MULHER AO LADO Por Guilherme Amado Para Marcos Cardoso Feliz aniversário
Ao colocar o pé no degrau do ônibus, Samira sentiu o ar escapar de
seus pulmões. Os sons da rodoviária ao seu redor cessaram. O odor do mundo escapou de suas narinas enquanto um longo arrepio alastrava-se por sua espinha como uma enorme centopéia. Seus ossos não eram mais rígidos – se suas mãos trêmulas não houvessem segurado o corrimão plástico ao seu lado, Samira certamente teria caído ao chão. Quis abandonar a viagem e sair correndo; quis deixar as malas ali mesmo. Uma voz em sua cabeça sussurrou que ela não podia, que ia ver a família depois de tanto tempo, e foi essa voz que lentamente a acalmou. Um passo de cada vez, Samira subiu no ônibus, ainda desnorteada e com a respiração ofegante. Há muito tempo não sentia algo como aquilo... Desde os últimos momentos com sua avó, talvez? As últimas palavras da já falecida senhora agora ecoavam em sua mente: “Tu é especial... Sim, é sim. E se tu não vê isso ainda, a vida vai te fazer acreditar...” Lembrou então de um conselho de sua antiga psicóloga e procurou por sensações que a trouxessem de volta para o agora: o chão contra seus pés, o som de alguém abrindo uma garrafa de refrigerante e o cheiro de um pastel assado. Enquanto o mundo ao seu redor voltava a ter forma, ela respirava fundo e seguia na direção de seu assento. Ao chegar na poltrona, notou que havia uma mulher sentada ao seu lado. Samira já se sentia um pouco melhor, mas sabia que precisava ficar atenta. Devia haver um motivo, uma razão, para a sensação ter tomado conta de seu corpo. Não queria descobrir o que era, mas sim aguentar as seis horas de viagem sem expor-se a outro momento como aquele. Depois disso, poderia descer do ônibus e esquecer que aquilo havia sequer acontecido. Ela sabia que um dom como o seu raramente trazia respostas, e quando o fazia, elas geralmente não eram agradáveis. “Boa noite.” Disse Samira enquanto sentava-se ao lado da mulher. “Boa noite.” A mulher respondeu e voltou a encarar a janela. De seu assento, Samira se perguntou quem – se é que havia alguém – estaria dando tchau para ela, e lembrou-se da última vez que havia tomado o ônibus de Porto Alegre para Santana do Livramento. Os oito meses na capital haviam sido os mais difíceis de sua vida. Só na última semana, três conhecidos seus haviam sido assaltados, e ainda assim a maioria das pessoas ao seu redor tratava aquilo como rotina. A TV também não ajudava – era sempre a mesma coisa: discursos repletos de mentiras tingidas em cores messiânicas e “medidas de calamidade” em prol de uma suposta salvação que nunca chegava. A vida deixava de ser vida e se tornava um calvário, uma luta ao mesmo tempo contra tudo e nada. Ao lado de Samira, a mulher agora encarava a foto de uma criança pequena. Os cantos do papel estavam amassados e levemente amarelados. “Esse é meu filho, Joaquim.” Disse ela, levantando o olhar da foto para o rosto de Samira. Samira sorriu e elogiou o menino. As duas começaram então a conversar da forma como a maioria dos estranhos começa: suas palavras eram banhadas em uma mistura de curiosidade e constrangimento. “Quantos anos ele tem?” Perguntou Samira. “Ele fez sete semana passada. Mora com o pai em Canoas.” Samira sentiu-se aliviada. Por um instante, havia considerado a possiblidade de que fosse uma daquelas crianças desaparecidas cujas mães carregam fotos pra lá e pra cá. “Tu não mora com eles?” Perguntou ela. “Não, não... Faz um tempo já. Meu nome é Raquel, prazer.” “Prazer. Meu nome é Samira.” “E tu é de Livramento?” Perguntou Raquel. “Sou sim, vim pra Porto Alegre fazer faculdade faz um ano já. Faço Engenharia da Computação na UFRGS.” “Eu fiz faculdade aqui também, mas faz um tempo já...” Samira estranhou. A mulher não parecia tão mais velha. “Tu quer ouvir uma história?” Perguntou Raquel. Um calor inesperado espalhou-se pelas bochechas de Samira e ela deixou um tímido “Sim” escapar por seus lábios. Raquel ajustou sua posição no banco e afastou uma mecha de cabelo de seu rosto. Quando olhou novamente para Samira, havia uma intensidade inesperada em seu olhar. “Só que não é uma história qualquer, sabe?” começou Raquel. “Bem, sei lá, as pessoas reagem de forma diferente. Talvez tu não ache nada demais...” Samira sentiu a curiosidade tomar conta de sua mente, mas ao mesmo tempo não havia esquecido do que acontecera minutos atrás enquanto entrava no ônibus... Lembrou de seus conselhos para si mesma e decidiu, só dessa vez, ignorá-los. Só percebeu que havia deixado Raquel sem resposta quando essa riu e falou novamente: “Desculpa... É que eu nunca consigo dormir nessas viagens. Gosto de passar o tempo conversando com alguém.” “Não... Não tem problema. Pode contar sim.” “Tu já ouviu falar de um acampamento chamado Sol e Lua? Ali perto de Canela.” Samira engoliu em seco. Já ouvira histórias sobre o lugar, mas nunca tivera coragem de pesquisar muito. Era o tipo de coisa que desencadeava os arrepios... Raquel abriu a boca para falar, mas foi momentaneamente interrompida pelo motorista do ônibus, que veio desejar boa viagem a todos e anunciar que as luzes seriam apagadas à meia noite. “Sim, sim. Já ouvi. O que tem?” Disse Samira, voltando o olhar para Raquel e já torcendo para que a história fosse para outro lado. “É... É lá que isso tudo começa.” Continuou Raquel “Ou melhor, perto de lá. Eu sou médica em Porto Alegre há uns anos já e um dia recebi um caso... Diferente. E não foi de qualquer jeito, o diretor do hospital quase implorou que eu aceitasse porque não tinha médico que quisesse cuidar daquilo. Era um casal de mulheres, Amaranta e Sônia. Sônia tinha ido fazer uma trilha perto do acampamento e se perdeu. Acharam ela horas depois, dentro da propriedade, desmaiada, e foi assim que ela chegou no hospital.” “E por que ninguém queria o caso?” Perguntou Samira. “Ela chegou inconsciente... E foi assim que ficou pelos próximos seis meses. Quando o pessoal ficou sabendo que tinha a ver com o acampamento e que ela era casada com outra mulher ainda... Ficou todo mundo meio assim, sabe? Até eu, apesar de não dar mais bola pra essas coisas. Decidi ser profissional e aceitar o caso, achei que ia ficar com uma imagem boa, de gente determinada.” “Mas se ela não acordava,” começou Samira “o que tu ficava fazendo?” “Bem, tinha bastante exame pra fazer e coisas assim. Eu também comecei a conversar bastante com a Amaranta quando a coisa foi ficando mais complicada... Depois de um certo ponto não tinha mais o que fazer e ela só ficava lá, sentada. Era bem triste, na verdade, porque eu notava que o olhar dela também não era mais o mesmo. No começo era quase como se ela não tivesse ali, como se a mente tivesse em outro lugar completamente, buscando uma saída. Lá pelo terceiro mês ela começou a vir e ficar, e dessa vez dava pra enxergar que ela não tinha achado saída nenhuma e tava se contentando com o fato de que a esposa tava ali, pelo menos. As enfermeiras me contaram que ouviam ela chorar quando não tinha ninguém no quarto. O negócio seguiu assim por mais umas semanas até que um dia eu notei outra mudança no olhar... E não consegui identificar o que era exatamente. Mais tarde, ela me disse queria trocar a esposa de lugar e não tinha explicação minha que convencesse a mulher de que não ia adiantar, que não ia ter hospital que conseguisse fazer outra coisa além de manter ela ligada nos aparelhos.” “Pra qual hospital ela queria levar a outra?” “Foi aí a primeira vez que a coisa ficou meio estranha. Ela queria levar a mulher de volta pro acampamento.” Os olhos de Samira se arregalaram. “De... De volta pra lá?” Perguntou ela. “Mas por quê?” “Essas ideias meio malucas geralmente aparecem quando as pessoas começam a perder a esperança. Me dei conta que não ia ter como convencer ela usando meu raciocínio de médica, então fiz uma troca. Me imaginei no lugar dela com o Joaquim no quarto, em coma. Tentei imaginar como seria, e então a ideia dela já não parecia mais tão maluca. Recomendei um amigo meu que era padre, o Josué. Achei que ele fosse conseguir ajudar ela e peguei o número com a minha mãe – eu não via ele há um tempo já. A Amaranta aceitou a ideia e, por uns dias, ela já não falava mais em levar a Sônia pra outro lugar. Tudo parecia bem, e ela ia e vinha normalmente... Quer dizer, se é que alguém com a esposa em coma há meses consegue fazer algo normalmente, né.” Raquel parou de falar por um instante e olhou para a foto do filho em seu colo por um instante, até que suspirou e deixou seu olhar vagar para o espaço ao redor e além de Samira antes de seguir falando. “O que tu tem que entender é que...” Continuou ela “Até esse momento eu não tinha sido afetada, sabe? Uma coisa é a gente falar sobre um assunto que a gente não sabe ou se imaginar numa situação ruim, como eu fiz quando tentei ajudar ela... Outra coisa é quando a gente vive isso. O Joaquim ficava muito com a minha mãe nessa época, e com o trabalho o dia inteiro eu mal conseguia ver ele. Acabava sendo uma coisa de fim de semana, e foi num fim de semana que aconteceu. Eu levei ele até o parque ali perto de casa onde a gente sempre ia. O Joaquim é um guri meio diferente. As outras crianças de dez anos ficavam brincando na pracinha e ele... Lia no balanço. A tarde inteira, te juro. Só com um boné e os litros de protetor solar que eu fazia ele passar. Era uma tarde de sol bem forte quando eu levei ele e fiquei sentada num banco perto, cuidando. A gente passava o tempo juntos meio assim, entende? Cada um fazia sua coisa perto do outro, mas ainda separados. Ele não é uma criança muito apegada... E eu também não tinha muito tempo... Enfim, eu sentei no banco e comecei a pensar nesse caso da Amaranta e fiquei racionalizando essas coisas sem parar, tentando entender de onde poderia ter vindo a ideia de levar a Sônia pro acampamento e no que o padre teria dito pra ajudar ela. Pensei também na forma como ela andava conversando com a Sônia quando ninguém tava no quarto – as enfermeiras tinham me contado isso também. Fiquei pensando nesse monte de coisa e não ouvi os gritos, juro... Quando eu olhei de novo pro Joaquim, ele tava estirado no chão, com sangue jorrando do nariz. Eu corri que nem uma doida, sem saber o que fazer.” “Foi pelo calor?” Perguntou Samira, franzindo o cenho. “Eu achei que sim, apesar de nunca ter visto uma coisa dessas acontecer com ele antes. Foi no consultório médico que minha mãe decidiu me contar outra coisa que eu não tava sabendo: ele tinha pesadelos quase todas as noites agora, e o pior, não queria falar o que era. Só dizia que era sempre a mesma coisa. Minha mãe não tinha me contado porque sabia que eu tava ocupada. Fiquei com uma puta raiva dela na hora, sabe? Eu confiava nela pra cuidar dele pra mim... Depois fiquei com uma puta raiva de mim mesma por ter deixado isso passar sem saber. Que tipo de mãe eu era por deixar meu filho sofrer assim?” “Não, não te culpa assim.” Começou Samira. “Tu devia ta fazendo o melhor que podia. E com essa coisa estranha acontencedo no hospital ainda...” Bastou um segundo para os olhos de Raquel se encherem de lágrimas, e ela virou o rosto para o outro lado enquanto enxugava-as com as costas da mão. “Tu sabe...” exclamou ela “o que ele disse quando eu corri até o balanço? A roupa dele tava cheia de sangue e o livro também. Eu segurei ele e dei uns gritos, desesperada, porque achei que ele tinha desmaiado, mas ele abriu os olhos em seguida. Ele olhou pra mim e naquela hora eu parei. Parei de tentar estancar o sangue ou levar ele pra qualquer lugar. Algo em mim dizia que eu tinha que ouvir – e depois eu me dei conta que foi por que eu tinha medo que fossem as últimas palavras dele, sabe? Ele olhou nos meus olhos e disse... Ele perguntou...” Ela parou para enxugar as lágrimas novamente e continuou. “Ele perguntou por que eu não tinha ido quando ele chamou.” Samira sentiu seu coração se apertar e lutou para reprimir suas lágrimas. Por um instante, seu medo foi substituído pela dor no rosto de Raquel e pela saudade que sentia da família. “Nessa hora eu tava determinada a saber o que tava acontecendo. Com aquilo no hospital e agora ele doente e com pesadelos... Era impossível que em menos de um ano tudo na minha vida passasse a não ter mais explicação. Sentei com ele na sala do médico, disposta a saber o que tinha acontecido. Enquanto ele falava, com aquele negócio enorme cobrindo o nariz pra estancar o sangramento, eu fui me sentindo cada vez mais que nem criança.” “Como assim?” Perguntou Samira, confusa. “Eu entrei disposta a saber o que tava acontecendo porque queria resolver a situação, mas enquanto ele falava... Me dei conta que eu não tava preparada pra lidar com aquilo, e o problema foi me cercando cada vez mais. Eu senti que não tinha saída nenhuma.” “Mas o quê ele te disse? Com o que ele sonhava?” Raquel respirou fundo antes de responder. As sensações que antes haviam trazido conforto à Samira eram agora facas contra sua garganta; o ar condicionado pareceu mais gelado e ela teve a sensação de que algo a cercava lentamente, fazendo-a encolher-se em seu assento. Ela sabia o que Raquel ia dizer. Sabia sim. Mas por quê? “Ele me disse que tava sonhando com um acampamento em chamas.” A mão de Samira segurou o apoio do banco com força e ela sentiu sua garganta quase fechando. Os relatos vieram à mente: notícias das mortes das crianças no lugar, do fogo e do horror inesperado. Pela manhã, já haviam levado os corpos queimados de todas as crianças, dissera sua tia. A tragédia havia acontecido quando Samira tinha apenas nove anos, e ela se lembrava de seus familiares comentando, em segredo, sobre o assunto. Mesmo sem nenhum parente envolvido, seus sussurros frequentemente terminavam em lágrimas. Aquilo havia acontecido há vinte anos, e desde então o Acampamento Sol e Lua havia fechado suas portas para sempre. “Eu não entendia como ele tinha ficado sabendo...” Continuou Raquel. “Talvez ele tivesse ouvido algum comentário sobre o caso ou uma conversa entre eu e a minha mãe, mas eu não achava isso muito provável. Fiquei com medo de piorar a situação e decidi levar ele pra ver uma amiga minha que era psicóloga, a doutora Salete. Isso também acabou não ajudando, e a mulher veio me dizer depois de algumas sessões que tava completamente perplexa, que não tinha uma razão clara pra isso tar acontecendo com ele.” Samira concordou mesmo sem entender o sentimento de confusão que deveria ter tomado conta de Raquel e perguntou a si mesma se aquilo poderia ter algo ver a com o misterioso coma de Sônia. “Eu queria evitar falar sobre isso em detalhe, mas acho que não tem como. O que tu lembra sobre o que aconteceu no Acampamento?” Perguntou Raquel. “Minha tia era enfermeira e foi uma das pessoas que ajudou a resgatar os corpos depois… Mas não sei os detalhes." Respondeu Samira. "Mas tu sabe sobre a menina...? Sobre a brincadeira?" “Eu sei que o incêndio foi causado por uma criança... que ela ficou louca depois de desafiarem ela a ir até um lugar onde tinha uma cruz de madeira, de noite. Eu sei que acharam o corpo dela queimado junto com o das outras.” “É isso mesmo,” confirmou Raquel “só que tem umas pessoas que dizem que ela não ficou louca... Dizem que ela encontrou algo na cruz que tomou conta dela, e que quando ela voltou, já não era mais uma criança... Eu não sei se tu acredita nessas coisas, eu não acreditava na época.” Samira achou que fazer o sinal da cruz seria confirmação suficiente, e continuou ouvindo. “Nos sonhos do Joaquim... Ele era a menina. Ele ia até o galpão e pegava a lata vermelha de gasolina, como diz a lenda...”. Cada nova revelação era agora uma mão ao redor do pescoço de Samira, e ela sentia sua respiração cada vez mais nervosa, mais frenética. “Ele te contou isso? Ele veio até ti?” “Por um tempo, ele...” Raquel fez uma pausa, encarou o nada mais uma vez e engoliu em seco antes de continuar. “Ele tentou fingir que não acontecia nada, mas depois disso não tinha mais o que fazer. Eu forcei ele a falar, gritei com ele, uma noite. Me senti horrível, uma bruxa, eu nunca tinha feito algo assim com ele antes... Mas tava desesperada, sabe? Isso foi na primeira noite onde... Eu tive o sonho.” A mão de Samira se moveu instintivamente na direção de uma das mãos de Raquel, mas essa a retirou antes que Samira pudesse tocá-la. Uma imensa tristeza agora permeava cada palavra de Raquel enquanto ela contava sua história. “Foi real de uma forma que eu nunca tinha sonhado antes, e eu não me dei conta na hora. Por um momento, eu era só eu, sentada em uma cabana de madeira com várias guriazinhas pequenas. Foi quando ela bateu na porta que eu senti meu coração quase parar... Perdi o controle dos meus movimentos e só me vi abrindo a porta e deixando ela entrar. As meninas todas olhavam pra ela em silêncio enquanto ela tirava a tampa do galão vermelho que tinha trazido... Não tinha mais o que fazer depois que eu forcei o Joaquim a falar. O guri se deitou na cama e ficou chorando, e não me respondia nem falava nada mesmo quando eu pedia pra ele me responder. Saí do quarto dele desesperada, tentando caminhar na direção da sala. Na minha cabeça só tinha uma coisa que eu podia fazer naquela hora, e foi justamente isso que eu fiz: às três da manhã de uma quinta, eu liguei pra Amaranta pra pedir algum tipo de ajuda. Tentei explicar o que tinha acontecido sem soar muito louca e ela concordou em se encontrar comigo no outro dia, num café perto do hospital – disse que não queria falar sobre isso perto da Sônia. Passei o resto da noite inteira acordada, sem saber o que fazer. O Joaquim dormiu um pouco antes de amanhecer... Durante todo esse tempo minha mãe tinha ficado deitada no quarto dela, sem saber de nada que tava acontecendo. Às vezes eu fico pensando sobre como algo que é tão grande e assustador pra nós pode passar despercebido pra uma pessoa que tá tão perto da gente... No mesmo apartamento, ainda. Chegou uma hora que eu não aguentava mais esperar, então saí meia hora antes do horário combinado. Quando cheguei, não só ela já tava ali sentada, como não tava sozinha. Eu sentia que tinha visto aquele homem em algum lugar já, e quando ele se apresentou como Ricardo, o irmão da Sônia, eu tive certeza. Ele já tinha andado pelo hospital algumas vezes.” “Eles dois também tinham sonhos?” Perguntou Samira, incrédula. “Não só isso,” continuou Raquel “também tinham visões sobre o lugar e sobre a Sônia. Acreditavam que o espírito dela tava preso ao acampamento e que isso era a única coisa mantendo ela viva...” Os olhos de Samira se arregalaram mais uma vez e a tristeza foi substituída por um sentimento macabro. No fundo de sua mente, ela via a centopéia pronta para atacar, pronta para fixar-se em suas costas novamente. “O Ricardo tirou alguns livros de uma mochila, bem antigos pelo jeito. Eram sobre ocultismo e forças das trevas. Eu me senti uma louca desvairada ali, sabe? Em um café, lendo sobre a alma presa da minha paciente. O tipo de coisa que toda médica faz dia de folga, né? Se fosse só por mim, eu nem ia tar mais ali, mas não adiantava. Não era só eu agora, tinha o Joaquim também. Se eu não resolvesse isso – ou pelo menos tentasse resolver, como que eu podia esperar que ele melhorasse? A gente passou o resto do tempo andando em círculos: eles me davam a informação, eu fazia perguntas, eles me davam informação, eu fazia perguntas. Dava pra ver que tinha algo mais no fundo daquilo tudo, que na verdade eles queriam que eu fizesse alguma coisa... Mas isso só veio no final. Os dois me disseram que eu não precisava me preocupar com aprender tudo aquilo porque eles já tinham achado uma forma de...” Por um instante, Raquel não disse nada, e Samira mais uma vez se viu envolta pelo silêncio do ônibus. Quando Raquel continuou, ela já sabia o que iria ser dito, e absorveu as palavras como um remédio amargo. Não tinha forma de aquilo acabar bem, pensou. “Tinha uma forma de libertar a alma dela, mas a gente ia ter que ir até o Acampamento mesmo.” Samira passou as mãos por seu rosto, lentamente, tentando absorver o que recém havia ouvido. “Ir até lá...? Eu não sei qual é a tua religião, Raquel, mas tu sabe bem que aquele lugar é... É podre. Não foi ir até lá que começou com o problema todo?” Perguntou ela, sem conseguir conter a indignação em sua voz. “Tu tem filhos, Samira?” Rebateu a outra, e isso foi suficiente. “Me senti mais calma quando eles me falaram que a ideia tinha sido do padre Josué, e fiz uma nota mental de ligar pra ele e perguntar sobre o assunto. Pensei em pedir mais tempo pra pensar, mas me dei conta de que não ia adiantar. Se eu dissesse não e o Joaquim piorasse... Como eu ia me perdoar?” “Então tu foi?” Perguntou Samira, mais uma vez sentindo a intuição batendo em seu peito - não duvidava mais da história de Raquel, mas sentia que algo não estava certo. Entre as peças do quebra cabeça parecia haver um certo elemento de... Força. Ele não se montaria naturalmente sem que algumas pontas fossem amassadas. Mas quais? “No outro fim de semana, sim.” Continuou Raquel. “Tentei ler mais sobre o assunto, mas era tudo bem desagradável, então deixei pros dois. Iam precisar de mim pra segurar a cruz enquanto o Ricardo lia uma coisa em voz alta e a Amaranta cortava a madeira com uma faca especial... Que eu não sabia de onde ela tinha tirado. No caminho pra lá, na camionete de Ricardo, eu fui me dando conta de que não sabia muito sobre aquilo ou aquelas pessoas... Foram três horas de viagem de Porto até Canela e mais uns vinte minutos até o acampamento, e durante esse tempo todo eu só ia ficando mais desesperada e com medo.” O relógio de Samira fez um click. Faltavam dez minutos para a meia noite. "A gente foi da estrada pra um caminho de terra e depois pro primeiro portão. A Amaranta desceu pra abrir e eu e o Ricardo ficamos ali no carro, olhando pro negócio enferrujado e enorme. Ela abriu e voltou pro carro, com a franja grudada na testa pelo suor. A gente foi de carro até onde deu, mas aí a mata fechava e não tinha como seguir, então a gente desceu pra caminhar até lá. Levou uma meia hora, mas não tinha problema porque era cedo ainda. Cruzamos o mato até chegar numa parte da estrada de terra com uns morros altos de um lado e uma queda enorme do outro – era um absurdo de alta, dava pra ver os morros e vales se espalhando por todo lado. Quando a gente chegou até o prédio principal do Acampamento já era meio dia.” Samira respirou fundo antes de perguntar. “E tu não sentiu nada estranho no caminho?” “Bem, eu senti bastante fome.” Samira deu um pequeno sorriso e continuou “Não era exatamente como tu imagina em filme de terror. Se eu já não soubesse das coisas que aconteceram ali, talvez fosse até meio relaxante. Tinha bastante verde, mas muito silêncio. Não se ouvia nenhum animal, nem um som, nada. Só o vento, o tempo inteiro.” Samira imaginava cada cena em sua cabeça, e o sentimento ruim agora já havia se alocado firmemente em seu interior. Cada palavra de Raquel parecia levá-la mais perto de uma inevitável ruína. "O prédio principal era todo de tijolo laranja e parecia ter uns três andares. Perto dali, descendo um morrinho, ficavam as cabanas dos acampantes, e no outro do lado do prédio um campo de futebol – passando o campo, ficava a cruz. Passamos a entrada do prédio e paramos pra comer alguma coisa. Naquela hora, minha fome desapareceu totalmente. Fiquei olhando pro nada enquanto a Amaranta ainda comia, mais suada ainda, e o Ricardo ia mijar em algum lugar. Dez minutos passaram e nada dele voltar, então a gente foi dar uma olhada. Voltamos pra onde a camionete tava, e foi aí que a Amaranta apontou, sem falar nada, pro caminho que levava até as cabanas lá embaixo. A mochila dele, rasgada e vazia, voava com o vento, pra lá e pra cá, batendo nas árvores.” Os lábios de Raquel se contorceram em uma careta, e ela deixou seu olhar vagar mais uma vez. Samira sentiu as lágrimas na beira de seus olhos, o horror no fundo de seu peito. “Olhei pra Amaranta, sem saber o que fazer, e ela seguiu andando na direção da cruz. Quis protestar, correr pras cabanas pra ver onde ele tava, mas sabia que não ia dar em nada. Ainda assim, eu sentia, sabe? Que aquilo significava algo, que tinha uma diferença entre eu não ir ajudar e eu ir ajudar e não encontrar nada, ou pior... Enquanto a gente cruzava o campinho na direção da cruz, eu ia sentindo uma coisa crescendo em mim... Primeiro, fiquei imaginando a menina da lenda, sabe? Aquela criança, caminhando por esse mesmo lugar, de noite, talvez com mais medo que eu até... Mais medo que eu e a Amaranta juntas. A imagem dela ali sozinha fez um calafrio se espalhar pelo meu corpo. Quando chegamos até a cruz, algo muito estranho aconteceu. Eu sabia. Eu sabia que a Amaranta e o Ricardo tinha me trazido até lá pra morrer. Algo em mim dizia isso de uma forma tão, tão clara. Ela queria que também ficasse presa lá, naquele prédio sujo, cheio de morte. Por quê? Eu me perguntava. Por quê? Amaranta só olhou pra mim por um momento, e tirou uma faca da mochila, devagar. Eu já tinha visto aquela faca em algum lugar... Sim, em um dos livros do Ricardo. Era uma faca pra um ritual de sacrifício.” Samira quis se afastar, sem acreditar no que sentia estar prestes a ouvir. “Ela... ” Começou Samira, quase incapaz de continuar a pergunta. “Ela te atacou?” Raquel respirou fundo antes de continuar. “Foi tudo muito rápido. Ela se lançou contra mim, mas não conseguiu me acertar. Segurei e torci a mão dela em um dos golpes, mas não tinha intenção de esfaquear ela... A ideia veio e tomou conta da minha cabeça como um sopro, e então o sangue tava jorrando do pescoço dela e tingindo toda cruz de vermelho. Agora eu ouvia uma voz falando comigo... Doce, suave, como a voz da minha mãe.” Samira engoliu em seco. Quis se levantar, quis sair correndo dali naquele mesmo momento. “Tu matou ela...?” Perguntou Samira, as palavras saindo lentamente de sua boca. “Tu matou ela pra salvar o Joaquim?” “Naquela hora...” Cada palavra de Raquel era precedida por uma hesitação, uma relutância, que enchia Samira de medo e tristeza. “Eu fiz porque a voz mandou... Ela ia falando comigo enquanto eu abria o corpo da Amaranta, ia me dando instruções... Dizia que agora o Joaquim ia ficar bem... Só não me disse uma coisa...” Lágrimas agora rolavam pelo rosto de Raquel, e ela tinha a foto de Joaquim mais uma vez em suas mãos. Segurou-a contra seu peito antes de continuar. “Quando a gente mexe com a morte,” continuou Raquel “nunca se vence.” Click, fez o relógio de Samira, e as luzes se apagaram. Por um momento, o silêncio reinou quase completamente, exceto pelos sons do ônibus em movimento. Samira sentiu o calafrio se formando em suas costas, a velha centopéia se alongando e preparada para correr. Quis formar o nome de Raquel, quis chamar por ela, saber como tudo aquilo terminava, mas um sentimento de horror agora havia se alojado em seu estômago. A realização atingiu-a como uma pancada e seus olhos, na escuridão, arregalaram-se mais uma vez. Sua respiração se agitou e ela pressionou seus lábios um contra o outro enquanto tentava controlar o choro. Pediu a Deus que Raquel ainda estivesse ali e que todo esse tempo ela não estivesse... Quando Samira finalmente lançou a mão na direção do assento de Raquel, essa cruzou o ar como se ali não houvesse nada além de uma escuridão que agora a envolvia como uma mortalha negra, deixando em sua boca o gosto da mais cruel, macabra e pura morte.