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Uma Canção da Terra Girante

(A Song of the Rolling Earth)


Da edição de 1856 de Leaves of Grass, de Walt Whitman (1819 – 1892)
Tradução de Gentil Saraiva Jr.

1
Uma canção da terra girante, e de palavras concordantes,
Pensaste que aquelas fossem as palavras, aquelas linhas verticais? aquelas curvas,
ângulos, pontos?
Não, essas não são as palavras, as palavras substanciais estão no chão e mar,
Estão no ar, estão em ti.

Pensaste que essas fossem as palavras, esses deliciosos sons das bocas de seus amigos?
Não, as palavras reais são mais deliciosas que eles.

Corpos humanos são palavras, miríades de palavras,


(Nos melhores poemas reaparece o corpo, de homem ou de mulher, bem-torneado,
natural, alegre,
Toda parte capaz, ativa, receptiva, sem vergonha ou a necessidade de vergonha.)

Ar, solo, água, fogo — essas são palavras,


Eu mesmo sou uma palavra com elas — minhas qualidades interpenetram com as delas
— meu nome é nada pra elas,
Embora fosse dito nos três mil idiomas, o que o ar, a terra, a água, o fogo, saberiam do
meu nome?

Uma presença saudável, um gesto amável ou imperativo, são palavras, provérbios,


significados,
Os encantos que acompanham as meras expressões de alguns homens e mulheres, são
também provérbios e significados.

O artesanato das almas é feito pelas palavras inaudíveis da terra,


Os mestres conhecem as palavras da terra e as usam mais que palavras audíveis.

Melhoria é uma das palavras da terra,


A terra não se atrasa nem se apressa,
Tem todos os atributos, crescimentos, efeitos, latentes em si mesma desde o princípio1,
Não é só meio linda, defeitos e excrescências mostram tanto quanto perfeições.

A terra não retém; é generosa o bastante,


As verdades da terra aguardam continuamente, também não são tão ocultas,
São tranquilas, sutis, intransmissíveis por impressão,
São imbuídas de todas as coisas que se transmitem de boa vontade,
Transmitindo um sentimento e convite, eu emito e emito,
Não falo, porém se não me ouves que proveito tenho pra ti?
Suportar, melhorar, faltando estes que proveito tenho?

(Accouche! accouchez!2

1Referência bíblica, que no princípio era o Verbo (Logos; em inglês, “Word”), e o Verbo se fez
carne, isto é, matéria.
Estragarás teu próprio fruto em ti aí?
Te agacharás e sufocarás aí?)

A terra não discute,


Não é patética, não tem preparativos,
Não brada, se apressa, persuade, ameaça, promete,
Não faz discriminação, não tem falhas concebíveis,
Nada fecha, nada recusa, não exclui nada,
De todos os poderes, objetos, estados, ela informa, não exclui nenhum.

A terra não se exibe nem recusa se exibir, frui calma abaixo,


Abaixo os sons ostensivos, o coro augusto de heróis, a lamúria de escravos,
Persuasões de amantes, maldições, arquejos dos moribundos, risada de jovens, sotaques
de vendedores,
Abaixo estas palavras fruitivas que nunca falham.

A seus filhos as palavras da grande mãe muda eloquente nunca falham,


As verdadeiras palavras não falham, pois movimento não falha e reflexo não falha,
Também o dia e a noite não falham e a viagem que buscamos não falha.

Das irmãs intermináveis,


Dos cotillons3 incessantes de irmãs,
Das irmãs centrípetas e centrífugas, das irmãs mais velhas e mais jovens,
A linda irmã que conhecemos continua a dançar com as demais.

Com suas amplas costas voltadas a todo observador,


Com as fascinações da juventude e as equivalentes fascinações da idade,
Senta ela a quem também amo como os demais, senta serena,
Segurando em sua mão o que tem o caráter de um espelho, enquanto seus olhos se
afastam dele,
Relanceiam quando ela senta, convidando a ninguém, negando a ninguém,
Segurando um espelho dia e noite incansavelmente diante do próprio rosto.

Vistas de perto ou vistas à distância,


Pontualmente as vinte e quatro aparecem em público todo dia,
Pontualmente se aproximam e passam com seus companheiros ou um companheiro,
Não olhando de semblantes próprios, mas dos semblantes daqueles que estão com elas,
Dos semblantes de crianças ou mulheres ou do semblante masculino,
Dos semblantes abertos de animais ou de coisas inanimadas,
Da paisagem ou águas ou da aparição primorosa do céu,
De nossos semblantes, meu e vosso, fielmente os devolvendo,
Todo dia em público aparecendo sem falta, mas nunca duas vezes com os mesmos
companheiros.

2A forma correta é “Accouchée! accouchez!”, ou seja, “Grávida! dê à luz!”.


3Cotilhão, cotilhões: é uma antiga dança de muitos pares, entremeada de várias músicas e
distribuição de brindes, que era utilizada para terminar um baile. Whitman se refere aqui a
estrelas e planetas, incluindo-se aí a Terra.
Abraçando o homem, abraçando tudo, avançam os trezentos e sessenta e cinco
irresistivelmente ao redor do sol;
Abraçando tudo, acalmando, apoiando, seguem perto trezentos e sessenta e cinco
ramificações dos primeiros, certas e necessárias como eles.

Rolando regularmente, nada temendo,


Luz do sol, tormenta, frio, calor, sempre suportando, passando, carregando,
A realização e determinação da alma ainda herdando,
O fluido vácuo em volta e à frente ainda entrando e dividindo,
Nenhum estorvo retardando, nenhuma âncora ancorando, em nenhuma rocha se
chocando,
Rápida, alegre, contente, consolada, nada perdendo,
De tudo capaz e pronta a qualquer hora a dar exata conta,
A nave divina singra o mar divino.

2
Quem sejas! movimento e reflexo são especialmente para ti,
A nave divina singra o mar divino para ti.

Quem sejas! tu és ele ou ela para quem a terra é sólida e líquida,


Tu és ele ou ela para quem o sol e a lua pendem no céu,
Para ninguém mais que tu são o presente e o passado,
Para ninguém mais que tu é a imortalidade.

Cada homem para si e cada mulher para si, é a palavra do passado e presente, e a
verdadeira palavra da imortalidade;
Ninguém pode adquirir para um outro — ninguém,
Ninguém pode crescer para um outro — ninguém.

A canção é para o cantor, e volta quase tudo para ele,


O ensino é para o professor, e volta quase tudo para ele,
O assassinato é para o assassino, e volta quase tudo para ele,
O roubo é para o ladrão, e volta quase tudo para ele,
O amor é para o amante, e volta quase tudo para ele,
O dom é para o doador, e volta quase tudo para ele — não pode falhar,
O discurso é para o orador, a encenação é para o ator e atriz não para a plateia,
E nenhum homem entende qualquer grandeza ou bondade exceto sua própria ou a
indicação de sua própria.

3
Juro que a terra será certamente completa a ele ou ela que for completo,
A terra permanece recortada e quebrada apenas a ele ou ela que permanecer recortado e
quebrado.

Juro que não há nenhuma grandeza ou poder que não emulem os da terra,
Não pode haver nenhuma teoria de importância a menos que ela corrobore a teoria da
terra,
Nenhuma política, canção, religião, comportamento, ou outra coisa, é de importância, a
menos que se compare com a amplitude da terra,
A menos que encare a exatidão, vitalidade, imparcialidade, retidão da terra.

Juro que começo a ver o amor com mais doces espasmos que aquele que corresponde
amor,
É aquele que se contém, que nunca convida e nunca recusa.

Juro que começo a ver pouco ou nada em palavras audíveis,


Tudo se funde para a apresentação dos significados não ditos da terra,
Em direção àquele que canta as canções do corpo e das verdades da terra,
Em direção àquele que faz os dicionários de palavras que a impressão não pode tocar.

Juro que vejo o que é melhor do que contar o melhor,


É sempre manter o melhor inaudito.

Quando empreendo contar o melhor descubro que não posso,


Minha língua é ineficaz em suas bases,
Minha respiração não será obediente a seus órgãos,
Eu me torno um homem mudo.

O melhor da terra não pode ser contado de qualquer forma, tudo ou qualquer coisa é
melhor,
Não é o que antecipaste, é mais barato, mais fácil, mais próximo,
As coisas não são dispensadas dos lugares que tinham antes,
A terra é tão positiva e direta quanto era antes,
Fatos, religiões, melhorias, política, negócios, são tão reais quanto antes,
Mas a alma também é real, ela também é positiva e direta,
Nenhum raciocínio, nenhuma prova a estabeleceu,
Crescimento inegável a estabeleceu.

4
Estes para ecoar os tons das almas e as frases das almas,
(Se eles não ecoassem as frases das almas o que seriam eles então?
Se eles não tivessem referência a ti em especial o que seriam eles então?)

Juro que nunca doravante terei algo a ver com a fé que conta o melhor,
Terei a ver só com aquela fé que deixa o melhor inaudito.

Falai, falantes! cantai, cantores!


Sondai! moldai! empilhai as palavras da terra!
Trabalhai, era após era, nada será perdido,
Pode ter que esperar muito, mas entrará certamente em uso,
Quando os materiais estiverem todos preparados e prontos, os arquitetos aparecerão.

Juro que os arquitetos aparecerão sem falta,


Vos juro que eles vos entenderão e justificarão,
O maior entre eles será aquele que vos conhece melhor, e inclui tudo e é fiel a tudo,
Ele e os demais não vos esquecerão, eles perceberão que vós não sois um tiquinho
menos que eles,
Vós sereis plenamente glorificados neles.

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