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A anatomia e seu
destino
por Maria Rita Kehl
Suposta diferença
Mas é na anatomia e na fisiologia -"fatos" da
natureza, afinal- que se tenta fundamentar uma
suposta diferença segura e estável entre homens e
mulheres. Desde a diferença aristotélica dos
princípios masculino e feminino até a "anatomia é
destino" do moderníssimo Freud, busca-se nos
corpos as evidências de uma diferenciação que, no
entanto, ao longo da história e nas diversas culturas
humanas, assume os desenhos mais variados.
No curso das invenções da diferença sexual
catalogadas por Laqueur desde a Grécia clássica, o
período da consolidação da cultura burguesa, entre
o final do século 18 e o início do 20, surge como uma
curiosa exceção. É o único período na história do
Ocidente em que se concebem os homens e as
mulheres como portadores de duas sexualidades de
naturezas diferentes. Até então, todas as teorias
sobre as diferenças sexuais postulavam um sexo
único que se manifestava de maneiras opostas e
complementares nos corpos dos homens e das
mulheres. O homem (atividade, calor) imprime
forma à matéria fria e inerte oferecida pelo corpo
da mulher, pensavam os gregos. Os ovários e a
vagina das mulheres são o negativo imperfeito do
pênis e dos testículos, diziam os anatomistas do
Renascimento.
A teoria do sexo único justificava o poder masculino
e a insignificância histórica das mulheres, limitadas,
na vida pública e nas atividades do espírito, pelas
tarefas da maternidade. Existe um sexo, o
masculino, e seu complemento menos perfeito,
porém necessário, o sexo feminino. No "pacote" das
características sexuais primárias e secundárias,
define-se o que seriam os homens e as mulheres,
seu lugar na sociedade, os limites e o alcance de
seus destinos pessoais.
Foi a Revolução Francesa, as reivindicações
universais por igualdade e liberdade e a afirmação
dos direitos iguais entre todos os humanos, homens
e mulheres, que derrubaram num primeiro
momento a hierarquia fundada sobre os discursos
tradicionais a respeito das diferenças de gênero.
Em reação ao período de desordem revolucionária,
a consolidação da ordem burguesa precisou
produzir um pensamento que desse conta dos
deslocamentos já realizados pelas mulheres no novo
campo de forças sociais. O sexo, escreve Laqueur,
"foi um importante campo de batalha da Revolução
Francesa (...), a criação de uma esfera pública
burguesa (...) levantou com violência a questão de
qual sexo deveria ocupá-la. E em todo lugar a
biologia entrava no discurso".
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