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OPINIÃO OPINION 1527

As tendências pedagógicas e a prática


educativa nas ciências da saúde

Pedagogical approaches and educational


practices in health sciences

Adriana Lenho de Figueiredo Pereira 1

1 Serviço de Treinamento Abstract Educational practices are widely used in the health field, both in continuing educa-
e Avaliação de Enfermagem,
tion for health professionals and health education for the general population. These two fields
Hospital Universitário
Pedro Ernesto, Universidade intersect through the development of educational knowledge oriented by a set of target represen-
do Estado do Rio de Janeiro. tations of man and society. Such representations are demonstrated by teaching/learning process-
Boulevard 28 de Setembro,
es in the four main pedagogical trends in Brazil: traditional, renewed, conditioning-based, and
77, 3 o andar, Rio de Janeiro,
RJ 20551-030, Brasil. liberating (or the Paulo Freire approach). Based on their respective principles, methods, and in-
adrianalenho@bridge.com.br dividual and social consequences, we contend that liberating pedagogy can produce better re-
sults than the others by allowing the student’s active participation in the learning process, thus
fostering continuous development of human skills in both the health services clientele and
health workers.
Key words Continuing Education; Educational Models; Health Education

Resumo As práticas educativas são amplamente utilizadas na área da saúde, tanto na forma-
ção contínua dos profissionais que atuam nesta área quanto no campo da educação em saúde
para a população em geral. A interseção destes dois campos de conhecimento humano se dá
através do desenvolvimento de práticas educativas norteadas por um conjunto de representa-
ções de homem e de sociedade que se quer efetivar. Essas representações são demonstradas atra-
vés da discussão dos processos de ensino-aprendizagem utilizados nas tendências pedagógicas
mais dominantes em nosso meio: a pedagogia tradicional, renovada, por condicionamento e a
libertadora. A partir dos princípios, métodos e conseqüências ao nível individual e social de ca-
da pedagogia apresentada, concluímos que a pedagogia libertadora pode produzir melhores re-
sultados que as demais correntes pedagógicas estudadas, por possibilitar a participação ativa do
educando no processo da aprendizagem, propiciando o desenvolvimento contínuo das habilida-
des humanas tanto da clientela quanto dos trabalhadores da área de saúde.
Palavras-chave Educação Continuada; Modelos Educacionais; Educação em Saúde

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(5):1527-1534, set-out, 2003


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Introdução Ressaltamos que a prática educativa em saú-


de não se restringe às ações no âmbito da aten-
A educação e a saúde são espaços de produção ção primária, como geralmente é entendida,
e aplicação de saberes destinados ao desenvol- mas se faz necessária nos três campos de aten-
vimento humano. Há uma interseção entre es- ção. Este pensamento é expresso no Relató-
tes dois campos, tanto em qualquer nível de rio Final da XI Conferência Nacional de Saúde
atenção à saúde quanto na aquisição contínua (CNS, 2000:165-166), no capítulo Democratiza-
de conhecimentos pelos profissionais de saú- ção das Informações: “As Políticas de IEC (Infor-
de. Assim, estes profissionais utilizam, mesmo mação, Educação e Comunicação) devem ... es-
inconscientemente, um ciclo permanente de tar voltadas para a promoção da saúde, que
ensinar e de aprender. abrange a prevenção de doenças, a educação pa-
A prática educativa em saúde, aqui, refere- ra a saúde, a proteção da vida, a assistência cu-
se tanto às atividades de educação em saúde, rativa e a reabilitação sob responsabilidade das
voltadas para o desenvolvimento de capacida- três esferas de governo, utilizando pedagogia crí-
des individuais e coletivas visando à melhoria tica, que leve o usuário a ter conhecimento tam-
da qualidade de vida e saúde; quanto às ativi- bém de seus direitos; dar visibilidade à oferta de
dades de educação permanente, dirigidas aos serviços e ações de saúde do SUS; motivar os ci-
trabalhadores da área de saúde através da for- dadãos a exercer os seus direitos e cobrar as res-
mação profissional contínua. Lembramos que ponsabilidades dos gestores públicos e dos pres-
muitas práticas de saúde requerem práticas tadores de serviços de saúde”.
educativas. As ações de saúde não implicam Devido à crescente acumulação de conhe-
somente a utilização do raciocínio clínico, do cimentos e, como conseqüência, a necessida-
diagnóstico, da prescrição de cuidados e da de de atualização constante do profissional
avaliação da terapêutica instituída. Saúde não de saúde, torna-se indispensável um processo
são apenas processos de intervenção na doen- de formação contínua que vise não somente à
ça, mas processos de intervenção para que o aquisição de habilidades técnicas, mas tam-
indivíduo e a coletividade disponham de meios bém ao desenvolvimento de suas potenciali-
para a manutenção ou recuperação do seu es- dades no mundo do trabalho e no seu meio so-
tado de saúde, no qual estão relacionados os cial. Quanto este aspecto, no Relatório Final da
fatores orgânicos, psicológicos, sócio-econô- XI CNS identifica-se a seguinte problemática
micos e espirituais. Consideramos, ainda, que em relação aos recursos humanos do sistema
pode-se exercer a prática de saúde em qual- de saúde brasileiro: “Há ausência da academia
quer espaço social, visto que o campo da saúde nos processos de formação, re-qualificação e
é muito mais amplo do que o da doença. capacitação dos Recursos Humanos para a no-
Tomando como princípio norteador a saú- va realidade e modelos de gestão. Essa falta de
de integral, utilizamos o referencial da promo- qualificação profissional desmotiva e desgasta
ção da saúde, que visa elaborar e implementar física e emocionalmente, acarreta dificuldades
políticas públicas saudáveis; criar ambientes de relacionamento e impede a coesão das equi-
favoráveis à saúde; reforçar ação comunitária; pes de saúde e resulta na execução das tarefas
desenvolver habilidades pessoais e reorientar sem planejamento, exigindo uma política de
o sistema de saúde, conforme as diretrizes es- Educação Continuada aos profissionais” (CNS,
tabelecidas pela Carta de Ottawa (OMS, 1986). 2000:47).
Este documento constitui-se ainda em nossos Identificados os pontos de interseção entre
dias um referencial neste campo. Para Can- a educação e a saúde, passaremos a abordar al-
deias (1997), há, no campo da promoção da saú- gumas considerações sobre as práticas educa-
de, uma combinação de apoios educacionais e tivas.
ambientais que visam a atingir ações e condi- Educar não significa simplesmente trans-
ções de vida que garantam saúde. Desta for- mitir/adquirir conhecimentos. Existe, no pro-
ma, práticas educativas adquirem relevância cesso educativo, um arcabouço de represen-
e imperiosidade nas ações de saúde voltadas tações de sociedade e de homem que se quer
para este campo de ação. Essas práticas são o formar. Através da educação as novas gerações
objeto das ações da educação em saúde, que adquirem os valores culturais e reproduzem ou
tem como referenciais as concepções de saú- transformam os códigos sociais de cada socie-
de e de educação pautadas no desenvolvimen- dade. Assim, não há um processo educativo as-
to das potencialidades humanas, no potencial séptico de ideologias dominantes, sendo ne-
de transformação da realidade, sendo integran- cessária a reflexão sobre o próprio sentido e va-
tes dos direitos fundamentais da pessoa hu- lor da educação na e para a sociedade (Lucke-
mana. si, 1994; Saviane, 1985).

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Já discirrida a importância da educação no à reprodução do conhecimento está fortemen-


campo da saúde, torna-se necessária a discus- te influenciada pelo paradigma da ciência new-
são sobre as concepções de práticas educati- toniana-cartesiana. Como conseqüência desta
vas. Essas concepções são norteadas pelas ten- influência, a ação docente é fragmentada e as-
dências pedagógicas, a forma pela qual é com- sentada na memorização, os profissionais edu-
preendido o processo de ensino-aprendizagem. cadores têm dificuldades de utilizar outras for-
Segundo o Ministério da Educação e Cultura mas de ensinar que não a de transmitir conhe-
(MEC, 1997), são dominantes no sistema edu- cimentos. Para Behrens (1999) este tipo de prá-
cacional brasileiro: a tradicional, a renovada, a tica pedagógica ainda é freqüente na universi-
tecnicista e aquelas marcadas centralmente dade brasileira. “O objeto cognoscível de que es-
por preocupações sociais e políticas. se sujeito se apropria, “forma-o” pela incorpora-
Tais tendências referem-se à forma predo- ção não transformada dos conhecimentos ad-
minante pela qual se efetua o processo educa- quiridos. Do ponto de vista da ciência clássica,
tivo, muitas vezes os professores ou os instru- a educação – como formação intelectual – for-
tores de um mesmo cenário educativo podem ma os sujeitos transformando-os em seres a-his-
utilizar processos pedagógicos diferentes e, tóricos, racionais, em que o espaço para os acon-
portanto, haver uma mescla de tendências uti- tecimentos está desde sempre afastado. Trata-se
lizadas. de negar a contingência da subjetividade para
evitar o que ela supostamente seria: uma fonte
de erros ou de perturbações” (Collares et al.,
Pedagogia tradicional 1999:207).
Bordenave (1999) sistematiza as repercus-
Nesta tendência pedagógica, as ações de en- sões dessa corrente pedagógica, tanto em nível
sino estão centradas na exposição dos conhe- individual quanto social, como descrito a se-
cimentos pelo professor. O professor assume guir:
funções como vigiar e aconselhar os alunos, • Em nível individual: (a) hábito de tomar
corrigir e ensinar a matéria. É visto como a au- notas e memorizar; (b) passividade do aluno
toridade máxima, um organizador dos conteú- e falta de atitude crítica; (c) profundo “res-
dos e estratégias de ensino e, portanto, o único peito” quantos fontes de informação, sejam
responsável e condutor do processo educativo. elas professores ou textos; (d) distância entre
Há predominância da exposição oral dos teoria e prática; (e) tendência ao racionalismo
conteúdos, seguindo uma seqüência predeter- radical; (f ) preferência pela especulação teó-
minada e fixa, independentemente do contex- rica; e (g) falta de “problematização” da reali-
to escolar; enfatiza-se a necessidade de exer- dade.
cícios repetidos para garantir a memorização • Em nível social: (a) adoção inadequada de
dos conteúdos. Os conteúdos e procedimentos informações científica e tecnológica de países
didáticos não estão relacionados ao cotidiano desenvolvidos; (b) adoção indiscriminada de
do aluno e muito menos às realidades sociais. modelos de pensamento elaborado em outras
Na relação professor-aluno, prevalece a au- regiões (inadaptação cultural); (c) individua-
toridade do professor, exigindo uma atitude re- lismo e falta de participação e cooperação; e
ceptiva dos alunos e impedindo a comunica- (d) falta de conhecimento da própria realidade
ção entre eles. O professor transmite o conteú- e, conseqüentemente, imitação de padrões in-
do como uma verdade a ser absorvida. Os con- telectuais, artístico e institucionais estrangei-
teúdos do ensino correspondem aos conheci- ros; submissão à dominação e ao colonialismo;
mentos e valores sociais acumulados pelas ge- manutenção da divisão de classes sociais (sta-
rações passadas como verdades acabadas, e, tus quo).
embora a escola vise à preparação para a vida,
não busca estabelecer relação entre os conteú-
dos que se ensinam e os interesses dos alunos, Pedagogia renovada
tampouco entre esses e os problemas reais que
afetam a sociedade. A função primordial da es- A pedagogia renovada inclui várias correntes
cola, nesse modelo, é transmitir conhecimen- que, de uma forma ou de outra, estão ligadas
tos disciplinares para a formação geral do alu- ao movimento da pedagogia não-diretiva, re-
no, formação esta que o levará, ao inserir-se fu- presentada principalmente pelo psicólogo Carl
turamente na sociedade, a optar por uma pro- Rogers e pelo movimento chamado Escola No-
fissão valorizada (Luckesi, 1994; MEC, 1997). va ou Escola Ativa (John Dewey, Maria Montes-
Collares et al. (1999) e Behrens (1999) con- sori, Ovide Decroly, Jean Piaget, Anísio Teixei-
sideram que a prática pedagógica relacionada ra, entre outros) (Luckesi, 1994).

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Essas correntes, embora admitam diver- aprendizagem e na abordagem sistêmica do


gências, assumem um mesmo princípio nor- ensino. Esta pedagogia se concentra no mode-
teador de valorização do indivíduo como ser li- lo da conduta mediante um jogo eficiente de
vre, ativo e social O centro da atividade escolar estímulos e recompensas capaz de “condicio-
não é o professor nem os conteúdos disciplina- nar” o aluno a emitir respostas desejadas pelo
res, mas sim o aluno, como ser ativo e curioso. professor. A prática pedagógica é altamente
O mais importante não é o ensino, mas o pro- controlada e dirigida pelo professor, com ativi-
cesso de aprendizagem. “Trata-se de “aprender dades mecânicas inseridas em uma proposta
a aprender”, ou seja, é mais importante o pro- educacional rígida e passível de ser totalmente
cesso de aquisição do saber do que o saber pro- programada em detalhes (Luckesi, 1994).
priamente dito” (Luckesi, 1994:58). Nesta tendência, a escola funciona como
O professor facilita o desenvolvimento livre modeladora do comportamento através de téc-
e espontâneo do indivíduo, o processo de busca nicas específicas. À educação escolar compete
pelo conhecimento, que deve partir do aluno. organizar o processo de aquisição de habilida-
Cabe ao professor organizar e coordenar as si- de, atitudes e conhecimentos específicos, úteis
tuações de aprendizagem, adaptando suas ações e necessários para que os indivíduos estejam
às características individuais dos alunos, para integrados na máquina do sistema social glo-
desenvolver capacidades e habilidades intelec- bal. A escola atua no aperfeiçoamento da or-
tuais de cada um. O professor estimula ao máxi- dem social vigente (o sistema capitalista), as-
mo a motivação dos alunos, despertando neles a sim, o seu interesse imediato é de produzir in-
busca pelo conhecimento, o alcance das metas divíduos competentes (no âmbito da técnica)
pessoais, metas de aprendizagem e desenvolvi- para o mercado de trabalho.
mento de competências e habilidades. Desta for- Os conteúdos de ensino são as informações,
ma, o processo de ensino é desenvolvido para os princípios científicos, as leis, entre outros,
proporcionar um ambiente favorável ao autode- ordenados em uma seqüência lógica e psicoló-
senvolvimento e valorização do “eu” do aluno. gica por especialistas. É privilegiado no ensino
É uma tendência de ensino do início do sé- o conhecimento observável e mensurável, ad-
culo XX, na qual procurava estimular a curiosi- vindo da ciência objetiva, eliminando-se qual-
dade da criança para o aprendizado. Os jogos quer sinal de subjetividade. Os métodos utiliza-
educativos, por exemplo, foram utilizados co- dos são os procedimentos e técnicas necessá-
mo estratégias de aprendizagem. O ambiente rios ao arranjo e controle do ambiente da apren-
deveria ser dotado de materiais didáticos, esti- dizagem a fim de que seja assegurada a trans-
mulante e alegre, muito diferente do ambiente missão/recepção das informações. A atividade
frio e formal da escola tradicional. O professor de descoberta é função da educação, mas deve
deveria trabalhar com pequenos grupos, de for- ser restrita aos especialistas, sendo sua aplica-
ma que a relação interpessoal dinamizasse o ção de competência do processo educacional
processo de ensino-aprendizagem. Como uma comum (Bordenave, 1999; Luckesi, 1994).
nova metodologia e embora muito difundida As conseqüências da pedagogia do condi-
na época, na prática não se desseminou por to- cionamento ou modelagem da conduta são as-
do o sistema de ensino. Segundo o MEC (1997), sim descritas por Bordenave (1999) :
a idéia de um ensino guiado pelo interesse dos • Em nível individual: (a) aluno ativo, emitin-
alunos acabou, em muitos casos, por desconsi- do respostas que o sistema o permitir; (b) alta
derar a necessidade de um trabalho planejado, eficiência da aprendizagem de dados e proces-
perdendo-se de vista o que se deve ensinar e sos; o aluno não questiona os objetivos nem o
aprender. Essa tendência, teve grande penetra- método, tampouco participa em sua seleção; (c)
ção no Brasil na década de 30, principalmente o aluno tem oportunidade de criticar as men-
ensino pré-escolar (jardim de infância). Até ho- sagens (conteúdos) do programa; (d) o tipo e a
je esta corrente influencia algumas práticas de oportunidade dos reforços são determinados
ensino, com maior destaque na educação in- pelo programador do sistema; (e) tendência ao
fantil, especialmente no campo da orientação individualismo salvo quando o programa esta-
educacional e da psicologia escolar. belece oportunidades de co-participação; (f )
tendência à competitividade: o aluno mais rá-
pido ganha em status e em acesso a materiais
Pedagogia por condicionamento ulteriores; e (g) tendência a renunciar à origi-
nalidade e à criatividade individuais: as respos-
Nos anos 70, proliferou o chamado “tecnicis- tas corretas são preestabelecidas.
mo educacional”, inspirado nas teorias beha- • Em nível social: (a) tendência à robotização
vioristas (Skinner, Gagné, Bloon e Mager) da da população com maior ênfase na produtivi-

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dade e eficiência do que na criatividade e na Pedagogias críticas


originalidade; (b) costumes de dependência de
uma fonte externa para o estabelecimento de No final dos anos 70 e início dos 80, a abertu-
objetivos, métodos e reforços: desenvolvimen- ra política no final do regime militar coinci-
to da necessidade de um líder; (c) falta de de- diu com intensa mobilização de educadores
senvolvimento de consciência crítica e coope- para buscar uma educação crítica, a serviço
ração; (d) suscetilidade dos programas à mani- das transformações sociais, econômicas e polí-
pulação ideológica e tecnológica; (e) ausência ticas, tendo em vista superar as desigualdades
de dialética “professor-conteúdo”, salvo em ses- sociais. Ao lado das denominadas teorias críti-
sões eventuais de reajustes; (f ) dependência de cas, firma-se, no meio educacional, a “pedago-
fontes estrangeiras de programas, equipamen- gia libertadora” e da “pedagogia crítico-social
tos e métodos; (g) tendência ao conformismo dos conteúdos”, defendidas por educadores de
por razões superiores de eficiência e pragma- orientação marxista (MEC, 1997). Decidimos
tismo utilitário. focalizar nossa atenção para a pedagogia liber-
A ênfase nos procedimentos e técnicas de tadora ou da problematização por possibilitar
ensino trouxe distorções no processo ensino- uma prática educativa em saúde mais partici-
aprendizagem, como constata o MEC (1997:31): pativa, direcionada tanto à população, na edu-
“A supervalorização da tecnologia programada cação em saúde, quanto a profissionais de saú-
de ensino trouxe conseqüências: a escola se re- de, na educação continuada.
vestiu de uma grande auto-suficiência, reconhe- Essa aderência deve-se ao fato de que falar
cida por ela e por toda a comunidade atingida, em promoção da saúde é falar sobre incremen-
criando assim a falsa idéia de que aprender não to do poder (empowerment) comunitário e pes-
é algo natural do ser humano, mas que depende soal, através de desenvolvimento de habilida-
exclusivamente de especialistas e de técnicas. O des e atitudes, conducentes à aquisição de po-
que é valorizado nessa perspectiva não é o pro- der técnico (saberes) e político para atuar em
fessor, mas a tecnologia; o professor passa a ser prol de sua saúde, como propõe a Carta de Ot-
um mero especialista na aplicação de manuais tawa (OMS, 1986). Laverack (2001) diz que este
e sua criatividade fica restrita aos limites possí- empowerment está diretamente relacionado ao
veis e estreitos da técnica utilizada. A função do desenvolvimento de programas que promo-
aluno é reduzida a um indivíduo que reage aos vam nas comunidades uma consciência crítica
estímulos de forma a corresponder a respostas sobre sua realidade vivida. O autor considera,
esperadas pela escola, para ter êxito e avançar. ainda, que o método educativo de Paulo Freire
Seus interesses e seu processo particular não são é uma relevante contribuição para estes pro-
considerados e a atenção que recebe é para ajus- gramas comunitários, denominando-o de em-
tar seu ritmo de aprendizagem ao programa powerment education (Laverack, 2001).
que o professor deve implementar”. A pedagogia da problematização tem suas
Esta tendência vem influenciando a forma- origens nos movimentos de educação popular
ção dos profissionais de saúde, tanto que auto- que ocorreram no final dos anos 50 e início dos
res como Cordeiro & Minayo (1997) citam o cli- anos 60, quando estes movimentos foram in-
ente como objeto e não como um sujeito da terrompidos pelo golpe militar de 1964; teve
ação dos profissionais de saúde. Como objeto, seu desenvolvimento retomado no final dos
as ações são centradas no seu corpo, órgão afe- anos 70 e início dos anos 80. Nesta pedagogia,
tado. Apontam que na área de saúde é necessá- a educação é uma atividade em que professo-
rio integrar na formação de seus profissionais res e alunos são mediatizados pela realidade
uma formação humanística. “Quando falo de que apreendem e da qual extraem o conteúdo
formação humanística, refiro-me à necessidade da aprendizagem, atingem um nível de cons-
de se considerar que doente é gente, que gente ciência dessa realidade, a fim de nela atuarem,
não é só corpo, que gente não é só pedaço, não é possibilitando a transformação social.
só órgão. O que estou reivindicando é o centro Na educação tradicional, denominada por
do pensamento médico seja a pessoa e não a es- Paulo Freire (2001) de “bancária”, o educando
pecialidade em si. A especialidade é necessária, recebe passivamente os conhecimentos, tor-
temos que ser técnicos altamente qualificados, nando-se um depósito de informações forneci-
mas tendo incorporado, como parte da ativida- das pelo educador. Educa-se para arquivar o
de, a dimensão do humano, que deveria ser con- que se deposita. A consciência bancária “pensa
siderada nos currículos dos diferentes níveis de que quanto mais se dá mais se sabe”. Mas a ex-
ensino” (Cordeiro & Minayo, 1997:61). periência mostra que neste sistema só se for-
mam indivíduos medíocres, por não haver es-
tímulo para a criação (Freire, 2001). Na educa-

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ção renovada, pretendia-se uma libertação psi- possibilitando a teorização a partir dos fatos
cológica individual, sendo na realidade uma contidos no dia-a-dia, no cotidiano do aluno.
educação domesticadora, já que em nada con- Se a teorização é bem-sucedida, o aluno chega
tribui para desvelar a realidade social de opres- a “entender” o problema não somente em suas
são. Já a educação libertadora questiona con- manifestações empíricas ou situacionais, mas
cretamente a realidade das relações do homem também os princípios teóricos que o explicam.
com a natureza e com os outros homens, vi- Essa etapa de teorização que compreende ope-
sando a uma transformação (Luckesi, 2001) rações analíticas da inteligência é altamente
Nesta pedagogia, o método de ensino é rea- enriquecedora e permite o crescimento mental
lizado na forma de trabalho educativo, atra- dos alunos. Eis, então, outra razão da superio-
vés dos grupo de discussão. O professor está ao ridade da pedagogia da problematização sobre
mesmo nível de importância em relação aos as de transmissão e condicionamento.
alunos, visto que seu papel é animar a discus- Confrontada a Realidade com sua Teoriza-
são. Dessa forma, o método de ensino se baseia ção, o aluno se vê naturalmente movido a uma
na relação dialógica entre os atores da aprendi- quarta fase: a formulação de Hipóteses de So-
zagem, tanto alunos quanto professor. Para lução para o problema em estudo. O aluno uti-
Freire (2001), é através do diálogo que se dá a liza a realidade para aprender com ela, ao mes-
verdadeira comunicação, onde os interlocuto- mo tempo que se prepara para transformá-la.
res são ativos e iguais. A comunicação é uma Na última fase, o aluno pratica e fixa as so-
relação social igualitária, dialogal, que produz luções encontradas como sendo mais viáveis e
conhecimento. aplicáveis. Aprende a generalizar o aprendido
A aprendizagem se dá através de uma ação para utilizá-lo em situações diferentes e a dis-
motivada, da codificação de uma situação pro- criminar em que circunstâncias não é possível
blema, da qual se distancia para analisá-la cri- ou conveniente a aplicação, explica Bordenave
ticamente. Aprender é um ato de conhecimen- (1999).
to da realidade concreta, isto é, da situação re- Este método pode ser aplicado nas práticas
al vivida pelo educando, que se dá através de educativas em saúde, como descreve o estudo
uma aproximação crítica dessa realidade. O de Sonobe et al. (2001), que utilizaram o méto-
que é aprendido não decorre da imposição ou do no ensino pré-operatório de pacientes la-
memorização, mas do nível crítico de conheci- ringectomizados e obtiveram resultados satis-
mento ao qual se chega pelo processo de com- fatórios.
preensão, reflexão e crítica (Libâneo, 1983). Bordenave (1999) aponta as seguintes re-
Bordenave (1999) apresenta o processo en- percussões da pedagogia da problematização:
sino-aprendizado nesta pedagogia utilizando- • Em nível individual: (a) aluno constante-
se do método do arco criado por Charles Man- mente ativo, observando, formulando pergun-
garez, que representa esquematicamente os tas, expressando percepções e opiniões; (b)
passos na Figura 1.
Observamos neste diagrama o processo de
ensino-aprendizagem que parte da observa-
ção de um aspecto selecionado da realidade. Figura 1
Esta observação pode ser através dos próprios
olhos ou, quando isto não é possível, através de Passos do processo de ensino-aprendizagem na
meios audiovisuais, modelos etc. Nesta segun- pedagogia da problematização.
da modalidade de observação, há perdas de in-
formação inerentes a uma representação do re- Teorização
v

al. Ao observar a realidade, os alunos expres-


v

Ponto chave Hipótese de solução


sam suas percepções pessoais, efetuando-se v
uma primeira leitura ingênua desta realidade.
Na segunda fase, os alunos separam des-
v
sa observação inicial o que é verdadeiramente Observação da realidade
importante do puramente superficial ou con- ("problema") Aplicação a realidade
v
tingente, identificando os pontos-chave do pro-
blema ou assunto em questão, as variáveis mais
determinantes da situação. v
Em um terceiro momento, os alunos pas- Realidade

sam à teorização do problema ao perguntar ao


aluno o porquê das coisas observadas. Recor-
re-se, então, aos conhecimentos científicos,

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aluno motivado pela percepção de problemas Considerações finais


reais cuja a solução se converte em reforço; (c)
aprendizagem ligada a aspectos significativos As tendências pedagógicas foram expostas
da realidade; (d) desenvolvimento das habili- aqui de forma sintética. Cada uma delas é pro-
dades intelectuais de observação, análise, ava- duto e expressam uma representação de ho-
liação, compreensão, extrapolação etc.; (e) in- mem e de sociedade. Embora tenham sido
tercâmbio e cooperação com os demais mem- apresentadas em uma seqüência didática e, de
bros do grupo; (f ) superação de conflitos co- certa forma, dentro de um eixo histórico, é im-
mo integrante natural da aprendizagem gru- portante lembrar que elas ainda coexistem em
pal; (g) status do professor não difere do status nossa realidade.
do aluno. Embora haja críticas a cada uma delas, é in-
• Em nível social: (a) população conhecedo- discutível que a prática educativa norteada pe-
ra de sua própria realidade e reação à valoriza- la pedagogia da problematização é mais ade-
ção excessiva do forâneo (externo); (b) méto- quada à pratica educativa em saúde. Além de
dos e instituições originais, adequados à pró- promover a valorização do saber do educando
pria realidade; redução da necessidade de um e instrumentalizando-o para a transformação
líder pois líderes são emergenciais; (c) eleva- de sua realidade e de si mesmo, possibilita efe-
ção do nível médio de desenvolvimento inte- tivação do direito da clientela às informações
lectual da população, graças a maior estimula- de forma a estabelecer sua participação ativa
ção e desafio; (d) criação (ou adaptação) de tec- nas ações de saúde, assim como para o desen-
nologia viável e culturalmente compatível; (e) volvimento contínuo de habilidades humanas
resistência à dominação por classes e países. e técnicas no trabalhador de saúde, fazendo
Como pedagogia crítica, o modelo educa- que este exerça um trabalho criativo. Estas ca-
cional de Paulo Freire tem sido apontado como racterísticas e conseqüências convergem para
uma importante contribuição para a promoção uma sociedade mais democrática em prol do
da saúde, especificamente para a educação em desenvolvimento das potencialidades dos in-
saúde, como pode ser observado nos trabalhos divíduos e coletividade estando em concor-
de Kickbusch (2001), McQuiston et al. (2001), dância com os princípios e diretrizes da Pro-
Nutbeam (2000) e Wang (2000). moção da Saúde.

Referências

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283. Recebido em 3 de setembro de 2002
Versão final reapresentada em 17 de dezembro de 2002
Aprovado em 16 de abril de 2003

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