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A Europa, de saída da história?


Europeu é aquele que vive na nostalgia da Europa, disse uma vez com a acutilância que o
carateriza Milan Kundera. A apatia com que os europeus têm vivido o processo das eleições
europeias, cujo desfecho se conhecerá no domingo, são não só um corolário desta ilusão
nostálgica, mas também das suas consequências mais funestas: a incompetência das suas
elites, a indiferença dos seus cidadãos, a indigência das ideias apresentadas.

No preciso momento em que a Europa conhece a sua mais grave crise desde a sua criação,
uma crise que abala os seus alicerces fundamentais, nenhuma proposta se destacou, por parte
dos principais candidatos, para a enfrentar e vencer. Como se a Europa, afinal, se resignasse a
ir saindo de uma história cujo sentido deixou de dominar, incapaz de compreender o mundo
de hoje e de se adaptar às suas novas exigências.

A Europa aparece, e isto acontece no discurso eleitoral de todas as forças políticas, como algo
que ninguém consegue mudar, como algo que escapou completamente - não se sabe bem
como - à vontade política dos governos e dos cidadãos. E os políticos reforçam
constantemente este sentimento, ao falarem dela mais em termos de prece do que de ação.

O sonho europeu tornou-se assim, para uns num pesadelo, para outros numa irrelevância, mas
em ambos os casos ele perdeu todo o élan que o caracterizou durante décadas, tornando-se
agora no pasto fácil das demagogias mais ou menos populistas, que vão certamente fazer do
Parlamento eleito no próximo domingo uma assembleia fragmentada, conflitual, inútil e talvez
mesmo perigosa.

Um dos textos mais estimulantes que surgiram neste período foi o manifesto Pour une Union
Politique de l"Euro", em grande parte inspirado nos trabalhos de Thomas Piketty, subscrito por
muitos intelectuais europeus e que eu também assinei. Thomas Piketty é o economista francês
que anda agora nas bocas do mundo, sobretudo depois da tradução americana do seu livro Le
Capital au XXI Siècle. Falei dele aqui nestas páginas quando foi publicado, em outono passado,
tendo previsto que, apesar das suas desafiadoras quase mil páginas, se tratava de uma obra
destinada a marcar o nosso tempo.

E é o que está a acontecer, com traduções em curso em todo o mundo. Nos EUA o livro está
mesmo na lista de best-sellers da Amazon, economistas como J.Stiglitz ou R. Sollow têm-se
multiplicado em elogios às suas ideias, tendo Paul Krugman considerado que se trata do mais
importante livro da década.

Vale a pena lembrar duas das ideias centrais de Thomas Piketty, uma sobre as desigualdades,
outra sobre o crescimento. Começando por esta, a campanha eleitoral europeia tem mostrado
que se continua à espera, para sair da crise, de um crescimento mais ou menos milagroso,
porque ninguém diz de onde virá ou qual será o seu motor. E que ele continua a ser pensado a
olhar para o passado, como se se tratasse de uma simples retoma de um percurso que apenas
teria sido interrompido por alguns momentos.

Ora, é cada vez mais claro que os dados históricos não permitem sustentar esta perspetiva que
vê o futuro como um mero retorno do passado. Thomas Piketty insiste muito neste ponto, ao
analisar a evolução das economias de vinte países durante os últimos três séculos. E vale bem
a pena reter alguns dados da sua análise, que nunca tinha sido feita. Em primeiro lugar, que a
taxa de crescimento da produção por habitante foi em média de 0,8% entre 1700 e 2012,

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sendo que entre 1700 e 1820 ela foi de 0,1%, entre 1820 e 1912 de 0,9% e entre 1913 e 2012
de 1,6%. E que, se olharmos para a Europa, a mesma taxa de crescimento da produção foi,
entre 1820 e 1913, de 1%, e de 1,9% entre 1820 e 2012, enquanto na América ela foi de 1,5%
nestes dois períodos.

O ponto importante, em que verdadeiramente temos de pensar, é que, como ele diz, "não há
nenhum exemplo histórico de um país que se encontre na fronteira tecnológica mundial e cujo
crescimento seja duravelmente superior a 1,5%". E se olhamos para as últimas décadas,
encontramos ritmos ainda mais débeis, como o de 0,7% no Japão, de 1,4% nos EUA e de 1,6%
na Europa ocidental, entre 1900 e 2012. O que acontece, conclui Piketty, porque "continuamos
numa grande medida impregnados pela ideia segundo a qual o crescimento deve ser pelo
menos de 3% ou 4%. Ora isto é uma ilusão, tanto em relação à história, como à lógica".

Sobre as desigualdades, que é o tema central do seu trabalho, a sua tese é que, no longo
prazo, os rendimentos do capital são extravagantemente superiores, não só aos do trabalho,
mas também aos do próprio crescimento económico. O que significa que a dinâmica do
capitalismo se revela criadora de desigualdades que não é de todo capaz de corrigir, o que, na
situação da economia globalizada dos nossos dias, exige que se pense muito a sério em
soluções também globais.

É um facto que as guerras do século XX criaram, devido à devastação que operaram, uma
espécie de grau zero ao nível patrimonial, suscitando a ilusão de uma progressiva diminuição
das desigualdades. O sonho europeu foi em boa parte resultado desta ilusão - é por isso que a
Europa só sobreviverá como potência se, como se diz no "manifesto" que atrás referi, assumir
mudanças profundas ao nível institucional e político como, por exemplo, uma fiscalidade
uniformizada, a criação de um imposto europeu que viabilize um orçamento minimamente
capaz para a zona euro, a mutualização da dívida de cada país acima dos 60%, a criação de um
Parlamento da zona euro ou o fim do imperativo da unanimidade no Conselho Europeu, com a
adoção da regra da maioria.

Clamar que a opinião pública está cada vez mais em aceso atrito com a Europa, e não fazer
nada para mudar profundamente o seu funcionamento e as suas instituições, é de uma total
incongruência, que só agudizará a crise europeia e acelerará a sua saída da história. Mas é
esse, infelizmente, o risco que corremos.

por Manuel Maria Carrilho, DN noticias, 22 maio 2014

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