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09/03/2016 Krisis (em português): A arte de desmascarar

Krisis (em português)

A arte de desmascarar
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A arte de desmascarar Autores

Um dos principais libelos contra o capitalismo, O Que é a Krisis?

''A Sociedade do Espetáculo'' Destaque

Revista

ANSELM JAPPE
Textos em Outros Idiomas

''Sociedade do espetáculo''; esta expressão já está em voga, especialmente ao se falar de televisão; no Brasil,
parece se impor mais do que em outros lugares. Poucos porém sabem que na origem este era o título de um
livro de Guy Debord, agora traduzido pela primeira vez no Brasil (Ed. Contraponto).
Lançado na França em 1967, ''A Sociedade do Espetáculo'' tornou-se inicialmente livro de culto da ala mais
extremista do Maio de 68, em Paris; hoje é um clássico em muitos países. Em um prefácio de 1982, o autor
sustentava com orgulho que o seu livro não necessitava de nenhuma correção.
O ''espetáculo'' de que fala Debord vai muito além da onipresença dos meios de comunicação de massa, que
representam somente o seu aspecto mais visível e mais superficial. Em 221 brilhantes teses de concisão
aforística e com múltiplas alusões ocultas a autores conhecidos, Debord explica que o espetáculo é uma
forma de sociedade em que a vida real é pobre e fragmentária, e os indivíduos são obrigados a contemplar e a
consumir passivamente as imagens de tudo o que lhes falta em sua existência real.
Têm de olhar para outros (estrelas, homens políticos etc.) que vivem em seu lugar. A realidade torna-se uma
imagem, e as imagens tornam-se realidade; a unidade que falta à vida, recupera-se no plano da imagem.
Enquanto a primeira fase do domínio da economia sobre a vida caracterizava-se pela notória degradação do
ser em ter, no espetáculo chegou-se ao reinado soberano do aparecer. As relações entre os homens já não
são mediadas apenas pelas coisas, como no fetichismo da mercadoria de que Marx falou, mas diretamente
pelas imagens.
Para Debord, no entanto, a imagem não obedece a uma lógica própria, como pensam, ao contrário, os pós-
modernos ''a la Baudrillard'', que saquearam amplamente Debord. A imagem é uma abstração do real, e o seu
predomínio, isto é, o espetáculo, significa um ''tornar-se abstrato'' do mundo. A abstração generalizada,
porém, é uma consequência da sociedade capitalista da mercadoria, da qual o espetáculo é a forma mais
desenvolvida. A mercadoria se baseia no valor de troca, em que todas as qualidades concretas do objeto são
anuladas em favor da quantidade abstrata de dinheiro que este representa. No espetáculo, a economia, de
meio que era, transformou-se em fim, a que os homens submetem-se totalmente, e a alienação social
alcançou o seu ápice: o espetáculo é uma verdadeira religião terrena e material, em que o homem se crê
governado por algo que, na realidade, ele próprio criou.
Nessa base, Debord condena toda a sociedade existente, não somente fraquezas individuais e imperfeições.
Em 1967, Debord distinguia dois tipos de espetáculo. O ''difundido'' (o tipo ocidental, ''democrático'')
caracterizava-se pela abundância de mercadorias e por uma aparente liberdade de escolha. No espetáculo
''concentrado'', ou seja, nos regimes totalitários de toda a espécie, a identificação mágica com a ideologia no
poder era imposta a todos para suprir a falta de um real desenvolvimento econômico.
Toda a forma de poder espetacular justificava-se denunciando a outra; e nenhum sistema, além destes dois,
devia ser imaginável. Debord, portanto, reconheceu na URSS, nada menos do que 25 anos antes de seu fim,
uma forma subalterna, e destinada, enfim, a sucumbir, da sociedade da mercadoria. Mas, por um longo
período, enquanto existia um proletariado inquieto, o comunismo de Estado desempenhou uma função
essencial para o espetáculo ocidental: a de assegurar que os rebeldes potenciais se identificassem com a mera
imagem da revolução, delegando a ação real aos Estados e aos partidos comunistas _totalmente cúmplices do
espetáculo ocidental; ou, então, a pressupostos revolucionários muito distantes, no Terceiro Mundo.
Debord anunciou, no entanto, o aparecimento de um movimento de contestação de tipo novo: retomando o
conteúdo liberatório da arte moderna, teria como programa a revolução da vida cotidiana, a realização dos
desejos oprimidos, a recusa dos partidos, dos sindicatos e de todas as outras formas de luta alienadas e
hierárquicas, a abolição do dinheiro, do Estado, do trabalho e da mercadoria. Por isto, Debord sempre
considerou o conteúdo profundo de 1968 como uma confirmação de suas idéias.
Teve, porém, de admitir, em ''Comentários Sobre a Sociedade do Espetáculo'' (1988), que o domínio
espetacular conseguiu se aperfeiçoar e vencer todos os seus adversários; de modo que agora é a sua própria
dinâmica, a sua desenfreada loucura econômica a arrastá-lo em direção à irracionalidade total e à ruína.
Os dois tipos anteriores de espetáculo deram lugar, no mundo todo, a um único tipo: o ''integrado''. Sob a
máscara da democracia, este remodelou totalmente a sociedade segundo a própria imagem, pretendendo que

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nenhuma outra alternativa seja sequer concebível. Nunca o poder foi mais perfeito, pois consegue falsificar
tudo, desde a cerveja, o pensamento e até os próprios revolucionários. Ninguém pode verificar nada
pessoalmente, ao contrário, temos de confiar em imagens, e, como se não bastasse, imagens que outros
escolheram. Para os donos da sociedade, o espetáculo integrado é muito mais conveniente do que os velhos
totalitarismos. A América Latina sabe algo a respeito.
Mas Debord (1931-1994) não é apenas um dos poucos autores de inspiração marxista que hoje podem dar
uma contribuição válida para a análise do capitalismo globalizado e pós-moderno. Ele também fascina por
sua vida singular, sem compromissos e conforme às suas teorias.
A busca da aventura e da vida ''verdadeira'' esteve na base de sua vida pessoal _da qual a sua autobiografia
''Panegírico'' e os seus filmes falam_, assim como de sua teoria. Levou uma existência intencionalmente
''maldita'', às margens da sociedade, sem um trabalho reconhecido, sem nenhum contato com as instituições,
sem nunca ter frequentado uma universidade, concedido uma entrevista ou participado de um congresso _e,
no entanto, conseguiu fazer com que fosse ouvido.
Levou adiante a sua batalha contra a sociedade espetacular exclusivamente com os meios que ele próprio
criou para si: em primeiro lugar, com a Internacional Situacionista, uma pequena organização que existiu
entre 1957 e 1972 e que se originou da decomposição do surrealismo parisiense e de outras experiências
artísticas. Com a revista homônima e novos meios de agitação (quadrinhos, organização de escândalos), os
situacionistas souberam prefigurar, muito melhor do que a esquerda ''política'', as novas linhas de conflito na
sociedade ''da abundância''.
Entre outras coisas, criticavam impiedosamente a nova arquitetura e o vazio e o tédio do pós-guerra. Com
poucas intervenções miradas, os situacionistas fizeram com que idéias subversivas, que, por volta de 1960,
eram compartilhadas por um punhado de pessoas, se tornassem, em 1968 e posteriormente, um fator
histórico de primeira ordem.
Os situacionistas, e particularmente Debord, distinguem-se pelo estilo inconfundível, e não somente no plano
literário. Era o resultado da mistura entre um conteúdo radical _que remetia, entre outros, aos dadaístas, aos
anárquicos e à vida popular parisiense_ e um tom sofisticado e aristocrático, com muitas referências à cultura
clássica francesa. Este estilo _assim como a sua verve polêmica, mesmo para com todos os supostos
contestadores (esquerda oficial, artistas ''engajados'' etc.), sua inacessibilidade e a sua transgressividade nas
formas_ logo os cercou de um ódio significativo, mas sobretudo de uma áurea de mistério. Que ainda vive 30
anos depois: com efeito, ainda se publicam textos dos situacionistas e sobre eles _embora amiúde procurem
fazê-los passar exclusivamente por ''última vanguarda cultural''. Na França, ao contrário, só querem enxergar
em Debord o escritor. Ainda hoje não querem perdoá-lo por ter escrito ''A Sociedade do Espetáculo''.

Anselm Jappe é autor de ''Guy Debord'', publicado na Itália e na França e proximamente nos EUA e no Brasil. É
colaborador da revista ''Krisis'', dirigida por Robert Kurz.
Tradução de Roberta Barni.

Autor: ANSELM JAPPE


Origem do texto: Especial para a Folha
Editoria: MAIS! Página: 5-4 8/8372
Edição: Nacional Aug 17, 1997

10:28

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