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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais

Rebeca Bernardo da Silva Caeiro

COMUNIDADE CÍVICA E O HOMEM CORDIAL: uma análise do pensamento


político brasileiro a partir de Robert Putnam e Sérgio Buarque de Holanda

Belo Horizonte
2016
INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a construção de uma


comunidade cívica no Brasil, nos termos definidos por Robert Putnam, a partir da
análise do pensamento político brasileiro proposta por Sérgio Buarque de Holanda em
sua obra Raízes do Brasil, publicada pela primeira vez em 1936. A hipótese construída e
verificada por Putnam (2006) é de que o desempenho institucional político de um país
está diretamente ligado ao contexto social e histórico no qual as instituições operam - O
contexto social e histórico a que se refere é definido por Putnam (2006) como o
desenvolvimento econômico social mais fundamentalmente a comunidade cívica,
entendida como a participação cívica do povo na vida política da coletividade a qual
pertence, bem como a solidariedade social que permeia as relações. A própria
comunidade cívica, nesses termos, é fruto de um processo histórico de longa duração
que influencia ainda o presente o comportamento político dos atores.
Nesse sentido, à medida que procura entender a relação entre história e
instituições como regras formais, tomando como variável explicativa a participação
cívica dos atores políticos –é possível estabelecer relação entre as obras de Robert
Putnam e Sérgio Buarque de Holanda, embora a produção do último autor , não tenha a
pretensão de aplicabilidade a outros contextos que não o brasileiro. Holanda (1956) se
propõe a compreender de que modo as raízes históricas do Brasil, marcadas pela
colonização portuguesa, influenciam a construção de um pensamento social e político
brasileiro, argumentando, fundamentalmente, que boa parte dos padrões de
comportamento que temos ainda são herdados do período colonial e imperial.
A partir da confrontação dos dois autores, este estudo se propõe a compreender
de que modo a trajetória histórica brasileira e o pensamento político dela derivado,
como apresentado por Holanda, vai contra os elementos que constituem uma
comunidade cívica nos termos trabalhados por Robert Putnam (2006). Conforme
argumentaremos nas próximas seções, o patriarcalismo, a cordialidade1 (aqui
empregada com um sentido específico), o clientelismo e apatia política dificultariam a
participação cívica na política e, seguindo o raciocínio proposto por Putnam, o bom

1
A definição do termo será apresentada na segunda parte do trabalho, no contexto geral do livro Raízes
do Brasil
desempenho das instituições políticas brasileiras2. Para isso, o trabalho está dividido em
três partes: a primeira apresenta o conceito de comunidade cívica utilizado por Putnam,
sendo necessário para sua compreensão uma breve referência ao modelo analítico
elaborado pelo autor para estudo das instituições políticas italianas. A segunda recupera
a argumentação central da obra Raízes do Brasil, especialmente no que diz respeito ao
homem cordial,que, argumentar-se-á, pode ser tomado como um dos principais entraves
ao desenvolvimento da comunidade cívica no Brasil. A terceira parte se dedicará ao
estabelecimento das relações entre os elementos que compõem a comunidade cívica de
Putnam e as características do pensamento político brasileiro apresentados por Sérgio
Buarque. Em seguida, serão apresentadas as considerações finais.

1 COMUNIDADE CÍVICA POR ROBERT PUTNAM

Apesar de não ter sido o primeiro a pensar e escrever sobre comunidade cívica, o
trabalho de Robert Putnam em Comunidade e Democracia: a experiência da Itália
Moderna (2006) é fundamental para a compreensão do impacto desta variável sobre o
desempenho institucional e a vida política de um povo. Tomando como base a definição
de instituições proposta pelo novo institucionalismo, Putnam demonstra como a
participação cívica; a igualdade política; a solidariedade, confiança e tolerância entre os
indivíduos; e o engajamento em estruturas sociais de cooperação são fatores de extrema
relevância para um bom desempenho institucional. Segundo o autor, desempenho
institucional pode ser definido como a capacidade governamental de receber demandas
sociais, processá-las internamente, e a elas responder por meio da implementação de
políticas (PUTNAM, 2006). Para uma compreensão mais adequada do conceito de
comunidade cívica proposto pelo autor, faz-se necessário entender como ele define
instituições, quais as relações que se pode estabelecer entre as regras formais do jogo e
o contexto social em que operam, discussão feita no âmbito do novo institucionalismo,
especialmente o da escolha racional.
Hall e Taylor (2003) definem instituições como as regras formais do jogo capazes
de promover a cooperação entre atores por agir sobre quatro pressupostos e/ou
propriedades da ação dos indivíduos, pressupostos esses que favorecem a ação
2
Apesar de não ser objetivo do trabalho analisar o desempenho institucional brasileiro, algumas
inferências serão feitas a partir das próprias conclusões de Putnam sobre o impacto da comunidade cívica
(ou de sua inexistência) sobre a performance das instituições políticas.
individual em detrimento da ação coletiva. O primeiro deles é o caráter racional
utilitarista dos atores, o que significa dizer que o processo de tomada de decisão dos
indivíduos é informado por cálculos que têm como objetivo diminuir os custos de uma
ação e maximizar seus ganhos. Em outras palavras, os indivíduos racionais utilitaristas
pautariam suas ações pela combinação mais adequada de meios e fins, tendo como
objetivo final a consecução de suas preferências. A interação entre diversos atores que
compartilham esse pressuposto ao adotar determinado curso de ação pode significar, do
ponto de vista coletivo, a geração de resultados subótimos, o que é chamado por Olson
(1999) de dilema de ação coletiva. De acordo com este autor, esses problemas nascem
em situações nas quais o conjunto de ações que, do ponto de vista individual, é racional,
pode se tornar, do ponto de vista coletivo, irracional. Isso porque os benefícios
alcançados pela ação individual podem ser menores do que os que seriam alcançados
caso a ação tivesse sido empreendida coletivamente.
A relação intrincada entre os dois pressupostos supracitados explica a criação e a
existência de instituições, como regras e padrões de comportamentos estabelecidos
pelos e para os atores. Enquanto regras de comportamento, elas seriam responsáveis
pela alteração de custos e benefícios dos cursos de ação disponíveis: elas diminuiriam
os custos para a ação coletiva (a cooperação) em detrimento da individual, à medida que
estabeleceriam previsibilidade das ações, aumentariam a qualidade e quantidade de
informações disponíveis, criariam a perspectiva de interações futuras e, por fim,
mecanismos de monitoramento e punição de desertores. Em outras palavras, as regras
formais reduziriam a incerteza os atores envolvidos no jogo e diminuiriam
consideravelmente os custos de transação para o estabelecimento de comportamento
cooperativo. (HALL; TAYLOR, 2003). Deste modo, por serem estabelecidas pelos
atores, as instituições políticas se sustentariam e reafirmariam ao longo do tempo à
medida que fossem eficientes e cumprissem o objetivo para o qual foram criadas.
Partindo dessa definição, Putnam (2006) afirma que as instituições moldam a
política à medida que estruturam o comportamento dos atores pelo estabelecimento de
padrões de ação. Assim, elas têm impacto direto sobre os resultados políticos
produzidos. No entanto, elas não são isentas do ambiente social e econômico em que se
situam; ao contrário, as instituições são moldadas pela história. Nas palavras do próprio
autor,
Independentemente de outros fatores que possam influenciar a sua
forma, as instituições têm inércia e "robustez". Portanto corporificam
trajetórias históricas e momentos decisivos. A história é importante
porque segue uma trajetória: o que ocorre antes (mesmo que tenha
sido de certo modo "acidental") condiciona o que ocorre depois. Os
indivíduos podem "escolher" suas instituições, mas não o fazem em
circunstâncias que eles mesmos criaram, e suas escolhas por sua vez
influenciam as regras dentro das quais seus sucessores fazem suas
escolhas. (PUTNAM, 2006, p. 23).

Essa consideração é fundamental para o desenvolvimento dos dois movimentos


analíticos utilizados por Putnam para o estudo das instituições políticas italianas a partir
de 1970, quando uma reforma institucional substantiva no governo italiano concedeu às
20 regiões maior autonomia administrativa. Em uma perspectiva de longa duração
(cerca de vinte anos), o autor analisou comparativamente o desempenho dessas
instituições, relativamente semelhantes, em cada uma das regiões, com o objetivo de
responder a algumas das questões mais importantes do estudo das instituições em
ciência política: quais a condições para a criação de instituições fortes, responsáveis e
eficazes. Para tanto, Putnam (2006) elaborou doze indicadores de mensuração do
desempenho institucional (figura 1), suficientemente abrangentes, internamente
coerentes, confiáveis e correspondentes aos objetivos e prioridades dos membros das
instituições analisadas. Desta forma, apesar das diferenças entre as regiões, os mesmos
indicadores poderiam ser usados e os dados deles auferidos seriam confiáveis e estáveis,
não comprometeriam a análise a ser feita. Em outras palavras, esses critérios permitiram
ao autor verificar objetivamente de que modo em cada região a ação das instituições
reformadas impactariam vida pública no tocante ao ciclo de governança político
(demandas, deliberações internas e elaboração/implementação de políticas).
Onze dos doze indicadores foram organizados por Putnam em três classes
principais: continuidade administrativa, as deliberações sobre as políticas e a
implementação das políticas, conforme a figura abaixo. A aplicação destes doze
indicadores nas 20 regiões evidenciou uma diferença considerável de desempenho
institucional entre algumas delas. Apesar de terem a mesma estrutura e contar com os
mesmos recursos institucionais, uma vez que a reforma criou instituições bastante
similares em todas as localidades, algumas foram mais bem-sucedidas que outras. Se
em um primeiro momento analítico o modelo de Putnam (2006) colocava as instituições
como variáveis independentes, com o objetivo de compreender como a mudança
institucional influenciaria o comportamento político dos atores, o produto da análise
gerou uma segunda questão a ser respondida: por que instituições similares
apresentaram desempenhos substantivamente distintos? A partir daqui as instituições,
enquanto regras formais do jogo, passam a ser analisadas como variáveis dependentes,
explicadas e influenciadas pela história e o contexto social em que atuam. A partir de
então, o autor assume duas hipóteses para a explicação destas diferenças: a primeira
delas é a modernidade sócio-econômica, consequência da Revolução Industrial, e a
segunda, e mais relevante para o autor, a comunidade cívica.
Figura 1: Indicadores de desempenho institucional

Fonte: elaborado pela autora a partir de Putnam (2006)


Ao correlacionar modernidade econômica e desempenho institucional, Putnam
(2006) divide as 20 regiões em pobres e ricas. Em uma comparação entre essas duas
categorias, observou-se de fato a correspondência entre desenvolvimento econômico e
institucional: via de regra, as mais ricas eram também as que apresentavam melhor
desempenho institucional, geralmente situando-se ao norte; enquanto as mais pobres
tinham um desempenho institucional inferior, localizadas ao sul do país. No entanto,
uma análise mais aguçada no interior de cada categoria evidenciou as variações entre as
regiões do mesmo quadrante (ricas ou pobres) que não poderiam ser explicadas pela
correlação modernidade econômica/desempenho institucional. No quadrante das regiões
mais ricas, por exemplo, enquanto a região de Emilia-Romagna apresentava os
melhores índices de desempenho institucional, a região de Lombardia, com desempenho
significativamente inferior, era a que detinha maior índice de modernidade econômica.
De modo semelhante, no quadrante das regiões mais pobres, as regiões de Basilicata e
Molise apresentaram um dos maiores índices de desempenho institucional, mas os
menores de modernidade econômica.
Desta forma, embora o desenvolvimento econômico possa ser uma das razões para o
bom ou mau desempenho institucional de uma região, ele não é suficiente para explicar
a atuação das regras formais do jogo sobre o contexto político. Neste sentido, a
comunidade cívica, segunda hipótese explicativa, torna-se variável fundamental e
condicionante a performance institucional. A partir de Tocqueville, Putnam (2006)
define comunidade cívica como os padrões solidariedade social, sendo formada por
quatro principais dimensões filosóficas: a participação cívica; a igualdade política; a
solidariedade, confiança e tolerância entre os atores; e o engajamento em estruturas
sociais de cooperação, como as associações.
A participação cívica é definida por Putnam (2006) como a participação e o
engajamento na vida e nas questões coletivas, com o objetivo de se alcançar o bem
público. A participação cívica, no entanto, não deve ser entendida como uma postura
altruísta dos atores, que continuam sendo racionais, mas como a identificação, no
interesse público, dos interesses pessoais e individuais. É a correta correspondência
entre os interesses em ambas as esferas que favorece a integração e cooperação dos
atores nas demandas e assuntos públicos. O segundo elemento que dá forma à
comunidade cívica é a igualdade política. É fundamental que todos tenham acesso aos
mesmos direitos e respondam pelos mesmos deveres porque essa igualdade fomenta a
lógica relacional de reciprocidade, horizontalidade, e não dependência e verticalidade
nas relações sociais.
O engajamento em assuntos públicos e o estabelecimento de relações de
reciprocidade pautadas pela igualdade política favorecem a construção de um ambiente
social de confiança mútua e solidariedade entre os atores. Mais do que expectativa, a
confiança de que a regras não serão quebradas, e a identificação dos interesses pessoais
nos interesses públicos, reforçam um comportamento cooperativo entre os participantes
daquela comunidade, gerando coesão social em detrimento do isolamento e
individualismo. Mais uma vez, vale ressaltar aqui a racionalidade dos atores, que
cooperarão entre si à medida que percebem a previsibilidade, a estabilidade e os ganhos
mútuos advindos da ação coletiva. Por fim, estes fatores se manifestam objetivamente
na integração dos indivíduos a associações, clubes, grupos civis. De acordo com
Tocqueville (apud PUTNAM, 2006), essas estruturas sociais de cooperação não só
incrustam em seus membros o sentimento de pertencimento e identificação, como
também reiteram e fortalecem a confiança social e a consciência política.
Putnam (2006) buscou evidenciar a intensidade da presença desses quatro
indicadores na vida política italiana para então correlaciona-los, verificando, portanto, a
viabilidade de constituírem metodologicamente a variável comunidade cívica. Para
mensurar a participação cívica, o autor utilizou o índice de comparecimento às urnas. Já
para evidenciar a igualdade política, especialmente no que diz respeito a reciprocidade e
horizontalidade, ele fez uso comparativo dos votos preferenciais, ligados aos interesses
privados, e dos votos essencialmente políticos, sem ligações de cunho clientelista ou
hierárquico. Além desses elementos, o autor analisou também o índice de leitura dos
jornais e de engajamento e participação dos indivíduos em associações, especialmente
os sindicatos (nos quais a participação é voluntária, não compulsória), instituições
religiosas e partidos políticos. Correlacionados, esses indicadores, que buscam traduzir
os princípios que compõem a comunidade cívica, demonstraram objetivamente que nas
regiões em que é maciço o comparecimento às urnas nos referendos e pouco expressivo
os votos clientelistas, há maior índice de participação dos indivíduos em estruturas
sociais de cooperação. Além disso, é mais expressivo o número de leitores de jornais.
Em um segundo momento, a partir da confirmação de uma forte correspondência
entre esses elementos e da possibilidade de serem utilizados para mensuração da
comunidade cívica, Putnam buscou estabelecer nexo entre esta variável e o desempenho
institucional, chegando à seguinte conclusão: “as regiões onde há muitas associações
cívicas, muitos leitores de jornais, muitos eleitores politizados e menos clientelismo
parecem contar com governos mais eficientes” (PUTNAM, 2006, p. 113). Exemplo
máximo disso é a Emilia-Romagna, região com maior índice de civismo e uma das
regiões com melhor desempenho institucional.
Enquanto contexto social que influencia a o desempenho institucional, o autor se
propõe agora a investigar sob quais condições se desenvolve (ou não) a comunidade
cívica. O que afinal de contas explica a diferença tão grande entre as regiões de um
mesmo país? Para responder a esse questionamento, o autor percorre um interessante
caminho histórico, buscando as raízes para as diferenças cívicas atuais desde o período
medieval, passando pela unificação italiana, para compreender a persistência de padrões
cívicos daqueles tempos ainda na década de 1970 naquelas regiões. Por meio desta
análise, ficam evidentes as diferenças históricas que permitiram o surgimento das
comunidades cívicas em algumas regiões da Itália, especialmente ao norte, em
detrimento das regiões situadas ao sul do país.
O período medieval marcou diferenças substantivas no modo de administração das
regiões norte e sul da Itália. A região norte foi caracterizada pela presença de um tipo de
feudalismo, onde não havia um governo central, mas pequenas propriedades. As
constantes ameaças de agressão física principalmente, mas também as dificuldades de
subsistência criaram condições propícias para o surgimento de comunas que tinham por
objetivo a proteção coletiva de seus membros e a ajuda recíproca em termos de
produção de alimentos. Nessas comunas, o senso cooperativo e a confiança mútua eram
fortalecidos não só pela necessidade, como também pela expectativa de cumprimento
das regras devido ao estabelecimento de punições para os desertores. A existência
dessas estruturas sociais de cooperação permitiu, ao longo dos anos, a complexificação
das interações entre os membros da comunidade, com a evolução dessas comunidades
para associações de cunho financeiro e creditício. Nessas comunidades, apesar de não
haver igualdade de direitos políticos devido à existência de elites, havia intensa
participação e engajamento dos indivíduos nas decisões políticas tomadas para a
comunidade. De modo diferente, nessa mesma época, o sul da Itália foi dominado por
um reino normando de tradições bizantinas e árabes, com organização política
centralizadora, de traços absolutistas. O governo absolutista do reino, especial de
Frederico II, permitiu significativa expansão das atividades econômicas, essencialmente
pautadas no comércio, e o enriquecimento da região. No entanto, a tradição autoritária
acabou por minar o desenvolvimento de uma consciência cívica. Em detrimento dela,
houve o desenvolvimento de práticas clientelistas e de relações horizontais dadas pelo
contexto de interação política e econômica.
Após a unificação italiana, em 1870, Putnam (2006) argumenta que as tradições
cívicas de séculos persistiram. Enquanto na maioria das províncias do norte
permaneciam ativas e cada vez mais fortalecidas associações civis ligadas a grupos
profissionais, serviços de saúde, assistência em funerais e outras necessidades sociais,
além do desenvolvimento de paridos políticos e do engajamento cada vez maior da
população nessas estruturas; no sul, a herança clientelista, autoritária, a pobreza e a
desconfiança mútua pouco se moldaram às novidades trazidas pela unificação, antes,
adaptaram-nas àquela realidade específica. Os estudos realizados mostraram uma
notável correspondência entre as práticas cívicas históricas e as praticadas ainda na
década de 1970. De acordo com o autor,

Há uma notável semelhança entre essa configuração e a


distribuição das características cívicas nos anos 70 [...]. Os territórios
sulistas outrora governados pelos reis normandos constituem
precisamente as sete regiões menos cívicas nos anos 70. Com quase a
mesma exatidão, os Estados papais (exceto as repúblicas comunais da
parte norte dos domínios do papa) correspondem às três ou quatro
regiões que vêm a seguir na escala de civismo nos anos 70. No outro
extremo da escala, o centro do republicanismo em 1300 curiosamente
corresponde às regiões mais cívicas de hoje, seguidas de perto pelas
áreas mais ao norte cujas tradições republicanas, embora genuínas,
revelaram-se um pouco menos resistentes (PUTNAM, 2006, p. 144).

O conceito de comunidade cívica para Putnam, bem como a demonstração da


trajetória histórica que a constituiu é um elemento importante para o desempenho de
instituições políticas italianas; e parece bastante produtivo para o estudo do desempenho
de instituições em outros países, uma vez que os rigores metodológicos, conceituais e
teóricos do autor permitem em alguma medida a transposição dos conceitos e
indicadores para outros contextos políticos e sociais. A próxima parte do trabalho se
dedicará a entender a formação do pensamento político brasileiro a partir de Sérgio
Buarque de Holanda, percorrendo de modo semelhante, a trajetória histórica brasileira
que informa a construção deste pensamento, para, posteriormente, contrapô-la ao
conceito de comunidade cívica acima definido.
2 RAÍZES DO BRASIL E O PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO

A primeira edição de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, foi publicada


em 1936, em um contexto bastante intenso do ponto de vista da produção literária sobre
a formação social e política brasileira. A obra de Buarque de Holanda se destacou em
relação a duas obras importantes à época e ainda estudadas para a compreensão do
pensamento sociopolítico brasileiro daquele momento: Casa Grande e Senzala, de
Gilberto Freyre, e Evolução Política do Brasil, de Caio Prado Júnior, ambas publicadas
em 1933. Casa Grande e Senzala apresentava uma construção brasileira partindo do
ponto de vista do conflito intrínseco nas relações entre senhores da casa grande e seus
escravos na senzala, conflito este gerado pela proximidade entre os dois espaços e o
domínio patriarcal exacerbado exercido pelo senhor sobre seu núcleo familiar e os
próprios escravos, que quem era dono. No entanto, era possível a acomodação destes
conflitos pela construção de zonas de confraternização criadas e ajudadas pela
miscigenação entre portugueses, africanos e indígenas. Freye propõe em sua obra a
visão do colonizador português como mais transigente com outras culturas, fruto de
uma plasticidade cultural herdada a partir da constante presença de outros povos na
Península Ibérica (mouros, especialmente). Apesar de não fazer menção a uma
democracia racial, o autor de Casa Grande e Senzala explica a formação social brasileira
a partir do tenso equilíbrio entre as raças, acomodado de alguma forma pelas zonas de
confraternização entre senhores e escravos, manifestas fundamentalmente pela presença
do mulato, e pela possibilidade de ascensão social deste. (COSTA, 2014; CANDIDO,
1987)
Já Caio Prado Junior foi o primeiro a propor uma análise marxista da sociedade
brasileira. A partir do método materialista histórico, o autor analisou as relações entre
modo de produção, consumo e organização social do Brasil e a mentalidade econômica
do colonialismo ao fim do Império, no século XIX. Essa obra, com tom essencialmente
factual e objetivo, se afasta do estilo ensaístico das obras anteriores, incluindo Raízes do
Brasil, e não mobiliza variáveis explicativas qualitativas, como patriarcalismo,
miscigenação, cordialidade. Constitui-se como o primeiro esforço de introdução da
economia brasileira em uma perspectiva mundial, esforço esse aprimorado em um
segundo livro do mesmo autor, lançado em 1946, intitulado Formação do Brasil.
(COSTA, 2014; CANDIDO, 1987)
Contemporâneo das produções brevemente apresentadas aqui, Raízes do Brasil
apresenta uma particularidade que a fez ser editada diversas vezes e ainda hoje, 80 anos
depois, ser discutida e frequentemente reavaliada. As particularidades desta obra se
referem tanto ao seu objetivo como à forma com que Buarque de Holanda constrói os
argumentos. Buarque de Holanda se esforça por oferecer uma explicação histórica para
alguns dos traços do comportamento social e político brasileiro e como essa construção
se aproxima ou afasta do ideal de instituições políticas europeias que absorvemos como
nosso. Para isso, recorre a quatro pontos principais: o sistema colonial português, o
patriarcado rural, o homem cordial e as contradições do liberalismo brasileiro.

[...] o livro não constitui apenas um projeto normativo, é também


analítico. Para articular suas visões, Buarque de Holanda mergulhou
profundamente na história brasileira e desenvolveu um diagnóstico
sócio-histórico que transcendia enormemente as pesquisas conduzidas
à época. É esta propriedade que faz do livro “um clássico de
nascença”4. O ensaio oferece respostas concisas aos desafios
analíticos e políticos de seu tempo, além de captar a tensão, na forma
específica como se manifesta no Brasil, entre continuidade e mudança
social numa perspectiva de longa duração. (COSTA, 2014, p. 823)

O tempo em que viveu na Alemanha (1929-1931) permitiu ao autor o contato com a


obra de diversos sociólogos e historiadores, como Carl Schmitt3, Georg Simmel,
Ferdinand Tönnies, Max Weber e Hegel. A influência weberiana no trabalho do autor,
como se verá, é perceptível em um primeiro momento pela construção dos quatro
fatores analisados por Buarque de Holanda a partir de tipos ideais. O longo de sua
argumentação, especialmente ao construir o tipo do homem cordial, Sérgio Buarque de
Holanda se apoia nos conceitos de burocracia e patriarcalismo propostos pelo sociólogo
alemão, para demonstrar como a cordialidade do brasileiro se opõe a racionalização e
impessoalidade das instituições políticas. No entanto, a análise de modelos não se dá de
forma apenas descritiva, mas dinâmica, comparada, pela contraposição entre dois tipos
através da compreensão da interação entre ambos no processo histórico. Neste sentido, a
dialética hegeliana oferece ao autor a riqueza para construção de um modelo de análise
compreensivo, mais complexo, que evidencia as contradições e dualismos,
permanências e mudanças na sociedade e política brasileiras. Em outras palavras,
“trabalho e aventura; método e capricho; rural e urbano; burocracia e caudilhismo;

3
A obra de Carl Schmitt chega a ser citada por Buarque de Holanda (1956), ao analisar a construção do
tipo ideal do homem cordial, à medida que discorre sobre as proximidades atribuídas pela cordialidade à
relação amigo/inimigo/hostil.
norma impessoal e impulso afetivo – são pares que o autor destaca no modo-de-ser ou
na estrutura social e política, para analisar e compreender o Brasil e os brasileiros”.
(CANDIDO, 1967, p. 13),
O sistema colonial português reflete, segundo o autor, um “desleixo e um certo
abandono. Dir-se-ia mesmo que se fez apesar de seus autores”. (HOLANDA, 1956, p.
34). Essas características são a manifestação da falta de coesão espontânea da própria
sociedade portuguesa, em que as estruturas hierarquizadas e centralizadoras das
instituições políticas são responsáveis pela manutenção da ordem. Holanda (1956)
argumenta que essa frouxidão na solidariedade social está relacionada à forma de
interpretação do trabalho pelos portugueses. Diferentemente de outras sociedades
europeias, influenciadas pelo calvinismo e protestantismo, nas quais o trabalho era
empregado com diligência e disciplina; o português sempre foi mais afeito ao ócio, ou a
atividades essencialmente contemplativas, predileção herdada pela tradição católica da
Península Ibérica.
A tradução deste perfil na atividade de colonização é feita através dos tipos ideais do
trabalhador e do aventureiro. Para o autor, o tipo aventureiro ignora a existência de
fronteiras e limitações, valorizando mais a consecução de resultados, de benesses e
títulos honoríficos, que o caminho percorrido para tal. Enquanto o aventureiro é
audacioso, instável e afeito aos desafios, o tipo trabalhador se fixa fundamentalmente no
presente, nos empecilhos colocados à frente. Por sua necessidade de segurança e
estabilidade, o trabalhador esmera-se nos esforços lentos e pouco compensadores a
princípio. A corporificação destes tipos ideais é proposta pelo autor no modelo de
colonização português em contraponto ao desenvolvido pelos holandeses, no nordeste.
(HOLANDA, 1956)
O colonialismo português sempre esteve mais voltado ao fruto que se poderia
auferir da terra, ao ganho possível pela produção em larga escala, mas não às atividades
árduas, contínuas e monitoradas para sua preparação e manejo. Em termos produtivos,
isso significou o emprego em larga escala do trabalho negro e indígena. Em termos de
população, a vinda de contingentes consideráveis de colonizadores que embora
estivessem na colônia, não se apegavam à terra de modo subjetivo, enquanto lugar para
estabelecimento de raízes, mas apenas como lugar de enriquecimento e passagem. “O
que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia,
não riqueza que custa trabalho.” (HOLANDA, 1956, p.44). Aliados à ética do
aventureiro, a facilidade de adaptação dos portugueses ao clima e à presença de outras
etnias foram determinantes para a permanência da atividade colonizadora.
Toda a estrutura do sistema colonial português foi erigida em torno do meio rural,
da exploração extensiva das terras através de lavouras e da dependência do trabalho
escravo. É da centralidade da vida rural e da pujança econômica dos grandes latifúndios
que emana o poder social e político dos chefes das famílias, os patriarcas. Nos domínios
rurais, a autoridade máxima sobre o núcleo familiar, os escravos e trabalhadores brancos
livres era do senhor dos engenhos e das lavouras, unidades completas do sistema social.
É no ambiente doméstico e rural que a noção de autoridade se constituiu no Brasil e,
com o passar dos anos, com o lento aparecimento das cidades, as burguesias urbanas
envolvidas em atividades liberais e políticas eram originadas ainda do núcleo familiar
rural patriarcal. O patriarcalismo, segundo elemento que Sérgio Buarque considera
fundamental para o entendimento do pensamento social e político brasileiro, é explicado
em Raízes do Brasil da seguinte forma:

O quadro familiar torna-se tão poderoso e exigente que sua


sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A
entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A
nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde
prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços
afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida
pública, todas as nossas atividades. Representando, como já se notou
acima, o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a
família colonial fornecia a ideia mais normal do poder, da
respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O
resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos
próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e
antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela
família. (HOLANDA, 1956, p. 103)

O próprio processo de ocupação das cidades foi lento e gradual, de acordo com o
autor. O surgimento dos centros urbanos acontecia sempre subordinado à importância
dos engenhos, e ligado às atividades econômicas e produtivas que dele emanavam.
Mesmo após o aparecimento das cidades, as casas grandes continuaram sendo a sede da
vida social das famílias coloniais. As moradias urbanas não eram frequentemente
utilizadas, ou o eram por intervalos curtos de tempo. Só após o início do século XIX,
com da decadência processual dos grandes latifúndios, é que as cidades
progressivamente ganharam importância. A perda de importância das propriedades
rurais foi marcada, entre outros motivos, pelo estabelecimento da família real no Rio de
Janeiro em 1808, pelo fim do tráfico negreiro em 1850 pela Lei Eusébio de Queirós, a
progressiva substituição dos engenhos de açúcar pelas lavouras de café, e a abolição da
escravidão em 1888. Estas duas últimas foram fundamentais para a urbanização da
colônia. (HOLANDA, 1956)
É nessa configuração social de poder, o patriarcalismo, que se desenvolve a
categoria analítica mais importante da obra: o homem cordial. Diferente do sentido
comumente atribuído à palavra – polidez, respeito e cerimonialismo, civilidade –; a
cordialidade em Raízes do Brasil está mais ligada à sua origem etimológica, isto é, de
algo ligado ao coração. Neste sentido, o homem cordial como proposto por Holanda
(1956) é antes de tudo afetivo, pessoal, tendendo a conferir aos relacionamentos
interpessoais a característica de proximidade e afinidade. Criado no seio da família, sob
herança do patriarcalismo, o homem cordial tende a conferir uma conotação subjetiva a
todos os relacionamentos, sendo movido por paixões, sentimentos, impulsos, afinidades
afetivas, e não pela racionalidade e impessoalidade.

“Nosso temperamento admite fórmulas de reverência, e até de


bom grado, mas quase somente enquanto não suprimam de todo
a possibilidade de convívio mais familiar. A manifestação
normal do respeito em outros povos tem aqui sua réplica, em
regra geral, no desejo de estabelecer intimidade.” (HOLANDA,
1956, p. 212)

Vale ressaltar, no entanto, que, para o homem cordial, o estabelecimento desses


vínculos afetivos e sociais, não se traduzem na construção de uma consciência ou ordem
coletiva. Antes, é a reafirmação do privado sobre o público, à medida que, apesar da
proximidade, os vínculos afetivos estabelecidos não são necessariamente profundos e
sinceros. Em outras palavras, a cordialidade não significa sociabilidade, mas, nestes
termos, individualismo.
Para o homem cordial, as relações familiares, profissionais e políticas são
igualmente afetivas, sejam elas de amizade e companheirismo, rivalidade ou inimizade,
sinceras ou não, profundas ou superficiais. Deste modo, a cordialidade do brasileiro
estaria essencialmente menos ligada à ideia de bondade, generosidade, hospitalidade,
que de personalismo e sentimentalismo (sob uma conotação positiva ou negativa). Para
o autor, a cordialidade seria um dos dificultadores do rompimento entre as esferas
pública e privada, da assimilação social da descontinuidade entre família e Estado.
Neste sentido, o personalismo, fruto da cordialidade, torna-se uma resistência ao
modelo de dominação racional-legal, à burocratização própria da atividade política
(WEBER, 1968), em que o geral suplanta o particular. Sobre a dificuldade envolvida
nesta distinção, Sérgio Buarque de Holanda se refere ao funcionário patriarcal, cujas
ações políticas estão antes ligadas aos interesses próprios e familiares, e não a um senso
de coletividade, sintetizando assim a relação intrínseca entre patrimonialismo e
cordialidade:

Para o funcionário patrimonial, a própria gestão política apresenta-se


como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os
benefícios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais do
funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro
Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e
o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. A
escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de
acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito
menos de acordo com suas capacidades próprias. Falta a tudo a
ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático.
(HOLANDA, 1956, p. 208)

O último elemento analisado por Sérgio Buarque sobre as raízes histórias e


sociais do Brasil é o liberalismo político, entendido por ele como o surgimento do
Estado brasileiro e da democracia brasileiros a partir da proclamação da República e do
desmoronamento das estruturas que antes sustentavam o poder patriarcal rural, como a
escravidão e a monocultura da cana-de-açúcar. No entanto, ele não faz apenas uma
descrição do surgimento destas instituições, mas uma análise crítica sobre o
descompasso entre o aparato institucional formal existente, inspirado fundamentalmente
na Europa, e o comportamento social e político brasileiro que, embora sem boa parte de
suas estruturas formais de sustentação, ainda guardavam relação intrínseca com a
colonização, o patriarcalismo (de algum modo ainda influenciador das relações
políticas, mesmo urbanas, como demonstrado acima) e a cordialidade. O autor
argumenta que a despeito de as instituições políticas brasileiras serem, à época, mais
próxima das liberais e democráticas, o desenvolvimento social ainda estava arraigado à
colonização portuguesa, fator ao qual ele atribui responsabilidade significativa desta
forma de organização social frouxa, instável e personalista. (HOLANDA, 1956)
Colocados os argumentos do autor, dado que, como mencionado anteriormente,
a primeira edição da obra foi lançada há 80 anos, cabe claramente o questionamento
acerca da atualidade das ideias aqui apresentadas, para que a análise que se propõe fazer
a seguir não seja anacrônica ou infundada. O desenvolvimento e complexificação das
instituições políticas; o estabelecimento da democracia; a promulgação de uma
Constituição que garante amplos direitos políticos e, em especial, a igualdade política
entre gêneros e raças; a maciça urbanização, com o desenvolvimento de um importante
centro financeiro; para além do alcance de uma série de direitos sociais mudam
substantivamente o ambiente em que se estrutura a vida social, política e econômica no
Brasil. No entanto, a relevância e atualidade de Raízes do Brasil demonstram-se pelos
estudos que a essa obra se seguiram, bem como a confirmação de seu eixo analítico
central: a tipologia do homem cordial.
Como afirma Sérgio Costa (2014), as pesquisas historiográficas que se seguiram
a partir do ensaio Raízes do Brasil ainda hoje endossam a narrativa e as conclusões às
quais o autor chega sobre fatos importantes da história do Brasil, como a vinda da
família real, por exemplo, e o processo de urbanização, o qual contribuiu para a
paulatina perda de poder das propriedades rurais e do patriarcalismo. Por sua vez, a
reverberação política deste elemento foi constantemente estudada na ciência política,
sob as formas de coronelismo, clientelismo e caudilhismo, embora hoje sua presença
seja residual na maioria das regiões brasileiras. No que concerne ao homem cordial, o
tipo ideal inspirou o pensamento de duas correntes na área de estudos de Pensamento
Político Brasileiro: a primeira delas considera o homem cordial não apenas como fruto
da história nem um pensamento momentâneo, mas como um traço da identidade
brasileira, atemporal; a segunda, questiona-se ainda hoje sobre o impacto da
cordialidade sobre o estabelecimento de leis e instituições generalizantes não apenas no
Brasil, mas na América Latina. A partir disso, esse elemento especificamente parece ser
fundamental para a discussão sobre a construção de uma comunidade cívica no Brasil,
especialmente pela sua relação com o familismo amoral, que será tratado a seguir.

3 O HOMEM CORDIAL E OS DESAFIOS PARA CONSTRUÇÃO DE UMA


COMUNIDADE CÍVICA NO BRASIL

O objetivo desta parte final do texto é analisar a construção de uma comunidade


cívica no Brasil a partir dos elementos propostos por Putnam (2006) (participação
cívica, igualdade política, confiança e solidariedade, participação em estruturas sociais
de cooperação) à luz do tipo ideal do homem cordial e de sua relação com o familismo
amoral. É importante ressaltar, no entanto, três aspectos: o primeiro é que devido à
restrição de espaço e tempo, a verificação da presença destes quatro fatores no Brasil
são será feita com base na aplicação do modelo quantitativo de Putnam, mas a
apresentação de dados que permitam a identificação dos mesmos será feita sempre que
possível. O segundo é que os dados quantitativos aqui apresentados se referirão a
pesquisas ou contabilizações a nível nacional, apesar de o trabalho de Robert Putnam ter
se centrado em uma análise comparativa regional. Dado que os resultados de sua
pesquisa a respeito do impacto da comunidade cívica sobre o desempenho institucional
pretendem-se teóricos e não regionais, e que o objetivo deste artigo é analisar em uma
perspectiva história as condições para a existência de uma comunidade cívica no Brasil,
a apresentação dos dados a nível regional não se faz necessária. O terceiro é que pelos
próprios conceitos do homem cordial e familismo amoral, essencialmente descritivos,
dois dentre os quatro elementos terão mais destaque na análise: a igualdade política e a
solidariedade, confiança e tolerância. A hipótese que se discutirá aqui é que apesar da
presença, em algum grau, dos princípios que compõem a comunidade cívica, seu
fortalecimento e coesão são comprometidos pela influência de modos de interação
social que herdados em algum grau do processo histórico colonizador, embora não se
adote aqui uma postura determinista histórica.

Com relação à participação cívica, mensurada por Putnam pelo comparecimento às


urnas, em uma perspectiva comparada, o índice de comparecimento nacional nas
últimas eleições presidenciais apresentou foi de média de 80,70% da população. Os
dados aos quais se recorreu estão disponíveis na tabela que se segue.

Tabela 1: Índice de comparecimento às urnas

Ano Turno Quantidade Comparecimento Comparecimento


total de pessoas em relação ao
aptas total
2006 1º 125.913.479 104.820.459 83,24%
2006 2º 125.913.479 101.998.221 81%
2010 1º 135.523.581 111.038.684 81,93%
2010 2º 135.526.865 106.465.483 78,55%

2014 1º 142.821.358 115.122.883 80,60 %


2014 2º 142.821.358 112.683.879 78,89%
Fonte: elaborado pela autora com base dos relatórios do TSE dos anos 2006, 2010 e 2014.
Com relação ao índice de indivíduos engajados em estruturas de cooperação
social (em destaque os sindicatos, igrejas e partidos políticos), um estudo realizado em
2010 pelo IBGE – o mais recente em relação a esse tipo de instituições, revelou a
existência 283.028 associações sem fins lucrativos no Brasil, e 7.664 fundações,
distribuídas, distribuídas pelas seguintes áreas de atuação: 292 (0,1%) atuam com
habitação, seguidas pelas áreas da saúde (2,1% - 6.029), cultura (12,7% - 36.921),
educação e pesquisa (6,1% - 17.664), assistência social (10,5% - 30414), meio ambiente
(0,8% - 2.242) e defesa de direitos (14,6% - 42.463). Associações patronais e
profissionais constam como 15,5% das entidades (44.939), outras instituições são 9,2%
(26.875). Ainda de acordo com essa pesquisa, as associações que contam com o maior
número de participantes são as organizações religiosas, que totalizam 28,5% (82.853).
(ABCR, 2012). Segundo o Tribunal Superior Eleitoral, atualmente há 16.018.485
brasileiros filiados a partidos políticos, distribuídos em aproximadamente 35 legendas
(TSE, 2016). Por fim, o último levantamento sobre a participação de brasileiros em
sindicatos revelou que atualmente há 4,838 milhões filiados.

Se por um lado o índice de participação cívica, mensurado pela participação nas


eleições, e o engajamento quantitativo dos brasileiros em associações, pode ser
expressivo, a análise dos princípios de igualdade política e confiança e solidariedade
podem ser indicativos de dificuldades na construção de uma coesão social que
impulsione a participação ativa em questões políticas com o fim de consecução de
objetivos públicos. Para Putnam (2006), “a comunidade cívica, a cidadania implica
direitos e deveres iguais para todos. Tal comunidade se mantém unida por relações
horizontais de reciprocidade e cooperação, e não por relações verticais de autoridade e
dependência.” (p. 102). Se, por um lado, a igualdade cívica, como demonstrado, é
marcada pela impessoalidade, generalização e relações de reciprocidade, a forma de
interação própria do homem cordial destoa substantivamente destes valores, à medida
que é pautada pelo personalismo que se traduz, não raras as vezes, em relações de
clientelismo e hierarquia no espaço político (PUTNAM, 2006, p. 113). Pela
predominância dos laços afetivos e de proximidade familiar, a ação cordial busca a
realização dos interesses particulares apesar dos públicos, mantendo sua base de
confiança social e interação mais profunda no âmbito familiar ou de relacionamentos
privados.
Neste sentido, o conceito de familismo amoral trabalhado por Elisa Reis a partir
do estudo de Banfield sobre a um povoado ao sul da Itália produz rendimentos
analíticos consideráveis. Banfiel (apud Reis) verificou que na localidade de
Montegrano, na região de Marche, a participação dos habitantes na vida política da
cidade bem como a confiabilidade destes cidadãos nas instituições políticas era
baixíssimo; ao passo que toda a referência de coesão social e sentimento destes
indivíduos estava baseada no núcleo familiar. A este fenômeno o autor denominou de
familismo amoral, que “designava um ethos que excluía a colaboração fora do círculo
restrito da família.” (REIS, 2016, p.1). Ao mesmo tempo, Banfield constatou que o
familismo amoral era tanto a causa da debilidade das instituições políticas em
Montegrano como consequência das mesmas. Oara o autor, (BANFIEL apud REIS,
2016), o familismo amoral era também a resposta dos indivíduos à insegurança
econômica e social geradas pela performance insatisfatória do governo, em um ciclo
que, de acordo com o modelo analítico de Putnam, se tornaria vicioso.

Caracterizado como de hábitos vindos do coração – em uma referência ao peso e


papel de destaque desempenhados pela afetividade e impessoalidade – o homem cordial,
cuja gestação remonta ao patriarcalismo rural, manifesta portanto em suas ações o
familismo amoral, à medida em que sua confiança maior não está nas relações e
vínculos sociais, mas no âmbito da proximidade das relações privadas, especialmente a
família. Este ponto está intrinsecamente ligado ao quarto elemento trabalho por Putnam
(2006) para definição de comunidade cívica: solidariedade, confiança e tolerância. Para
o autor, a participação cívica e a igualdade política reforçam os laços cooperativos
sociais e de confiança mútua, reduzindo portanto os custos políticos para a manutenção
da ordem social.

Aqui, a atuação do tipo de interação social típica do familismo amoral e da


cordialidade no Brasil fica muito clara. A pesquisa sobre Índice de Confiança Social
realizada em 20154 (figura 2) pelo IBOPE demonstrou que em relação a instituições, o
brasileiro confia mais no Corpo de Bombeiros (82% dos entrevistados), seguido das
igrejas (71%) e Forças Armadas (63%), enquanto que os índices de confiança nas
instituições políticas como presidência da República, governo federal e congresso
nacional estavam entre as útltimas colocações. Mais importante ainda é que as duas
4
Agradeço aqui em especial a colega de classe Fabiana Kent, que no debate do dia 06/06/2016 apresentou
a pesquisa que muito enriqueceu as atividades em sala e é de extrema importância para a argumentação
deste trabalho.
outras estruturas de cooperação social citadas por Putnam, os sindicatos e os partidos
políticos obtiveram votações inexpressivas, 41% e 17%, respectivamente. Considerando
que o estudo do autor demonstrou que a participação em associações religiosas variava
de forma inversamente proporcional ao engajamento cívico, o alto índice de confiança
nesses tipos de instituições, aliados ao baixo índice de confiança das instituições
políticas governamentais e participativas, suscitam a percepção de uma fragilidade ou
de dificuldades na construção de uma comunidade cívica no Brasil.

Figura 2: índice de confiança dos brasileiros em instituições

Fonte: IBOPE, ICS


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve como objetivo relacionar as obras de Robert Putnam,


especialmente no que concerne à sua análise sobre comunidade cívica, e Sérgio Buarque
de Holanda, sobre a construção do pensamento social e político no Brasil,
especificamente no que tange à construção do tipo ideal do homem cordial. Apesar das
diferenças metodológicas e contextuais, a perspectiva analítica história de longa duração
em ambas as obras pareceu uma oportunidade interessante para se empreender o esforço
de aproximação no sentido de compreender de que modo o passado colonial do Brasil
ainda pode exercer influência sobre o padrão de interação social e político no país no
sentido de dificultar a construção de uma comunidade cívica nos moldes propostos por
Robert Putnam. Apesar das restrições de espaço, tempo e de algumas dificuldades
metodológicas de comparação e relação, entende-se que o objetivo da presente pesquisa
foi cumprido, embora o esgotamento do tema proposto esteja longe. Pelo contrário, pelo
que se percebe há o surgimento de diversos outros temas relacionados, dentre os quais o
principal são as condições (sociais, políticas, econômicas e históricas) que poderiam
favorecer a superação destes empecilhos históricos, uma vez que entende-se que apesar
das limitações contextuais, a racionalidade dos atores políticos e sociais pode favorecer
a opção por um caminho diferente do determinismo histórico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Antonio Candido. O significado de Raízes do Brasil. In: Sérgio Buarque de Holanda.


Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987 [1936], 12. edição, p. xi-xxii.
COSTA, Sérgio. O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Revista Sociedade e Estado -
Volume 29 Número 3 Setembro/Dezembro 2014, p. 823 a 839
HALL, Peter; TAYLOR, Rosemary. Political Science and the Three New
Institucionalisms. Political Studies, vol. XLIV, 1996
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956

OLSON, Mancur. A Lógica da Ação Coletiva,Edusp, 1999

PUTNAM, Robert D. Comunidade e democracia. A experiência da Itália Moderna. Rio


de Janeiro, Ed, Fundação Getúlio Vargas, 1996.

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