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O Corpo Como Dispositivo de Criação Natacha Muriel Lopez Gallucci
O Corpo Como Dispositivo de Criação Natacha Muriel Lopez Gallucci
CHORÉOGRAPHIE:
O CORPO COMO DISPOSITIVO DE CRIAÇÃO ENTRE A DANÇA E O CINEMA
Introdução
Nesta comunicação pretendo transitar algumas relações entre a história do corpo e a
filosofia; mais especificamente a partir de um percurso que, desde há alguns anos, vêm me
comovendo pelas discussões que abre no campo da educação do corpo (SOARES, 2014, p.
219). Neste sentido é importante advertir que nosso foco de interesse se centra na história do
corpo nos países de América Latina e, neste trabalho especificamente, em práticas pouco
estudadas que tiveram efeitos educativos na Argentina. Buscamos mapear aspectos
pedagógicos chaves do dispositivo fílmico argentino, nos efeitos de transmissão da dança
mais representativa desse país, o tango.
Carmen Lúcia Soares mostra o este campo da educação do corpo, para além da práxis
escolar, tem reunido nos últimos anos, pela sua abrangência e pertinência, pesquisas
filosóficas, antropológicas e históricas:
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Professora de Filosofia do Instituto Interdisciplinar Sociedade, Cultura e Artes (IISCA) da Universidade
Federal do Cariri (UFCA). Desenvolve atividades instrucionais na Divisão artística da Pró-reitoria de Cultura da
UFCA. Líder do Grupo de Pesquisa NECAGE e do Grupo de Pesquisa FILOMOVE Filosofia, Artes e Estéticas
do Movimento (IISCA, UFCA) E-mail: natacha.gallucci@ufca.edu.br
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Grifos da autora.
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O tango é uma dança popular transmitida de maneira oral até a chegada do cinematógrafo e foi, nas primeiras
décadas do século XX, modo de expressão catalizadora, reunindo diversos grupos humanos em um coletivo,
apesar da heterogeneidade de classes, raças e gênero.
estádios de repouso; a criação gira ao redor de momentos articulados e posições fixas unidas
por “cortes” que, ao olho humano, trazem a fantasia da fluência vida.
Para introduzir o problema da educação do corpo neste contexto é crucial nos situarmos
historicamente no lapso que vai entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do
século XX. Nesse momento histórico acontecem enormes transformações tecnológicas e
socioculturais decorrentes da segunda Revolução Industrial; transformações que mudam a
relação do sujeito humano com seu próprio corpo. A urbe moderna oferece um palco
privilegiado ao corpo que se sociabiliza e acrescenta cada vez mais o contato entre as peles.
Diferentes tecnologias como a fotografia e a de visualização médica por raios x mudam a
concepção que a ciência e o homem comum tinham de si; o fetiche da pele cultuado pela
pintura se torna representação reprodutível e o corpo, diante do raios x, uma imagem-
transparência. As novidades da cultura visual produzem mundos e fantasmas que se
reproduzem nas fotografias, nos jogos óticos e fundamentalmente, no cinematógrafo. Este
aparelho cuja invenção fecha o século XIX foi avaliado nos primeiros anos como uma
máquina sem demasiada utilidade, mais pouco a pouco seus recursos começam a se
evidenciar (COUTRINE, 2006). Retomaremos esta questão mais adiante, mais antes
precisemos melhor o status que adquire o corpo no período citado.
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A filosofia cartesiana, diferentemente de Platão e de Aristóteles, estabelece um dualismo radical: por um lado o
espírito se encontra manifesto no fato de sermos pensantes; por outro, o corpo, obedece tanto aos movimentos
quanto as leis que regem a todas as máquinas. Este dualismo não apaga o fato de que, em Descartes, o corpo
também seja objeto do estudo psicofísico. Nas meditações cartesianas o corpo é entendido com o um artefato
cuja união com a alma pode ser percebida através de uma experiência mundana, certamente obscura nos termos
do Método. Na sua Sexta Meditação caminha na direção de dar prova à existência das coisas materiais e da
distinção entre a alma e o corpo do homem. As coisas materiais – afirma – são objeto de demonstrações
geométricas, tarefa da pura inteleção; mas, para conhecer algo como o corpo humano, precisa se provar sua
existência distinguindo as faculdades de imaginar e sentir. Nesse sentido, avalia as de um lado, condições
requeridas pelo exercício da faculdade de imaginar (faculdade que torna mais accessível as ideias do intelecto) e,
de outro lado, outra faculdade que lhe permitiriam obter certeza acerca da existência das cosas materiais, baseada
na faculdade de sentir. Esta ultima capacidade passiva para o homem se torna prova categórica pela veracidade
divina. Se as coisas materiais são objeto de demonstrações geométricas, afirma, e tarefa da pura inteleção, para
conhecer algo como o corpo próprio, servir-se-á da imaginação; enquanto para conhecer as coisas distintas de
nós, Descartes apela à sensação (DESCARTES, 1950, p. 133-146). Grifos nossos.
reflexividade não é uma propriedade da consciência, mas do corpo, agora concebido como um
corpo reflexivo ou corpo cognoscente. O corpo na filosofia de Ponty se situa para aquém das
tradicionais alternativas que o colocam como objeto de conhecimento. O filosofo não pensa o
corpo um amontoado de músculos, ossos e nervos, todos exteriores uns aos outros; no entanto
esclarece que o corpo não pode ser concebido como um puro sujeito, um espirito absoluto
sem ancoragem material e histórica. Na Fenomenologia da percepção Merleau Ponty lança a
ideia de que a realidade do corpo não é nem a da coisa material nem a da consciência, pois
afirma, o corpo tem uma forma de organização ambígua. Nem inteiramente exterior, nem
completamente interior, o corpo esta inscrito na natureza, mas também possui uma intensão
de conhecimento, função exploradora e estruturante da experiência no mesmo momento da
reflexão. O corpo não comporta um objeto já que é pelo corpo que tudo mais existe; o corpo
próprio, esse que eu tenho é também quem eu sou, segundo o filósofo, um paradoxo vivo.
Todos temos caído no erro fundamental, eu mesmo durante muitos anos, de achar
que só existe uma técnica quando há um instrumento. Era necessário voltar às velhas
noções, às considerações platônicas sobre a técnica [tekhné] e olhar como Platão fala
de uma técnica da música e especialmente da dança, e então fazer mais geral esta
noção. Nomeio técnica ao ato eficaz tradicional (vejam como este ato não se
diferencia do ato mágico, do religioso ou do simbólico). É necessário que seja
tradicional e eficaz. Não há técnica nem transmissão se não houver tradição
(MAUSS, 1979: 340).
Fica expresso que no século XX diversas disciplinas teorizam o corpo enquanto sujeito,
objeto e meio técnico por excelência; destacando que ele está permanentemente abalizado por
movimentos que são produtos de uma educação do corpo que os torna habituais: ritmos,
atividades, posturas, manhas e formas de repouso. Estas práticas cotidianas localizam o corpo
humano no centro do compósito vivo do social. A antropologia mostra claramente que o mais
“natural” na vida cotidiana deve passar por uma problematização indissociável da experiência
social como um todo. Assim, a dimensão individual que anima as práticas do corpo só se
concretiza em desejos e modos de viver; mesmo quando a transmissão e a tradição estejam
sempre ao serviço de uma reinvenção social ou subjetiva. E não só a antropologia se ocupa
desse aspecto da educação do corpo ou de seus usos na vida cotidiana; estes aspectos todos
confluem no programa filosófico de Michel Foucault na segunda metade do século XX; suas
ideias em redor das práticas de si fundadas em uma filosofia do corpo dialogam com a
proposta de uma filosofia dos dispositivos. Introduziremos este diálogo na próxima seção,
pois nos interessa nos aproximarmos do processo de codificação do tango dança, como
técnica do corpo apreendida e as possíveis relações que vislumbramos entre o aprendizado do
tango dança e a consolidação do dispositivo fílmico na Argentina.
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Marcel Mauss se encontra alinhado, neste sentido, à filosofia nietzschiana; o filósofo alemão pensa o corpo
como produto de experiências quando remete ao termo alemão Leib (em oposição a Körper utilizado geralmente
pelo racionalismo cientificista). O corpo (Leib) é um campo de forças, de transmissão e de tensão criadora, base
da cultura, de todo o juízo e fonte de ideias sensíveis (NIETZSCHE, 1985).
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Nas primeiras descrições do aparelho psíquico, Freud se serve da metáfora ótica e o apresenta como efeito de
uma “disposição”, uma cisão entre dois lugares, o consciente e o inconsciente. O cinema também funcionaria
dessa forma como uma distância, uma disposição que separa, em termos platônicos, o homem da cena.
Nas pesquisas desenvolvidas entre 2009 e 2014 temos conseguido fundar uma discussão
estética a partir da relação entre o cinema argentino e as performances de tango dançado
(LOPEZ GALLUCCI, 2014). Fomos alentados pela possibilidade de acessar material
cinematográfico digitalizado que parecia perdido e foi recentemente achado e restaurado pelo
Museo del Cine em Argentina. Esse conjunto de filmes nos permitiu ter uma perspectiva
histórica e crítica sobre as estratégias e formas características de representação. Ficou
expresso que o tango dança formou parte das práticas corporais ritualizadas anônimas e das
manifestações artísticas rio-platenses desde seu surgimento em 1885, e que se adotou como
forma de expressão popular no circo, no teatro, no rádio e finalmente no cinema, quem
difundiu o tango de maneira massiva, nacional e internacionalmente. Nesse salto para a
midiatização cinematográfica, que consideramos um segundo nascimento do tango,
observamos como o gênero precisou ser recodificado para o espaço fílmico. O trabalho de
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Louis Delluc (apud AUMONT, 2002, p. 162) definia a fotogenia como “...qualquer aspecto das coisas, dos
seres e das almas que aumente sua qualidade moral pela reprodução cinematográfica. Qualquer aspecto não
majorado pela reprodução cinematográfica não é fotogênico, não faz parte da arte cinematográfica”.
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O abraço de tango propõe uma assimetria axial heterogênea e elástica entre os bailarinos como vetores
espaciais; dita tensão criativa foi amplamente abordada e explicitada na nossa tese doutoral (LOPEZ
GALLUCCI, 2014).
Assim, o tango dança entendido como dispositivo de criação teve amplo efeito na
educação do corpo; sua codificação implicou a busca da expressão organizada de pulsões
subjetivas no contexto de expressão da dupla. Formatou as relações de poder entre os corpos
outorgando-lhes uma estrutura coreográfica sem perder ou aplainar as tensões internas que
vivenciavam os sujeitos desse coletivo; o tango dança busca uma ilusão de sincronia e de
unidade dos corpos características cinematográficas por excelência. No cinema argentino a
cartografia corporal do tango adquire relevância popular em uma imbricação com o próprio
dispositivo fílmico, pois o texto audiovisual tem profundas ressonâncias nesse imaginário
cultural. O olhar do publico é um olhar de quem pratica a dança e que sente uma afeção
corporal específica quando aparecem estrelas como El Cachafaz e Carmen Calderón 10,
elevando o ritual urbano dos arrabaldes populares para o plano de sucesso no âmbito de
reconhecimento e artístico da cultura nacional. O plano americano coloca em cena o abraço de
tango, forma expressiva de máxima conexão entre os corpos. Na tela o público se embebe de
micro movimentos, aprende e dialoga com a dança adotando os gestos de tango como uma
segunda natureza (DUERR, 1998). O cinema e o tango criaram uma nova maneira de pensar o
corpo na incipiente modernidade latino-americana.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o gesto. In: Artefilosofia. Ouro preto, 4, 2008, [p.09-14].
BAUDRY, Jean-Louis. Le dispositif. In: Communications, 23, Paris, 1975, [pp. 56-72]
e
BAZOGE, Natalia. La gymnastique d’entretien au XX siècle: d’une valorisation de la
masculinité hégémonique à l’expression d’un féminisme en action. In: Clio. Histoire‚
femmes et sociétés 23 | 2006.
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Tango argentino (LEPAGE & CIA),
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Benito Bianquet, El “Cachafaz”, que realizou dezenas de coreofrafias para filmes durante toda sua vida.