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Belo Horizonte
2016
INTRODUÇÃO
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A definição do termo será apresentada na segunda parte do trabalho, no contexto geral do livro Raízes
do Brasil
desempenho das instituições políticas brasileiras2. Para isso, o trabalho está dividido em
três partes: a primeira apresenta o conceito de comunidade cívica utilizado por Putnam,
sendo necessário para sua compreensão uma breve referência ao modelo analítico
elaborado pelo autor para estudo das instituições políticas italianas. A segunda recupera
a argumentação central da obra Raízes do Brasil, especialmente no que diz respeito ao
homem cordial,que, argumentar-se-á, pode ser tomado como um dos principais entraves
ao desenvolvimento da comunidade cívica no Brasil. A terceira parte se dedicará ao
estabelecimento das relações entre os elementos que compõem a comunidade cívica de
Putnam e as características do pensamento político brasileiro apresentados por Sérgio
Buarque. Em seguida, serão apresentadas as considerações finais.
Apesar de não ter sido o primeiro a pensar e escrever sobre comunidade cívica, o
trabalho de Robert Putnam em Comunidade e Democracia: a experiência da Itália
Moderna (2006) é fundamental para a compreensão do impacto desta variável sobre o
desempenho institucional e a vida política de um povo. Tomando como base a definição
de instituições proposta pelo novo institucionalismo, Putnam demonstra como a
participação cívica; a igualdade política; a solidariedade, confiança e tolerância entre os
indivíduos; e o engajamento em estruturas sociais de cooperação são fatores de extrema
relevância para um bom desempenho institucional. Segundo o autor, desempenho
institucional pode ser definido como a capacidade governamental de receber demandas
sociais, processá-las internamente, e a elas responder por meio da implementação de
políticas (PUTNAM, 2006). Para uma compreensão mais adequada do conceito de
comunidade cívica proposto pelo autor, faz-se necessário entender como ele define
instituições, quais as relações que se pode estabelecer entre as regras formais do jogo e
o contexto social em que operam, discussão feita no âmbito do novo institucionalismo,
especialmente o da escolha racional.
Hall e Taylor (2003) definem instituições como as regras formais do jogo capazes
de promover a cooperação entre atores por agir sobre quatro pressupostos e/ou
propriedades da ação dos indivíduos, pressupostos esses que favorecem a ação
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Apesar de não ser objetivo do trabalho analisar o desempenho institucional brasileiro, algumas
inferências serão feitas a partir das próprias conclusões de Putnam sobre o impacto da comunidade cívica
(ou de sua inexistência) sobre a performance das instituições políticas.
individual em detrimento da ação coletiva. O primeiro deles é o caráter racional
utilitarista dos atores, o que significa dizer que o processo de tomada de decisão dos
indivíduos é informado por cálculos que têm como objetivo diminuir os custos de uma
ação e maximizar seus ganhos. Em outras palavras, os indivíduos racionais utilitaristas
pautariam suas ações pela combinação mais adequada de meios e fins, tendo como
objetivo final a consecução de suas preferências. A interação entre diversos atores que
compartilham esse pressuposto ao adotar determinado curso de ação pode significar, do
ponto de vista coletivo, a geração de resultados subótimos, o que é chamado por Olson
(1999) de dilema de ação coletiva. De acordo com este autor, esses problemas nascem
em situações nas quais o conjunto de ações que, do ponto de vista individual, é racional,
pode se tornar, do ponto de vista coletivo, irracional. Isso porque os benefícios
alcançados pela ação individual podem ser menores do que os que seriam alcançados
caso a ação tivesse sido empreendida coletivamente.
A relação intrincada entre os dois pressupostos supracitados explica a criação e a
existência de instituições, como regras e padrões de comportamentos estabelecidos
pelos e para os atores. Enquanto regras de comportamento, elas seriam responsáveis
pela alteração de custos e benefícios dos cursos de ação disponíveis: elas diminuiriam
os custos para a ação coletiva (a cooperação) em detrimento da individual, à medida que
estabeleceriam previsibilidade das ações, aumentariam a qualidade e quantidade de
informações disponíveis, criariam a perspectiva de interações futuras e, por fim,
mecanismos de monitoramento e punição de desertores. Em outras palavras, as regras
formais reduziriam a incerteza os atores envolvidos no jogo e diminuiriam
consideravelmente os custos de transação para o estabelecimento de comportamento
cooperativo. (HALL; TAYLOR, 2003). Deste modo, por serem estabelecidas pelos
atores, as instituições políticas se sustentariam e reafirmariam ao longo do tempo à
medida que fossem eficientes e cumprissem o objetivo para o qual foram criadas.
Partindo dessa definição, Putnam (2006) afirma que as instituições moldam a
política à medida que estruturam o comportamento dos atores pelo estabelecimento de
padrões de ação. Assim, elas têm impacto direto sobre os resultados políticos
produzidos. No entanto, elas não são isentas do ambiente social e econômico em que se
situam; ao contrário, as instituições são moldadas pela história. Nas palavras do próprio
autor,
Independentemente de outros fatores que possam influenciar a sua
forma, as instituições têm inércia e "robustez". Portanto corporificam
trajetórias históricas e momentos decisivos. A história é importante
porque segue uma trajetória: o que ocorre antes (mesmo que tenha
sido de certo modo "acidental") condiciona o que ocorre depois. Os
indivíduos podem "escolher" suas instituições, mas não o fazem em
circunstâncias que eles mesmos criaram, e suas escolhas por sua vez
influenciam as regras dentro das quais seus sucessores fazem suas
escolhas. (PUTNAM, 2006, p. 23).
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A obra de Carl Schmitt chega a ser citada por Buarque de Holanda (1956), ao analisar a construção do
tipo ideal do homem cordial, à medida que discorre sobre as proximidades atribuídas pela cordialidade à
relação amigo/inimigo/hostil.
norma impessoal e impulso afetivo – são pares que o autor destaca no modo-de-ser ou
na estrutura social e política, para analisar e compreender o Brasil e os brasileiros”.
(CANDIDO, 1967, p. 13),
O sistema colonial português reflete, segundo o autor, um “desleixo e um certo
abandono. Dir-se-ia mesmo que se fez apesar de seus autores”. (HOLANDA, 1956, p.
34). Essas características são a manifestação da falta de coesão espontânea da própria
sociedade portuguesa, em que as estruturas hierarquizadas e centralizadoras das
instituições políticas são responsáveis pela manutenção da ordem. Holanda (1956)
argumenta que essa frouxidão na solidariedade social está relacionada à forma de
interpretação do trabalho pelos portugueses. Diferentemente de outras sociedades
europeias, influenciadas pelo calvinismo e protestantismo, nas quais o trabalho era
empregado com diligência e disciplina; o português sempre foi mais afeito ao ócio, ou a
atividades essencialmente contemplativas, predileção herdada pela tradição católica da
Península Ibérica.
A tradução deste perfil na atividade de colonização é feita através dos tipos ideais do
trabalhador e do aventureiro. Para o autor, o tipo aventureiro ignora a existência de
fronteiras e limitações, valorizando mais a consecução de resultados, de benesses e
títulos honoríficos, que o caminho percorrido para tal. Enquanto o aventureiro é
audacioso, instável e afeito aos desafios, o tipo trabalhador se fixa fundamentalmente no
presente, nos empecilhos colocados à frente. Por sua necessidade de segurança e
estabilidade, o trabalhador esmera-se nos esforços lentos e pouco compensadores a
princípio. A corporificação destes tipos ideais é proposta pelo autor no modelo de
colonização português em contraponto ao desenvolvido pelos holandeses, no nordeste.
(HOLANDA, 1956)
O colonialismo português sempre esteve mais voltado ao fruto que se poderia
auferir da terra, ao ganho possível pela produção em larga escala, mas não às atividades
árduas, contínuas e monitoradas para sua preparação e manejo. Em termos produtivos,
isso significou o emprego em larga escala do trabalho negro e indígena. Em termos de
população, a vinda de contingentes consideráveis de colonizadores que embora
estivessem na colônia, não se apegavam à terra de modo subjetivo, enquanto lugar para
estabelecimento de raízes, mas apenas como lugar de enriquecimento e passagem. “O
que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia,
não riqueza que custa trabalho.” (HOLANDA, 1956, p.44). Aliados à ética do
aventureiro, a facilidade de adaptação dos portugueses ao clima e à presença de outras
etnias foram determinantes para a permanência da atividade colonizadora.
Toda a estrutura do sistema colonial português foi erigida em torno do meio rural,
da exploração extensiva das terras através de lavouras e da dependência do trabalho
escravo. É da centralidade da vida rural e da pujança econômica dos grandes latifúndios
que emana o poder social e político dos chefes das famílias, os patriarcas. Nos domínios
rurais, a autoridade máxima sobre o núcleo familiar, os escravos e trabalhadores brancos
livres era do senhor dos engenhos e das lavouras, unidades completas do sistema social.
É no ambiente doméstico e rural que a noção de autoridade se constituiu no Brasil e,
com o passar dos anos, com o lento aparecimento das cidades, as burguesias urbanas
envolvidas em atividades liberais e políticas eram originadas ainda do núcleo familiar
rural patriarcal. O patriarcalismo, segundo elemento que Sérgio Buarque considera
fundamental para o entendimento do pensamento social e político brasileiro, é explicado
em Raízes do Brasil da seguinte forma:
O próprio processo de ocupação das cidades foi lento e gradual, de acordo com o
autor. O surgimento dos centros urbanos acontecia sempre subordinado à importância
dos engenhos, e ligado às atividades econômicas e produtivas que dele emanavam.
Mesmo após o aparecimento das cidades, as casas grandes continuaram sendo a sede da
vida social das famílias coloniais. As moradias urbanas não eram frequentemente
utilizadas, ou o eram por intervalos curtos de tempo. Só após o início do século XIX,
com da decadência processual dos grandes latifúndios, é que as cidades
progressivamente ganharam importância. A perda de importância das propriedades
rurais foi marcada, entre outros motivos, pelo estabelecimento da família real no Rio de
Janeiro em 1808, pelo fim do tráfico negreiro em 1850 pela Lei Eusébio de Queirós, a
progressiva substituição dos engenhos de açúcar pelas lavouras de café, e a abolição da
escravidão em 1888. Estas duas últimas foram fundamentais para a urbanização da
colônia. (HOLANDA, 1956)
É nessa configuração social de poder, o patriarcalismo, que se desenvolve a
categoria analítica mais importante da obra: o homem cordial. Diferente do sentido
comumente atribuído à palavra – polidez, respeito e cerimonialismo, civilidade –; a
cordialidade em Raízes do Brasil está mais ligada à sua origem etimológica, isto é, de
algo ligado ao coração. Neste sentido, o homem cordial como proposto por Holanda
(1956) é antes de tudo afetivo, pessoal, tendendo a conferir aos relacionamentos
interpessoais a característica de proximidade e afinidade. Criado no seio da família, sob
herança do patriarcalismo, o homem cordial tende a conferir uma conotação subjetiva a
todos os relacionamentos, sendo movido por paixões, sentimentos, impulsos, afinidades
afetivas, e não pela racionalidade e impessoalidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS