua “critica da slienagdo”, de contraditério em sua riquissima encenasio da histéria, Expor 0 modo como o conflito entre distintas temporalida- des ganhava expressio na trama e no estilo, desestabilizando a critica da religido presente em seus filmes realizados antes do golpe de 1964. Dai o meu empenho em ressaltar 0 que ha de cireula: e magico no movimento que impulsiona Barravento [1961-62], € 0 que estéimplicado na alegoria da cexperanga de Deus eo diabo na tera do sol (1963-64), filme que oferece um ‘exemplo notavel de composicio do “realismo figural” tao bem explicado por Erich Auerbach em seu clissico Mimesis. Foi o ensaistaalemio que me ajudou a entender como conviviam, no plano da forma artstca, o Glauber Ikitor de Marx ¢ 0 Glauber leitor da Biblia, e de que modo o dilaceramento proprio & alegoria moderna se instalava no que parecia ser uma pedagogia feta de certezas. Procurei mostrar, na leitura do filme, sua condigio de obra- sintese capaz de tornar visivel,e artculada, uma concepglo messianica da Revoluglo muito presente na esquerda latino-americana dos anos 6o. Naquela conjuntura, Glauber encarnava o intelectual militante, com uma sensibilidade peculiar, mas era também o zineasta em clarissima sin- toni com a reflexio sobre cinema moderno realzada nos grandes foruns da época. Isto se evidencia em seus filmes e textos, mas de modos distintos, pois vale lembrar que a palavra do cineasta nfo se projeta de forma autom- tica nos filmes. Estes ndo so apenas produtos da vontade eda ida; sofrem inflexdes vindas das circunstincias e abrigam conflitos, mais ou menos declarados, numa travessia que pode estar cheia de atropelos, como aconte- eu com Barravento, Neste sentido, a andlise imanente no apenas esclarece a estrutura eos sentidos nela implicados, mas também especifica, com mais rigor, as perguntas que devem orientar uma pesquisa voltada para a géne- se de obra, ou sea, para 0 processo de eriaglo ede produgio material do filme. Tal pesquisa jd encontrow urna formulagdo mais sistemética no caso de Deus €0 diabo, em especial no trabalho recence de Josette Monzani, que analisa as varias versdes do roteiro escrito por Glauber ao longo de anos.* 1. Ver Erich Avetboch, Miers 1943. [Ed. brass Mina « presenti de ralidade na ratara ident, 199) 4. Ver Jonette Montani, Génie de Des odio meters dow, 2006, Em contrapartda, embora motivo de muitas observagies que ofereceram ‘dado de um conflito jé conhecido em seu contorno mais geral, a hist6ria de Barravento requer um exame do roteiro de Luis Paulino dos Santos e ‘uma ampliagdo dos dados referentes produgio das imagens, trabalho que esté por ser feito de modo mais rigoroso, Tal eritca genética traria grande contribuigao para o estudo do filme, nio porque aterasse a ordem das ima~ sens que de fato esto ld a exibir a forma criada pela montagem, tal como caracterizei em minha leitura, mas porque especificaria melhor 0 processo que gerou as contradigdes que aponteino filme assinado por Glauber. ‘Uma observagio sobre aandlise aqui feta. Nao se trata de solar os fl- mes e descartar outras interveng6es do cineasta, como as entrevistas, 0s rmanifestos. as declaragdes, Estes sio documentos importantes. No entanto, rio detém a verdade da obra. Confundir a intengio do autor com o sentido efetivo produzido peas imagens e sons écair na “faliciaintencional”, para usar a expressdo do eritico norte-americano William K. Wimsatt Jr! A tarefa da critica muitas vezes envolve o gesto fundamental de apontar a diferenga entre projeto, intenglo e realizagio, pois € a obra que cria 0 autor, ¢ ndo 0 contrério. Cineasta-autor proclamado, Glau- ber se instalou no coragio desta problem: exemplar. Em seus filmes, o cardter heterdclito da enunciagio no cinema a expressou de maneira ‘ver a primeiro plano, pois ele soube inventar formas originais de arti- cular as bandas de som e de imagem, ora incorporando tracos da cultura popular, ora do teatro moderno ou da tradiglo literavia, sem elidir 0 seu didlogo intenso com o cinema de autor europeu que lhe era contemporé ‘neo, ou mesmo com o western dos anos 1950.” O seu cinema nao é cordel, 4. Ver William K. Winsat J. 8¢ Monroe C. Beardsley, “The Intentional Fallacy”. Somence Reriew, v.54 1946, Pp 468-38. Republicado in The Verbal la: Sandie nthe Meaning of oar, 1954 ‘5 Observe alguns tags deste dilogo com o wuz, mas nio expeciiquel alge fundamen ‘a No comentrio a filme, seqhénca por sqldacia, qu integra 0 bv0 de Deu 0 diab, estaeo onto eco da figura de Ethan, de Reso dea [The Stackers, John Ford 1936), n8 composigio de Antdnio das Mores como o parti do fasta, porém reitade. © personae {rm inerpretado por John Wayne, como Antini, éa figura do saber do enigma que faz taba de repress /beraglo dos demas, mas no tem hr na futuro da comunidad sta & uma conextosignifcaiva que no tematze neste io, Vale aqui repro. nem mito de fundagao, #0 ponto de gerenciamento dos confitos entre 6 virios eanais de expressio, confitos que os cineastas de sua geragio tornaram evidentes 20 questionar o imperativo de que uma tinica voz deve orquestrar tudo num flme, levando a exitica a mobilizar as noses de Mikhail Bakhtin para descrever as novas regras do jogo. No easo de Glauber, oessencial era mostrar de que modo o feitio das miscaras é tio importante quanto o teor das agbes priticas e como a dimensio mégica se tece junto com a idéia de determinagio material-hist6rica. Na primeira ediedo desce livro procurei condensar a introdugao e as justificativas de praxe quanto aos procedimentos da andlise, pois julguei que esta devia, por si mesma, fazer-se expresso do quadro conceitual de referéncia, Em contrapartie, vejo agora que, em algumas passagens dos capitulos de contraponto, fui pedagégico, talvez em excesso, nas obser ‘vagGes sobre o cinema cléssico e seu regime de autoridade. Minha tona- lidade seria hoje distinta, dada a ampla disseminacio de variadas formas de cotejo entre o cléssico € 0 moderno, ou entre o cinema de género € 0 cinema de autor. Naquele momento, o desafio maior era definir 0s termos de um capitulo brasileiro do cinema moderno em seu momento de grande impulsio e caracterizar a originalidade de Glauber na articu- lagio do estético e do politico, Sua obra exibe tensies reveladoras num estilo que procurei aprender em detalhe, tinica maneira de esclarecer as formas do tempo trazidas & cena nos seus primeiros filmes, nesses rituais instituidos no ponto de intersecgo entre mito e hist6ria ‘Auuavessundo espagos emblematicos, seu cinema procurou dialo- gar eriticamente com as grandes formas da meméria social e do ima- inirio popular para alcangar uma representacio apta a superar o que cle entendia como limitagdes do teatro psicolégico burgués. Seu ceri= ‘monial, tenso e descontinuo na montagem, compée, a cada passo, um dueto entre a cimera e os atores que ora incorpora o impulso épico de Bertolt Brecht, ora a intensidice do gesto prépria zo teatro da crueldade, de Antonin Artaud, Marcado por um impulso de contradigio, Glauber teceu em suas ‘imagens um drama barroco que, no sentido proposto por Walter Benja- smin, 86 se explicitou com maior clareza na estrutura eno estilo de Terra em erase {1967}. ste filme trazia uma reflexdo exasperada diante do que © cineasta entendia como um reiterado adiamento bem proprio & hists- ria truncada de uma naglo a construir, uma nagio-problema,talvez uma rmiragem, de qualquer modo um hipotético ponto furnro que em Deus ¢ 0 diabo [1963-64], havia pensado numa tonalidade distinta.* Na cena {que configurow no sertdo, a questio central nao era a crise de um projeto, ‘masa forma peculiar de Glauber compor uma teleologia — ada formagio nacional —que tem seu parentesco com outros exemplos de narrativas de fiandagdo, mas exibe ntida diferenca. O seu ponto essencial é 0 reconheci- mento de que tal formagio nao se completou, é da oxdem ds profecia, Tal diferenge se esclarece quando se toma como referéncia 0 western, ‘ou mesmo a representagao da hist6rla universal feita por outro cineas- ta leitor da Biblia: o David W. Griffith de Muolerncia [/nlerance, 1916}. Hollywood pensava o processo de formago nacional como um percurso consolidado e fazia do recuo 20 passado um momento de reflexio sobre 08 valores que deviam ser reafirmados no presente; era um ato de cele- bragio da virtude dos herdis que haviam sancionado, pelas armas, o prin- cipio da boa ordem expresso na le escrita. A procura da justiga, como. ppremissa maior da jornada alegérica das personagens de Glauber, é um. movimento que se repde a cada passo; no entanto, porque incompleto, tal movimento nio dé ensejo para a celebragio de uma totalidade ja consti- tuida, Pelo contrério, o passado e a violéncia slo objeto de uma reflexio tensa, dramitica, que se volta para herdis marcados pela ambivaléncia, ou ‘melhor, para uma ligio da histéria marcada pela ambivalénecia ‘Ao compor sua representagio a partir de tais premissas, a inovagio formal de Glauber traz a primeiro plano a descontinuidade; sua alego~ ria compe movimentos que afirmam avangos, mas no encontram um ponto seguro de apoio que permita a pedagogia serena do ritual civico da indistria cultural, seja a do western classico, seja a da novela de 1 contemporinea. Pelo contrario, os seus filmes compéem os tragos tipi- cos do dilaceramento da consciéncia moderna que ganhou expressio (6, Vermeu comentisio sabre a miragem da nago- sustain Alegre do subdesemovimeno nema now, topical, cinema marginal, 1993, 9.19915 cinematogréfica mais nitida nos anos 1960, em muitos paises. Deste ‘modo, ele se insere no conjunto de experiéncias de renovagio do cinema que aleangaram, naquele momento, um diélogo mais conseqiiente com a arte de seu tempo. Neste particular, hé neste processo uma outra inver- so no menos decisiva: no plano estético, o cinema de Glauber integra = juntamente com outros filmes do cinema novo e obras-primas da Amé- rica Latina, como Memérias do subdesenvolvimento [Memorias del subde- sarrollo, 1968], de Tomés Gutierrez. Aléa~ o elenco de filmes que veio «questionar o preconceito subjacente a uma teleologia que supée ser tare- {fa dos paises centrais (Estados Unidos e nagées européias) produzir as cexperigncias artisticas de ponta, enquanto caberia aos paises periféricos apenas trazer ao mundo da literatura e do cinema o suplemento de um contetido politico concentrado na temética nacional das obras.’ Recu- sando tal premissa, Glauber fer da invencio de estilo a condigdo para a suia intervengdo no debate politico, Definiu, nesta escolha, a forga maior de seu cinema, uma pega-chave no processo cultural que se desdobrow ‘no tropicalismo ¢ em outras experigncias de vanguarda dos anos 1970. © essencial, quando empreendi este estudo, era evidenciar 0 seu trabalho notavel de formalizacio, capaz de recolher o conflito de vozes de toda uma época, fazendo a ponte entre 0 cinema dos anos 1960 € 0 ‘movimento maior que envolve os caminhos do modernismo no periodo posterior & Segunda Guerra Mundial Ismail Xavier, juno de 2007 1 Tal remiss & mas feqjente e essen do que parece, marcendo até mesmo textos de randeoriginalidadee interes exits por autores a quetn dase pode nega agua conte nciapolitice, como Feed meson, Ver seu ens "Thiré Worl Literature inthe Era ‘of Mulknational Capitalism”, Soil Txt. 15, 068. 1986. Introdugao Da fome. A estética. A preposigio “da”, 20 contrario da preposiséo “sobre”, marea a diferenga: a fome nao se define como tema, abjeto do qual se fala. Ela se instala na propria forma do dizer, na propria textura das obras. Abordar 0 cinema novo do inicio dos anos 60 é tra~ balhar essa metifora que permite nomear um estilo de fazer cinema. Um estilo que procura redefinie a relagio do cineasta brasileiro com. a caréncia de recursos, invertendo posigdes diante das exigéncias _materiais e as convengdes de linguagem proprias do modelo industrial dominante. A caréncia deixa de ser obstaculo e passa a ser assumida como fator constituince da obra, elemento que informa a sua estrutura do qual se extrai a forga da expressio, num estratagema capaz de cevitar a simples constatagdo passiva “somos subdesenvolvidos” ou © mascaramento promovido pela imitagéo do modelo imposto que, a0 avesso, diz de novo “somos subdesenvolvidos”. A estética da fome faz da fraqueza a sua forga, transforma em lance de linguagem 0 que até entio € dado téenico. Coloca em suspenso a escala de valores dada, interroga, questiona a realidade do subdesenvolvimento a partir de sua prépria pratica, Neste trabalho, minha atenglo se concentrou nesse estilo de fazer cinema. O objetivo era caracterizé-lo a partir dos filmes, examinados com paciéncia; fazer comparagbes, revelar as implicagdes de certas cescolhas, Esta é a razdo pela qual falei de poucos filmes ¢ me concentrei ‘num 36 autor. Tudo aqui gira em torno da anilise e interpretagao dos filmes de Glauber Rocha realizados antes do golpe de 1964: Barravento [1961-62] e Deus ¢ 0 diabo na tera do sol [1963-64], 5 Como assumo que a melhor analise & aquela que entiquece a per- cepsio das diferengas, dos conflitos, da miinua negaclo existente entre estilo alrenativos, organizei o trabalho na base do ponto-contraponto, Para caracterizar o que o cinema de Glauber é em 1962-64, falo tam bém do que ele no é, marcando os pontos de transformagao, Para iso, tomei exemplos que julgo bastante representativos do cinema nlo-novo beasileiro: dois cléssicos, filmes consagrados que até possuem a curiosa peculiaridade de preceder o cinema de Glauber na esfera da repucago internacional e dos prémios: O pagador de promescas [1962], dirigido por Anselmo Duarte, e O cangaceiro (1953), por Lima Barreto. Um dado fan- damental nao pode ser esquecido: meu olhar sobre 0s filmes de Glauber mais interrogativo; sobre os contrapentos é mais diditico, tendendo 3 sublinhar neles os tragos que tém maior rendimento na comparacio. "Nese sentido, funcionam mais como espelhos, como funndo sobre o qual se torna mais visivel a forma que me interessa caracterizar e discuti. No meu trajeto, procurei dar a palavra ao einema, imagem e som. No entanto, nesse observat, o que bate na tela nio podia pretender com- pleta inocéne - Muita coisa do contexto se fer presente como parte do ‘meu instrumental. Nao fai eu quem escolheu com liberdade alguns dos problemas aqui discutidos, pois eada filme tinha associado a si uma critica que jd havia selecionado certos temas. Meu débito & flagrante para com tudo e com todos que interceptaram meu debate direto com 03 filmes. Sejam os manifestos do proprio Glauber, a critica da época do langamento dos filmes, a reflexio ensaistica de Luis Carlos Maciel, Zulmira Ribeiro Tavares, Paulo Petdigao e Raquel Gerber, para citar alguns exemplos. Seja, em especial o livro de Jean-Claude Bernardes, Brasil em tempo de cinema (1967), que foi pega de constante didlogo 20 longo do texto, mesmo quando nao nomeado. Diante das leituras j fetas, inssti em ver e ouvir, favorecido que ¢stava pelo intervalo de tempo entre produgSo (1962-64) eleitura (1979). 2 Nese an, fo regis arte apresentada i Faculdade de Filosofia, Letras € Ciéncias "Humanas da Universidade de Sto Paulo (us, sob orientago do peo. Antonio Candide ‘de Mello Souza, que acompaniou o trabalho apés a mons de Paulo Emilio Sales Gomes. > Na raiz da minha insisténciaestava a conviego da necessidade de retomar as interpretagDes e discutir os temas mais amplos da estética e da politica dos anos 60 a partir de um contato mais euidadoso com as obras. Sabemos que Glauber Rocha, como outros artistas naquela década, trazia consigo o imperativo da participagdo no processo politico-social, assumindo inteiramente 0 cardter ideolégico do seu trabalho ~ ideol6- ‘gico em sentido forte, de pensamento interessado e vinculado & luta de classes. Afirmava entio o desejo de conscientizar o povo, a intengio de revelar os mecanismos de exploracao do trabalho inerentes & estruta- +a do pais ¢ a vontade de contribuir para a construgao de uma cultura nacional-popular;linhas de fora que se manifestavam no cinema, na riisica, no teatro. Era a forma especifica encontrada por artistas bra- sileiros para expressar 0 seu compromisso histérico e sew alinhamento com as forgas empenhadas na transformagéo da sociedade. Diante daquela atmosfera de engajamento, meu propésito foi iden- tticar como, nos filmes analisados, as caracteristicas de imagem e som +e poem como respostas a demandas que vém da esfera do politico e do social, e como também elementos de outra natureza entram no jogo que constitu a obra. ‘Tea chnce ded com Mis i vo Jot Aland Babs, Lig Chap iMate, dro Pt Cai ee Clade Berar que oe a imodigts pouring pars lr angi ex rouge penn tle No sy see oom de miu nies cps de capt et tins deus ego gue om a0 cnt. Nov pd ends Cl ve nen qu ine cn ees ign deo dios nover avi mete arts Clo ao ao mine doe Hoc fi poten Se Mar lar fc tres he a pain remain qu age omen doe estar ‘hen cm cpus om pda cenaogefe cm oul tem sry n> a ive, fare om ra 9676 ponte prado deum paso we i Sime bras q nero de modo daa no proce clos dvd + elo do oie enon dor os Cada filme define um modo particular de organizar a experiéncia em discurso, sendo um produto de miiltiplas determinagées. £ comum se dizer que sio redutoras as andlises que reconhecem no filme apenas aquilo que esti na ideologia formulada nos manifestos ou nas entre- vvistas do autor. E 0 mesmo é dito das analises que, partindo do filme, saltam com certa pressa de um resumo do enredo para a caracterizagio da mensagem da obra ou da ideologia do autor. Fala-se de associa- gio mecit ‘a, que nio leva em conta ax mediagtes do processo de representagio. Ou seja, 0 modo pelo qual se conta a estria, os meios 4 disposicdo do autor, as limitagbes impostas pelo veiculo usado, as convengdes de linguagem aceitas ou recusadas, a inscriglo ou no em determinado género. Meu objetivo era justamente levar em conta as mediagdes. Para esclarecer como procurei fazé-lo, comento aqui 0 referencial utilizado na lida com o especifco, a0 cinema ou & narrativa como forma geral de representagio. No percurso que vai da textura do filme & interpretagio, procurei cescolher uma categoria descritiva, um aspecto da elaboragao do filme que servisse de baliza para marcar identidades e rupturas. Ao teabalhar com elementos como decupagem, camera na mio, faux raccord, descon- tinuidade, campo-contracampo e som off, organizei a an de uma questio: a do ponto de vista do narrador, Em outros termos, preocupei-me com o “foco narrativo” (foco no sentido de ponto de onde emana, fonte de propagagio): sua caracterizagio nos diferentes filmes ¢ os significados sugeridos pelo comportamento do narrador em cada caso, Perguntei sempre: Como se conta a estoria? Por que os fatos so dispostos deste ou daquele modo? © que esti implicado na escolha de um certo plano ou movimento de edmera? Por que este enquadra- mento aqui, aquela miisiea a? em torno, Na busca de respostas, procurei reduzi 20 minimo 0 apelo a con- ceitos gerais. Nesta introdugdo sinto apenas necesséria uma observagio «a respeito da nogio de narrador, embora o proprio texto deixe claro 0 seu sentido neste trabalho. Para evitar equivoeos, é preciso nio confun- dir figura do narrador, que pertence & obra, e é elemento a ela inter- no, coma figura do autor, sujeito empirico responsiivel pela produgao 6 da obra, seja uma pessoa ou um complexo industrial, elemento exterior 8 obra. Autor e narrador pertencem @ mundos distintos. Este é figura imagindria tanto quanto as personagens e oatros elementos ligados & ficgdo. Isto fica bem nitido quando explicitamente uma das personagens da estéria € a propria figura mediadora que nos dé a conhecer 0 mundo imaginario que emana de palavras impressas ou de imagem-som na sala escura. Machado de Assis, quando esereveu Dom Casmurro, escolhew fazer de Bentinho narrador da catéria c, nessa cscolha, fez de uma personagem envolvida na ficgio (que tem rome, feigies e comporta~ ‘mento dentro dela) a figura mediadora. No entanto, mesmo quando “na rmoita”, escondido, o narrador pode ser caracterizado e, da mesma for~ rma, ndo se confunde com o autor. Seja qual for 0 processo pelo qual se conta a estéria, 0 narrador é figura logicamente necesséria, mediago pressuposta, em verdade invengao decisiva dos responsiveis pela obra, Invenio como outras e que ocupa Iugar fundamental na organizagao do filme, conto ou romance. No cinema corrente, ¢ em certa literatura naturalist, a figura do narrador se esconde por trés do seu préprio ato, o qual ele executa com certos cuidados. Nao é palpvel, nao tem rosto, nem nos deixa nehum outro trago que ndo seja 0 ato mesmo de narrar. Pelos cuidados que toma, acaba por provocar em nés uma relago muito particular com a Fiegdo, tal como se esta se desenvolvesse por si mesma e a mediasio no existisse, tal como se estivéssemos diante de algo tao autdnomo quan- to certos acontecimentos de nosso cotidiano. Mas, sabernos, li no fun~ do, que estamos diante de um jogo de linguagem, de um faz-de-conta com o qual desenvolvemos uma relagio toda especial e que resulta de uma cumplicidade sutil que envolve a todos. Afinal, o jogo da fiesio implica varias metamorfoses, nos dois extremos do processa: prog consumo, A do préprio autor, que se transforma em alguém ou numa entidade que acredita no que conta como se houvesse visto ou estivesse vendo, testemunhando, ¢ esté empenhado em manter o encanto frente 08 ouvintes ow espectadores; estes, por sua ver, tém a sua metamorfo~ se, pois se transformam em entes capazes de “suspender 0 descrédito”, para usar a expresso de Samuel T. Coleridge, e accitar a autenticidade 7

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