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‘Sem Cuutuna Quando se trata de letra de tevtog Titeréios, o assunto parace envelvar insoluvel polémica, As listas de livros, por exemplo, refletem & Mba _gostos particulares de algumas pessoas fe sempre estdo desaflando outros padrdes e outros gostos, excluidos de parametros supostamente: cortetos de avalar a literatura O livro aborda, corajosamente, algumas questdes polémicas: como definir literatura? ha livros bons em $i? todos devem apreciar o mesmo tipo de texto? hd uma maneira correta de ler literatura? Defende-se a idéia de que se abra mio da tarefa de julgar 0 conjunto dos textos empregando um tnico critério e s€ passe a compreender cada obra dentro do. sistema de valores em que foi criads ‘Assim, na escola haveria lugar, a lado da literatura erudita, também para ler e discutir os livros preferidos pelos alunos, considerando os objetivos com que foram produzidos, os géneros a que pertencem, ‘seu funcionamento textual. Vem para o primeiro plano a questio de que, para além da existéncia de livros bons e ruins, hd uma escolha e o poder de quem escolhe (Marcia Abreu ¢ professoralivre-docente pelo Departamento de Teoria Literéria do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Durante muitos anos, dedicou-se 20 estudo da literatura de folhetos nordestina tem realizado pesquisas na Srea de Historia do Livroe da Leitura Coat) eu Ue msiaeler) ccna nee) paradidaticas — ancia anneu Aotratar de literatura e de valor estético, estamos em ter: reno movedigo e variével endo em terrasfirmes e estaveis. que se considera literatura hoje nao é 0 que se considerava no século XVIII; 0 que se considera uma histéria bem narra- da em uma tribo africana nio 60 que se considera bem nar- rado em Paris; o enredo que emociona uma jovem de 15 anos ho € o que traz ligrimas aos olhos de um professor de 60 ‘anos; 0 que um eritico literdrio carioca identifica como um uso sofisticado de linguagem nao é compreendido por um. nordestino analfabeto. O problema é que o parisiense, o pro: fessor, ocritico literdrio, o homem maduro tém mais pres gio social que o africano iletrado, a jovem, o lavrador. Por isso conseguiram qui a, sua forma de se emocionar, seus textos preferidos fossem vistos como o tinico (ou 0 correto) modo de ler e de sentir. ‘A introdugto da literatura como disciplina escolar teve tum papel decisivo na difusio da idéia de que a Literatura (aquela que se chama de Grande) nao é algo particular histo- seu modo de ler, sua apreciagao estéti- ricamente determinado, mas sim um bem comum ao ser hu- mano, que deve ser lido por todos ¢ lido Nés vamos fazer diferente. Vamos ver, nos préximos capitu- Jos, o que alguns jovens, alguns pobres, alguns analfabetos, algumas pessoas comuns pensam sobre fiego, poesia ebeleza 3 "Versos simples e rudes produzidos pela cultura popular” — a beleza e o sentido ética e o gosto litersrio variam conforme a época, o grupo social,a formagao cultural, fazendo que dife- rentes pessoas apreciem de modo distinto os romances, as ow mam algumas produgdes ¢ algumas formas de lidar com elas ‘como as tinicas validas. E af reclamam porque o brasileiro nao s,s pegas teatrais, os filmes. Muitos, entretanto,to- ce nio tem interesse pela cultura. Muita gente pensa assim ¢ por isso so criadas organizacoes encarregadas de difundir o gosto pela leitura, sao elaboradas propagandas divulgadas pelo ridio, pela televisio, em jornais, em outdoors ‘e em revistas para estimular a leitura e o contato com livros. ‘Quem pensa assim talvez nfo conhega 0 mundo dos fo- Ihetos de cordel, vendidos baratinho em feiras, festas e mer- cados. Em meados do século passado, periodo de auge dos folhetos, era possivel vender milhares de exemplares, se 0 assunto fosse bom. Folhetos sobre a morte de Getiilio Vargas venderam 200 mil exemplares; sobre a rentincia de Janio Quadros, 70'mil; sobre a morte de Lampiao,$0 mil.! Para + MEYER, aye Autores de corde, Sto Poles Abi Educa que voc® tenha uma idéia do que isso significa, é preciso saber, por exemplo, que o grande sucesso de Jorge Amado, Gabriela, eravo e canela, vendeu 20 mil exemplares em sua 1 edigao, em 1958 —o que foi visto por todos como uma venda extraordinéria, Livros menos atrativos, escritos por autores de menor destaque e com investimento em propa- ganda menos intenso, nio passavam dos 1.000 exemplares em uma primeira edigio.? Hoje em dia, as vendas de folhetos so muito menor ‘mas houve um tempo.em que até analfabetos compravam Ihetos, esperando encontrar alguém que pudesse lé-los em. voralta, O escritor Origenes Lessa conta ter encontrado, um dia, na loja do poeta Manuel Camilo dos Santos, uma velha senhora, de labios murchos pela falta dos dentes, acompa- hada de uma menina de uns dez anos de idade. Ambas pa- reciam fascinadas olhando para os folhetos expostos para, venda, Disse a velha: = Seu Camilo, eu queri = Deque qualidade? ~ Qualquer um. — Naotem preferéncia? ~ Quero um bom. O senhor, que é poeta, € quem sabe. Ele remexe no balcao, faz a escolha. = *O {ndio Leao da Selva"... Leve este, que é bom. ~ Se é com indio, eu vou gostar. Ainda mais com leao~ mais um romance. sorri a velha, tio sem dentes, o vivo olhar iluminado. E jade folheto na mao: — Quanto custa? 0 cruzeitos. Afos olhos se anuviam. ‘Af, eu nao posso levar, me desculpe. $6 tenho quatro. Na hesitagao entre os dois entra a voz da menina Nao chega, v6? ‘Chega nao. Comovido, intervenho: Eucompleto, posso? Porisso E freguesa honrada, de toda confianga. Pessoa de muita moral.’ j0 — diz Camilo. ~ Ela paga o resto na outta vez. Origenes Lessa fica admirado coma si tha visto alguém entrar numa livraria, Stes, para comprar um livro “de qualquer qualidade”, lais admirado ainda ficou quando soube que a velha se--°) ora era analfabeta. Quem lia os folhetos era a neta, c a, para a av6 ouvir. b ),poisnunca E dizer que o brasileiro nao gosta de ler... Ao menos os compram folhetos parecem gostar, endo é de hoje A publicagao de folhetos comegou no final do século , na Parafba, onde alguns homens pobres ¢ t Jquiriram prensas manuais de jornais q ra fazer suas publicagdes. Com essas prensas, montaram yuenas gréficas em suas casas, onde, junto coma mulher filhos, transformavam em folhetos os poemas que ti sm composto. O trabalho cra bem dividido: uns monta: 0s clichés, juntando as letras metilicas ¢ formando os jnfioas usavam 108; outros prensavam essas formas sobre o paps am as folhas impressas em quatro, formando um fo- outros colavam a capa. Juase nenhum desses poetas ganhava dinheiro pela com- io dos versos, esim pela comercializagio dos folhetos, “Origees, Avo der poca. ode ani: Pundago Case de Raa 18 vendidos em feiras e mercados, nas estagdes de trem e de Bra Ie se entende, mal versado, mal imado, mal orado, nfo tem oragio. Esse para mim é que € 0 ruim.” S\pcbsye + Ory cessas Sao as regras de um bom poema, Manuel de Almeida Filho continua: ébomevitar Para compor uma “historia desembaragad} actimulo de personagens ede tramas, por isso ndo€ aconse- Ihdvel desenvolver enredos paralelos nem contar com perso- nnagens secundsrios. Pela mesma razo, nio se devem fazer muitas descrigdes, seja de ambientes ou de pessoas, nem dei- xar que o narradorse intrometa demais na histéria. Qualquer elemento que possa desviar a atengio do fluxo central da ‘agdo seré exelufdo para que se possa compor uma narrativa ‘que apresente, de forma articulada, o desdobramento de uma questo central, respeitando, dessa forma, a oragao. Obedeceraesses prineipios, entretanto, nio produz uma “histéria bonita”) O valor do poeta esta na habilidade com ‘que maneja essas regras, na destreza com que compae ere- ‘compe versos e narrativas calcadas em estruturas tradicio- nais. O poeta Manoel de Almeida Filho explica que: romances eruditos, Algumas vezes, modificagdes mais fortes tem de ser fei tas. Apesar de os poetas selecionarem obras préximas ao pa- Adrio de compos passagens do enredo ou ocomportamento de algumas perso- agens parecem totalmente inadequados. A versio de Ocor- o folheco xem esta docura do verso £0 povo nordestino se acostu ceunda de Notre Dame," por exemplo, modifica radicalmente ‘mou a ler 0 verso. Entio o livro em prosa mesmo, ele nfo gosta e © final imaginado por Victor Hugo, fazendo que Phebo e ‘nem gosta do jornal, a noticia do jornal. Ele nao entende. Porque Esmeralda terminem felizes e casados, ao contrario do que sea eae sn ea is ‘corre no romance francés, em que ela morre enforcada eele SAREE Saagc Lai oe Scat emcees ‘casa-se com outta. Nos folhetos de cordel, jovens apaixona- dos e virtuosos sao felizes para sempre no final da hist6ria— ‘€€ assim que o mundo deveria ser, nao 6? do dos romances de cordel, em certos casos, Beleza e compree' ‘W ARAGKO, Poul de, Ocorunda de Nore Dame, Recifenn +d anern anne curren trea Outros autores preferem ser figis ao enredo, ainda que para enfrenta 0 perigo discordem dele. Foi o que fez Jodo Martins de Athayde ao casou-se com a prépria filha recontara histéria de Romeu e Julieta:'* do seu fatal inimigo Quem possui este romance conhece bem o que leu, a esposa de Montéquio ‘em que condigdes morreu também conhece a miséta, e covardia de Romeu. Tanto um como 0 outro tiveram um fim desastrado embora enham morrido um a0 outro abragado Julieta assassinowse eRomeu envenenado lees sme a Hi, entre Shakespeare e Athayde, uma discordancia epee quanto a0 comportamento ideal de um herdi. Os poetas de 0s desgostos que sofia cordel tém a hénra ea vinganga ~ sobretudo a vinganga por Romeu juru vingé-o ‘ofensa familiar —Comovalores supremos, superiores até mes- naquele ou no outro dia. moaoamor. E esses valores devem ser encarnados pelo herdi, que 6, a0 mesmo tempo, expressio de um ideal e modelo de Necro oe ceeen conduta. Se Romeu é “um mogo valente, segundo a biogra- id Gini als it Foo fia” c sua familia foi ultrajada, nfo ha possibilidade de que ele era vingarse de tudo no se vingue. Nao interessase Julieta erabonita ou feta, ainda fingindo como um passeio que ela fosse uma deusa, ele deveria odié-la, O inal trigico é, nfo tinha o que perguntar portanto, um merecido castigo e nfo uma infeliz fatalidade quem bonito nem feio No final do folheto, o narrador explicita sua desaprovagao: Mas ele no fez assim depois que se achou na sala (Quem odeia a covarcia one vi Julieta dangando tem de dizer como eu eis fez tudo para namori-la ‘como 0 rapaz nio vingou-se {2 nda sendo ela uma deusa de tudo 0 que o pai sofreu cle devera odiéla ‘eu escrevi mas nio gosto do romance do Romeu. Romeu foi falsoa seu pai or isso teve castigo Sa ee EmboraAthayde narre fielmente o enredo original, con- lui seu folheto confrontando seus critérios de avaliagao de 3 RRVDE Jago eee ote ecm eS arrativas com a tramashakespeateana, Romeu nao é honra- ‘ejoveterndo desi, 3 jo, no age como se a vinganga por ofensa familiar fosse marcia anney sagrada, Como a narrativa nao segue os padres esperados, a histéria parece mal construfda, nfo agradando ao pocta—c,, muito provavelmente, a seu puiblico -, que conclui:“escrevi mas nao gosto /do romance do Romeu semelhante a essa foi ida pela antropéloga Laura Bohannan em um de seus contatos com os Tv, povo jental."* Vivendo nas provincias do Norte da Nigériayos Tiv sao um povo agricola, que depende do culti- vo da terra eda criagdo de cabras, ovelhas e galinhas para sta sobrevivéncia Atéa dominagio inglesa, viviam sem divisées, sem chefes nem conselhos. A lideranga era baseada na idade e na infh ‘organizagao, mas também a forma de casamento tradicional, ‘que consistia na troca de iris. Quando um homem queria ima em troca da de um outro ho- se casa, ele oferecia su ‘mem, tornando-as,respectivamente, suas esposas, Isso gera- va muita confusao, pois troca nem sempre agradava a am- bos os homens. Por isso, essa forma le casamento convivia ‘com outras: captura, fuga, compra, dote."” Jé se vé que é uma sociedade muito diferente da nossa Laura Bohannan jé sabia de todas essas diferengas, mas es- pantou-seao perceber quio distintas das nossas podiam ser as interpretagodes dos Tiv de uma hist6ria que nés conhece- ‘mos como um clissico da literatura universal Em sua viagem de ea exemplarde Hamlet, de Shakespeare, que lia continuamente devido ao isolamento ¢ inatividade forgados pela época das chuvas. Um dia, um dos homens velhos da aldeia pediu-lhe po, ela tinha levado consigo um 16 BOHANNAN, Laura, Shakespeare nthe bh, Natal Hor, n73, apo 36h, 1966, 928-33. Otextointegralem inlets eps em lec ea ~chipcaciresoure/botonan tl 1 Socety-TV.Caltaresummaryy Marene M Mati, ispiuey.uke a ulEt rianHmae?Cale ditto 7878 que contasse 0 que havia naquele papel parao qual ela olha- va durante tanto tempo. Ela tentou escapar, pois sabia que, para eles, narrar histérias era uma arte. Os Tiv eram muito cexigentes a respeito das narrativas e verbalizavam enfatiea- mente suas criticas quando alguém cometia algum erro ao narrar, Ela s6 aceitou contar Hamlet q} ram que nio criticariam seu modo de contar histérias, mas, indo cles promete- teve de concordar em explicar o que eles nio entendessem, “como fazemos com voce, quando contamos nossas historia disse um dos ancides. Mal sabia ela no que estava se meten- do quando fez esse acordo. ‘Tentando mimetizar a maneira como eles narravam, ela comegou."* ~ Nio foi ontem, no foi ontem, este faro aconteceu hi muito tempo. Uma noite rés homens estavam de vigia fora da cidadela de um grande chef, quando subtamente vram seu antigo chee se aproxima. ~Por que ele ndo era maschefe? ~ Ele estava morto ~ explique-, por sso ees iaram to perturba dos quando o vram. ~ Impossivel~ disse um dos ancibes,passando seu cachimbo para Lum vizinho, que o interrompeu. claro que nio era chefe mor £0. ra. um agouro enviado por um fico. Continue Um pouco desconcertada, ela tentou continuar, expli- ceando que um dos trés homens, chamado Horécio, dirigiu- se ao chefe morto, perguntando 0 que era necessirio para que ele pudesse descansar em paz. O chefe nao respondeu e, IW Sevoct no Tou Hamlet oe no cone tna da rar edge dnpontvei ds pegs Ov onal ‘ilercoma testo integrate ingles. Em portaput, também alguns Va, por ‘remplo, 2. com bulox(lgue ens "ern rai edeposer te Totus inglna),Pereeaher a histre vost tml poe ssa nut doa ms Fes ben dora pea, Sem conocer rata alaerpetagteroferelie pelos “ivpendem parte dsb. marcia aaneu por isso, Horacio percebeu que apenas Hamlet, ofilho do chefe morto, poderia resolvera situagdo. Nova discussao se instalou, pois muitos acharam um erro envolvero filho nis- ‘so: mais sensato seria contar com o irmao do finado chefe. Agouros, diziam, eram assunto para chefes e ancides e no para jovens, Ela tentou objetar, dizendo que Claudio, 0 mio do chefe, nao era confidvel, pois havia se casado com Gertrudes, a vitva do irmao, apenas um més apds os fune- ras, Para desespero da antropéloga, os ancides acharam essa atitude muito sensata: = Fex muito bem ~ disse o velho, sorindo com satisacdo e dit sindo-se aos demais. ~ Eu thes disse que se soubéssemos mais a respeito dos europeus descobririamos que eles sio muito pareci- dos conosco. Em nosso pals ~ disse olhando para mim = o itmao. ‘mais moco também se casa com a viva do mais velho, comando- 580 pa de seus filhos Seo tio casado com sua mie forirmio de seu pai por parte de pai e de mae, entio ele serd um verdadeiro pai Para voct. O pai eo tio de Hamlet eram filhos da mesma mde? Cada vez mais desconcertada, ela disse que niio sabia se eles eram filhos dos mesmos pais, jé que a historia nada sobre isso, Todos ficaram muito desapontados, pois, segun- docles,os detalhes gencaldgicos fazem toda a diferenga em uma histéria, Complacente, oancitio stigeriu que ela buscasse se informar melhor quando voltasse para sua casa. Pertur- bada com a idéia de que para os Tiv o comportamento de Claudio e Gertrudes parecia absolutamente adequado, deci- diu ir direto ao didlogo travado entre Hamlet e seu pai mor- to, Novas dificuldades surgiram, pois cles achavam impossi- velum morto falar. Os Tiv, a0 contrério das tribos vizinhas, ‘io acreditavam na sobrevivencia de nenhuma parte indivi dualizada da pessoa depois da morte. Ela tentou explicar que ‘ele era um fantasma e que, sim, Fantasmas falam. Depois de alguma reflexao, 0s ancides acharam que tinham entendido: tratava-se de ufn zumbi,um cadéver ques feiticeiros tinham reanimado para sacrificar e comer. Como ela insistisse em lizer que nao se tratava de um zumbi, e sim de um fantasma que podia falar e andar, conséguiu apenas aumentar a des- confianga de seus vuvintes (© velho sufocou os murmiirios de descrenca que imediata- mente se fzeram ouvir, e me disse, naquele tom insincero e corcés usado para concordar com as extravagincias dos jovens, dos igno- rantes e dos supersticiosos: = Nao testa divida de que em seu pais os mortos podem andar sem serem zumbis, ‘Anarragao prosseguia com dificuldades, pois a cada passo havia uma desavenga, a cada lance uma interpretagio diver- gente. E possivel imaginar a confusao que foi contar o en- volvimento afetivo de Hamlet com Ofélia, a objegaio de seu pai, os devaneios de Hamlet, a morte de Polénio e de Ofélia. As objegdes cram tantas que a antropéloga ameagou: = Se wocts do gostam da histéria, vou para. (© vetho emitiu grunhidos apaziguadores, eele mesmo me erviu de mais cerveja, ~ Vocé conta bem a historia e nés estamos ouvindo. Mas & claro ‘que os ancides de seu pals nunca lhe disseram o que essa histria, tealmente significa. N3o, no me incerrompa! Acteditamos em. voc’ quando diz que seus costumes matrimonials s8o diferentes, {que suas roupas e armas sio diferentes. Mas as pessoas slo as me ‘mas em toda parte; partanto existem sempre feticeiros, e somos nbs, 05 ancides, que sabemos como eles trabalham. = Ouga ~ disse o ancido - vou The contar o que aconteceu, ecomo, 1 histéria continua, e entdo voc® did se estou certo. Polio sabia, {que seu fiho ia se meter em encrencas, como de fato aconteceu. Ele precisava pagar muitas multas por causa de brigas,etinha dividas de jogo. Mas ele s6 tinha dois meios de conseguir 0 dinheiro rapi- ‘damente. Um deles seria casar a irma imediatamente, mas era dificil, encontrar um homem que quisesse desposar a mulher desejada pelo filho do chefe. Pois se o herdeiro do chefe cometer adultério, ‘com sua mulher.o que € que voct pode fazer? S6 um tolofaria queixa cdo home que um dia seré seu jul. Portanto, 8 Ihe restava a se- Bunda opcio: matara itm com fetgara afogando-a, para depois, poder vender secretamente seu corpo as feticeros. ~ Mas 0 corpo foi encontrado entertado - abjetei ~ Na verdadle Laerte entrou dentro do ttimulo para ver sua imi uma vez mais — assim, veja, 0 corpo realmence estava li Hamlet, que acabara de regressar, entrou acs dele © que foi que eu csse? ~ 0 velho apelou para os outros ~ Laerte no tinha boas inten¢es com 0 corpo da irm3, Hamlet oimpediy de vendé-l, pois © herdeiro do chefe, tanto quanto 0 chefe, nio 4uer que nenhum outro homem se torne rico e poderoso. Laerte deve ter fcado furioso por ter matado sua iema sem obter qual {quer proveto. Em nosso pas ele tenaria matar Hamlet por causa disso. Ndo foi o que aconteceu? ~ Mais ou menos ~ admit, ~ Quando o grande chefe soube que Hamlet ainda estava vivo, incentivou Laerte a tentar maté-to,e ar ranjou uma luca de facdo entre eles. Ness lta, os doisjovens se fe riram mortalmente,A mie de Hamlet bebeu a cerveja envenenada {que o chefe preparara para Hamlet, caso ele vencessealuta. Ao ver sua mie morrer envenenada, Hamlet, num dlkimo esforgo, matou 0 iimao de seu pai com o facio, = Vejam como eu tinha razSo! ~ exclamou o ancito. ~ Foi uma histéria muito boa, acrescentou o velho -, € vocé nos. ‘contou cometendo apenas alguns enganos. Hé somente mais um €er70, bem no inal.O veneno quea mie de Hamlet bebeu era obvia- ‘mente destinado a0 sobrevivente da lua, quem quer que fosse ele. Se Laerte vencesse seria envenenado pelo grande chefe, para que ninguém ficasse sabendo que ele planejara a morte de Hamlet. Também para ndo precisar temer o poder de Laerte como fitici +0;6 preciso ter um corag2o muito duro para matar a propria ima com feitigaria, De vex em quando ~ concluiu o velho, envolvendo-se em sua toga rasgada ~ voct precisa nos contar outrashistérias de seu pais. NNés, que somos mais velhos, podemos esclarec-la sobre 0 verda deiro significado das histérias, de modo que, quando vocé volar Para sua terra osancides deli verdo que vocé nio icoua toa na selva, 'mas ficou com gente que sabe das cosas e the transmitiu sabedoria Se vocé leu Hamlet, percebeu que as interpretagdes dos ancides sobre 0 sentido da peca nos parecem muito, muito estranhas. Mas ha algo familiar em sua idéia de que no mundo tudo € igual e que s6 ha um sentido para as coisas — “se soubéssemos mais a respeito dos europeus descobriria- mos que eles so muito pares mos que 0s europeus nao sio nada parecidos com os Tiv,, mas também temos o costume de pensar que “as pessoas sio, os agem © pen- los conosco”. Nés perc ‘as mesmas em toda parte”, ou seja, que tox ‘sam como nés agimos ¢ pensamos. FICURA7.05 TV FEREM A PLE ATE CONSEGUIR CICATRIZES COM TRAGADO [GEOMETRICO.5$0 TORNA UMA PESSOA BONITA, Durante séculos leitores ¢ espectadores ocidentais emo- as situagdes vividas pelos personagens de Shakespeare, identificaram-se com o amor dos jovens, so- freram coms pressoes sociais familiares, choraram com a morte dos protagonistas. Mass Tiv, assim como 0 poeta nor- destino Jodo Martins de Athayde, reagem de forma distinta. cionaram-se co Para o poeta nordestino — e para seus leitores ~ a honra fa- miliar e a vinganga sio os valores supremos e, portanto, Romeu ndo passa de um covarde, tendo merecido justa puni- gata Aidéia final do ancito, de que eles poderiam esclarecera antropéloga sobre “o verdadeiro significado das histérias européias, pois eles siio “gente que sabe das coisas” ¢ que detémaverdadeira sabedoria”, parece muito exdtica. Como poderiam eles saber que sentido tém as nossas hist6rias? Parece estranho porque é um africano falando de narrativa curopéias, mas quantas veres os eriticos e professores no fazem isso? Quantas vezes nioafirmam que valores estéticos "diferentes nao sio apenas diferentes, sioerrados? ~Kapreci iio é universal: ela depende da in- sergio cultural dos sujeitos. Uma mesma obra é lida, avalia- ddac investida de significagdes variadas por diferentes grupos cculturais. /\Seavaliarmos Hamlet com os padsdes africanos, a tragé- di pareceré um completo won-sense. Da mesma forma, se um poema moderno, um samba-enredo ou uma tragédia fo- rem julgados com os critérios proprios & poética dos folhetos pareceriio malfeitos e esteticamente ruins; Masa convengiio dos folhetos nao serve pare avaliar outra ‘que nfo os folhetos. H4 maus folhetos e bons folhetos, hé poctas exce- lentes ¢ poctas mediocres, mas os autores de folhetos jamais pensariam em hierarquizar as composigées poéticas do mun- do, segundo esses pardimetros. Nem todos, infelizmenté,témamesma sensatez. Na maior ‘So. Pata os Tiv tude niu possi de f parte do tempo, o gostéestético erudito¢ utilizado para ava- liar 0 conjunto das produgses, decidindo, dessa forma, 0 que merece ser Literatura eo que deve ser apenas popular, ‘marginal, trivial, comercial

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