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“Como se podem rejeitar escravos, e bestas, por as acharem doentes ou

mancas”

O presente trabalho não tem o propósito de julgar o senhor de escravos José Estanislau do
i
Amaral Camargo fora do contexto do seu meio e de sua época. O que se pretende é apenas
mostrar um documento que revela em sua crueza o tratamento dispensado ao escravo como
“coisa” e o dispositivo legal que o amparava. Trata-se de um processo arquivado no Cartório
do Primeiro Ofício de Itu ,atualmente sob custódia do Museu Republicano Convenção de Itu /
USP1, cujo texto fala por si, dispensando explicações.
Nilson Cardoso de Carvalho

fls. 1
Anno de 1860
Juizo Municipal da Cidade de Itu e seu Termo
Auto de deposito
em que são:
José Estanisláo do Amaral Camargo ......................................................Supplicante
Romão Teixeira Leomil..............................................................................Supplicado
Escrivão
Andrade

Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e sessenta, trigesimo nono da
Independencia, e do Imperio aos vinte e hum dias do mes de Setembro do dito anno, nesta Cidade de Itu,
Comarca do mesmo nome da Provincia de São Paulo, e meu Cartorio faço esta autuação a huma petição de
José Estanisláo do Amaral Camargo, despachada pelo Doutor Juis Municipal Supplente Francisco Emygdio da
Fonseca Pacheco, afim de se proceder nos devidos termos do deposito, e exame requeridos; de que faço esta
autuação, eu Francisco José de Andrade Escrivão que escrevi.
fls 2
r or
Illmo S. D. Juiz Municipal Supplente

1
Cartório do Primeiro Ofício da Comarca de Itu / Arquivo do Museu Republicano Convenção de Itu / USP, maço 76, ano de 1860]
2 Nilson Cardoso de Carvalho

Diz José Estanisláo do Amaral Camargo da Villa de Indaiatuba que elle Supplicante comprou a Romão Teixeira
Leomil da Cidade de São Paulo cinco escravos pelo preço de 9:000$000 reis em data de 21 de Julho ultimo e
como em o numero desses entrou um de nome André de nação de trinta annos com pouco de differença, o qual
tem molestia chronica e antiga, que o impede de trabalhar na lavoura fim para que o Supplicante os comprou a
todos tem o Supplicante de o engeitar ao vendedor protestando haver perdas e dannos e não lhe pagar o preço
constante de huma obrigação, e como para segurança de seos direitos é mister que o dito escravo seja
a a
depositado e examinado por algum medico em presença de V.S. vem o Supplicante requerer a V.S. que haja
a
de mandar depositar em mão de pessoa segura e que o trate e o mande examinar em presença de V.S. por
a
algum medico, e que dê o seo parecer por escripto mandando V.S. notificar desse deposito e exame ao dito
vendedor Romão Teixeira Leomil por precatoria ao Juizo Municipal de S.Paulo e mandando lhe tão bem intimar
o protesto que faz o Supplicante de haver delle as perdas e dannos ja ocorridas e as quaes sobre vierem até
afinal solução deste negocio //
P.deferimento
ce
E.R.M.
[a] Jose Estanisláo do Amaral Camargo

Nomeio para depositario a Antonio Dias Ferras.


r
Marco o dia 24 do corrente as 11 horas para ser examinado o escravo sendo notificado o D. Patricio
Killiam para esse fim.
Itu 21 de Setembro de 1860
[a] Francisco Pacheco

Certifico eu Escrivam abaixo assignado que notifiquei ao Depositario nomeado Antonio Dias Ferras para
assignar o competente deposito de que ficou sciente. O refferido é verdade, de que dou fé. Itu 21 de Setembro
de 1860
[a] Francisco José de Andrade

Auto de deposito
Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jezus Christo de mil oitocentos e e sessenta, trigesimo nono da
Independencia, e do Imperio, aos vinte e hum dias do mes de Setembro do dito anno, nesta Cidade de Itu, e
meu Cartorio compareceu Antonio Dias Ferrás, e por elle foi dito que havia recebido em deposito o escravo
André, constante da petição retro, e do mesmo se obrigava não dispôr sem expressa ordem deste Juizo,
sugeitando se as penas da Lei. De como assim disse lavrei este que assigna com testemunhas, eu Francisco
José de Andrade Escrivão que o escrevi.
[a] Antonio Dias Ferraz
Como testemunhas
[a] Antonio Augusto da Silva
[a] Antonino Carlos de Camargo Teixeira
“Como se podem regeitar escravos, e bestas, por as acharem doentes ou mancas” 3

Fls 3
Certifico eu Escrivam abaixo assignado que notifiquei ao Doutor Patricio Hart Kellin para proceder no exame
requerido, tido na forma do despacho retro; de que ficou sciente. O referido é verdade, de que dou fé. Itu 24 de
Setembro de 1860
[a] Francisco José de Andrade

Auto de exame
Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jezus Christo de mil oitocentos e sessenta, trigesimo da Independencia
e do Imperio aos vinte e quatro dias do mes de Setembro do dito anno, nesta Cidade de Itu, e casa do Doutor
Juis Municipal Supplente Francisco Emygdio da Fonseca Pacheco, onde fui vindo eu Escrivão de seu cargo ao
diante nomeado, sendo ahi presente o Doutor Patricio Hart Kellin, pelo Juis lhe foi defferido juramento dos
Santos Evangelhos em hum livro d’elles, a cargo do qual lhe encarregou que bem e fielmente, com boa e sã
consciencia procedesse o exame do preto André, e declarasse as infermidades que por ventura encontrasse no
mesmo, como fora requerido, cujo juramento sendo por elle recebido assim prometteu cumprir; e passando a
examinar o escravo André, que lhe fora appresentado pelo Depositario Antonio Dias Ferrás, declarou o seguinte
= que o refferido escravo se achava sofrendo de inflamação chronica do baço - oppilação - sub’aguda, ou em
estado chronico, que pode ceder, porem mediante huma medicação conveniente, - Nada mais declarando
mandou o Juis lavrar este auto, que assigna com o examinador, e depositario, e eu Francisco José de Andrade
Escrivão que o escrevy
[a] Francisco Pacheco
[a] Patricio Hart Killin
fls 4
Remessa
Aos dous dias do mes de Outubro de mil oitocentos e sessenta annos, nesta Cidade de Itu, e meu Cartorio faço
remessa destes autos ao Doutor Juis Municipal Supplente Francisco Emygdio da Fonseca Pacheco, que serve
de contador do Juizo, para proceder na contagem das custas; de que faço este termo, eu Francisco José de
Andrade Escrivão que o escrevy

Ao contador
Custas
Para o Escrivam.
Autuaçam - - - - - - - - - - - $300
Juramentos 2 - - - - - - - - 2$000
Deposito - - - - - - - - - - - 2$000
Auto de exame - - - - - - 2$000
Remessa - - - - - - - - - - $200
Sellos que paguei - - - - - -$320
São- - - - - - - - - - - - - - 6$820
4 Nilson Cardoso de Carvalho

Importou a precatoria -4$172


Ao Dr. Kellin
Exame - - - - - - - - - - - - -6$000
Ao Juis Contador
Auto de exame - - - - - - -2$000
C-------------- - - 1$000
São - - - - - - - - - - - - - - -3$000
S.S.E - - - - - - - - - - - - - -19$992
co
[a] Fran. Pacheco

Verifica-se a existência de norma jurídica, aplicada a este caso, tão corrente que até se
dispensava o suplicante de apresentar-se assistido por advogado. De fato, no livro 4 das
Ordenações Filipinas, título XVI se encontrava o texto da lei que regia o caso:

Titulo XVI.
Qualquer pessoa que comprar, ou por qualquer outro modo ouuer escravo de Guinee, da maó daquelle que o
trouxe de Guinee, ou do trautador que o dito trato de Guinee teuer , ou de mercador que os ditos escravos, ou
parte delles compra pera reuender, e quiser prouar como ao tempo que lhe foi entregue era doente, ou manco
da doença, ou manqueira, que ao tempo que o engeita teuer, poderá engeitar o dito escrauo de Guinee, e
demandar o que assi lho entreguou, que tome o dito escrauo, e lhe torne o que lhe por elle deu; com tanto que o
cite, e demande dentro de huu mes do dia que lhe foi entregue. E isso mesmo se o dito escrauo morrer da dita
infermidade, que lhe torne o que lhe por elle deu, porque nam o citando dentro do dito mes, nom poderá ja mais
por ello citar, nem demandar, para o poder engeitar e desfazer o contrácto, nem pera pedir que lhe torne o que
mais deu polo dito escrauo, do que valia por razam das ditas infermidades, ou deféctos ao tempo do contrácto. E
isto auerá luguar, quando a parte, de que assi o ouue, esteuer no Luguar onde está o mesmo que lho vendeo,
ou por outro qualquer modo trespassou; porque nam estando no dito Luguar, se o dito comprador protestar.
[grifo meu]

Chama-nos também a atenção nesse processo o exame médico procedido pelo Dr. Kellin, o
qual constatou “que o refferido escravo se achava sofrendo de inflamação chronica do baço -
oppilação - sub’aguda, ou em estado chronico ...” Ao lermos este laudo do Dr. Kellin ocorreu-
nos a hipótese de que o escravo André sofresse de anemia falciforme, doença crônica
hereditária que acomete indivíduos da raça negra. De fato uma das características da
doença é o aumento do volume do baço no processo de destruição dos glóbulos vermelhos
– que são eliminados pelo organismo por conter um tipo de hemoglobina anormal – , o que
“Como se podem regeitar escravos, e bestas, por as acharem doentes ou mancas” 5

leva o indivíduo a apresentar anemia tornando-o imprestável para “trabalhar na lavoura fim
para que o Supplicante os comprou a todos”.
Concorre para tornar plausível esta hipótese o fato de os dados estatísticos informarem que
de cada grupo de quatrocentas pessoas da raça negra, uma é portadora do gen falciforme.
Se considerarmos que estes dados – que são atuais – aproximam-se das condições
existentes em 1860, podemos afirmar que a existência de escravos portadores de gens
falciformes não era rara, levando os traficantes do tipo Romão Teixeira Leomil a executar
esse tipo de trapassa, colocando num lote de escravos um, portador da doença hereditária.
Fato curioso referente a essa anemia foi a descoberta, na década de 50, de que em regiões
da África onde a malária era endêmica, os portadores do gen falciforme não são acometidos
de malária porque seus glóbulos vermelhos resistem ao ataque do protozoário causador da
doença.

i
Através da documentação cartorial examinada e informações de tradição oral sabemos tratar-se de pessoa íntegra e de comportamento
extritamente ético para os padrões de seu tempo. Importante senhor de engenho e cafeicultor no município de Itu, com engenho em terras
da sesmaria do Quilombo, situada no território depois pertencente aos municípios de Indaiatuba e Jundiaí, José Estanislau do Amaral
muito cedo iniciou-se nas atividades da lavoura. Seu pai emancipou-o aos dezeseis anos de idade, em 1834, ocasião em que passou a gerir
seus próprios negócios, e o fez sempre com tal eficiência e dedicação ao trabalho que ao final do século era um dos homens mais ricos do
Estado de São Paulo.

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