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Pesquisa-Intervenção
e a Produção de Novas Análises
Participatory action research and the production of new analysis
Resumo: Partindo de um histórico das pesquisas participativas nos seus diferentes momentos de constituição
e propostas relativas às mudanças na produção de conhecimento, este trabalho tem como perspectiva
apresentar e discutir os pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa-intervenção. A pesquisa-intervenção
vem constituindo-se em um dispositivo de transformação vinculado tanto à formação acadêmica dos
psicólogos, quanto às práticas nas instituições, possibilitando novas análises construídas entre a macro e a
micropolítica.
Marisa Palavras-chave: pesquisa participativa, pesquisa-intervenção, Psicologia Institucional.
Lopes da Rocha
Abstract: On the basis of a historical review of participative research along its different moments of
constitution, and assuming some proposals related to transformation in the production of knowledge, this
Profª adjunta e paper aims to discuss the theoretical and methodological presumptions of intervention-research. Intervention-
pesquisadora em research can be seen as a means of achieving transformation in what concerns academic formation of
Educação do professionals in Psychology as well as the practices in institutions, offering the possibility of new analysis
Departamento de
Psicologia Social e
grounded on macro and micropolitics.
Institucional do Instituto Key Words: participative research, intervention-research, Institutional Psychology.
de Psicologia da UERJ.
Mestre em Filosofia da
Educação pelo IESAE/
FGV. Doutora em
Psicologia pelo Núcleo
de Estudos e Pesquisas
da Subjetividade na
PUC/SP.
ArtToday
1
Katia Este trabalho tem por objetivo discutir os pressupostos cotidianas como acontecimentos sociais complexos ,
Faria de Aguiar da pesquisa-intervenção que vêm viabilizando a determinados por uma heterogeneidade de fatores e
construção de espaços de problematização coletiva de relações.
junto às práticas de formação e potencializando a
Profª adjunta e produção de um novo pensar/fazer educação. A
pesquisadora do
pesquisa-intervenção em nossa experiência faculta um
Pesquisas Participativas:
Departamento de
duplo e simultâneo projeto: por um lado, uma História e um Outro Modo de
Psicologia da UFF.
Mestre e Doutora em redimensiona a formação acadêmica dos profissionais Produção de Conhecimento
Psicologia Social na de Psicologia, apontando para a perspectiva sócio-
PUC/SP. histórico-política; por outro, constrói novas bases para As primeiras experiências com pesquisas de campo
as ações dos psicólogos nas instituições, contribuindo estão vinculadas às iniciativas lewinianas no final da
para a organização de equipes que queiram assumir o década de 30 nos Estados Unidos, inaugurando uma
64 desafio de colocar em análise suas implicações com outra possibilidade de articulação entre teoria e
as práticas produzidas, entendendo as situações prática, sujeito e objeto nas investigações sociológicas,
Demandas do Processo Psicodiagnóstico:
Considerações Teóricas e Clínicas Sobre as Vivências das Estudantes de Psicologia
Já no final da década de 70 se abrirá uma nova participativa (PP) e da pesquisa-ação (PA), mas entre
perspectiva de investigação a partir do as pesquisas participativas e não participativas. Já na
questionamento às pesquisas tradicionais, incluindo literatura brasileira, as diversas tendências
discussões no que tange ao fracionamento da vida metodológicas que envolvem o conceito de
social, à dicotomização entre ciência e política e à participação apresentam maior polêmica, gerando
conseqüente inviabilização de uma participação muitas vezes dificuldades quanto à sua compreensão.
efetiva de grupos sujeitados nos rumos da sociedade. Em Thiollent, por exemplo, uma clara distinção
O pesquisador, nessa nova visão, apresenta-se como mostra-se necessária, pois a PA é uma forma de PP,
um intelectual orgânico às causas populares, e a mas nem todas as PP são PA:
pesquisa-ação se traduz em um método
potencializador na organização de espaços de “A PP se preocupou sobretudo com o papel do
participação coletiva. Política e educação, política e investigador dentro da situação investigada e chegou
organização de comunidades constituem-se em a problematizar a relação pesquisador/pesquisado
relações possíveis para transformar a realidade. no sentido de estabelecer a confiança e outras
condições favoráveis a uma melhor captação de
No cenário latino-americano, noções como informação. No entanto, os partidários da PP não
educação e cultura popular, participação e concentraram suas preocupações em torno da
autonomia ganham relevo e orientam as ações dos relação entre investigação e ação dentro da situação
trabalhadores sociais, principalmente com considerada. É justamente esse tipo de relação que é
experiências em escolas comunitárias e em diferentes especificamente destacado em várias concepções da
iniciativas nos campos da saúde e da moradia. PA. A PA não é apenas PP, é um tipo de pesquisa
Voltadas à construção de alternativas ao sistema formal/ centrada na questão do agir” (Thiollent, 1987: 83).
2 Qualitativo está ligado à
análise dos sentidos que vão estatal, tais experiências acompanham mudanças em
gradativamente ganhando curso nos movimentos sociais e apontam para Em Oliveira e Oliveira (1985), encontramos os
consistência nas práticas. O pressupostos das pesquisas participativas sem uma
sentido é a virtualidade que intelectuais-pesquisadores estabelecidos em
pulsa nas ações, é universidades e organizações não-governamentais, distinção entre as diferentes abordagens de trabalho
processualização da vida e novas formas de organização e de produção do em campo, as quais são afirmadas como estratégias
atravessa o significado, uma vez
conhecimento. de pesquisa que têm como proposta a participação
que está na ordem das dos grupos sociais na busca de soluções para as
intensidades. Desse modo, o
desafio dos pesquisadores é ir O entendimento de que as questões sociais devem ser problemáticas vividas, envolvendo um processo de
além do reconhecimento das problematizadas com os grupos e as organizações compreensão e mudança da realidade. Segundo os
representações estabelecidas na autores, para desenvolver uma metodologia
comunidade investigada, dos populares, a consideração da necessária
consensos que dão forma e contextualização das questões e ações empreendidas participativa, é necessária uma mudança na postura
apresentam a vida como uma e a complexidade dos processos de mudança, do pesquisador e dos pesquisados, uma vez que todos
estrutura definida nos seus
próprios do referencial básico das pesquisas são co-autores do processo de diagnóstico da
valores, produções e situação-problema e da construção de vias que
expectativas. O qualitativo participativas, aparecem como elementos
refere-se, então, à possibilidade fundamentais à construção e ao exercício de uma possam resolver as questões. É um processo contínuo
de recuperar as histórias dos cidadania ativa. Relativizando a idéia de “verdade”, que acontece no curso da vida cotidiana,
movimentos dessa comunidade, transformando os sujeitos e demandando
sendo percebido nos conflitos, abandonam a neutralidade, a objetividade e a
nas divergências, nas ações que totalização dos saberes, pilares das ciências tradicionais. desdobramentos de práticas e relações entre os
fazem diferença, que facultam Nesse sentido, a transformação da realidade vivida não participantes.
a produção de sentidos outros,
seria uma questão da correta aplicação dos
frente ao hegemônico, para um Independentemente de ter ou não um tempo
futuro indeterminado. Isso conhecimentos produzidos nas hierarquias
implica escapar ao crivo que formalizadas, colocando-se como possibilidade a partir determinado para o seu desenvolvimento, que varia
serve para diagnosticar os da interação entre o saber acadêmico, em seus diversos segundo os recursos materiais e humanos disponíveis,
desvios na funcionalidade o fundamental nas pesquisas participativas é que o
cotidiana das organizações campos de conhecimento, e os saberes dos sujeitos
sociais, afirmando a diferença individuais e coletivos envolvidos na pesquisa. conhecimento produzido esteja permanentemente
como um modo de ser possível disponível para todos e possa servir de instrumento
nas relações do coletivo. A para ampliar a qualidade de vida da população.
pesquisa-intervenção busca Considerações Sobre as Possíveis
acompanhar o cotidiano das Podemos considerar que a pesquisa participante se
práticas, criando um campo de Diferenças entre Pesquisa constitui em uma metodologia com pressupostos
problematização para que o
sentido possa ser extraído das
Participante/Participativa, gerais de pesquisa, envolvendo diferenciados modos
tradições e das formas Pesquisa-Ação e Pesquisa- de ações investigativas e de priorização de objetivos.
estabelecidas, instaurando A pesquisa-intervenção consiste em uma tendência
tensão entre representação e Intervenção das pesquisas participativas que busca investigar a
expressão, o que faculta novos 2
modos de subjetivação.
vida de coletividades na sua diversidade qualitativa ,
Como constatam Rizzini, Castro e Sartor (1999), na assumindo uma intervenção de caráter socioanalítico
literatura estrangeira a principal preocupação entre (Aguiar, 2003; Rocha, 1996, 2001). Rodrigues e Souza
66 os pesquisadores não está diretamente ligada à (1987) evidenciam que a pesquisa-intervenção
diferença entre as metodologias da pesquisa representa uma crítica à política positivista de pesquisa:
Pesquisa-Intervenção e a Produção de Novas Análises
“A antiga proposta lewiniana vem sendo re-significada enclausuramento”, que serão fundadas tanto as
à luz do pensamento institucionalista: trata-se, agora, imagens de equivalência sujeito-indivíduo quanto o
não de uma metodologia com justificativas sentido de unidade fechada presente nos conceitos
epistemológicas, e sim de um dispositivo de de sujeito e de grupo (Barros, 1994b).
intervenção no qual se afirme o ato político que
toda investigação constitui. Isso porque na pesquisa- A equivalência sujeito-indivíduo servirá para o
intervenção acentua-se todo o tempo o vínculo entre congelamento das possibilidades de análise dos
a gênese teórica e a gênese social dos conceitos, o processos de subjetivação, plurais e heterogêneos,
que é negado implícita ou explicitamente nas versões sustentando a concepção de sujeito enquanto
positivistas ‘tecnológicas’ de pesquisa” (Rodrigues e consciência unitária presente nas teorias construídas
Souza, 1987: 31). ao longo da era moderna. Além disso, o pressuposto
da interioridade, pretendendo garantias frente à
Em relação à gênese da pesquisa-intervenção e à ameaça desestabilizadora da multiplicidade de uma
construção da sua singular abordagem no Brasil realidade que lhe é exterior, irá aprofundar a cisão
(Saidon e Kankahagi, 1987), podemos identificar o homem X mundo.
movimento institucionalista francês, na década de
60, e o latino-americano nas décadas seguintes, Muitas das teorias críticas produzidas nessa época
como experiências em meio às quais ela se afirmará permanecem presas a tal perspectiva quando, por
3
como uma prática ético-estético-política . exemplo, estabelecem a noção de homem como
consciência sujeitada, resultado da dominação
O processo de formulação da pesquisa-intervenção (homem alienado – inconsciente das determinações
aprofunda a ruptura com os enfoques tradicionais sociais externas, preso às ideologias), ou como
de pesquisa e amplia as bases teórico-metodológicas consciência liberta, representando a resistência à
das pesquisas participativas, enquanto proposta de dominação (homem crítico – lúcido em relação às
atuação transformadora da realidade sócio-política, determinações ideológicas de uma sociedade
já que propõe uma intervenção de ordem dividida em classes). Ao pressuposto implicado nessa
micropolítica na experiência social. O que se coloca visão de homem colocado frente à realidade, somam-
em questão é a construção de uma “atitude de se as disjunções sujeito/objeto e teoria/prática, uma
pesquisa” que irá radicalizar a idéia de interferência vez que a emancipação está no descobrimento de
na relação sujeito/objeto pesquisado, considerando fatores pré-determinados.
que essa interferência não se constitui em uma
dificuldade própria às pesquisas sociais, em uma A ruptura com essa concepção investe na criação de
subjetividade a ser superada ou justificada no novos referenciais que coloquem em questão as
tratamento dos dados, configurando-se, antes, como formas hegemônicas circunscritas. Sendo a
condição ao próprio conhecimento (Santos, 1987, subjetividade efeito de múltiplas determinações em
Stengers, 1990). tensão, a consciência seria sempre parcial, existindo
em permanente conflito no processo de
A pesquisa afirma, assim, seu caráter desarticulador entendimento da vida e, portanto, sem a possibilidade
das práticas e dos discursos instituídos, inclusive os de um estado pleno de lucidez.
produzidos como científicos, substituindo-se a
fórmula “conhecer para transformar” por A crítica feita às teorias estruturalistas dirige-se ao sujeito
“transformar para conhecer” (Coimbra, 1995). humanista naturalizado e essencializado, portador
Podemos, então, destacar, para a formulação da de uma subjetividade nuclear que pode ser reprimida
pesquisa-intervenção, referenciais importantes como pela sociedade ou, de outro modo, atualizar-se de 3 Na perspectiva de Guattari
uma certa concepção de sujeito e de grupo, de (1992), a Ética está referida
forma livre. ao exercício do pensamento que
autonomia e práticas de liberdade e a de ação avalia situações e
transformadora: Silva (1993), discutindo os pressupostos cientificistas acontecimentos como
no que tange à falsa ou à verdadeira consciência, potencializadores ou não de
vida; a Estética traz a
Concepção de Sujeito e de Grupo estabelece que a ciência não desvela a ideologia, dimensão de criação,
uma vez que a própria postura científica é parte do articulando os diferentes
problema, e não a solução. A ideologia, segundo o campos do pensamento, da
O processo de consolidação do capitalismo se faz ação e da sensibilidade; a
na perspectiva de um tempo espacializado, autor, é uma visão invertida de uma realidade política implica a
cronológico, e em sua especialização nos campos material considerada fixa e o significado nunca é responsabilização frente aos
de saber e nos encargos de seus peritos – fixo, tendo como referente o “real”. O significado é efeitos produzidos, ou seja,
sobre os sentidos que vão
especialismos/especialistas. O aparecimento de novos produzido nas práticas, em tensão permanente com
ganhando forma através das
espaços e a modificação de outros já existentes as representações hegemônicas. ações individuais e coletivas.
seguem uma racionalidade marcada pelo
investimento no individual e sua inscrição em uma Também em Foucault (1999) percebemos que o
totalidade, através da funcionalidade e do equilíbrio. conhecimento não se circunscreve à dualidade falso 67
Será nesse contexto, o de uma “tecnologia de x verdadeiro, pois é acontecimento e tem caráter
Marisa Lopes da Rocha
“A autonomia considerada como um estado a ser verdade. Não havendo um lugar privilegiado, o que
alcançado através de programas determinados de seria dos agentes de mudança? (Foucault, 1981).
ação está referida à conquista de um reino futuro O cotidiano entra em cena, como espaço/tempo
onde habita a liberdade. A liberdade está sempre privilegiado ao exercício de articulação das análises
situada fora das circunstâncias. Desse modo, a micro e macropolíticas. Facultar formas singulares de
transformação passa a ser previsível no percurso participação em que se estabeleçam o confronto de
estruturado como condição a priori. No entanto, a subjetividades, a intensificação das relações de poder
autonomia não é uma condição que, uma vez e a abertura de espaços polêmicos para o exercício da
4
conquistada, nos leve ao estado de equilíbrio e bem- cidadania torna-se hoje imperativo ante os caminhos
estar permanente. Se a entendermos como função de libertação já circunscritos nas metanarrativas (Aguiar,
de autonomia, como afirmam F. Guattari & S. Rolnik 2003, Rocha, Gomes e Lima, 2003).
(1986), ela é exercício, movimento, práticas de
transformação, estando referida ao presente, à
realidade, às circunstâncias nas quais produzimos o
cotidiano” (Aguiar e Rocha, 1997:100). “A autonomia
considerada como
A luta pela autonomia, enquanto tomada de um estado a ser
consciência, cede lugar à afirmação do poder das alcançado através
experiências, através das quais os agentes sociais se de programas
reconhecem e são reconhecidos nos tempos e determinados de
espaços diferenciados que os compõem. Isso não ação está referida à
significa deixar de colocar em análise os conquista de um
condicionantes político-sociais atravessados nas ações reino futuro onde
cotidianas. Segundo Silva (1993), o movimento da habita a liberdade. A
Pedagogia Crítica “moderna” tinha como desafio as liberdade está
práticas de conscientização que, na atualidade, frente sempre situada fora
ao descentramento da noção de sujeito, perdem das circunstâncias.”
sentido. As múltiplas determinações das posições de
sujeito descaracterizam um estado privilegiado de Aguiar e Rocha
consciência para o qual se pudesse levar o outro a
ser conscientizado.
Não se trata de exaltação de um hedonismo de
“Faz mais sentido falar num confronto de diferentes momento, mas da produção de utopias ativas, onde
subjetividades, o que concederia uma importância a constituição da autonomia se dá pela sempre
maior à construção de espaços públicos de discussão limitada mas infinita questão relativa à potencialidade
e debate onde essas diferentes subjetividades tivessem da vida. Se as crenças e valores socioculturais
a oportunidade de se defrontarem. Isso aponta para estabelecem o que pode ser, o pensar favorece o
um outro importante conceito que afasta as análises exercício ético do que deve ser e fazer frente às
pós-modernas das modernas: o conceito de circunstâncias. Isso exige mudanças na ordem da
‘diferença’” (Silva, 1993: 130). existência nos seus múltiplos devires que estão além
dos condicionantes culturais. Se acolhemos a
A racionalidade moderna, através da universalidade, máxima de que é nas condições políticas que se
das categorizações dicotômicas, ocupou o centro das produzem sujeitos, domínios de saber e relações com
a verdade, pensar o poder como produção de
preocupações, descaracterizando a subjetividade na
subjetividade é descentrar o poder de um sujeito
sua diferença. Assim, enquanto a análise moderna
verdadeiro para colocar em análise os processos de
tem como foco a desigualdade social,
sua constituição enquanto tal. A quebra da
homogeneizando grupos e sujeitos, na perspectiva 4 O conceito de cidadania é
equivalência sujeito-indivíduo, pela introdução do
contemporânea a ênfase recai sobre as diferenças entre aqui utilizado não no sentido
tempo, implica novos referenciais de análise que tradicional do termo, que
grupos e nos grupos (Rocha, 1996, Silva, 2001). podem ser vistos como outra forma de pensar o aponta para as garantias legais
poder da ação humana (Deleuze, 1988). e para a submissão às
A dialética repressão x libertação supõe uma prescrições, ou seja, como uma
prática moral, mas sim
perspectiva identitária da subjetividade. Não Ação Transformadora enquanto conquista do espaço
encontramos uma realidade fora das condições público, práticas éticas, onde
concretas dos sujeitos, os discursos não são falsos ou as estratégias e a produção da
A filosofia da representação, que sustenta a cultura realidade sócio-política é fruto
verdadeiros, não representam a realidade, mas ocidental cristã e sua racionalidade, favoreceu a de uma intervenção coletiva.
constituem-na. O poder, na dimensão foucaultiana, absorção do múltiplo no uno, da diferença na
circula e não está nas mãos de uma determinada classe identidade e do acaso na necessidade. No plano das
social, nem nas dos intelectuais. Nesse sentido, não há representações, o que se afirma são universais onde 69
um lugar isento, neutro, de onde se possa falar a a realidade será rebatida e codificada, sendo os
Marisa Lopes da Rocha
acontecimentos analisados como parte de um todo não o do concreto e da presença. Será com a noção
previamente organizado. de virtualidade que fará a passagem de um possível
Os sujeitos da lei são particularidades de uma entendido enquanto material disponível à criação
ordem geral. A lei só determina a semelhança e ou à tomada de decisões para um possível enquanto
a equivalência aos seus próprios termos. No engendramento. Desse modo, na realização de um
entanto, os homens não são do domínio da ser na dimensão da atualidade, algo continua,
semelhança ou da equivalência, são únicos, permanece em vias de se atualizar.
singulares, ou seja, insubstituíveis. A questão macro
está na ordem das categorizações, da constância dos A transformação do existente não se limita à criação
modelos e da repetição de formas já consolidadas, e de condições ou meios adequados à realização de
não de singularização, multiplicidades e diversidades um potencial, mas refere-se a uma micropolítica
(Rocha, 1996). que implica o intensivo, o plano dos processos de
constituição de realidades, que abre o atual à
A filosofia da imanência proposta por Deleuze e pluralidade das formas de existência e qualifica a
Guattari (1980) reconduz a unicidade e a harmonia, transformação enquanto criação de possíveis.
vinculadas aos sistemas organicamente estruturados,
à pluralidade, à complexidade das forças produtoras Na realidade criada na perspectiva da imanência, a
da existência. A realidade criada na perspectiva da dimensão micropolítica ganha importância e revela
imanência recusa um ponto de partida, um sujeito ser mais que uma dimensão na escala espacial (a do
“Em Nietzsche, a
ou uma idéia deflagradores dos acontecimentos. O lugar) ou que uma temporalidade (a do cotidiano),
relação essencial de
que se produz é resultado do encontro de múltiplas abrindo a História à experiência imprevisível que se
uma força com a dimensões ou de linhas de força entrelaçadas, sem
outra nunca é espreita no cotidiano. Isso porque a noção de
que nenhuma tenha o papel de unidade movimento que ganha consistência entre a macro e
concebida como um transcendente. Nas discussões de Rolnik,
elemento negativo na a micropolítica não se faz pela negação, ou seja, pela
apreendemos que o que existe é uma guerra de vários busca de unidade/síntese como na dialética
essência. Em sua graus de potência e não uma luta binária entre a vida
relação com uma hegeliana, mas pela positividade vinculada à vontade
e a morte. de potência, constituída nas experiências que criam
outra, a força que se
sentidos na história dos homens.
faz obedecer não Diante das categorias universais, das metanarrativas,
nega a outra ou dos dualismos, da compreensão da sociedade como
Em Nietzsche, a filosofia da vontade estabelece que
aquilo que ela não é, uma estrutura que tende ao equilíbrio e do homem
toda força está em uma relação essencial com outra
ela afirma sua própria como uma unidade racional controladora do
força, mas o ser da força é plural e não teria sentido
diferença e se regozija mundo, a adoção de uma abordagem micropolítica
pensar a força no singular.
com essa diferença.” trará desafios teórico-metodológicos para uma ação
transformadora nos diferentes domínios da vida
“O conceito de força é, portanto, em Nietzsche, o de
social.
uma força que se relaciona com uma outra força. Sob
este aspecto, a força é denominada uma vontade. A
Um primeiro desafio encontra-se na própria
vontade (vontade de poder) é o elemento diferencial
concepção de realidade que adotamos em nossa
da força. Daí resulta uma nova concepção de filosofia
vida cotidiana, considerada como o conjunto de
da vontade, pois a vontade não se exerce
tudo aquilo a que se pode ter acesso, que se dá à
misteriosamente sobre músculos ou sobre nervos,
observação como matéria concreta. Nessa
menos ainda sobre uma matéria em geral, ela se exerce
perspectiva, para pensar as modificações da
sobre uma outra vontade” (Deleuze, 1976: 5).
realidade, o apoio está nas possibilidades que se
encontram reguladas e limitadas por leis naturais,
por princípios não contraditórios, ou seja, o “Em Nietzsche, a relação essencial de uma força com
possível que permeia a realidade concreta e que é a outra nunca é concebida como um elemento
nascedouro de suas mudanças já estaria inscrito negativo na essência. Em sua relação com uma outra,
na ordem do existente, enquanto potencialidade a força que se faz obedecer não nega a outra ou
ainda ocultada. aquilo que ela não é, ela afirma sua própria diferença
e se regozija com essa diferença. O negativo não está
Nesse caminho, no qual acessamos as previsões e presente na essência como aquilo de que a força tira
projetos de futuro, a transformação habita uma sua atividade, pelo contrário, ele resulta dessa
região de criatividade limitada pelo cotidiano, atividade, da existência de uma força ativa e da
sendo uma possibilidade, desde que estejam dadas afirmação de sua diferença” (Deleuze, 1976: 7).
as condições ou os meios para a realização de um
potencial já circunscrito. Através do conceito de genealogia, Nietzsche abre
um outro tempo na história da Filosofia, uma vez
70 Apoiada nas contribuições de Bergson, a filosofia da que escava no passado e no presente dos
diferença irá trabalhar outra dimensão do real que acontecimentos não a evolução dos fatos
Pesquisa-Intervenção e a Produção de Novas Análises
dominantes, mas os saberes menores, as forças que à afirmação de uma micropolítica do cotidiano
atuaram na sua gênese. Genealogia, então, vincula- construindo uma trajetória concreta dos movimentos;
se a uma prática de desconstrução das categorias no da Psicologia, envolve a recusa da individualização
identitárias de toda a lógica constituída a partir da e da psicologização dos conflitos.
filosofia de Platão. O fato social se cria no A corrente da Análise Institucional Socioanalítica,
enfrentamento de múltiplas forças presentes, e a desenvolvida a partir das décadas de 60/70 na França
configuração que se estabelece é resultante da (Lourau, Lapassade, Hess) e que ganha adeptos na
dominância de determinadas forças sobre outras. América Latina na década de 80 (Rodrigues,
Na filosofia nietzscheana, as transformações não são Baremblitt, Barros), possibilitará a formulação da
alavancadas por evolução e retificação, mas pelo pesquisa-intervenção com a perspectiva de interrogar
diferencial de forças que intensificam a potência. os múltiplos sentidos cristalizados nas instituições
(Rodrigues e Souza, 1987, Saidon e Kamkhagi, 1987,
Desse modo, na perspectiva genealógica, é a Rodrigues, Leitão e Barros, 1992, Aguiar, 2003).
diferença entre as forças que faculta a afirmação de
um fenômeno instável como unidade de um Como prática desnaturalizadora, o que inclui a
momento que tenta se impor como verdade própria instituição da análise e da pesquisa, as
universal. No desenrolar de um movimento, nosso estratégias de intervenção terão como alvo a rede de
pensamento e nossas ações não têm início em uma poder e o jogo de interesses que se fazem presentes
contraposição, mas emergem de um conjunto de no campo da investigação, colocando em análise os
forças entre as quais existem oposições. Um efeitos das práticas no cotidiano institucional,
movimento não surge necessariamente da crítica de desconstruindo territórios e facultando a criação de
um outro, o que não impede que possamos novas práticas.
compará-los nas suas incompatibilidades.
Procedemos, desse modo, à crítica ao estatuto da
Assim, das visões totalizadoras e das utopias passamos Verdade, interpelando o poder das teorias, das
às ações que remetem às estratégias de análise das organizações e das formas constituídas no que tange
formas constituídas, evidenciando seu caráter fluido, ao conhecimento e às relações sócio-institucionais,
polêmico, que flexibilizam divisões tradicionais, cujas frente à realidade complexa e diferenciada.
práticas sociais, as experiências, são pontos de criação
de sentido e não reflexo de uma realidade que está Para tal fim, propomos metodologias coletivas,
em outro lugar. Não é mais possível investir na busca favorecendo as discussões e a produção cooperativa
do fundamento último das coisas e dos com a perspectiva de fragilização das hierarquias
acontecimentos, na medida em que são constituídos burocráticas e das divisões em especialidades que
por forças e tensões historicamente situadas e, fragmentam o cotidiano e isolam os profissionais. A
portanto, parciais, mutáveis e dependentes das pesquisa-intervenção, por sua ação crítica e
existências e dos grupos singulares, das práticas locais. implicativa, amplia as condições de um trabalho
compartilhado.
Patto (1993), para quem os dispositivos de
funcionamento da vida contemporânea aceleram a Entre os aspectos centrais que vêm norteando o
perpetuação das estruturas e princípios instituídos, desenvolvimento da pesquisa-intervenção,
afirma que, na vida cotidiana, a redução a uma destacamos os seguintes: mudança de parâmetros
unidade imediata entre a ação e o pensamento tem de investigação no que tange à neutralidade e à
feito com que, cada vez mais, o útil seja tomado objetividade do pesquisador, acentuando-se o
como verdadeiro. Essa tendência econômica leva o vínculo entre gênese teórica e social, assim como a
funcionamento social à exata medida de sua produção concomitante do sujeito e do objeto,
continuação. Segundo a autora, as mudanças passam questionamento dos especialismos instituídos,
pela subjetividade, pela ação ativa dos atores que se ampliando as análises do nível psicológico ao
constitui em um processo lento e celular, incompatível microssocial - deslocamento estratégico do lugar que
com as políticas de produtividade implementadas historicamente foi destinado ao psicólogo, ênfase na
na atualidade. análise da implicação, acentuando-se que, para além
dos vínculos afetivos, profissionais ou políticos, a
A Pesquisa-Intervenção como análise se realiza com as instituições que atravessam
Dispositivo de transformação o processo de formação.
O conceito de instituição também é modificado, não É nesse sentido que a intervenção se articula à pesquisa
se identificando com o de estabelecimento, para produzir uma outra relação entre instituição da
ganhando um sentido dinâmico, uma vez que remete formação/aplicação de conhecimentos, teoria/prática,
a um processo de produção constante de novos sujeito/objeto, recusando-se a psicologizar conflitos.
modos de existência, de configuração das práticas Conflitos e tensões são as possibilidades de mudança,
sociais (Rodrigues, 1993, Barros, 1994a), do mesmo pois evidenciam que algo não se ajusta, está fora da
modo que o conceito de implicação trabalhado pelos ordem, transborda os modelos. Diante disso, ou
analistas institucionais não é uma questão de vontade, ocupamos o lugar de especialistas, indagando sobre
de decisão consciente de ligar-se a um processo de
as doenças do indivíduo, ou o de sócio-analistas,
trabalho. Ele inclui uma análise do sistema de lugares
indagando sobre a ordem da formação que exclui os
ocupados ou que se busca ocupar ou ainda do que
lhe é designado, pelo coletivo, a ocupar e os riscos sujeitos.
decorrentes dos caminhos em construção. A análise
das implicações com as instituições em jogo nas Grande parte das questões que bloqueiam a
situações afirma também a recusa da neutralidade processualidade das práticas de formação nas quais
do analista/pesquisador, procurando romper com as nos inserimos estão presentes nas instituições
barreiras entre sujeito que conhece e objeto a ser universitárias, entre as quais a atualização de modelos
conhecido. A intervenção evidencia que pesquisador/ universais, a naturalização da realidade social, o
pesquisado, ou seja, sujeito/objeto fazem parte do especialismo cientificista, traduzidos em um conjunto
mesmo processo. de técnicas a serem aplicadas. A pesquisa-intervenção
vem viabilizando trabalhos de campo que colocam
“Na pesquisa-intervenção, a relação pesquisador/ em análise as instituições que determinam a realidade
objeto pesquisado é dinâmica e determinará os sócio-política e os suportes teórico-técnicos,
próprios caminhos da pesquisa, sendo uma construídos no território educacional. Não há,
produção do grupo envolvido. Pesquisa é, assim,
portanto, o que ser revelado, descoberto ou
ação, construção, transformação coletiva, análise
interpretado, mas criado. Com efeito, por intermédio
das forças sócio-históricas e políticas que atuam nas
de uma abordagem micropolítica das produções
situações e das próprias implicações, inclusive dos
referenciais de análise. É um modo de intervenção, coletivas, constatamos que a realidade social resiste
na medida em que recorta o cotidiano em suas aos quadros formulados a priori, às categorias gerais
tarefas, em sua funcionalidade, em sua pragmática bem delimitadas, aos modelos circunscritos que não
– variáveis imprescindíveis à manutenção do campo conseguem mais explicar as condições da mulher, da
de trabalho que se configura como eficiente e família, da infância, dos excluídos, instaurando-se o
produtivo no paradigma do mundo moderno” desafio de uma teorização permanente.
(Aguiar e Rocha, 1997:97).
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