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Filosofia sem liberdade: Constantin

Noica e Alexandru Dragomir1


As biografias espetaculares de Noica e Dragomir mostram como
a resistência pela filosofia pode ser poderosa, mesmo em tempos
difíceis de totalitarismo político, como o deles. Enquanto um optou
por ser na Romênia a própria imagem pública do exercício da
filosofia, o outro optou por levar uma vida de quase anônimo, em
empregos simples, enquanto desenvolvia sua obra em segredo
Cristian Ciocan
[trad. William Campos da Cruz]

permitam-me começar com uma pergunta genérica: pode a filosofia 1 Os direitos deste ensaio pertencem
ao autor. O trabalho é aqui publicado
existir sem liberdade? com sua permissão e pode ser
Normalmente acreditamos que pensar, refletir e filosofar sem- citado como Phenomenology 2005,
pre requer certo grau de liberdade. Aristóteles é o primeiro a defender, vol. iii, Selected Essays from Euro-
Mediterranean, ed. Ion Copoeru
no início da Metafísica, que a filosofia começou no Egito, onde a classe & Hans Rainer sepp (Bucareste:
dos sacerdotes estava dispensada do trabalho, obtendo assim o con- Zeta Books, 2007), disponível em
versão impressa e digital em www.
forto necessário à reflexão. Todavia, além deste conforto, esta liberda- zetabooks.com. Contato do autor:
de das necessidades diárias, a filosofia requer outro tipo de liberdade cristian.ciocan@phenomenology.ro.
para que o instinto filosófico profundamente enraizado no homem
seja capaz de desenvolver-se como exercício filosófico livre, numa
cultura filosófica viva e criativa, permitindo uma polifonia de vozes
e um diálogo de pontos de vista diversos. Não me refiro, aqui, a uma
liberdade total numa república ideal de filósofos, mas a certo grau de
liberdade. Refiro-me à liberdade política, a liberdade social ou cívica.
Este tipo de liberdade possibilitou os estágios mais férteis na história
da filosofia. Se pensarmos nos gregos, vemos que o florescimento da
filosofia foi possível num clima de liberdade política. A filosofia sem-
pre se desenvolveu sob certa proteção, uma atitude mais ou menos

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tolerante das autoridades, fossem eles reis, imperadores, nobres, pa-
pas ou cardeais: isto aconteceu com a filosofia antiga, com a filosofia
medieval e, de novo, com o Idealismo alemão. Quando a proteção e
a liberdade desaparecem, a filosofia também morre, ou é suprimida,
como no caso do fechamento da escola neoplatônica de Atenas pelo
édito de Justiniano.
O terrível século xx trouxe uma situação completamente di-
ferente, nunca encontrada antes, em que a limitação da liberdade do
homem tornou-se um dever do estado. Quando tal regime perdura
por várias décadas, como no caso do comunismo no Leste Europeu,
as transformações podem ser atrozes, pois gerações nascem e mor-
rem num universo concentracionário, sem luz ou esperança. Sob tal
regime, a filosofia se reduz a um instrumento de propaganda, a uma
ideologia oficial.
E perguntamos novamente: pode a filosofia existir sem liber-
dade?
O caso romeno, e especialmente o caso da filosofia romena sob
o comunismo, pode ser compreendido em contraste com o pano de
fundo de um contexto social mais amplo, a história recente dos países
destruídos pelo imperialismo do regime soviético. Todavia, temos de
compreender sua especificidade.
A cultura romena – como cultura nacional, numa língua na-
cional – é de certa forma uma cultura jovem. Ainda que a coesão
nacional dos romenos seja mais velha, a Nação Romena afirmou-se
explicitamente por ocasião dos eventos históricos que varreram a
Europa por volta de 1848, ganhando sua independência do Império
Otomano somente em 1877. No que diz respeito à filosofia, o primeiro
nome que devemos mencionar é o de Dimitrie Cantemir (1673-1723),
um rei da Moldávia que se correspondia com Leibniz e que foi eleito
membro da Academia de Berlim em 1714. Ainda que sua atividade fi-
losófica fosse rica o bastante, ele era reconhecido no mundo sobretudo
por seu trabalho de historiador. Suas obras sobre o Império Otomano
foram imediatamente traduzidas em diversas línguas e conhecidas
por Voltaire, Byron e Victor Hugo. Infelizmente, em primeiro lugar
por causa de vicissitudes históricas, pois os romenos não conheceram
longos períodos de estabilidade política em que a cultura humanista
pudesse desenvolver-se, o caso de Cantemir era singular.
E assim foi até o século XIX, quando os romenos começaram
a estudar intensamente em Berlim, em Paris e em Viena, adquirindo
com eles, portanto, as ideias filosóficas que circulavam no Ocidente. O
primeiro curso de filosofia escrito em romeno foi elaborado segundo
um modelo alemão por Eftimie Murgu em 1834-36, para a Academia

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Mihaileana de Iaşi, e foi a primeira tentativa de estabelecer uma termi-
nologia filosófica em língua romena. Também podemos notar a ten-
tativa de Mihai Eminescu – um famoso poeta romântico, ele próprio
bastante influenciado pela filosofia de Schopenhauer – de traduzir
fragmentos da Crítica da Razão Pura em 1878.
No início do século xx, a circulação de ideias aumentou, e a
cultura romena começou a entrar, passo a passo, no circuito da cultura
europeia. Encontramos muitos professores de filosofia que, mais ou
menos, estão compilando os tratados ocidentais de filosofia, ofere-
cendo uma variante autóctone da vulgata escolar de Paris, Leipzig e
Berlim. Mas nesta ocasião, as ideias estão se difundindo, o vocabulário
filosófico está crescendo e podemos falar do início da consolidação
de um clima filosófico. Quanto aos próprios filósofos, podemos men-
cionar alguns nomes, como Vasile Conta ou Constantin Radulescu-
-Motru, que produziram obras filosóficas de uma originalidade um
tanto limitada pelo modo de seu tempo. O caso de Lucian Blaga é
mais interessante, porque sua ouvre filosófica tem uma originalidade
inconstestável, sendo no entanto nutrida pelo clima da filosofia da
cultura de Spengler. Infelizmente, a obra de Blaga não foi traduzida
no momento certo e, portanto, não pôde entrar no circuito das ideias
europeias, como sem dúvida merecia ter entrado.
Entre as duas Guerras Mundiais, a cultura romena tornou-se
muito viva, muito criativa, muito promissora, uma cultura em pleno
desenvolvimento, com estudantes que tinham estudado nas mais fa-
mosas universidades da Europa, professores com diplomas europeus,
revistas acadêmicas especializadas, em suma, uma cultura capaz de
integrar-se organicamente na cultura europeia. Este período, que se
mostrou muito fértil, muito ambicioso e de espírito muito elevado,
produziu vozes novas e provocativas, que, depois da Segunda Guerra
Mundial, tornaram-se famosas no Ocidente, como no caso de Mircea
Eliade, Eugene Ionesco ou Emil Cioran.
Entretanto, em certo momento, veio o desastre. Um desastre
que infelizmente durou décadas e desfigurou tudo, incluindo a filosofia.
Estamos agora nos anos 1945-47. A guerra terminou, o exército
russo ocupa a Rômenia, os comunistas chegam ao poder, o rei abdica
e deixa o país. A maioria dos intelectuais deixou a Romênia em di-
reção ao Ocidente e constituíram uma diáspora impotente. Aqueles
que permaneceram viviam sob ameaça de prisão política. Os mais
famosos deles são presos, torturados, seus bens são confiscados e suas
famílias são aterrorizadas.
E quanto à filosofia? Perguntamos novamente: pode a filosofia
existir sem liberdade?

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A resposta não é fácil, e esperamos encontrar, na leitura das
entrelinhas dos destinos de Noica e de Dragomir, as soluções possíveis
ou impossíveis.

Na Romênia atualmente, Noica é o filósofo romeno mais bem


conhecido. Ele é o Filósofo, isto é, a maior figura da filosofia romena
hoje. Podemos dizer isso de outra forma: foi graças a Noica que a
filosofia adquiriu na Romênia dos anos 1960 e 1970 um grande prestí-
gio, inacreditável para um país submetido a um regime totalitário. O
próprio Noica quase se tornou um fenômeno de massa: ele teve força
para transmitir a várias gerações de jovens o vírus do filosofar. Cen-
tenas de jovens começaram a sonhar aprender grego antigo e alemão
para ter acesso às fontes fundamentais da filosofia. Centenas de jovens
visitaram-no, em verdadeiras peregrinações, em seu xalé em Păltiniş,
situado no centro de um vilarejo serrano da Transilvânia. Em suma, o
fenômeno “Noica” marcou de forma radical a cultura contemporânea
da Romênia.
Mas como se chegou a tal situação inacreditável? As explica-
ções são multifacetadas.
Em primeiro lugar, para os intelectuais romenos, Noica re-
presentava uma ligação entre a Romênia contemporânea e o país in-
telectualmente viçoso que a Romênia era antes da Segunda Guerra
Mundial. Para eles, embora a Romênia do entreguerras não tenha sido
exatamente um paraíso, o que aconteceu sob o comunismo decerto
era um inferno. O próprio Noica era uma figura central da geração de
intelectuais que animavam Bucareste e seus cafés literários nos anos
1930-40, ao lado de Eliade, Cioran, Ionescu, Mircea Vulcanescu ou Pe-
2A respeito da vida de Noica, tre Țuțea. Desde que Noica escolheu permanecer na Romênia, não de-
remetemos ao livro de Gabriel
Liiceanu, O Diário de Paltinis:
sejando emigrar para países ocidentais, ele trouxe consigo a herança
um modelo paidético na cultura simbólica de uma geração inteira. Ele era prova viva de que nosso país
humanista. Budapeste/Nova um dia conheceu a normalidade, a liberdade, uma excelência cultural,
York: CEU Press, 2001, e aos
artigos de nossos colegas Laura completamente oposta às décadas de comunismo, que impuseram às
Pamfil e Sorin Lavric no jornal pessoas a supremacia da suspeita, da pobreza, da confusão ideológica,
eletrônico Arguments, vol.
2/2003. Mais informações sobre
do automatismo dos slogans. Foi naturalmente que uma figura como
a filosofia romena podem ser Noica veio a se tornar uma lenda aos olhos dos intelectuais frustrados
encontradas em e angustiados pela perpetuação do “socialismo científico”.
www.romanian-philosophy.ro
Até 1945, Noica já tinha publicado oito livros e muitos arti-
3 Em edição brasileira: Emil gos2. Ele estreou aos 25 anos com um volume que recebeu o prêmio
Cioran, Nos Cumes do Desespero.
Trad. Fernando Klabin. São das Fundações Reais, na mesma linha de Nos Cumes do Desespero3,
Paulo: Hedra, 2012. (N. T.) de Cioran, e o famoso livro intitulado Não, de Eugene Ionesco. Mais

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tarde, ele e seus colegas especializaram-se em vários campos: Eliade
estudou a história das religiões, Ionesco escreveu teatro e crítica lite-
rária, Cioran levou adiante suas reflexões radicais e insolentes sobre a
morte, a finitude e o absurdo, mas Noica escolheu trabalhar, como um
especialista, na filosofia, traduzindo e comentando Descartes, Leib-
niz, Kant e Hegel.
Ademais, como era abastado o suficiente, ele tinha liberdade
material para perseguir sua paixão pela filosofia. Ele sonhou, nos idos
de 1940, criar um novo tipo de escola filosófica, onde, como diria Leon
Bloy, “não se pode dizer quem dá e quem recebe”. Ele sonhava fazer
da filosofia uma maneira de viver, sem doutrinas ou lições escolares,
oposta ao rígido estilo pedagógico de sua época. Seu Diário Filosófico4 4 Em edição brasileira:
Constantin Noica, Diário
defende todas essas ideias. Filosófico. Trad. Elpídio Mário
O socratismo estava em casa na Romênia. Não nas salas de Dantas Fonseca. São Paulo: É
aula, não na universidade, mas nos famosos cafés literários de Bu- Realizações, 2011. (N. T.)
careste, onde as pessoas discutiam vividamente os assuntos mais
absolutos, profundos e especulativos. O mainstream era um tipo de
existencialismo apaixonado e vitalista, preocupado com o sentido e o
sem-sentido da vida, o destino da nação, a voz da religião, o destino da
humanidade; enfim, as questões eternas de nossos dias.
Mas o pensamento de Noica singularizou-se por sua preocu-
pação ontológica. E esta o levou, quatro décadas mais tarde, à sua obra
principal: o Tratado de Ontologia. Em parte, ele deu a sua ontologia
uma dimensão nacional, que é muito contestada por alguns críticos.
No entanto, tratava-se antes de matéria inofensiva: assim como Hei-
degger começava seu pensamento a partir da língua alemã, sempre
usando uma explanação etimológica, Noica também o fez com a lín-
gua romena, começando com as nuanças do equivalente romeno do
verbo ser (a fi). Pois, entre o puro ser e o puro não ser, a língua romena
tem, segundo Noica, um modo privilegiado de expressar, com uma
riqueza muito especial, as várias modulações do verbo “ser”. Essas
variações ontológicas do verbo ser, que passam por diversos tipos
de eventualidade, de possibilidade e impossibilidade, constituem o
fundamento sobre o qual Noica edificou sua ontologia. Ele analisou e
articulou de modo sistemático essas modulações do verbo “ser” numa
ontologia que guardou um traço nacional, sendo provavelmente o
último sistema filosófico do século xx.
Podemos encontrar as raízes dessas ideias nos anos 1940. Aqui
Noica estava preocupado com a relação entre a dimensão espiritual
de uma nação, como depositada na língua, e as elites espirituais, que
explicam esta riqueza encapsulada na língua e que faz a transição
da dimensão pré-ontológica para a ontológica. Para Noica, a força

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explicativa da língua romena era o solo para as raízes de sua meditação.
E este é o ponto mais próximo entre Noica e Heidegger, pois para am-
bos a língua é o fundamento essencial de todo pensamento. Temos de
observar também que a dimensão nacional da filosofia de Noica era
apenas um lado de sua ontologia, o outro era mostrado de forma mais
abstrata à maneira hegeliana. Noica discute sobre um modelo ontoló-
gico feito a partir destes três elementos fundamentais: o individual, as
determinações recebidas pelo individual, e o geral em relação ao qual
o individual recebe suas determinações. Se o modelo ontológico está
saturado, podemos falar de um Ser realizado. Se o novo modelo não
está saturado (pelos vários modos de falhas ontológicas ou irrealiza-
ções), falamos de várias modalidades ou modulações ontológicas, no
que concerne ao Ser a ser realizado. Aqui Noica distingue duas mo-
dalidades de devir: um devir concernente ao Ser realizado, e um devir
que não consumou seu Ser. Ele usou um operador ontológico, uma
preposição difícil de traduzir, întru, que é ao mesmo tempo “em”, “em
relação a” e “para”, sendo simultaneamente contido e uma orientação
para, próximo ao alemão zu e ao inglês into. Foi esta preposição par-
ticular que permitiu que Noica falasse, em seu sistema ontológico, de
um devir em e em direção ao Ser [Rom.: devenirea întru fiinţă] (como
o caso de um artista – um individual – que se situa, por suas obras – as
determinações –, em favor e em direção ao horizonte do geral – sua
arte) e de um devir em e em direção ao devir [Rom.: devenirea întru
devenire] (como o caso da vida familiar, que está em e em direção à
procriação e à geração). Para Noica, o Ser e o devir no horizonte do Ser
são sempre de natureza espiritual e cultural.
Mas voltemos à nossa história. Depois de 1945, as perseguições
começaram e Noica foi diretamente afetado. Primeiro, seus bens fo-
ram confiscados; esta foi a primeira medida do poder comunista: ani-
quilar as pessoas ricas. Mas a paixão de Noica pela filosofia continuou
intocada: mesmo quando a sociedade política era catastrófica, Noica
fundou em 1945-46, numa de suas casas, uma escola particular de filo-
sofia, que era frequentada por importantes intelectuais romenos. Mas
essas sessões filosóficas particulares não puderam ser toleradas por
muito tempo pelos oficiais, porque havia alguns “elementos reacioná-
rios e burgueses”, como se dizia na época. A elite econômica não era o
único obstáculo à sociedade comunista, mas também a elite intelectu-
al. E como Noica era parte da elite intelectual, ele foi posto sob estrita
vigilância. Três anos depois, em 1949, quando tinha 40 anos de idade,
Noica foi forçado a deixar Bucareste. Ele foi constrangido a domicílio
forçado em Campulung [Campo Grande], sendo oficialmente proibi-
do de deixar este vilarejo de província.

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Mas nem mesmo durante este longo período de reclusão, de
dez anos, vividos num estado de grande pobreza material, o vírus
filosófico de Noica se acalmou. Ele organizou encontros filosóficos
com um círculo de amigos, tendo a certeza de que somente a vida
espiritual – em que a filosofia era o mais importante – pode constituir
uma forma genuína de resistência diante do nada estabelecido pelo
novo regime. Temos de dizer que esta ideia de resistir pela cultura é a
ideia fundamental da atitude de Noica perante o desastre histórico em
que viveu.
Então, à nossa pergunta – como alguém pode filosofar sem li-
berdade? –, a resposta de Noica seria: bem, simplesmente filosofando!
No período de domicílio forçado, é a filosofia de Hegel que constitui
o centro das preocupações de Noica. Em 1957, ele enviou a um editor
francês o manuscrito que continha um comentário à Fenomenologia do
Espírito. Mas, considerado subversivo, o manuscrito foi interceptado
pelo serviço secreto romeno. Consequentemente, em 1958, Noica e seus
colegas foram presos e processados. Embora tivesse 49 anos de idade e
já tivesse passado dez anos em domicílio forçado, ele ainda recebeu 25
anos de prisão. A filosofia parece ser o demônio que deseja destruir a
vida de Noica, até a privação de toda liberdade. E parecia ter conseguido.
Mas o jogo ainda não estava terminado. Noica, é claro, foi tor-
turado na prisão, assim como todos os outros, mas após algum tempo
as autoridades permitiram que ele lesse. Embora Hegel fosse proibido,
ele podia, entretanto, pedir permissão para ler Marx; e ele lê Marx o
tempo todo. Por fim, ele passa apenas seis anos na prisão, porque em
1965, com a ocasião do primeiro relaxamento do sistema comunista,
Noica é libertado e até certo ponto reabilitado. Ainda que esteja sob es-
trita vigilância da Securitate, nos últimos vinte anos de sua vida, Noica
foi beneficiado por certa tolerância da parte do regime comunista, e
portanto ele podia esperar refazer sua vida e seus sonhos filosóficos.
5 Em língua portuguesa, já foram
Em 1965, aos 55 anos, Noica foi autorizado a voltar a Bucares- editadas as seguintes obras de
te e entrou no Instituto de Lógica como pesquisador. Incansável e Gabriel Liiceanu, todas com
incorrigível, ele manteve alguns seminários privados sobre Platão, tradução de Elpidio Mário Dantas
Fonseca: Da Mentira. Campinas:
Kant ou Hegel, onde ele encontra alguns pesquisadores da nova Vide Editorial, 2014; Do Ódio.
geração: Gabriel Liiceanu5, Andrei Pleşu6, Sorin Vieru ou Victor Campinas: Vide Editorial, 2015;
e Da Sedução. Campinas: Vide
Stoichiţă. Estes jovens filósofos ficam muito atraídos por seu charme Editorial, 2015. (n. t.)
intelectual e por sua virtuosidade filosófica, e assim todos entram
num cenário de pedagogia filosófica e cultural. Para eles, Noica era 6 Até o momento, a única obra de
Andrei Pleşu publicada em língua
uma figura singular e fascinante, a única personalidade que se podia portuguesa é Da Alegria no Leste
escolher na Romênia como mestre em filosofia. Para Noica, esses Europeu e na Europa Ocidental:
E Outros Ensaios. Trad. Elpídio
jovens estudiosos eram uma tentação irresistível para sua vocação Mário Dantas Fonseca. São Paulo:
de treinador cultural em filosofia. É Realizações, 2013. (n. t.)

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Noica trabalha outros dez anos no Instituto de Lógica em Buca-
reste, até sua aposentadoria. Ele começa a traduzir e interpretar Platão,
7 Noica traduziu Porfírio, Aristóteles, os pré-socráticos e os comentadores aristotélicos7. Ele tam-
Dexipo e Amônio. Ele bém começa a publicar suas próprias obras sobre seu projeto ontológico.
também coordenou a
primeira edição completa das Depois de 1975, Noica se retira para Păltiniş, um vilarejo serra-
obras de Platão em romeno; no próximo a Sibiu, onde começa uma das mais belas aventuras que a
formou equipes de tradutores
de grego, latim e alemão. Sob cultura romena já conheceu. Seus discípulos – precisamente Gabriel
sua orientação, começaram Liiceanu, Andrei Pleşu e Sorin Vieru – regularmente lhe faziam visi-
as primeiras traduções
sistemáticas de Heidegger.
tas em Păltiniş, viviam e trabalhavam juntos sob a direção de Noica,
traduziam e interpretavam textos filosóficos clássicos, numa solidão
pura e intangível, no reino do espírito. Esta aventura durou mais de
uma década. Noica convence seus discípulos a aprender grego e ale-
mão, dá-lhes tarefas culturais para fazer, faz para eles um programa
de leitura e de pesquisa, assumindo portanto a posição de mestre que
faz tudo para que seus discípulos alcancem a excelência em filosofia.
O Diário de Păltiniş de Gabriel Liiceanu, agora traduzido em
inglês, francês e alemão, retrata a história dramática e apaixonada
desta aventura. Quando de sua publicação, o impacto deste Diário foi
imenso, e a obra ganhou grande notoriedade. A liberdade de espírito
mostrada neste Diário fascinou o público romeno, cuja liberdade real
tinha sido confiscada por várias décadas pelo comunismo. O Diário
teve uma enorme influência em várias gerações de jovens, inspirando-
-os com o páthos filosófico e a paixão pela filosofia, não apenas antes
da queda do comunismo em 1989, mas também depois deste aconte-
cimento histórico. Noica tornou-se “o fenômeno Noica” e, paradoxal-
mente, a filosofia tornou-se a rainha da cultura romena, mesmo sob as
condições de uma submissão política.
A firme fé de Noica na filosofia, na vida cultural e no espírito
era sua resposta constante diante das vicissitudes históricas e do nada
do totalitarismo. Sua resistência pela cultura perante o deserto do
nonsense ideológico era sua fórmula de sobrevivência no universo
impossível em que foi forçado a viver. Assim como o modelo checo de
Jan Patočka, o modelo romeno de Noica exerce um papel notável no
estágio da filosofia contemporânea, um episódio que talvez mereça
mais atenção, porque constitui uma modalidade em que a filosofia foi
capaz de sobreviver a despeito da falta de liberdade, que parece de fato
ser sua condição necessária.

O caso de Alexandru Dragomir começa com algumas pre-


missas diferentes. Até sua morte em 2002, conhecíamos Alexandru

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Walter Biemel, o famoso editor de
Husserl e Heidegger, e amigo íntimo de
Heidegger, lembra que este apreciava
muito a aguda inteligência de Dragomir.
Alexandru Dragomir participou dos
seminários particulares de Heidegger e
diz-se que, quando a discussão chegava
ao fim, Heidegger costumava voltar-se
para Dragomir perguntando: “Bem, o
que os latinos dizem?”

Dragomir apenas como uma figura estranha que passava mais ou


menos misteriosamente pelos círculos intelectuais romenos. Tudo
que sabíamos dele vinha daqueles que realmente se encontraram com
ele, porque Dragomir nunca quis fazer-se conhecido. Na verdade, ele
tinha uma espécie de aversão à ideia de tornar-se uma figura pública.
Sabe-se que nos idos de 1940 ele havia sido aluno de Heidegger, estu-
dando para um PhD em Freiburg. Aqueles que tiveram oportunidade
de encontrar-se com ele nas últimas décadas de sua vida dizem que
ele tinha um conhecimento filosófico fabuloso, que era um pensa-
dor brilhante e tinha uma mente vívida e perspicaz. Entretanto, o
que intrigava muito aqueles à sua volta era o fato de que ele nunca se
interessou por publicar uma única página em vida. Sempre disse que
a publicação não tinha importância para ele, e tudo em que estava
interessado era compreender. Assim ele constantemente se recusou
a entrar na indústria cultural. Na verdade, ninguém sabia se ele já
tinha escrito algo. Ele constantemente recusava, portanto, participar
de qualquer iniciativa cultural pública. Ao contrário de Noica, que
era uma figura cultural essencial, tendo uma atividade prodigiosa e
efervescente de ação mesmo durante os períodos difíceis, Dragomir
concebia a filosofia como um esforço puramente individual, em com-
pleta solidão. Dragomir situava-se fora de qualquer indústria cultural
e fora de qualquer Gestell filosófico, com suas revistas e seu público,
com seus modos, congressos e conferências. É por isso que ele não quis

62
publicar uma única página durante sua vida, acreditando que escrever
é o inimigo fatal do pensamento, como mostra o mito de Theuth no
fim do Fedro, de Platão. Dragomir considerava que a maneira socráti-
ca de interrogar alguém é a forma mais elevada de pensamento. Por-
tanto, ele não queria ter nenhum contato com a área filosófica oficial
contaminada pela ideologia, e também não queria adotar a fórmula de
Noica segundo a qual o lugar próprio da filosofia é sempre a cultura.
Walter Biemel, o famoso editor de Husserl e Heidegger, e amigo
íntimo de Heidegger, lembra que este apreciava muito a aguda inteli-
gência de Dragomir. Alexandru Dragomir participou dos seminários
particulares de Heidegger e diz-se que, quando a discussão chegava
ao fim, Heidegger costumava voltar-se para Dragomir perguntando:
“Bem, o que os latinos dizem?” No final de 1943, Dragomir foi forçado
a deixar Freiburg e os seminários de Heidegger e a retornar à Romênia
para o alistamento. Era tempo de guerra. Embora Heidegger insisten-
temente exigisse que Dragomir tivesse permissão para continuar seus
estudos, este teve de unir-se ao exército. Vinte anos depois, Heidegger
8 Dragomir era amigo íntimo ainda se lembrava muito bem de Dragomir e pedia notícias dele8.
de Biemel, que era alemão de
nascimento, mas romeno por
E quando a história romena sofreu o terrível golpe em 1945,
sua educação, tendo completado quando o fim da Segunda Guerra Mundial coincidiu com a ocupa-
seus estudos em Brasov e ção russa e o estabelecimento do comunismo na Romênia, Dragomir
Bucareste. Biemel tem publicado
num jornal de Bucareste alguns encontrou-se confrontado com a impossibilidade de continuar seus
fragmentos de uma tradução de estudos com Heidegger. Ele logo compreendeu que sua relação com a
Heidegger. Em 1943, Biemel e
Dragomir traduziram juntos a
Alemanha podia ser motivo para perseguição política e que seus em-
conferência Was ist Metaphysik? preendimentos filosóficos podiam muito bem resultar em sua prisão.
e ofereceram a tradução a uma Ele previu tudo isso e compreendeu que sua sobrevivência dependia
editora romena. Infelizmente, a
oferta foi recusada, por razões da capacidade de dissimular suas preocupações filosóficas e sua cone-
políticas: na Romênia ocupada xão com a Alemanha.
pelo exército alemão, Heidegger
era persona non grata…
Ele participa algumas vezes, em 1945-46, de encontros
A tradução foi publicada 13 anos filosóficos clandestinos organizados por Noica em sua escola filosófica
depois, em 1956, no jornal da subterrânea, mas não fica muito convencido. Apesar dos esforços de
Diáspora Romena em Paris.
Depois deste início infeliz, Noica para ganhar Dragomir como colaborador de seus projetos
Walter Biemel serviu como filosóficos, Dragomir sistematicamente rejeitou suas propostas,
tradutor de Heidegger na França,
traduzindo com Alphonse de
fechando-se numa solitude intransponível.
Waelhens De l’Essence de la Vérité Por quê? Talvez seja só uma questão de psicologia humana,
(1948) e Kant et le problème de la porque pode ser difícil aceitar Noica como mestre depois de dois anos
Métaphysique (1953).
de discussão com Heidegger. Mas talvez houvesse diferenças profun-
das entre Noica e Dragomir, entre suas visões de mundo e da filosofia,
entre as maneiras de compreender a si mesmo diante do universo
totalitário que começava a impor-se por toda parte. Os caminhos de
Dragomir e de Noica pareciam por um momento separados demais.
Já sabemos que a trajetória de Noica foi: domicílio forçado,
prisão, reabilitação. Mas Dragomir, o que ele fez? Aparentemente,

63
nada. Constantemente encobrindo os traços de seu passado, Drago-
mir trabalhou ora como soldador, ora vendedor, ora escrevente ou
contador; e continuava tendo de trocar de trabalho, uma vez que seu
arquivo político inconveniente o levava à demissão frequente. Por fim,
ele conseguiu trabalhar, até sua aposentadoria em 1976, como econo-
mista numa companhia de exportação de madeira.
Nada relacionado à filosofia. Pode ser tentador dizer: “Veja um
destino fracassado!” Mas isto seria estar longe da verdade. Pois em pri-
vado, Dragomir nunca deixou de exercitar sua inteligência filosófica
brilhante. Por décadas ele viveu uma vida dupla: sua vida social coti-
diana de um lado e sua vida de pesquisa filosófica solitária de outro.
Ele continuou a trabalhar sobre os textos fundamentais da filosofia
em grego, latim, alemão, francês e inglês. Depois de 1965, depois que
Noica foi libertado da prisão, ele e Dragomir evidentemente se encon-
traram. E quando Noica começou a publicar, ele enviava seus livros a
Dragomir, sempre ansioso pela opinião deste a respeito de suas obras.
Diz-se que Noica temia a leitura exigente de Dragomir e seu ju-
ízo extremamente severo. Diz-se até que Noica reescreveu seu Tratado
de Ontologia depois de numerosos comentários críticos de Dragomir.
Mesmo quando o clima político se tornou, em alguma medida, mais
permissivo, Dragomir continuou indisposto a escrever e publicar,
apesar de todas as propostas que recebeu. Depois de 1985, entretanto,
ele concordou em fazer uma “concessão” quanto ao absoluto silêncio
de sua atividade filosófica: decidiu promover aulas e seminários par-
ticulares, com Gabriel Liiceanu, Andrei Pleşu, Sorin Vieru e outros
proeminentes intelectuais romenos como audiência. É provável que
tenha sido apenas graças a esta brecha que hoje somos capazes de falar
de Dragomir, salvando assim seu nome do total esquecimento. Na
época, os interlocutores de Dragomir, isto é, personalidades culturais
romenas já bem conhecidas, ficaram tão impressionados com suas
amostras de virtuosismo filosófico, que começaram a gravar e a tomar
longas notas de suas conferências. O nome de Dragomir começou a
difundir-se, como o rei oculto da filosofia romena.
Dragomir podia ter permanecido para sempre um brilhante
espírito socrático, sem uma obra filosófica real e transmissível. Mas
logo depois de sua morte, em 2002, mais de uma centena de cader-
nos foram encontrados em seu apartamento, contendo anotações,
comentários sobre textos clássicos, ensaios de pesquisa, análises fe-
nomenológicas e descrições filosóficas muito perspicazes e precisas.
E o que é ainda mais importante, muitos deles são textos originais
que o transformaram de uma lenda ou figura mítica da filosofia ro-
mena num filósofo cuja obra pode ser transmitida e compartilhada.

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A maioria desses textos são microanálises fenomenológicas ou escla-
recimentos incisivos e sutis de vários aspectos concretos do mundo
em que vivemos. Podem-se encontrar textos sobre o espelho, sobre
o esquecimento, sobre o erro, sobre como as coisas se esgotam, sobre
acordar de manhã, sobre o espectro das coisas feias ou repulsivas, sobre
escrever e falar, sobre fazer distinções entre coisas, sobre ser único, e
assim por diante. Há assuntos muito diferentes e heterogêneos, embora
Dragomir observasse a diversidade do mundo através de suas agudas
lentes fenomenológicas, para o propósito único de seu próprio desejo
de compreender. Seu gênio foi descoberto na banalidade dos aconte-
cimentos diários de nossas vidas, nas experiências mais concretas com
que lidamos dia a dia, naqueles aspectos que julgamos mais autoevi-
dentes e implícitos, as camadas profundas de sentido e significância
fundamental, que ele então analisava com uma acuidade fascinante.
Todavia, um assunto permanece constante: há vários cader-
nos, chamados Chronos, nos quais Dragomir temática e sistematica-
mente perseguiu o problema do tempo por um período de várias dé-
cadas: o primeiro caderno data de 1948 e contém muitas notas escritas
diretamente na Alemanha, enquanto o último dos cadernos data das
décadas de 1980 e 1990. Depois da descoberta crucial de seus cader-
nos, era possível começar a recuperar sua obra. A Editora Humanitas
já publicou três volumes: Banalidades Metafísicas Grosseiras, Cinco
Fugas do Presente e Cadernos do Tempo. Pode ser que este livro sobre o
tempo se mostre a obra mais importante de Dragomir.
Assim, à nossa pergunta – como alguém pode filosofar sem
liberdade? –, a resposta de Dragomir é similar à de Noica, ainda que
muitas coisas sejam concretamente divergentes. Dragomir viveu sua
vida filosófica de forma tão vívida que nenhum regime totalitário o
pôde deter. Ainda mais radical que Noica, que foi ele mesmo um de-
fensor da tenacidade filosófica, Dragomir é um caso único de retidão
filosófica. Embora eu não conheça nenhum outro destino filosófico
comparável, creio que sua vida merece ser conhecida, porque ma-
nifesta o valor vital intrínseco que a filosofia tem, mesmo nos piores
momentos da história.

cristian ciocan é professor de filosofia na Universidade de Bucareste e membro


da Sociedade Romena de Fenomenologia.

william campos da cruz é licenciado em Letras pelo Centro Universitário


São Camilo e pós-graduando em Tradução de Língua Inglesa pela Universidade
Estácio de Sá. Atualmente, é produtor editorial na É Realizações Editora.

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