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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA – TURMA: E
ALUNO: GIOVANI BUFFON ORLANDINI

Acredito que dei muita sorte: se é verdade o que disseram alguns colegas em
aula que muitas escolas não aceitariam facilmente que observássemos uma de suas
aulas, já na primeira tentativa encontrei quem acolhesse minha tarefa e, diga-se de
passagem, fui muito bem tratado, tanto pela direção quanto pelos professores com os
quais tive contato. Refiro-me à Escola Estadual de Ensino Fundamental Rio de Janeiro,
situada no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre. Foi aí que assisti, no dia 16/09/2011
as aulas de uma turma de 8ª sério, no turno da tarde.
Trata-se de uma escola pequena, um prédio de dois andares com pátio externo
(utilizado pelas turmas de pré-escola) e outro interno (utilizado pelas demais turmas).
No ambiente percebi algo de familiar, o que me pareceu natural devido ao pouco
número de alunos da instituição: os professores e demais funcionários conhecem todos
por nome. Imagino que esta intimidade facilite a convivência dentro da hierarquia.
Parece-me importante esclarecer que parti para tamanha aventura convencido em
observar antes de tudo questões voltadas para o comportamento dos alunos e a
manutenção da disciplina em sala de aula por parte dos professores. Entretanto, outros
fatores chamaram-me atenção e tentarei explorar alguns deles.

Aula de artes
A professora da disciplina estava de licença maternidade, por isso quem
orientava a disciplina era uma estagiária do curso da UFRGS, bastante simpática e
prestativa. Na sala os alunos da pequena turma (apenas dez) sentaram-se em torno de
uma grande mesa retangular e trabalharam na confecção de um boneco utilizando
jornais, cola, tesoura, barbantes, tintas e papéis coloridos. Nas paredes da sala de artes
(uma sala exclusivamente para aula de artes: diferente de uma sala de aula
convencional) visei pinturas feitas por alunos; dentre as mais tradicionais, como flores e
corações com dizerem sobre amizade e respeito, destacavam-se duas: um crucifixo
abaixo das palavras “Vida Loka” – referência explícita ao grupo de rap paulista
Racionais MCs – e outra com o símbolo de paz e amor que se popularizou na geração
hippie dos anos 60 e 70. Fica a pergunta: existe contracultura na escola primária? Pelo
tanto de ingenuidade que me passaram estes adolescentes com aproximadamente
quatorze anos de idade, não. Eles parecem apenas apegarem-se a alguns símbolos, sem
entender o que realmente significam. A prova disso foi quando percebi que um menino
desenhava em seu boneco uma bandeira nazista – pelo que foi levemente hostilizado
pelos colegas, mas sem qualquer tipo de violência (o que explicaria o fato de a
professora não se manifestar a respeito). Duvido que ele saiba da ideologia por trás de
seu desenho. Lembro que na idade dele isso acontecia comigo.
Embora conversas paralelas entre os colegas aconteçam constantemente, todos
os estudantes realizam a tarefa que é orientada pela professora na medida em que
necessário: esclarecendo algumas dúvidas ou mesmo dando sugestões quanto a parte
prática do trabalho. Ainda que se trate de uma moça muito jovem – mais jovem do que
eu, acredito – todos se referem a ela como “senhora”.
A aula segue calma, embalada pelo som de uma música tipicamente adolescente.
Parece-me que este clima tranqüilo vai-se esvair quando um aluno que discutia com um
colega manda que ele vá “se foder”. Engano meu: a professora simplesmente o chama
pelo nome e pede que ele tome cuidado com o linguajar, tudo isso sem aumentar o tom
de voz. Aliás, todas as atitudes dela são assim, de maneira relaxada e sutil, sem causar
qualquer tipo de escândalo, até porque isso não se mostra necessário em nenhum
momento. Outro momento que me pareceu interessante foi quando um menino
levantou-se e disse que simplesmente desistira de seu trabalho porque “estava uma
porcaria”. Sem alardes, a jovem docente aproxima-se, observa o boneco – que
realmente me pareceu menos interessante do que os outros – e observa que não, que se
trata de um trabalho interessante. O aluno discorda sem pensar. Ela argumenta que a
textura conseguida pela sobreposição de papeis coloridos está muito bem. Ele repensa,
acaba por concordar, e reassume a tarefa. Pareceu-me muito interessante como a
utilização de um bom argumento por parte dela foi o suficiente para que ele readquirisse
seu interesse. Confesso que o argumento da textura convenceu também a mim.
Pouco antes do final dos dois períodos de artes a professora fotografa os
trabalhos e os alunos limpam seus materiais antes de deixar a sala – de forma um tanto
baderneira, mas sem exageros. Agradeço a atenção da moça que muito bem me recebera
e sigo para uma sala no final do mesmo corredor. Começará uma aula de matemática.
Detalhes: depois de um breve silêncio quando da minha entrada na sala de artes,
acompanhado pela vice-diretora, deixei de ser notado pelos alunos. Desse minuto em
diante foi como se eu não existisse para eles.

Pelos corredores, escritas nas paredes de tijolos à vista, diversas frases com
conotação sexual: “já comi a fulana da 7 ª”, “dei a bunda pra fulano”, “sicrana é a vagabunda
da escola”, esse tipo de coisas. E são muitas, por toda parte. Procurei lembrar se eu escrevia tais
dizeres em minha época de colégio, mas não fui capaz. Lembrei-me sim, ao ver um casal
abraçando-se e beijando em pleno pátio, diante dos olhos de todos, que também namorávamos
aos doze ou treze anos. Só que fazíamos isso escondidos.

Aula de matemática
Passamos agora para uma sala de aula que pode ser considerada convencional. Classes e
cadeiras, uma meda maior, quadro na parede. Mas as condições poderiam ser melhores: no piso
faltam alguns parques, o que acumula muita poeira; algumas lâmpadas não funcionam direito,
provocando pouca luminosidade; ouve muito barulho vindo do pátio que fica ao lado.
Os alunos não podem sentar onde bem entendem. Há um mapa da sala com os lugares
de cada um pré-determinados por ordem da direção. Isso parece desagradar alguns alunos. A
sala é grande. Comportaria, sem problemas, o dobro do número de presentes. O professor
aparenta pouco mais de trinta anos e é muito querido dos alunos, conserva alguma intimidade
com eles. Ele usa de alguma ironia ao responder a brincadeiras e piadas, e todos levam isso
como natural. Tudo que diz respeito ao relacionamento professor/ alunos, bem como no caso da
professora de artes, parece para mim muito saudável.
Embora encontre-se na parede um papel que indica a proibição do uso de celulares
alguns alunos fazem isso sem nenhuma cerimônia, e o professor não se importa: o que importa
para ele é o rendimento dos exercícios de “Grandezas Proporcionais” que dispor para a turma.
Passa de classe em classe esclarecendo dúvidas, e os alunos têm pressa em terminar a tarefa,
visto que o combinado é que aqueles a completarem estarão dispensados para o recreio. Entre
uma e outra caminhada o professor aproxima-se de mim e conversamos um pouco sobre quais
meus objetivos ali, qual o caráter da disciplina que me cobra este trabalho que cá escrevo. Na
visão dele, a experiência mais válida na docência é a própria docência; é, em suas palavras “a
cancha que a gente pega dando aulas”. Confesso que isso faz todo sentido para mim, e mais
interessante foi o que ele disse a seguir: “gostaria de refazer minhas disciplinas de educação
agora que já tenho alguns anos de experiência”. Parece uma boa idéia. Aplicar a didática
aprendida na faculdade de educação pode ser muito mais relevante quando já se tem alguma
cancha.
Ainda que os alunos estejam, aparentemente, entendendo bem a matéria da aula, não
creio que eles sequer desconfiem para que isso lhes possa ser útil no futuro. Eis uma tarefa que
considero um tanto ingrata para os professores. Quando eu estive no colégio absolutamente
nada do que me passavam fazia sentido. Aquele não era meu mundo. E isso me faz lembrar de
um texto que discutimos nas primeiras aulas, no qual o autor comenta essa dificuldade de
mostrar a importância do conhecimento para pessoas tão jovens e com pouca experiência de
vida adulta.
Os últimos alunos a terminarem os exercícios saem pouco antes do sinal do intervalo
soar. Despeço-me do professor e, antes de deixar a sala, vejo um cartaz – será aquele que causou
tanta polêmica pouco tempo atrás? – com mensagens que procuram desmistificar e combater a
questão da homofobia.

Durante o intervalo sou obrigado a deixar a escola e ir até a rua porque me avisam que é
proibido fumar nas dependências da escola. Isso me aborrece um pouco embora eu admita que é
uma medida sensata. A maioria dos meninos joga futebol no pátio. Algumas meninas entram e
saem de uma porta onde está escrito “refeitório”. Os professores se encontram em uma sala ao
lado da direção. E eu me divirto assistindo a atividade com bola.

Aula de geografia
A professora de geografia não me é tão simpática quanto os anteriores. Não que me
desrespeite nem nada disso. Mas se mostra um tanto incomodada com a minha presença.
Disciplinarmente ela me pareceu inferior aos demais: os alunos desrespeitam suas ordens
descaradamente; um inclusive a ofende (não lembro o termo) e ela finge não ver e volta sua
atenção para o outro lado. A tarefa é a seguinte: procurar em mapas que foram distribuídos o
nome de capitais de países asiáticos. Com exceção de dois alunos, a turma desaprova a
proposta. Dizem que “é chato”, que “a profe poderia ter pensado em algo melhor”, enquanto ela
apenas pede – em vão – que eles permaneçam sentados e em silêncio.
O mais interessante dessa aula de geografia foi quando percebi que o aluno que
ofendera a professora simplesmente não procurou as capitais (nem sequer abriu seu mapa) e
ficou todo o tempo teclando em seu celular escondido sob a classe. O caso é que esse mesmo
aluno fez um belo trabalho com seu boneco na aula de artes e foi o primeiro a terminar os
exercícios na aula de matemática. Perguntei-me: é falta de interesse pelo assunto da disciplina
ou o visível problema de afinidade com a professora? Possivelmente ambos. Ou será que outra
professora, ou a mesma com outra postura, seria capaz de provocar outra atitude neste
adolescente? É possível. Só não sei até que ponto vai a flexibilidade dos professores: são
sujeitos, antes de tudo, e nem todos sujeitos são extremamente flexíveis em suas posturas e
atitudes. Ou será que o trabalho de professor deve estar reservado para pessoas flexíveis?
A turma é liberada cerca de vinte e cinco minutos antes do término da aula, o que acaba
por liberar também a mim. Despeço-me da professora e em seguida dos funcionários da direção
que me acolheram com gentileza e deixo a Escola Estadual de Ensino Fundamental Rio de
Janeiro.

Antes de finalizar este relato, há uma questão que preciso retomar: como os professores
devem lidar com a sexualidade visivelmente aflorada dos alunos (o que é comum nesta idade)?
Durante minha estada lá isso não se fez necessário, mas creio que vez ou outra o professor terá
que se posicionar. Estão os professores devidamente preparados para tão delicada tarefa? Estou
eu – futuro professor – preparado para ela?

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