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"Mas, quando tudo era um sonho,

foi preciso desafiar o mantra e


descobrir que viver disso é
diferente de viver isso. E essa
geração hoje vive isso. Por isso, a
cada dia mais, ela vive disso."
(R. Albuquerque)
SUMÁRIO
I
O ESCOLHIDO

Cada pessoa cursa uma jornada própria e particular; tal jornada é


sua, além disso, pertence a cada um individualmente.
Quando o pequeno e nada grande Joselito disse sim àquela
proposta capciosa a qual lhe propuseram, não imaginava que sua
vida mudaria mais que temperamento de político em época de
eleição.
A vida nunca fora fácil para o rapaz, que desde cedo precisou
abandonar a escola para ajudar no sustento de seus 87 irmãos. Na
casa de pau a pique onde morava e residia, nunca havia espaço para
todos, e o rodízio dos colchões era uma realidade constante.
Sua mãe, Dercy, estava novamente prenha, o que significava mais
uma boca pra comer onde os outros já quase não se alimentavam.
Contudo, Abravanel, seu pai, jamais se preocupava; o assistente de
servente de pedreiro se orgulhava da virilidade e se regozijava com o
apelido que ganhara na pequena e nada grande aldeia onde
moravam. Todos o conheciam como Vavá Benga de Mel, e os homens
faziam de tudo para manter suas esposas longe do portador de
instrumento tão tentador e irresistível.
Aquele dia parecia com outro qualquer. Joselito acordou cedo,
alimentou a Benga de Vavá com a ração de sempre e partiu rumo ao
trabalho, pedalando em sua bicicleta manufaturada com sucata e
mascando uma casca de limão que encontrara em uma lata de lixo
pelo caminho.
O pequeno guerreiro, de corpo franzino, pele ressecada, pernas
arqueadas e sorriso ímpar (só possuía os dentes ímpares), pedalava
por duas horas até chegar à casa de tolerância onde exercia a função
de faz-tudo. Suas tarefas iam da faxina a massagem cardíaca em
clientes que não aguentavam o vai-e-vem frenético das cortesãs em
seu jogo sensual-pirofágico-melodramático.
O garoto pobre não entendia o sexo, mas não estranhava nem se
incomodava com as ereções que eventualmente testemunhava, posto
que se acostumara com o pai caminhando nu pela casa, ostentando
sua benga doce mais em pé que peruca de velha com laquê.
O dia passara ligeiro, nenhum cliente enfartara, e os habituais
berros das "tolerantes" foram até mais parcimoniosos que o
costumeiro. Faltava apenas uma hora para o fim do seu turno, e
Joselito já sentia todo o corpo doer como se houvesse levado uma
surra com o membro palpitante do pai.
Foi quando um cliente particularmente peculiar adentrou a parte
interna do interior do recinto. O homem logo chamou a atenção do
infante faz-tudo. Seu porte era altivo, ostentando uma elegância
como nunca se vira por aquelas bandas. Trajava um terno amarelo
ouro de corte refinado, cartola negra ornada com pluma de cisnes
marítimos e sapatos brancos e reluzentes de bico quadrado e
cadarços dourados. O forasteiro sorria como um escravo alforriado e
seus olhos eram como um par de jabuticabas, mas sem as
jabuticabas.
O novo cliente se aproximou do menino a passos lentos e
ritmados, parecia que estava dançando sobre uma gelatina cor de
rosa sabor morango silvestre, porém, sem a gelatina cor de rosa
sabor morango silvestre. Joselito, que tirava poeira dos móveis com
um pano velho e puído, interrompeu suas atividades e fitou o
estrangeiro, embasbacado. Nunca antes vira alguém tão peculiar.
Aquela caminhada do homem de cartola parecia mais lenta que
qualquer outra, e o jovem faz-tudo sentia um tremor na pélvis que
não sabia o que significava. Depois de um tempo incontável que
Joselito não pôde contar, o homem chegou até ele e, após exibir um
sorriso brilhante de dentes tão belos quanto os de um cachorro,
finalmente se pronunciou:
— Boas tardes, jovem e pequeno cabaço! — disse efusivamente.
Joselito nada disse, encontrava-se tão estremecido pela
estranheza daquele estranho estrangeiro, que os pensamentos
pensantes não pensavam como o pensador que normalmente era
quando pensava pensativo.
— O tigre de bengala comeu vossa língua, infame infante?
— É... — o menino tentou articular uma fala, mas a conversa não
era seu forte, já que vivia entre as meretrizes, e não compreendia a
maioria das obscenidades que elas diziam. — Quem é o senhor? —
perguntou, enfim.
— Oh, que indelicadeza de minha parte — o homem tirou o
chapéu e fez uma reverência bem estranha, tanto que Joselito se
perguntou se o sujeito estava com distúrbios intestinais. — Meu
nome Aldebaran Pirocoptero Metiê.
— Meteu? — indagou a criança, achando aquele nome no mínimo
muito estranho.
— Metiê! — repetiu vagarosamente Aldebaran. — M – e – t – i – ê.
Com circunflexo no “ê”.
— O que é circunfessonuê?
— Não seja burro, pequeno cabaço! E isso não é importante. O
importante é que estou aqui para lhe fazer grandes revelações. Me
diga, pequeno Joselito...
— Como sabe meu nome, moço?
— Oh, pequeno indeflorado, eu sei mais coisas que pode imaginar.
Eu vivo nesse mundo há muito tempo, um tempo mais longo que a
serpente libertina que vive entre as pernas de vosso pai. Mas vamos
ao que interessa. Não deseja saber o que tenho a contar? Não está
curioso?
— Hmmmm... Num sei!
— Ora, bolas! Como pode não saber se está curioso ou não. Mas...
Que seja! Direi assim mesmo, meu bom cabacinho. Vim de muito
longe para encontrá-lo, pequeno. Percorri desertos escaldantes,
mares úmidos e molhados, enfrentei bandidos no caminho e deflorei
fêmeas virgens apenas para obter informações, até que, enfim,
encontrei-o, caro Joselito. Porque você é um garoto especial!
— Eu? Especial?
— Sim, muito especial. O vigésimo sétimo de 88 filhos. Virgem,
ainda que trabalhando em uma casa de prazeres lascivos. Nunca teve
uma ereção, mesmo sendo filho do homem mais viril e bem dotado de
toda a região. Por acaso o infante jamais sentiu que era diferente das
outras crianças?
— Mas o pai falou que sou assim porque ele me cutucou sem
querer com sua vara de fazer neném!
— Oh, como pode o energúmeno ter dito tamanho absurdo? Não é
nada disso, pequeno. Você é diferente porque é especial! Você, pobre
diabo sem malícia e desconhecedor dos deleites do coito, é o
escolhido!
Joselito perdeu a fala, perdeu o ar, perdeu a cor. Perdeu,
simultaneamente, a fala, o ar e a cor. Joselito perdeu tudo. Depois,
seu coração começou a bater como pandeiro de mulata na hora do
melhor da festa, quase triturando suas costelas mirradas sob a pele
ressecada e de pouca carne.
— E... E... Escolhido?
— Sim, pequeno Joselito. Você tem grandes feitos a realizar, e
estou aqui para lhe conduzir a essa maravilhosa jornada.
— É o quê?
— Vou levá-lo para que cumpra seu destino. Para que cumpra o
destino do escolhido. Pois és os escolhido, e teu destino é o destino
do escolhido.
— E pra onde o moço vai levar eu?
— Oh, Joselito, pequeno virginal jamais ereto. Levar-te-ei a
conhecer o mundo! Pois tu és o escolhido, e escolha não tens.
— Peraí, moço. Até agora eu não entendi essa coisa de escolhido.
Escolhido pra mode fazer o quê?
— Claro, como pude me esquecer. Mas aqui não é o local
apropriado para tal conversa. Venha comigo, pequeno cabaço, minha
carruagem está à espera, e então conversaremos com toda a
discrição que assunto tão delicado demanda.
Joselito hesitou; mal conhecia aquele estranho estrangeiro de
vestes estranhas e estranheza peculiar. Contudo, a curiosidade
pipocava em seu âmago, tal qual amantes inflamados na prática do
sexo tântrico. O pequeno tinha medo, estava quase urinando nas
calças mal lavadas e cheias de remendos, mas havia um sentimento
inexplicável que o impelia a seguir aquele sujeito de roupas
excêntricas e fala engraçada. Então, em um rompante de
determinação, o pobre infante estufou o peito como uma meretriz a
oferecer os fartos seios a um cliente amante de uma boa mamadeira
e proferiu com uma imponência que jamais lhe pertenceu.
— Eu vou com o senhor!
Aldebaran sorriu, e seus dentes alvos brilhavam com sua
brancura clara e reluzente.
— Então vamos, garoto, pois o mundo o espera.
E assim saíram da casa de prazeres e rumaram até a carruagem
do curioso sujeito que chegara com tantas novidades e revelações.
II
A REVELAÇÃO

Ao sair do bordel onde trabalhava, Joselito viu o exterior do lado


de fora de forma diferente, parecia que o ar era mais fresco, que o
céu era mais azul e a relva era mais verde. O temor que sentira no
começa se dissipara, e um tipo de alívio tomava seu corpo e sua
alma. A verdade era que o pequeno e pobre faz-tudo de bordel jamais
fora feliz. Sua casa era um local de caos, não sabia o nome de
metade dos irmãos e o pai jamais conversava com ele.
Dercy estava sempre prenha, e nunca trabalhava; o pai dedicava-
se quase que integralmente à fornicação, quando não com sua mãe,
com qualquer outra mulher da aldeia, já que as fêmeas faziam fila à
porta de sua casa para provar o mel que brotava do membro
imponente de Abravanel. No fim das contas, tudo que queria era
sumir daquele lugar e nunca mais ver os 87 catarrentos que
escapuliram das mesmas entranhas que ele. Cansara de ser
explorado por todos aqueles inúteis, e agora teria seu valor
reconhecido e recompensado.
A carruagem de Aldebaran estava a poucos metros da casa de
prazeres, e logo que pôs os olhos nela, Joselito boquiabriu-se; o
veículo era verde-musgo, com desenhos dourados em alto e baixo
relevo. Suas dimensões eram assustadoras, duas ou três vezes
maiores que a casa onde morava. O estrangeiro abriu uma porta
lateral, revelando um estofado aveludado e tão alvo quando seus
dentes brancos e brilhantes.
— Entre, pequeno cabaço. Esta será sua morada durante nossa
fantástica viagem.
Joselito não hesitou, entrou ligeiro na carruagem, sentindo a mão
de Aldebaran espalmar suas nádegas para impulsioná-lo para dentro
da nave. O garoto sentiu um aquecimento estranho nos fundilhos,
além de um pouco de prazer que não entendia. Pensou ser o
problema que tinha com gases intestinais, e que o fazia expelir flatos
de odores mortificantes.
Em seguida, Aldebaran entrou, sentando-se de frente para o
jovem. Joselito fitou o homem, com um olhar curioso nos olhos, mas
nada disse. Apenas mirou os olhos expressivos do estrangeiro e
aguardou pela explicação que ansiava que lhe fora prometida.
— Acho que lhe devo algumas explicações, não é mesmo,
heroizinho virginal?
Joselito não disse coisa alguma, mas assentiu vigorosamente com
a cabeça, como um homenzinho sem braços que tenta se livrar de
uma lagartixa verde folha que caíra em sua cabeça cabeluda.
— Bem, como já disse anteriormente, você é o escolhido. No
entanto, és ignorante a respeito do que isso significa. Para que
entenda, precisamos voltar no tempo. Há milhares de anos, existiu
um deus muito poderoso chamado Nauseabundus. Esse deus viveu
por centenas de milhares de eras, vagando pelo cosmos e dobrando o
tempo para matar o tédio. Um dia, Nauseabundus sentiu-se enfadado
por aquela existência vazia; possuía tanto poder, mas de nada o
servia. Então, o poderoso deus resolveu dividir seu poder supremo
com um humano. Mas não poderia ser qualquer humano.
“Para isso, Nauseabundus escolheu alguém nobre, de coração
puro e corpo casto, e o marcou com o símbolo da rosca. Ficou
definido, então, que a cada 300 anos uma criança nasceria com um
sinal de nascença em formato de rosquinha, e que este seria o
escolhido para se transformar no Menino Dragão.”
— Menino Dragão? — indagou Joselito, impressionado com a
história de Nauseabundus.
— Sim, meu caro. E você tem a marca, não é mesmo?
Joselito sempre teve vergonha da marca escura em formato de
rosquinha que carregava na nádega esquerda. Mas agora que sabia o
que significava, sua vontade era andar sem calças apenas para
ostentar sua singularidade especial.
— O que é um Menino Dragão? Eu vou voar, e soltar fogo pela
boca?
— Quando a transformação estiver completa, sim, vai voar.
Também poderá expelir labaredas flamejantes, não necessariamente
pela boca... Mas isso não vem ao caso. O que precisa saber é que,
para transformar-se no Menino Dragão, ser dotado de poderes
extraordinários e longevidade inumana, terá que completar 5 tarefas
que Nauseabundos lhe atribuirá.
— Tarefas?
— Sim, meu caro ignóbil. Tem que completar as tarefas para ser
digno do poder supremo do Menino Dragão.
— E o que terei que fazer? — indagou o pequeno, preocupado e
amedrontado, imaginando os perigos que por ventura teria que
enfrentar para ser abençoado com o poder do Dragão.
— Tudo a seu tempo, pequeno cabaço, tudo a seu tempo. Agora
tente dormir. Precisa descansar, pois amanhã a grande jornada tem
início.
Joselito estava tomado pela curiosidade, mas o cansaço era
esmagador, e preferiu não reclamar. Logo estava dormindo,
sonhando com as coisas maravilhosas que veria em sua nova vida.
Pois agora tinha um objetivo em sua vida, e seu objetivo de vida era
ascender às alturas mais distantes. Seu objetivo era se tornar o novo
Menino Dragão.
III
A JORNADA SE INICIA

Joselito — ou “pequeno cabaço”, como Aldebaran gostava de


chamá-lo — acordou com as sacudidelas da carruagem de seu novo
mentor. Abriu os olhos preguiçosamente e encontrou um Aldebaran
pensativo. O homem da cartola fitava o lado de fora pela janela, mas
seus devaneios mentais pareciam navegar em mares distantes.
— Onde estamos? — perguntou o jovem desconhecedor das
partes íntimas de uma mulher.
— Oh... Você acordou! — exclamou o homem, demorando alguns
segundos para sair do transe no qual se encontrava. — Também, com
esse pavimento deteriorado nosso transporte está a sacolejar mais
que saco de velho sem cueca.
O pequeno fez um esgar ao imaginar a bolsa escrotal enrugada de
um ancião despido na parte de baixo, ficando intrigado ao pensar
que a sua, que hoje era firme e bem formada, também chegaria ao
estado de maracujá de gaveta.
— Estamos a caminho de sua primeira missão, em um povoado
distante chamado Tretolândia.
Joselito, o menino virgem, esperou que seu interlocutor
prosseguisse com a explanação, mas Aldebaran nada disse, e voltou
a olhar pela janela, como se lembrasse de um amor não
correspondido que culminara em crime passional com direito a
esquartejamento, necrofilia e canibalismo.
— E qual é a tarefa? — indagou o infante, impaciente e ansioso.
— Bem, Tretolândia e governada por um cruel ditador, Avlis Cela,
um homem capaz de esquartejar a própria mãe apenas para ouvir o
som dos ossos partindo. O povo o teme como funkeiros temem
dicionários.
— E a tarefa? — agora Joselito estava com medo, e já sentia algo
pastoso e úmido espalhar-se no interior de sua roupa de baixo.
— Calma, menino cabaço; dir-te-ei o que deverás fazer. Não se
afobe, pois isso é só o começo — Aldebaran tirou do bolso do paletó
uma caixa prateada de onde pegou uma cigarrilha cor de rosa.
Acendeu o fumo e tragou com calma e vigor. — Sua tarefa é bem
simples, posto que é a primeira. Avlis é um ser muito poderoso,
quando irritado, seu corpo chega a medir quilômetros de altura, e
um dedo seu pode esmagar multidões sem muito esforço. Contudo,
toda sua pujança advém de um item muito específico. O ditador tira
seu poder do Baú Sagrado das Tretas Milenares.
— Baú... O quê?
— É um objeto minúsculo, e normalmente fica guardado dentro de
sua cueca. Sua missão é entrar na fortaleza e recuperar o Baú
Sagrado das Tretas Milenares.
— Como vou fazer isso!? — Joselito estava desesperado, sabia que
era incapaz de surrar seu irmão mais novo, quem dirá um gigante de
poderes incomensuráveis. Iria morrer, e bem morrido. — Eu vou
morrer, e bem morrido!
— Acalme-se, jovem casto, tenho tudo sob controle. Há uma
entrada secreta no castelo, e por ser tão poderoso e temido, Avlis
não tem homens sob seu comando, fica sozinho o tempo todo. Farei
com que consiga entrar na fortaleza, bastará que espere até que o
tirano durma e tirar o baú de suas intimidades.
— E se ele acordar? É perigoso!
— Se não houvesse perigo, não seria um desafio. Ademais, precisa
provar que é destemido e corajoso, caso contrário não será digno de
ser o Menino Dragão pelos próximos séculos.
Joselito engoliu em seco. Agora, além da substância pastosa que
se espalhava entre o traseiro e a cueca, o líquido da bexiga também
se esvaia sem pedir permissão, umedecendo visivelmente sua calça
surrada e exalando um odor característico e nem um pouco
agradável.
— Que cheiro é esse? — perguntou-se Aldebaran, puxando o ar
com força para identificar o odor que lhe incomodava o olfato. — Oh,
pelos deuses, o menino se borrou todo! James! — gritou ele,
chamando pelo nome do condutor da carruagem —, vamos parar
agora, o virginal defecou-se e urinou-se inteirinho. E pegue as roupas
novas que comprei, esses trapos inservíveis nunca irão perder esse
cheiro. Por mil demônios! O que foi que comestes para suas fezes
federem tanto? Nem mesmo o enxofre do mundo inferior carrega
odor tão desagradável.
James estacionou a carruagem serenamente, enquanto Joselito,
cabisbaixo, se envergonhava pela exposição tão veemente e
expansiva de sua intimidade orgânica perpetrada pelo seu mentor.
*
Apesar de estarem percorrendo uma região árida e maltratada
pela natureza, havia um riacho de água cristalina e aquecida. Joselito
achou aquilo estranho, mas não pensou duas vezes, logo estava nu,
livrando-se do excremento e do líquido dourado que impregnava sua
pele com odores nauseantes. Enquanto se limpava como se fosse o
primeiro banho de sua vida, o pequeno incauto era observado de
longe por Aldebaran, que fitava o genital encolhido e em nunca
usado do infante.
Aldebaran cessou sua perscrutação ao ouvir um pigarrear forçado
oriundo de James. O condutor da carruagem encarava seu
empregador com um olhar de reprovação, que o mentor de Joselito
recebeu com desgosto.
— Qual o problema, James? Por acaso engoliu uma caixa de
marimbondos?
— Senhor, acho que não é sensato manifestar sua lascívia pelo
garoto tão cedo. Lembra-se do ocorrido com o último Menino
Dragão?
— Não fale bobagens. Estou apenas observando-o. Além disso,
aquela minhoquinha não faz nem cócegas. Agora trate de preparar a
carruagem, logo vamos partir.
*
Após o banho, que a propósito foi delicioso, Joselito vestiu as
roupas novas que lhe foram entregues por Aldebaran. As vestes eram
de um rosa berrante, e o pequeno casto achou que parecia roupa de
mulherzinha. Seu novo mentor apenas lhe desferiu uma palmada nas
nádegas que estalou alto, repreendendo-lhe em seguida por seu
pensamento retrógrado.
O percurso até a fortaleza do ditador foi curto. O pequeno queria
que o caminho fosse mais longo, pois desejava adiar o máximo
possível o encontro que podia significar o término de sua existência.
— Chegamos, jovem cabaço. É por essa parede que adentrarás o
castelo do terrível Avlis Cela.
— Acho que não consigo — sussurrou o pequeno, com a voz
trêmula e o pequeno membro ardendo de segurar o líquido da bexiga
que teimava em buscar o exterior.
Aldebaran fitou o infante com os olhos inflamados de cólera.
Retirou a luva de veludo da mão direita e esbofeteou o rosto do
pequeno com um único golpe. Seus dedos ficaram estampados em
vermelho-rosado na face inocente do jovem cabaço.
— Aaaaai! — berrou o infante, esfregando o lugar agredido na
débil tentativa de aliviar o ardor.
O mentor vestiu novamente a luva e desceu da carruagem.
— Agora venha até aqui e não se comporte como um covarde.
— Mas... Mas...
— Não tem “mas”. Se quer desistir de ser o próximo Menino
Dragão e gozar da longevidade, poder e fortuna, eu o deixarei aqui
mesmo e partirei em busca de um novo escolhido.
— Mas eu tenho a marca! Só eu po...
— Não seja estúpido, virgem inocente! Sempre há uma segunda
opção. Agora, o que vai ser? Vais enfrentar o desafio a ti imputado ou
vai voltar correndo pra mamãe como uma menininha que perdeu as
calças?
Joselito engoliu em seco. Os olhos arderam quando o líquido
salgado começou a acumular, as pernas passaram a tremer e o
esfíncter ameaçava ceder aos impulsos peristálticos de seu corpo
amedrontado.
— Tudo bem — respondeu o pequeno, com a voz falhando e as
lágrimas descendo pelo rosto inocente de quem nunca desfrutou do
prazer genital.
— Ótimo; vamos lá, então.
A criança seguiu Aldebaran até a parede dos fundos da fortaleza.
O muro tinha mais de 12 metros de altura, e era coberto por uma
trepadeira de folhas alaranjadas e espinhos prateados e
perigosamente pontudos. Os dois caminharam pela extensão da
parede até que o mentor parou e apontou para um ramo de flores cor
de burro fugido.
— É aqui. Entrareis por esta falha e deflorarás a fortaleza do
temível ditador Cela.
— Como vou passar pela parede? Aí tem mais espinho que bunda
de ouriço!
— Como és burro, pequeno escolhido!
— Eu não sou...
— Quieto! — vociferou Aldebaran; Joselito quase se borrou. — Há
um buraco na parede, previamente preparado para sua passagem.
Escute-me bem, jovem Menino Dragão, procure o gigante ditador e
retire o baú de suas ceroulas. Seja discreto e tente não acordá-lo,
pois se isso acontecer, você vai ser servido no jantar acompanhado
de salada de flor-de-pica.
Um nó na garganta impediu que o pequeno aventureiro
respondesse. Ele respirou fundo, buscando a coragem que jamais
tivera, e penetrou a cavidade por entre a vegetação, partindo para
uma investida da qual podia voltar em pequenos pedaços digeridos
pelo temível e malvado Avlis Cela.
*
Se o pequeno filho de Vavá Benga de Mel achara enorme a
fortaleza pelo lado de fora, quando chegou ao espaço além-muro, se
impressionou com a magnitude do lugar. Por um breve momento,
esqueceu-se do pavor que forçava seus dejetos a escapulirem pelo
orifício a tal tarefa destinado. Mas logo recobrou a consciência de
que estava ali para cumprir uma tarefa, e devia fazê-lo mais que
depressa, antes que o frágil fio de coragem que o impelia a continuar
se dissipasse por completo e ele pusesse-se a correr como um
animalzinho acuado corre do predador feroz.
Joselito avançou sorrateiramente, tomando cuidado para não
pisar as folhas secas que ora ou outra surgiam em seu trajeto. O
caminho do paredão até a entrada da fortaleza era longo, quando
alcançou o portão principal, sua respiração já era pesada,
resfolegava sedento, como se seus pulmões fossem invadidos por
mariposas de areia.
Depois de recuperar parcialmente o fôlego, o infante analisou
bem as portas duplas de madeira. Eram tão altas que ele tinha
dificuldade de enxergar seu topo. A maçaneta se encontrava a uma
altura inalcançável para o pequeno casto, mas, depois de muito
observar aquela gigantesca porta, Joselito notou um desnível entre
as duas. Aproximou-se bem e percebeu, com alegria, que estava
aberta.
O pequeno cabaço pôs-se a empurrar a porta, mas era muito
pesada. Fez tanta força que a qualquer momento podia ter as
hemorroidas estouradas. Mas, depois de minutos empreendendo
todas as forças de seu ser, o menino foi capaz de deslocar
minimamente a enorme porta de madeira. Contudo, a ínfima
abertura foi suficiente para que seu mirrado corpinho se espremesse
até o interior da construção.
Da mesma forma que a construção era majestosa vista do lado de
fora, seu interior parecia uma taberna suja e fedida a urina nos
confins de Tortuga. Joselito começou a andar pelo enorme recinto,
que quase não tinha mobiliário e cujas paredes pareciam terem sido
construídas por alguém sem mãos e sem pés. Ao fim do
inimaginavelmente extenso salão, uma larga escada, de degraus que
superavam a altura do menino Joselito.
Ele correu até a escada. Para vencer o primeiro degrau, o
pequeno precisou de três tentativas, saltando para se agarrar à
pedra áspera que compunha a rústica escadaria. Dali para frente, a
prática o fez mais hábil, e não demorou para que chegasse ao fim
daquela difícil escalada.
No pavimento superior, Joselito pôde ouvir a respiração ruidosa
do gigante malvado que repousava em paz. O coração martelou-lhe
as costelas finas e o ar sumiu de seus pulmões. O infante só não
liberou o líquido dourado porque sua bexiga já se esvaziara
anteriormente.
Mas o jovem casto não podia desistir agora. E, ao se lembrar das
dificuldades que passou espremido em uma pequena cabana com
quase uma centena de pessoas, além do pai desfilando e cutucando
os filhos com seu membro agigantado, a coragem fluiu em seu
espírito como esgoto em dia de enchente.
Joselito inflou o peito e avançou em uma marcha digna dos
grandes generais, seguindo confiante em direção ao leito do terrível
e cruel Avlis Cela. A cada passo, o ronco que escapava das enormes
narinas do ditador aumentava, e a coragem que acometeu o pequeno
cabaço ia minguando. Contudo, sua determinação perdurou, e ele
avançou até ficar a um palmo de distância do grande homem muito
grande.
Olhando o dono da fortaleza de perto, Joselito não o achou tão
assustador quanto Aldebaran lhe fizera acreditar. Apesar de sua
dimensão agigantada, Cela era franzino, de dedos finos e rosto
angular. Os cabelos pretos eram curtos, e davam sinais de uma
futura calvície, e um projeto de barba sujava o rosto de feição
cansada, contudo jovem.
Vestia uma calça jeans ocultando as pernas de sabiá e uma
camisa preta com a inscrição “Calypso” sobre a figura de uma égua
trotadora. Apesar da respiração sonora, entre roncos e suspiros, o
corpo do malvado ditador quase não se movia.
O pequeno fitou a criatura por algum tempo, até que se lembrou
que a tarefa deveria ser cumprida logo, e quanto mais esperasse,
mais perigoso seria. Então, Joselito decidiu não pensar muito naquilo
e partir para a ação. Esgueirou-se, bordeando o corpo imenso do
enorme gigante grande.
Quando chegou próximo ao umbigo do desprezível monstro
gigante de tamanho agigantado, o menino escorregou em uma
secreção viscosa e com um cheiro que conhecia do bordel, mas não
sabia sua origem. Para não cair, Joselito apoiou as mãos na barriga
de Avlis, e logo o gigante se moveu bruscamente. Contudo, o tirano
não despertou, apenas murmurou impropérios que a criança nunca
ouvira, nem mesmo quando assistiu ao programa Hermes e Renato
na TV do bordel.
O futuro Menino Dragão se recompôs, enxugou o suor que
abundava da testa suada e prosseguiu com seu avanço. No momento
em que, enfim, chegou à barra da calça do dono da Fortaleza, o
pequeno estremeceu. Ao pensar que teria que deflorar as ceroulas da
criatura, lembranças antigas assaltaram-lhe a memória; sofreu ao
recordar de todas as vezes que seu pai lhe castigara por acidentes
causados pelo jeito desastrado de menino. Vavá lhe infligira punições
degradantes, e o pequeno nunca esquecera todas as vezes que
apanhara na cabeça por meio do instrumento petrificado e
intumescido do pai.
Os devaneios do pequeno infante se embaralharam e
esvaneceram assim que o homem de proporções exageradas tossiu
alto, e todo o corpanzil tremeu como as nádegas de Valesca em uma
apresentação artística. Joselito balançou a cabeça, respirou fundo e
pediu a Nauseabundus que lhe desse força e coragem para enfrentar
tão degradante desafio.
O jovem escalou pela cintura do gigante e, em um ímpeto de
coragens, mergulhou nas ceroulas do ditador, mesmo sabendo que
tal viagem podia não ter volta.
*
Escuridão.
O interior da roupa íntima de Avlis era uma total escuridão.
Joselito caiu sentando, sentindo algo macio sob seu traseiro infantil.
O lugar era quente e aconchegante, contudo, o odor que emanava
dali era demasiado nauseante. O menino se levantou, embrenhando-
se em ramos densos que logo percebeu serem os pelos pubianos do
ditador. Aquilo lhe causou certa repulsa, mas manteve-se forte;
afinal, passara por coisas bem mais degradantes na casa dos pais.
Prendendo a respiração para evitar o cheiro genital que lhe
acometia atrevido, o pequeno casto avançou, tateando ao seu redor
em busca do baú, já que nada enxergava no breu instaurado. A
extensão das intimidades do Grande Cela era enorme, e Joselito
passou grande período de tempo a procurar o que viera buscar.
Os minutos foram longos, e vez ou outra o menino sentia o
membro adormecido do gigante pulsar timidamente. De súbito, o
pequeno parou, sentira algo duro e geométrico no tatear das mãos.
— Será que é o baú? — sussurrou para si.
Joselito apalpou toda a extensão do objeto até se convencer que,
de fato, encontrara o Baú Sagrado das Tretas Milenares. Excitado
com a descoberta, o guri apanhou o objeto santificado e agarrou-o
contra o peito, apertando-o firmemente com as duas mãos e os dez
dedos. Agora, bastava encontrar a saída das enormes ceroulas do
monstro adormecido.
Começou a correr na direção contrária, sentindo os super
pentelhos açoitarem-lhe a face púbere. Quando, enfim, alcançou os
limites das cuecas monstruosa do monstro fazedor de
monstruosidades, foi surpreendido por um par de olhos maiores que
as nádegas da mais fogosa das meretrizes do bordel onde trabalhara
até poucos dias atrás.
O garoto que até poucos segundos transbordava felicidade e
sentia-se o mais corajoso dos infantes, agora tremia como um idoso
com Parkinson tentando segurar seu membro enrugado e encolhido
na débil tentativa de acertar o jato urinário dentro da latrina. O
líquido que se acumulara parcamente na bexiga infantil correu
ligeiro pernas abaixo, aquecendo e umedecendo a pele seca e
esticada das pernas finas de sabiá desnutrido.
— Que es tú, cara de cú? — proferiu o dono da fortaleza, sua voz
era como um trovão em um dia ensolarado de sol extremamente
quente e bronzeante.
— E... E... E... — Joselito era incapaz de concatenar as letras em
um vocábulo inteligível. E agora, além da tremedeira e da urina a
empapar-lhe as calças, uma pasta morna se espalhava no traseiro,
fazendo suas pequenas ceroulas penderem para baixo como um
coador de café usado.
— Por acaso comeram vossa língua, pequeno polegar?
— Eu...
— Oh, por Satã e todos os demônios! Que cheiro de merda
horrendo é esse?
Joselito corou, só então percebendo que estava todo borrado dos
dejetos resultantes da digestão.
— O que fazes em minha casa, minúsculo invasor? E por que
estava em minha cueca, pequeno pervertido.
— Não, não... Não sou pervertido! — enfim, Joselito conseguiu
expressar algo em palavras.
— Então por qual razão passeava em minhas intimidades?
— Eu... É que...
— Oh! Viestes roubar o Baú Sagrado das Tretas Milenares! O que
significa que você é O Candidato.
— Por favor, não me mate, oh grande ditador e perigoso gigante
de sotaque cosmopolita.
— Matar? Estás perturbado, pequeno inseto humano? Eu jamais
mataria uma criatura tão inútil e indefesa quanto tu. Ainda mais
sendo O Candidato.
— Candidato?
— Sim... Claro, claro. Devem ter dito O Escolhido. Mas dá na
mesma. Você está tentando cumprir as 5 tarefas para se tornar o
Menino Dragão.
— Como sabe disso? — o medo do Escolhido transmutou-se em
curiosidade e espanto.
— Faz tempo que não colocam O Baú entre as tarefas, mas não é
a primeira vez.
— Então, se não vai me matar, posso levar O Baú?
— Claro, desde que me faça um pequeno favor.
— Favor?
— Você só sabe perguntar, criança? Cale-se e ouça o que preciso.
Joselito assentiu, aguardando calado e ansioso a fala de seu
gigantesco interlocutor.
— Pois bem. Eu vivo sozinho nessa fortaleza há incontáveis
séculos. É raro receber visitas, então me sinto solitário. E um macho
tem suas necessidades, mesmo um quase deus como eu. Vejo que é
casto, não é mesmo, pequeno?
— Casto?
— Quanta ignorância. Vou explicar em termos que entenda. Você
jamais colocou sua manjubinha pra brincar no aquário de uma
amiguinha.
O infante sacudiu a cabeça, negando veementemente aquilo.
Ainda que não tivesse entendido grande coisa.
— E o que quer que eu faça, moço grande?
— Oh, como você é doce. A primeira coisa a fazer e tirar essas
roupas cheirando merda de dragão e tomar um banho. O banheiro
fica no final do corredor à direita. Depois de limpo, siga o corredor
até a última porta, estarei esperando no meu quarto.
Assim, Avlis se retirou, seguindo até seu quarto. Joselito respirou
fundo, e só então notou o futum que advinha de seus fundilhos
borrados de excremento.
— Um banho até que vai bem — disse para si.
*
O banheiro do suposto ditador era bastante luxuoso, com toalhas
brancas felpudas, uma banheira de mármore iraniano e água
cristalina e aquecida descendo em uma cascata reluzente.
O pequeno logo entrou na banheira e sentiu um alívio ao livrar-se
dos dejetos que impregnavam sua pele púbere. Perdeu a conta de
quanto tempo ficou ali, relaxando sob a água morna e sonhando com
sua glória quando, enfim, se tornasse o Menino Dragão.
Findado o delicioso banho, o infante seguiu o caminho indicado. A
porta do quarto do anfitrião estava entreaberta, mas a lacuna era
mais que suficiente para o pequeno Candidato passar. Entretanto, a
visão que surgiu ante seus olhos não era nada do que o jovem cabaço
esperava. Pois, deitado em sua cama, com as mãos entrelaçadas
amparando a nuca e um olhar maldoso e convidativo, Avlis Cela
estava completamente nu.
IV
APÓS A PRIMEIRA VEZ: O GUERREIRO DE PETRÓLEO

Duas horas mais tarde, Joselito saiu pela mesma falha na cerca
viva pela qual entrara na fortaleza do temível Avlis Cela. Andava
devagar, as pernas arqueadas, coxas separadas; parecia que havia se
borrado novamente. Contudo, a expressão de dor e asco estampada
em seu rosto indicava que não era excremento o que lhe incomodava
sobremaneira.
A uma curta distância dos limites da propriedade, Aldebaran se
deliciava com um cachimbo metálico, expelindo pelas narinas
rosadas uma fumaça cheirosa de erva santa. Fitou o menino que se
aproximava lentamente, analisando atencioso o esgar arraigado na
face do jovem. A principio, o mentor nada disse, aguardando que o
pequeno cabaço se manifestasse. Contudo, Joselito permaneceu em
silêncio e, assim que alcançou a charrete onde Aldebaran o esperava,
apenas levou a mão ao bolso e entregou ao homem um objeto
enrolado em um tecido grosseiro.
— É ele? — indagou o adulto.
— Sim — respondeu o pequeno, de forma seca e desgostosa.
Aldebaran abriu o embrulho e fez revelar um pequeno baú
dourado de brilho jamais visto em qualquer metal existente naquele
mundo ou em outros. Um brilho brilhante que reluzia uma luz
iluminada e reluzente.
— Oh, é ele! O Baú Sagrado das Tretas Milenares. Como
conseguiu?
— Não quero falar sobre isso! — emburrado, Joselito entrou na
carruagem e se sentou.
Assim que o traseiro juvenil do menino tocou o assento, uma dor
incrivelmente intensa tomou seu orifício de assalto. O pequeno
levantou-se em um salto, gritando despudoradamente como uma
galinha nova ao sentir a lâmina da dona do galinheiro roçar-lhe o
pescoço recém-despenado e anunciando seu futuro como canja na
panela da dona de casa que cortar-lhe-ia o pescoço sem penas que
acabara de despenar com a mesma ferramenta do corte futuro.
— Ai, caralho!
— O que é isso, pequeno cabaço. Que grosseria!
— Vai se foder! Não é você que está todo arrombado!
Aldebaran riu-se, até deixou o cachimbo cair ao chão enquanto
curvava-se sobre a barriga escarnecendo prazerosamente do pobre
menino.
— Agora entendi, meu jovem. Acho que não posso mais chamá-lo
de pequeno cabaço.
O homem não conseguia conter o divertimento, o que deixava
Joselito cada vez mais furioso. Se possuísse um membro tão possante
e rijo quanto o do pai, acertaria Aldebaran na cabeça com toda sua
força. Contudo, seu pequeno órgão era inofensivo e nem mesmo
conseguia ficar ereto.
— Não tem graça!
— Calma, meu pequeno, calma. Você conseguiu o primeiro item, e
serás recompensado. A dor que lhe aflige passará.
Joselito olhou nos olhos de Aldebaran, e um ínfimo fio de
esperança tomou seu olhar observador, transmutando-se
rapidamente em algo grande e muito maior do que algo pequeno.
— Como assim, recompensado?
— Ora, pequeno ex-cabaço. A transformação em Menino Dragão
não é feita em um passe de mágica quando se termina a quinta
tarefa. A mutação é gradativa. Agora que conseguiu o Baú, passará
pelo primeiro estágio da transformação.
— Hã?
— Espere e verá.
Com o Baú Sagrado das Tretas Milenares em mãos, Aldebaran se
levantou, retirou a cartola da cabeça e depositou-a no solo.
Murmurou algumas palavras em um idioma ininteligível que o
pequeno Joselito não entendia nem tampouco conseguia
compreender como algo inteligível.
De repente, totalmente inesperado, repentino e imprevisto, uma
luz cor de equino escapulidor emanou de dentro do chapéu, tomando
todo o ambiente e perfazendo um clarão escuro e ensurdecedor. A
terra começou a tremer enquanto a luz ia se dissipando
vagarosamente. Foi então que o pequeno predestinado sentiu.
Uma formigação se apoderou de seu traseiro, seguida de uma
queimação dolorida e gostosa. Joselito sentiu seu órgão excretor se
dilatar, o orifício crescer e esquentar. Queria gritar de dor, mas logo
aquilo se transformou em algo deleitoso, como um cafuné carinhoso
nas madeixas ressecadas de sua cabeça alargada. Sua língua travou,
e foi incapaz de indagar ao seu mentor o que estava acontecendo.
Logo o pequeno sentiu sua carne expandindo e sendo moldada a
partir de seu orifício recém-violado. Era um novo membro! A
formação se alongou, rompendo o calção que vestia e se precipitando
imponente para fora.
Quando o processo chegou ao fim, tudo se aquietou, um silêncio
tranquilo e silenciosamente calmo tomou conta do ambiente. Joselito
girou o pescoço e fitou sua nova forma. De seu traseiro saía uma
cauda grossa e comprida, que se afunilava até uma ponta em forma
de seta, tão dura quanto metal ou quanto o instrumento procriador
de seu pai. Era verde e coberta por escamas brilhantes e resistentes.
O pequeno se assustou ao perceber que aquele novo órgão de seu
corpo era articulado, podendo enrolar-se, esticar-se e atacar com
força sobrenatural.
Extasiado, Joselito correu até a árvore mais próxima e desferiu
um golpe certeiro com sua nova cauda. O tronco partiu-se ao meio, e
a copa desabou ruidosa sobre o solo, levantando poeira e espalhando
folhas ressequidas pelo ar. O menino sorriu, pulou, bateu palmas
como um cabeleireiro homossexual ao atender um cliente espadaúdo
de dotes apetitosos.
— Isso é incrível! — gritou o pequeno, que já não sentia mais o
orifício arder. Na verdade, tinha um novo orifício sob a cauda,
escamoso e durinho, que podia ser usado para diversos fins sem lhe
infligir dor alguma.
— Que bom que gostou. Agora vamos entrar no veículo, pois há
um longo caminho pela frente. Ainda temos quatro tarefas a cumprir,
meu pequeno, e não há tempo a desperdiçar.
Com um sorriso espontâneo e largo no rosto, Joselito enrolou seu
novo membro ao redor da própria cintura e entrou na carruagem, tão
feliz quanto uma prostituta quando atende um idoso sem sangue a
bombear seu esquecido órgão reprodutor que só quer brincar com o
par de seios redondos e gostosos da mulher trepadeira.
— E para onde vamos agora, mestre? — indagou a criança,
alegremente e com uma expressão tão imbecil quanto a de um
participante de um reality show apresentado por um jornalista que
acha que os participantes são inteligentes quando não são
inteligentes nem por decreto.
— Agora, meu caro ex-cabaço, vamos visitar uma terra onde o sol
não bate e onde os passarinhos não piam. Vamos para o Mundo Sem
Sol de Lano.
— E qual será minha tarefa?
— Tudo ao seu tempo, criança. Agora descanse para sua próxima
tarefa, na hora certa saberá dos detalhes.
Tomado por uma esfuziante alegria infantil, Joselito apenas
assentiu. Abraçou sua longa cauda como quem se agarra a um pau
de sebo cujo cume ostenta notas de 100 reais e logo adormeceu
como um homem que acaba de ser abusado por 70 virgens
ninfomaníacas.
E aquele descanso era mais que merecido.
*
Quando acordou, o futuro Menino Dragão não encontrou
Aldebaran à sua frente. A carruagem estava parada, e pelas janelas o
pequeno só enxergava uma densa, profunda e plena escuridão.
A criança desenrolou a cauda que envolvia seu corpinho mirrado
e abriu lentamente a porta. As sombras eram tão densas que mal
enxergava um palmo à frente do órgão nasal. Caminhou por alguns
metros praticamente às cegas, apenas tateando o solo com sua cauda
dura e rija. Mas de nada adiantou, pois alguns metros à frente, bateu
de frente com uma árvore que aparentemente não estava ali 1
segundo antes.
— Ai! — o menino levou a mão à testa, sentindo o inchaço recém-
formado.
— Oh, você está aqui — o pequeno reconheceu a voz de
Aldebaran.
— Por que está tão escuro aqui?
— Chegamos ao Mundo Sem Sol de Lano.
— E não podemos ao menos acender uma lamparina?
— Não! Ainda não. Pois Lano, O Guerreiro de Petróleo, pode nos
encontrar antes da hora.
— Quem é esse Lano? E o que terei que fazer nesse lugar escuro
que nem o inferno.
— Não diga bobagens crianças, o Inferno jamais foi escuro. Lá os
rabos queimam incessantemente e as chamas flamejantes iluminam
até no lugar do corpo onde o sol não bate. Vamos voltar à carruagem,
então te explicarei o que deverá ser feito por aqui.
Os dois voltaram lentamente até o veículo. Joselito tropeçou na
própria cauda duas ou três vezes, ainda não se acostumara
plenamente à nova parte de seu corpo. Assim que entraram na
carruagem, o mentor do futuro Menino Dragão cerrou as janelas e
acendeu um tímido lampião. Fez silêncio por alguns minutos,
enquanto o pequeno ex-virgem aguardava ansiosamente pelas
explicações que ansiava.
— Veja bem, pequena criança. Vou te contar tudo o que precisa
saber, e espero que sua coragem não se esvaia após meu relato.
— Vou até o fim — afirmou o pequeno, como se fosse grande
coisa.
— Certo, então escute o que eu tenho a dizer, e não me
interrompa ou sou capaz de fazer minhas necessidades nesse seu
rabo verde que não para de balançar.
— Ok.
— Lano é o último de uma dinastia muito antiga. Por séculos viveu
com seus irmãos do clã dos Kurumins da Tia Carla. Contudo, aos
poucos todos morreram, e apenas Lano sobrou. Desde então, esta
região, onde ele nasceu e sempre viveu, perdeu gradativamente toda
e qualquer fonte de luz, até se tornar escura como o orifício mais
oculto no traseiro de um gorila marchador. Com a perda da Família,
Lano ficou amargurado, se tornando impiedoso e cruel. Para
conservar sua juventude, se alimenta de viajantes incautos que,
desavisados, atravessam por essas terras inférteis.
“Mas Lano tem uma fraqueza: adora comer doce de chuchu.
Então, tudo o que deve fazer é persuadi-lo a lhe entregar sua espada
de osso de lombo de smurf vermelho. Pegue isso — disse o homem,
tirando um embrulho prateado do bolso. — É uma barra do mais puro
e saboroso doce de chuchu de todo o mundo. Mas não deixe que o
Guerreiro de Petróleo lhe tome o doce sem antes ter a espada em
mãos. Caso contrário, ele usará em ti a força dos círculos Kurumins,
e nem mesmo se dispondo a ser sodomizado irá escapar da pujança
viril de Lano.”
Joselito engoliu em seco, fitando o próprio rabo que tremia mais
que vara verde no vendaval do dia do vento na terra das ventanias
ventosas do outro lado do mundo a oeste do lado leste do mundo.
— Como vou encontrá-lo? Eu nem mesmo sei como ele se parece!
— disse o menino, buscando coragem nos orifícios mais úmidos de
sua intimidade espírito-emocional.
— Você deverá levar este lampião — disse Aldebaran, apontando
para o lampião acesso ao seu lado, mas que há pouco não estava
acesso, pois estava apagado, assim, não emitindo qualquer tipo de
luz iluminadora que impedisse a escuridão de tomar todo o ambiente
tornando-o escuro e sem luz. — Mas só poderá acendê-lo quando
alcançar a Clareira dos Quatro.
— Como? — Joselito entendeu tanto quanto você entende as letras
das músicas daquela banda liderada por um sujeito chamado João e
de sobrenome Gordo.
— Eu apontarei a direção, então andarás por 12 quilômetros em
linha reta, sem parar para descansar ou se alimentar. Só assim
alcançará a Clareira dos Quatro. Quando lá chegar, acenda a
lamparina e se aproxime confiante e cuidadoso de Lano.
— Como saberei que é ele?
— Bem, Lano é um ser bem peculiar. Não usa roupas, tem o corpo
de músculos definidos e torneados, pele negra como churrasco bem
passado e não tem aquilo que Adão tinha mas Eva não tinha. Seu
nariz se resume a orifícios pequeninos abaixo dos olhos, que são
brancos como a neve, onde pupilas igualmente brancas como a neve
dão a impressão de que não existem, deixando ver apenas dois
globos brancos como a neve, mas que não são de neve, e podem te
enxergar muito bem, pequeno descabaçado.
— E se ele tentar me matar? Se Lano não quiser me ouvir?
— Seja rápido e mencione o doce de chuchu antes que ele lhe
parta em dois com suas espadas sagradas de osso cortante.
O pequeno engoliu em seco, como se algo desprovido de umidade
descesse por sua garganta sem ajuda de um liquido a lubrificar as
mucosas ressecadas.
— Se estiver em perigo, cante uma canção de amor, talvez ele
durma. Agora, pegue o doce a lamparina e vá. O tempo urge, e todo
segundo é como barras de ouro: vale mais que dinheiro.
Joselito fechou os olhos e fez uma oração silenciosa sem fazer
barulho, ou seja, totalmente em silêncio. Feito isso, apanhou os itens
que lhe serviriam nessa assustadora jornada e saiu da carruagem,
enrolando a nova cauda no corpo e seguindo em frente como quem
busca o fim do infinito num dia escuro de sol de domingo.
Os primeiros quilômetros foram os mais difíceis; desprovido de
calçados para não denunciar sua presença com ruídos de passadas, o
infante teve as solas perfuradas por diversos corpos estranhos, e
sentiu mais dor do que quando fora deflorado pelo gigante da
fortaleza. Com o avançar, seus pés foram ficando dormentes, e o
sangue parou de verter vertinosamente de seus pequenos membros
de cinco dedos a tocarem o solo áspero e obstaculoso. A escuridão
que lhe fazia quase perder o controle do próprio esfíncter, agora se
fazia menos incômoda, visto que os olhos se acostumaram à falta de
iluminação e já vislumbravam formas disformes em forma de
silhuetas borradas como borrões de silhuetas sem forma definida,
contudo bem formadas e distinguíveis tanto a olho nu quanto sem
utilização de aparelhos auditivos que auxiliassem o sentido visionário
dos olhos videntes.
Foi quando a calma ocasionada pela monotonia do movimento
retilíneo uniforme de sua caminhada dissipou-se, dando lugar a um
temor que fazia sua bexiga ansiar por liberar o líquido impuro
contido em seu interior molhado. Joselito avistara a Clareira dos
Quatro.
O pequeno se precipitou vagarosamente clareira adentro, com as
pernas a tremer e o pirulito a encolher. Apanhou os fósforos e, com
dificuldade e relutância, acendeu a lamparina entregue por seu
mentor. A visão lhe emudeceu, e a voz que nada dizia passou a não
dizer nada. Ao seu redor, quatro grandes árvores centenárias
ornavam a clareira de forma sombria e assustadora. Eram de copas
altas e galhos retorcidos, como monstros oriundos de intestinos de
orcs cristalizados em formas rígidas e muito feias. As folhas eram
escassas e ostentavam uma coloração fosca e amarronzada,
características de fezes tardiamente expelidas por sistemas
digestivos de pouca eficácia.
O silêncio era cortante, tão incômodo como seria se a Xuxa
cantasse uma canção da Anita em dupla com Dado Dollabela.
Contudo, a calmaria melindrosa não durou muito tempo, e logo uma
voz surpreendente irrompeu o clima sombrio de banheiro
abandonado de rodoviária do interior.
— Que és tú, estúpido idiota, que adentra meus domínios e ousa
trazer a luz ao meu reino sombrio?
— Doce de chuchu! — gritou o pequeno, expelindo por entre os
lábios tremelicantes as únicas palavras que seu pouco desenvolvido
cérebro prejudicado pelo cagaço1 que dominava seu corpo como um
macho viril domina a fêmea no cio.
— O que disseste, caro atrevido invasor forasteiro?
— Eu tenho doce de chuchu, o melhor de todo o reino. Só quero
fazer negócio com vossa santidade e já me vou embora rumo ao meu
destino distante que não é aqui.
— Quem disse que gosto de doce de chuchu?! — o guerreiro de
petróleo gritou, deixando sua voz anasalada e com um sotaque
irritante da capital carioca. — Vai pagar caro por sua ousadia,
pequeno filho de meretrizes baratas! Irei parti-lo em pedacinhos e
cozinhá-lo com pimenta do reino.
— Não, por favor... — Joselito tentou implorar, mas o guerreiro,
que até então estava oculto sob a sombra da quatro árvores anciãs,
revelou-se no cento da clareira, gritando:
— Cale a boca, criança irritante! Sua hora chegou, vou matá-lo e
depois torturá-lo até a morte! E o farei quantas vezes for preciso até
que você morra!
Joselito tremeu, o intestino trabalhou fora de hora e a bexiga
esvaziou-se como bexiga em festa de criança. O cheiro bateu nas
narinas e a mente fervilhou em temores de morte e dor.
Mãezinha, o que vou fazer?, pensava o pequeno, enquanto
tentava conter a torrente que descia ligeira abaixo na cauda. Foi
quando a mente se clareou e o ex-casto lembrou-se das orientações
de seu excêntrico mentor.
Se estiver em perigo, cante uma canção de amor, talvez ele
durma.
As palavras de Aldebaran ecoaram em sua mente e, tentando
abstrair o medo que lhe borrava as calças, pensou na música mais

1
Sinônimo de “medo do caralho”.
romântica que já ouvira. Limpou a garganta como pôde e emitiu um
gralhar irritante que insistia em acreditar tratar-se de música:

Ai modeuso,
Manda logo aí de riba, um caminhão de ripa na cacunda dela
Tomara que ela pegue tifo, pela vida sifu, e que quebre a
espinhela;
Ai modeuso,
Manda logo esse castigo, ela brigou comigo, e não mais me quer
eu
Tomara que a negócia dela encha de pereba, pra não dar
pr’outros homem o que anteonte era meu.

Após proferir os singelos versos da canção mais romântica e


singela que conhecia, Joselito boquiabriu-se. Apesar da tentativa,
jamais imaginara que algo tão inofensivo poderia conter a ira
homicida de guerreiro tão bravio e malvado.
Lano adormecera!
O candidato a Menino Dragão aproximou-se do corpo dormente
do guerreiro e pôde, pela primeira vez, notar em sua anatomia.
Parecia um striper sem órgão mictor. Ficou por alguns minutos
admirando o corpo de Lano, que era anatomicamente perfeito, e
sentiu um calor agradável na pélvis e sentiu sua cauda enrijecer e
aquecer. Quando libertou-se de seus lascivos devaneios juvenis, fitou
a espada objeto de sua empreitada. Temendo que o perigoso
guerreiro despertasse de seu sono romântico e febril, retirou a
lâmina calciosa da bainha de couro de javali hermafrodita e deu as
costas para o sensual vilão adormecido, pondo-se a correr como um
queniano mal nutrido em uma Maratona de São Silvestre.
Conseguira seu objetivo, e tudo o que queria era provar de sua
nova recompensa.
V
SÁ, A FADA FAZEDORA DE ANJOS

Da mesma forma que o medo fez Joselito seguir até a clareira a


passos lentos e silenciosos, agora fazia o pequeno infante correr
como o Papa-Léguas fugindo do Coiote em um veículo com propulsão
à foguete fabricado pela Acme; contudo, sem o Coiote e sem o
veículo com propulsão à foguete fabricado pela Acme.
O garoto corria como nunca correra, o ácido lático em suas
pernas acumulou-se rapidamente e seu pulmão trabalhava como o
acordeão numa noite de forró mela-cueca. Avançou tão veloz, que
mal acreditou quando enxergou o vulto que representava a
carruagem de Aldebaran. Precipitou-se resfolegando, quase cuspindo
os pulmões em euforia.
O menino bateu na porta do veículo com desespero; ainda que
não tivesse avistado Lano, o guerreiro poderia ter acordado e estar
perto de pegá-lo. Aldebaran espiou para fora por entre as cortinas e,
com dificuldade, conseguiu identificar O Escolhido. Imediatamente, o
mentor abriu a porta e permitiu a entrada do pequeno aventureiro.
Em seguida, ordenou a James que pusesse a carruagem para andar.
O som do lombo dos cavalos sendo chicoteados pelo condutor
parecia música para os ouvidos. Em poucos minutos, estariam fora
dos domínios do Guerreiro de Petróleo, e então Joselito poderia
respirar aliviado.
*
Joselito só soltou a espada roubada quando alcançaram uma área
iluminada. O sol brilhava brilhante no céu iluminado e a escuridão de
minutos atrás era apenas mera lembrança. Assim que se
aproximaram de uma região povoada, James estacionou a carroça e
Aldebaran se dirigiu ao jovem.
— Dê-me a espada, meu caro descabaçado.
O pequeno não hesitou, entregou a espada imediatamente e seus
olhos brilhavam de excitação. Estava assanhado, ansioso por saber
qual seria sua recompensa por cumprir a segunda tarefa.
— Ora, ora... Não é que você conseguiu? Muito bem, pequeno, eu
o congratulo por sua astúcia.
— E a recompensa? — Joselito não aguentou esperar e perguntou.
— Ah, já vai vir.
Aldebaran tirou a cartola da cabeça e colocou-a sobre o assoalho
da carruagem. Introduziu a ponta da espada e todo o resto foi
sugado, como se aquele orifício não tivesse fundo, até que sobrasse
apenas um resquício da luz que brilhou dentro do chapéu. Joselito
observava a tudo com espanto, admirado com aquele acontecimento
sobrenatural.
— Pronto, está feito — disse Aldebaran.
O menino ficou inerte, aguardando a próxima transformação.
Desde que ganhara a cauda, vinha fantasiando ter asas para voar ou
poder expelir fogo pela garganta. No entanto, parecia que nada
mudara. Ele aguardou por algum tempo, mantendo-se calado, apesar
da inquietação em seu íntimo, mas nada acontecia. Por fim, não se
aguentou e perguntou:
— Não vou ter outra transformação?
— Claro que vai, garoto, mas tudo a seu tempo. A segunda
recompensa costuma se manifestar apenas durante a noite. Tenha
paciência. Terá séculos para gozar de suas novas habilidades.
Descanse, vamos viajar até o anoitecer. Nosso próximo destino é
distante por demais.
Joselito murchou como pênis de velho quando acaba o efeito do
viagra. Estava demasiadamente eufórico, e seu mentor jogara-lhe um
balde de água fria. Sabia que deveria dormir, descansar para o que
estava por vir, mas não conseguia parar de pensar na próxima
recompensa, estava tão excitado que até os fundilhos se aqueceram e
uma coceira entre-nádegas o fazia rebolar no assento.
O sol mostrava que não passava do meio dia, e que demoraria
bastante até o anoitecer. Seguiram viagem a galope ligeiro.
Aldebaran adormeceu facilmente, enquanto Joselito conjecturava
consigo mesmo sobre qual seria a habilidade que a nova mutação lhe
traria. Aquelas horas passaram exageradamente lentas, como uma
viagem num ônibus lotado onde você é espremido por dois sujeitos
cheirando a rato morto, enquanto um terceiro ouve MC Ludmila no
viva-voz do celular, chove lá fora e todas as janelas estão fechadas, e
uma criança seminua vomita perto de você.
Mas, após uma tortuosa espera, o sol se escondeu e a noite
ganhou o céu, iluminada pela lua cheia e gordinha. Assim que a
carruagem parou, Joselito prostrou-se à frente de Aldebaran e
começou a sacudi-lo de forma insana. Assustado, o mentor acordou
desferindo uma bofetada no rosto do futuro Menino Dragão.
— Caralho! — gritou o homem, recuperando-se do susto que
tomara. — O que está fazendo, estúpido. Quase me matou de susto,
seu pequeno filho de uma puta!
— Desculpe — disse o menino, voltando a ser um pênis idoso. — É
que nós chegamos, já anoiteceu e...
— A transformação, não é? — o pequeno assentiu. — Vamos
desembarcar, pode acontecer a qualquer momento, melhor que seja
ao ar livre.
Joselito desceu na frente, afoito. Não via a hora de acontecer.
Torcia para serem asas, embora cuspir fogo fosse algo que muito lhe
agradasse. Contudo, teve que esperar um pouco mais. Sentaram-se
na beira da estrada de terra, onde havia alguma folhagem e árvores
próximas. James acendeu uma fogueira e começou a preparar um
assado com o tatu que atropelara mais cedo.
Cerca de trinta minutos se passaram até que a criança sentisse
algo acontecer. Começou com uma formigação, mas dessa vez por
quase todo o corpo, do pescoço aos pés e dos pés ao pescoço. Depois,
a pele esquentou, esquentou muito, até Joselito sentir o corpo
queimar de dentro para fora. Sentia-se como uma tilápia atirada
ainda viva no óleo quente. Parecia que seus órgãos internos
liquefaziam-se, como se cada partícula daquele projeto de
homúnculo se reduzisse a leite de magnésia fervido num fogão à
lenha de cimento vermelho.
De repente, o menino esqueceu-se da dor lancinante que lhe
tomava ao observar pequenas erupções por todo o seu corpo. Viu sua
pele encardida ganhar uma tonalidade esverdeada e as erupções se
organizarem. Aos poucos, a temperatura corporal baixou, até o
infante sentir-se frio como uma pedra. Quando o frenesi do processo
findou-se, Joselito pôde apreciar a plenitude daquela transformação.
Toda sua pele, do pescoço para baixa, havia se metamorfoseado
em uma couraça escamosa, de um verde vibrante e escuro. Era a
mesma textura que revestia sua cauda articulada. O menino nada
disse, mas sentia-se feliz como pinto no lixo. Mas sua euforia se fez
em desalento quando James anunciou que a refeição seria servida, e
todos se juntariam para degustar os restos mortais do tatu
atropelado.
Joselito tentou se sentar, mas parecia estar revestido por uma
armadura sem articulações. Sem conseguir conter a frustração, a
criança pôs-se a chorar como uma presidente do fã-clube do Justin
Bieber. Quando Aldebaran viu aquela cena, quis rir, mas achou de
bom tom não fazê-lo.
— Acalme-se, pequeno ex-cabaço. As primeiras horas são assim
mesmo. A couraça tem que se adaptar ao corpo. Vai ter que comer
em pé. Depois da refeição, James o ajudará a se deitar, pela manhã
seus movimentos voltarão ao normal.
O pequeno tentou enxugar as lágrimas, mas a couraça cobrindo
seus dedos só fez arranhar a pele do rosto, que ainda era humana e
frágil. Com dificuldade, conseguiu se alimentar e deitar-se sobre a
grama. Adormeceu com certa facilidade, orando aos deuses para que
ao amanhecer pudesse se mexer normalmente.
*
Joselito adormeceu incomodado, a posição rígida que a carapaça
lhe obrigara a assumir fazia corpo doer, sentia comichões em regiões
que não alcançava e a bexiga já começava a doer, já que nem mesmo
o pequeno membro conseguia mover.
Mas, contudo, conseguiu adormecer. Logo vieram os sonhos, onde
o menino já completara a transformação e sobrevoava alegremente
os campos verdejantes que bordeavam seu suntuoso castelo de
mármore branco. Sentia o vento gelado lamber suas escamas verdes
e rígidas, e suas toneladas de carne de dragão flutuavam leves como
pluma de ganso que sai dos travesseiros após uma guerra de
almofadas entre duas crianças pequenas e levadas em uma casa
confortável e bonita à luz do sol matutino e ao som de pássaros
cantantes.
De repente, sentiu suas asas encolherem até simplesmente
sumirem, seu voo elegante transmutou-se em uma queda
desengonçada e desesperada. No anseio de se livrar de um destino
obituário, o Menino Dragão se debateu, uma, duas, doze vezes, até
que, sem sucesso algum em sua patética tentativa, caiu num
pequeno lago. Como não sabia nadar, começou a se afogar, seus
pulmões se encheram de água e...
Joselito acordou.
— Acorda, garoto! — Aldebaran gritava, sacudindo o menino com
uma das mãos enquanto segurava seu chapéu com a outra.
Joselito abriu os olhos gritando, ainda pensando estar se
afogando. Aos poucos percebeu que aquilo não passara de um
pesadelo. Levantou-se ligeiro, admirando o sol nascente que brilhava
como uma lanterna de caminhão numa noite fria.
— Vamos logo, não temos tempo a perder.
Aldebaran se dirigiu à charrete, e o menino o seguiu de perto. Só
quando estava prestes a entrar no veículo, Joselito percebeu que
estava andando normalmente. Analisou a própria pele e a couraça
dura estava lá, do mesmo jeito de quando aparecera. Contudo, suas
articulações funcionavam perfeitamente, mobilidade 100% funcional.
Sentia-se mais forte, sentia-se mais bonito. Sentia-se feliz. Muito,
muito feliz. Tanto por estar mais forte, quanto por estar mais belo.
Sem nada dizer, ele entrou na charrete, com um sorriso como o
do Coringa, inimigo do Homem Morcego, mas sem as cicatrizes e a
maquiagem.
— E então, para onde vamos? — indagou o pequeno escamoso, já
acomodado na carruagem.
— Vamos à Floresta das Fadas.
— E o que terei que fazer lá?
— Essa vai ser a mais fácil das tarefas. Terá apenas que procurar
Sá, a Fada Fazedora de Anjos e lhe fazer um favor em troca de um
pouco de pó mágico.
— Que tipo de favor! — diferente das outras vezes, Joselito ficara
entusiasmado com o que ouvira.
— Isso, pequeno impuro, só Sá, A Fada Fazedora de Anjos pode
dizer.
*
Três dias de viagem. A carruagem só parava de correr quando a
noite caia e logo com os primeiros raios de sol, voltava a ganhar os
caminhos tortuosos até a Floresta das Fadas. Enfrentaram
tempestades, sol escaldante, caminhos estreitos e esburacados,
animais famintos e ferozes, locais perigosos cercados de mal feitores,
mas, enfim, alcançaram o tão almejado destino.
O infante estava extasiado; desde que transformara quase toda a
pele em couraça draconiana, se achava um deus dourado
embriagado na sacada de um quarto no segundo andar. Quando
Aldebaran anunciou que haviam chegado, saltou da carruagem como
quem sente o orifício coçar e se levanta às pressas. Fora da
carruagem, encontrou a grama mais verde que já vira. À sua frente,
frondosas árvores formavam um paredão esmeralda, cheio de vida e
odores agradáveis.
Havia apenas uma pequena abertura entre os gigantes vegetais, e
bastou a Joselito que Aldebaran apontasse para que entrasse pela
fissura e desaparecesse entre a densa floresta. A cada passo que
dava, o menino se encantava mais, pois, além das árvores e
gramíneas, uma variedade impossível de flores e frutos pintava o
ambiente com todas as cores do arco-íris.
Adentrando mais profundamente o interior interno floresta
adentro, o pequeno ex-cabaço cruzou com animais de todas as
espécies, todos fofinhos e cheirosos; traziam olhares tão ternos que
fariam qualquer ursinho carinhoso parecer Coração Gelado.
Andou por quilômetros sem fim, mas naquele cenário bucólico e
maravilhoso, parecia que não passara de um passeio gostoso à beira
do Tietê. Foi então que Joselito viu a Luz.
Um ponto a poucos metros do garoto brilhava com uma luz
intensa e maravilhosa. A luminescência tinha cheiro de bolo de
amora com cobertura de chocolate, e aquecia friamente o corpo não
mais esquálido do pequeno grande herói. Então, um canto foi
entoado, e atraiu o menino como num daqueles desenhos animados
onde o personagem é atraído pelo olfato por causa do cheiro bom de
uma bela coxa de peru, porém sem o cheiro e sem a coxa de peru.
Quando, enfim, alcançou a fonte luminosa, sua surpresa que já
era tremenda galgou até o nível Chuck Norris de deslumbramento.
Uma mulher.
Uma linda mulher.
Uma linda.
E era uma mulher
A jovem que, de pé, emitia aqueles fragmentos sonoros que mais
pareciam o assoviar dos deuses, era a visão mais linda que o
pequeno quase Menino Dragão já gozara. Sua pele era branca como
neve, translúcida como um painel de neon. Os cabelos, dourados e
levemente ondulados, cobriam os seios firmes e em forma de pêra;
Joselito vislumbrou uma auréola aparecer por entre os fios
brilhantes, e sentiu um formigamento abaixo do estômago, uma
sensação ambígua que transitava entre o desejo de morder aquela
pele rósea e virginal e a vontade de ter um peitoral maior tão
robusto e imponente em seu próprio corpo.
A fêmea encantadora tinha um corpo perfeitamente delineado.
Não usava qualquer peça de vestimenta, contudo, sua zona do agrião
não era visível, pois uma esfera de luz ocupava seu lugar, como se
emanasse da cavidade entre os grandes lábios. Os pés, descalços,
não tocavam o solo, e o menino achou aquilo inacreditável, posto que
a delícia virginal não possuía asas para a propulsão de sua soberba
carcaça.
— Olá, jovem criança! — soprou a mulher, dirigindo um olhar
hipnotizante ao impuro.
— O... O... Olá — Joselito não conseguia articular a fala, estava
boquiaberto como nunca boquiabriu-se antes. E se continuasse
olhando para a moça, boquiabrir-se-ia ainda mais.
— Como se chama, pequeno menino jacaré?
— Jo... Jo... — a voz embargou, travada na garganta.
— Seja bem vindo à Floresta das Fadas, jovem Jojô. Meu nome é
Sá, A Fazedora de Anjos, e esses são meus filhos.
Tão repentino quanto uma ereção induzida por Viagra, milhares
de pequenas luzes cintilantes brilharam ao redor de Sá. Era como
um bando de vaga-lumes errantes, passeando ao redor da mulher de
beleza arrebatadora. Após alguns segundos, o pequeno herói aguçou
sua visão e conseguiu enxergar as criaturas, que assemelhavam-se a
minúsculas mulheres com asas que assemelhavam-se às asas de
minúsculas borboletas.
— Oh! — foi tudo que Joselito conseguiu dizer.
Sá soltou uma risadinha aguda, bem safadinha. Todas as suas
crias imitaram o ato, perfazendo uma orquestra de risadinhas
safadinhas. Joselito também riu, e nem percebeu o quanto afeminado
se portou ao fazê-lo.
— Há muito tempo não recebo a visita de alguém tão jovem, ainda
sem pentelhos, mas pela aparência de sua pele, concluo que é o
candidato a Menino Dragão.
— Sim — respondeu o pequeno embasbacado.
— Então, meu jovem, diga-me o que necessitas que lhe atribuirei
uma tarefa compatível que lhe provenha o merecimento para receber
a recompensa.
— Eu... Eu... Preciso de um pouco de pó mágico!
— Só isso? — a Fazedora de Anjos surpreendeu-se. — Nunca
pediram nada tão fácil. Infelizmente, não vou poder exigir uma
compensação muito dispendiosa. Vejamos o que pode ser...
A Fada mãe das fadinhas de risadinhas safadinhas mirou o céu
que não podia ser visto devido as copas densas das altas árvores.
Tinha uma expressão pensativa. Matutava com seus 99 neurônios
qual tarefa seria justa em troca de um pouco de pó mágico. Joselito
aguardava ansioso, enquanto admirava a beleza da mulher. Analisava
suas pernas torneadas, sua barriga reta de umbigo sensual, e
imaginava como aquele corpo ficaria bem coberto de escamas
verdes. Após uma longa espera, ele finalmente teve a resposta de Sá,
A Fada Fazedora de Anjos.
— Bem, pequeno candidato. Para conseguir o que viera buscar,
terá que brincar comigo e com meus filhos e filhas.
— Brincar? — Joselito esperava uma tarefa fácil, mas não tanto.
— Mas não é uma brincadeira comum, vamos brincar de dia da
noiva.
— Eu não sei como se brinca disso!
— Não se preocupe, criança, tudo vai dar certo; nós te ensinamos,
não é mesmo, meus bebês?
Nesse momento, as pequenas criaturas luminosas brilharam
ainda mais intensamente, e começaram a se expandir. Segundos
depois, não eram mais pequenos vaga-lumes voando alegres, e sim
centenas de homens e mulheres, nus, que emanavam luminescência
semelhante à de sua genitora.
— Venha — disse um homem brilhante cujo pênis era um bastão
de luz prateada. — Vamos brincar.
— Entregue à beleza viril do filho da Fada, Joselito estendeu a
mão dracônica e se deixou levar pelo estranho por um caminho de
luz que não fazia ideia de onde o levaria.
*
24 horas depois...
Quando Sá dissera ao pequeno candidato que brincariam de “dia
da noiva”, Joselito jamais imaginara que tal desafio fosse tão
desafiador. Após uma longa jornada, o menino recebeu um pequeno
embrulho de papel contendo o precioso pó mágico, e foi libertado
para voltar até onde seu mentor o esperava.
Joselito chegou cabisbaixo, com sua cauda escamosa se
arrastando preguiçosa sobre a relva úmida de orvalho. Quando viu
Aldebaran, não alterou sua marcha, nem mesmo pensava na
recompensa da terceira tarefa.
— O que houve, pequeno? Por que estás tão acabrunhado?
— Toma seu pó — respondeu, emburrado, e entrou na charrete.
Aldebaran o seguiu, mas o menino nada quis dizer. Os
acontecimentos das últimas 24 horas ainda ecoavam em sua mente.
Assim que foi levado pelo batalhão luminoso de Sá, Joselito
adentrou um salão bem iluminado, com paredes almofadas cobertas
por um tecido rosa-pink de doer os olhos. Se antes pensara que o
sacrifício que fizera da fortaleza de Avlis Cela era o pior que lhe
podia acontecer, agora sabia que não.
Dentro do salão rosa-pink, a criança passou por inúmeros e
intermináveis tratamentos de beleza. Alguns eram agradáveis, como
as massagens redutoras de celulites, mas outros foram experiências
aterradoras. Só de lembrar daquela cera quente, Joselito tremia-se
todo. Teve arrancado de seu corpo pelos que nem sonhava existirem.
O pior foi a depilação íntima, aquela cera fumegante que partia do
púbis e ultrapassava o rêgo deixou-o todo ardido.
— Não vai me dizer o que houve, pequeno? — indagou Aldebaran,
removendo a criança das traumáticas lembranças que lhe tomavam a
mente.
— Não quero falar sobre isso.
— Ok, não pergunto mais. Mas... Não está ansioso pela
recompensa?
— Tanto faz.
Aldebaran riu-se. A rabugice em um rapaz tão jovem lhe trazia
divertimento. Já que o garoto não queria conversa, o mentor
desembrulhou o pacote com pó mágico e admirou-se com o brilho
hipnotizante da substância. Apanhou uma pitada entre os dedos e
atirou para dentro de sua cartola.
Uma luz entre o fosforescente e o fluorescente evadiu-se do
interior do chapéu, formando uma fumaça translúcida, como um
lusco-fusco numa noite fria de tempestade. E, então, tudo
desapareceu.
Apesar de chateado, Joselito percebeu que seu mentor utilizara
apenas uma ínfima porção do pó e, antes que pudesse perguntar, viu
Aldebaran ajeitar a substância em uma linha fina, como se quisesse
desenhar com os micro grãos mágicos. Em seguida, o homem
comprimiu a lateral do nariz, tapando uma das narinas, abaixou a
cabeça e tocou a narina livre no pó luminoso.
Aldebaran aspirou toda a substância, até não restar nem um grão.
— O que está fazendo? — esbravejou o candidato.
— Hã? — Aldebarã parecia anestesiado.
— Por que chupou o pó mágico com o nariz?
— Nauseabundus só precisa de um tiquinho, então aproveitei o
resto. Pó mágico dá um barato louco, ex-cabaço.
Joselito bufou, mas estava destruído demais para dizer mais
alguma coisa. Enrolou sua cauda dracônica em seu corpo draconiano
e deixou suas consternações se perderem no mundo dos sonhos.
VI
NA TOCA DO COELHO

Depois da aspiração do pó mágico, Aldebaran também quedou


entorpecido. Os dois, mentor e candidato, despertaram praticamente
juntos. O homem tinha a boca seca e os olhos semi-selados por
secreções oculares. Joselito, por sua vez, sentia-se revigorado. Já não
lhe doía tanto o local da depilação que quase lhe arrancou as
hemorróidas ainda jovens.
Desenrolando-se da cauda espessa que lhe envolvia o corpo
dracônico, o futuro Menino Dragão se espreguiçou, liberando os
gases estomacais comuns ao despertar matutino.
— Ainda não veio? — inquiriu o mentor.
— Não veio o quê? — respondeu perguntando o menino.
— A transformação, criança! Já passou da hora.
— Eu acabei de acordar.
— Bem, estamos quase chegando, espero que isso não demore.
— E aonde vamos, agora?
— À toca!
— Que toca?
— A toca do Coelho Mago!
— E qual será minha tarefa com esse tal Coelho?
— Bem, acho que sua vida não correrá muito risco. O Coelho
Mago gosta de jogos e enigmas, provavelmente fará um desafio de
raciocínio... Pensando bem, talvez seja arriscado para você. Mas
tenha fé, pequeno infeliz, ore para os deuses e os demônios para que
consiga cumprir o desafio do Coelho.
— Duvido que seja pior do que passei com a Fada — resmungou o
garoto.
— O que disse?
— Nada, só pensando alto. Mas, o que devo coletar dessa vez?
— Ah, é uma coisa simples, porém muito valiosa. O Dren’Obar!
— Drenobar?
— É um supositório mágico! Mas não se preocupe com o que seja,
apenas diga que precisa de um Dren’Obar; o Coelho sabe bem o que
é.
— Tá certo, então.
— Bem, já chegamos à cidade. Vamos descer e prosseguir a pé
até...
Aldebaran parou de falar, pois Joselito arregalou os olhos e
começou a se debater como quem comera um enxame por orifício
diferente da boca. De repente, todo o corpo da criança ficou
incandescente, como se queimasse de dentro para fora. O candidato
saiu aos saltos da charrete e pôs-se a rolar sobre o chão de terra
batida.
O mentor, contudo, não se alarmou. Procurou a sombra sob uma
árvore frondosa e ficou a observar o martírio do menino impuro.
Joselito rolou e se debateu por cerca de 20 minutos, até que,
simplesmente, tudo parou. Seu corpo voltou a normal. Seu corpo
voltou à cor verde. Seu corpo voltou à temperatura normal. Seu
corpo, agora verde, voltou a não doer e o menino sentiu-se
novamente forte.
Levantou-se serenamente, caminhou até seu mentor e indagou,
curioso.
— O que aconteceu?
— Você agora possuiu o dom da pirofagia!
— Piro... O quê?
— Agora pode expelir fogo!
— E como faço isso? — perguntou, empolgado como uma travesti
em dia de carnaval.
— Apenas pense e faça.
Joselito parou por um momento. Mentalizou sua mente no fogo,
imaginou a labareda quente e encorpada passando pela garganta
dracônica e saindo bela boca. A princípio, nada aconteceu, mas após
alguns minutos, sentiu um calor interno, o canal se incendiando e, o
suor brotando por entre as escamas da couraça e, enfim, a chama
irrompendo pela abertura.
Fogo!
Contudo, não foi da boca que saiu a labareda destruidora, e sim
de outro orifício. Sob a base da cauda dracônica, uma chama
comprida foi expelida, chamuscando ligeiramente os fundilhos do
garoto. Observando a certa distância, Aldebaran gargalhava como
um louco.
Aquilo não era exatamente o que o pequeno esperava, mas, no fim
das contas, achou divertido de qualquer maneira. Ele estava soltando
fogo! Não importava se era da boca ou do fiofó, o importante é que
ele poderia queimar tudo o que quisesse.
— Agora que já se divertiu — disse o mentor —, vamos andando; o
mago não recebe visitas depois do anoitecer.
*
Caminharam por horas até alcançarem a residência do Coelho.
Aldebaran tinha os pés em frangalhos, mas Joselito parecia estar em
um passeio de escola. Desfilava seu corpo escamoso e sua cauda
comprida com orgulho e sentia-se lindo quando todos o olhavam,
boquiabertos e admirados.
— Chegamos! — Aldebaran anunciou.
— É aqui? — Joselito fitou a moradia; bem diferente do que
esperava.
— Não se engane pelas aparências, pequeno ex-cabaço —
explicou o mentor, apontando o casebre revestido de madeira velha e
cheia de cupins. — Nem tudo é o que parece. Agora vá até lá e bata
na porta.
Joselito estava cheio de confiança, principalmente após adquirir a
habilidade de soltar fogo pela bunda. Aproximou-se e bateu duas
vezes na madeira apodrecida. A porta simplesmente se abriu, como
se uma mão a tivesse aberto, mas sem a mão que abri-la-ia. Olhou
para trás e seu mentor apenas gesticulou para que entrasse. E foi o
que o pequeno fez.
Assim que entrou, a porta fechou atrás de si, tão
fantasmagoricamente quanto abrira. Joselito seguiu por um corredor
escuro por incontáveis metros, contudo, sua pirofagia retal lhe dera
coragem extra que não se dissiparia tão fácil. Ademais, seria apenas
um jogo, sem perigos como quando enfrentou o viril e musculoso
Guerreiro de Petróleo.
Quando, enfim, o caminho se findou, o pequeno aportou em um
salão circular, extenso e de pé-direito altíssimo. Esperava encontrar
um sujeito velho, com chapéu pontudo e capa preta, mas não era
nada disso. O salão estava quase todo vazio, com exceção de uma
tela circular ao fundo, bem no alto. Era tipo aquele telão redondo
que aparece nos shows do Pink Floyd, mas sem o Pink Floyd e sem os
clipes do Pink Floyd e outros vídeos que costumam ser exibidos nos
shows do Pink Floyd.
No telão, a imagem de um rosto era projetada. Um rosto em idade
avançada, cabeça raspada e cavanhaque branco e encorpado. Tinha
feições de alguém levemente bêbado que defecou sem se lembrar de
tirar as calças. O menino nada disse, mas a entidade começou a
conversa.
— O que deseja, candidato? — a voz era levemente irritante, um
pouco anasalada e com um sotaque carioca nada agradável.
— Eu preciso de um Dren’Obar!
— Oh, um Dren’Obar! E por acaso o pequeno descabaçado sabe
ao menos para que serve um Dren’Obar?
— Não, senhor; não sei. Mas não me interessa saber. Preciso
disso para completar a transformação, e cumprirei qualquer desafio
que proponha para conseguir o Dren’Obar.
— Determinação, gosto disso num homem. Se bem que tu és
apenas um franguinho, mas até que dá canja.
— Qual será o desafio?
— Hmmm, senão vejamos. Você demonstra coragem, mas é
visivelmente desprovido de astúcia e qualidades intelectuais. Se quer
levar consigo o Dren’Obar, terá que desvendar 3 adivinhações que
propor-te-ei.
— Tá bom.
— Vamos ver por quanto tempo sua coragem vai durar, pequeno
púbere. Vamos à primeira pergunta.
— Pode mandar!
— O que é, o que é: entra duro e seco, sai mole e pingando?
Joselito pensou. Lembrava-se que o pai vivia fazendo adivinhas
daquele tipo, principalmente sobre mulheres, boquetes e loiras, mas
não entendia bem, e agora não conseguia lembrar-se de nenhuma
delas. Forçou sua mente, buscando lá no fundo alguma informação,
mas nada veio, e quase expeliu involuntariamente uma pequena
labareda retal.
— Cacete!! — exclamou o menino, irritado por ser tão burro.
— Certa resposta! Pelo visto não é tão estúpido quanto aparenta.
Joselito arregalou os olhos, não entendia como tinha acertado se
nem mesmo fazia ideia da resposta. Mas o Coelho Mago não deu
tempo para que conjecturasse acerca do assunto.
— Próxima pergunta. O que é, o que é: nasce como anfíbio e
quando brotam os pelos, muda de nome?
Novamente o infante fez força para descobrir a resposta. Tudo
inútil. Quase perdera o controle do esfíncter na tentativa de fazer
seu cérebro homersimpsoniano funcionar melhor que uma
torradeira. O flato escapou, com pequenas faíscas translúcidas e
multicoloridas. Irritou-se outra vez, e não pôde conter o xingamento
que brotava da garganta, escorregando pela língua áspera e se
espremendo por entre os lábios buscando liberdade.
— Boceta! — praguejou.
— Certa resposta!
— Hã! — Joselito surpreendeu-se outra vez. Entendia aquilo cada
vez menos.
— Terceira e última pergunta. Se acertar, dar-te-ei o tão cobiçado
Dren’Obar. Mas se errar... — o olhar do Mago projetado na tela
pinkfloydiana arrepiou todos os pelos que Joselito não possuía. A
seguir, a entidade gargalhou de forma assustadora.
— O que? — o infante precisava saber.
— Cale-se, menino! Para a terceira pergunta, usarei um versinho
de um grupo obscuro de bardos moicanos. Aí está:
“A mancha no tapete parecia mingau
A mancha no tapete parecia mingau
Mas não era mingau
O que era afinal?”
— Hã?
O menino não acreditou que aquilo fosse a terceira charada. Não
fazia o menor sentido. Aquilo para ele parecia mais estranho do que
o Costinha banguela grávido e pulando corda. Não havia como saber
a resposta de uma coisa assim. Joselito desesperou-se, pequenas
chamas escaparam-lhe pelo orifício sob a cauda. Estava derrotado,
nada lhe sobrara além de uma derrota vergonhosa e o enfrentamento
das consequências àquele fracasso.
— Porra! — gritou, já em lágrimas. — Eu desis...
— Certa resposta! — vociferou o Mago, com a fúria evidente na
entonação da fala e no esgar o qual era sua face agora. — Acertou,
pequeno infeliz.
— Eu... Venci?
— Sim, venceu. Não sei como diabos uma criança tão feia e burra
conseguiu desvendar 3 de minhas milenares charadas, mas você
conseguiu. Sinto-me mal, preciso descansar. Pegue sua maldita
recompensa e não volte mais aqui!
O grito antecedeu a escuridão, pois a projeção circular
desapareceu. Logo depois, luzes botaram do chão, e uma pequena
caixa emergiu de uma abertura retangular a poucos centímetros das
patas dracônicas de Joselito.
O menino se ajoelhou e abriu a tampa de madeira, revelando um
objeto que lhe causou estranhamento. Era uma escultura feita
toscamente em pedra grosseira, tão grande quanto um polegar de
um pé adulto. A criança pegou o objeto e trouxe para perto dos
olhos. Riu ao perceber que ali estavam esculpidas duas nádegas.
Eram nádegas gordas e amassadas, bem feias se pertencessem a
alguém, mas ainda assim nádegas.
Depois de rir um bocado, Joselito guardou o bumbum empedrado
no bolso e correu até a saída. A despeito de ter entrado no casebre
com o sol a pino, e ter permanecido não mais que 15 minutos em seu
interior, já era noite adiantada no lado de fora. Os inúmeros
transeuntes que circulavam mais cedo haviam se recolhido, e os
únicos seres ainda ali eram Aldebaran e James.
A criança bateu na porta da charrete, fazendo seu mentor
acordar.
— Oh! Você conseguiu! — exclamou o homem, como se não
esperasse ver o garoto vivo.
— E trouxe sua bunda!
— Não seja insolente, seu...
— Esta aqui! — disse, estendendo as nádegas em réplica que
ganhara do Mago.
— Ah, claro, o Dren’Obar! — Aldebaran apanhou o objeto e
imediatamente atirou-o dentro da cartola.
Dessa vez, apenas um pequeno estouro seguido de uma fumaça
amarelada e com cheiro de fezes variadas.
— Vamos embora, logo — proferiu o mentor. — Não é seguro
ficarmos por aqui tão tarde assim.
Joselito obedeceu, entrou na charrete e logo estavam se afastando
dali a galope ligeiro. Alguns minutos depois, ainda com o veículo em
movimento, o menino sentiu uma formigação no rosto. Estava
acontecendo! Mais uma transformação.
A pele queimou, e logo começou a mudar de cor, espessura e
forma. Nariz e boca se alongaram, orelhas encolheram, dentes se
projetaram como membros masculinos em uma “Glory Hole”. Se
tivesse televisão na casa de seus pais, Joselito perceberia que aquela
transformação em muito se assemelhava à metamorfose sofrida por
Michael Jackson naquele clipe. Contudo, entretanto, todavia, sem o
Michael Jackson e sem aquela dançazinha descolada.
Não demorou muito para terminar, e dessa vez não houve dor.
Quando chegou ao fim, o rosto de Joselito não lembrava em nada o
original. Era um perfeito e autêntico rosto de dragão. Ele tossiu, e
uma pequena chama se precipitou da bocarra feroz.
— Eu posso cuspir fogo! — entusiasmou-se a criança
— É isso que os dragões fazem, gênio. Mas segura essa sua ânsia,
ou vai acabar incendiando nossa carruagem.
— Eu vou botar pra foder!
Aldebaran revirou os olhos e se virou para dormir.
Joselito estava mais aceso que genitália de michê.
VII
O FANTASMA QUE COMIA PIPOCA

Apesar da empolgação, se vangloriar sem ninguém para assistir


era enfadonho, e logo o quase Menino Dragão se cansou e
adormeceu. No sono, sonhou que sobrevoava vilarejos incendiando
pessoas e animais, destruindo condomínios e castelos com baforadas
inflamáveis. Esbanjava felicidade piromaníaca. Só não matou Joana
D’arc, mas realmente “botou para foder” “de com força”.
Não se lembrava quando o sonho terminara, mas acordou com a
charrete ainda em movimento. Estava descansado e alegre. Sentia
formigamentos e quenturas gostosinhas, e tinha vontade de se
esfregar em algum equino bem dotado. Não entendia o que isso
significava, por isso fez o possível para ignorar, chegando a derramar
um pouco de água nas partes.
Aldebaran já estava acordado, lendo um tomo de capa azul e
branca e com os olhos marejados de lágrimas.
— Que livro é esse? — indagou o menino, curioso como o gato
morto.
— A Culpa é das Estrelas! — respondeu Aldebaran, com um tom
de voz terno, coisa que jamais Joselito ouvira antes. O mentor
enxugou uma lágrima e continuou. — É tão... Não seja curioso,
insolente! — Gritou o homem, voltando ao seu temperamento usual.
— Desculpa. Onde estamos?
— Estamos a caminho de Nyahland.
— Nunca ouvi falar desse lugar.
— Claro que não. Não é um lugar para qualquer um. Lá é a terra
onde vive o grande deus dos dragões, Phanton Phik!
— Ele é perigoso? — Joselito não estava preocupado, pelo
contrario, abundava confiança, mas estava curioso.
— Depende do que considera perigo, menino. E chega de
perguntas, você vai descobrir tudo em menos de 10 minutos.
Joselito se resignou, estava feliz demais com sua nova forma,
principalmente por poder cuspir fogo pela boca e não precisar mais
queimar o fiofó para soltar labaredas. Como dissera Aldebaran, a
viagem estava chegando ao destino, e em exatos 8 minutos, estavam
de frente para uma fortaleza suntuosa e inacreditável. O prédio era
esculpido em pedra bruta e tinha a forma perfeita de um imenso
dragão de 4 asas. O garoto boquiabriu-se, admirado com tamanha
perfeição arquitetônica.
— Vamos descer — orientou o mentor.
Desembarcaram e caminharam até os portões da fortaleza.
Aldebaran olhou para seu pupilo de forma austera, o que fez Joselito
esboçar um fio de tensão. Ficaram parados por alguns minutos,
apenas o silêncio os envolvia em sua aura silenciosa de cálida falta
de ruídos. O garoto já estava bastante irritado quando, enfim, seu
mentor voltou a proferir palavras pela boca.
— Este é o grande momento, pequeno. Será sua última tarefa, e
seu sucesso garantirá sua consagração e longevidade como o novo
Menino Dragão! — fez um gesto teatral, típico dos boiolas. — Agora
vá, e sele seu destino, criança infeliz.
— O que tenho que coletar?
— Tem que obter a benção de Phanton Phik. Para isso, ele te
testará.
— Como?
— Infelizmente, não posso responder a essa pergunta. O que
acontece na sala secreta de Phanton Phik fica na sala secreta de
Phanton Phik. Só quem já foi um Menino Dragão pode responder a
tal questão, e não há ninguém vivo com tais características.
Joselito engoliu em seco, sentindo a garganta aquecer em
chamas, como se o fogo que queimava em seu diafragma quisesse se
libertar para tostar alguns seres vivos. Após quase se borrar de
medo, empurrou os grandes portões de pedra e seguiu em frente,
caminhando sobre uma trilha de paralelepípedos que desembocava
em uma porta entreaberta que dava acesso ao interior do castelo.
Lá dentro, encontrou um salão oval, mais extenso que o membro
reprodutor agigantado de seu progenitor. À sua frente, duas escadas
semicirculares que se encontravam em um mezanino rústico,
contudo elegante. Seguindo seu instinto dracônico, subiu os degraus
até o topo, onde um umbral arredondado dava acesso a um ambiente
escuro. Percebeu, então, que sua última transformação lhe dera a
habilidade de enxergar no escuro.
Caminhou até um trono de pedra que se postava ao fundo, e logo
tochas se acenderam por toda a borda do salão. Viu, então, aquele
que o esperava. Não precisou de apresentações, sabia que era ele.
— Phanton Phik! — boquiabriu-se com a figura imponente que se
precipitava do trono de pedra ao fundo do grande salão bordeado
com tochas recém-acessas.
— Venha a mim, candidato!
A imponência, contudo, contrastava com a voz. Era meio fina,
meio anasalada, como uma imitação piorada do Coelho Mago.
Contudo, Phanton Phik vestia-se com elegância invejável. Uma
jaqueta de couro legítimo, com golas retas e zíper prateado. Calças
Jeans da melhor grife de todo o mundo. Os calçados eram do tipo
tênis, marca Nike, pareciam um pouco grandes, entretanto,
lindamente maravilhosos. Por baixo da jaqueta, uma camisa branca
do Black Sabbath.
Uma camisa.
Branca.
Do Black Sabbath.
Uma. Camisa. Branca. Do. Black. Sabbath.
O deus se levantou, fitando o pequeno meio dragão com atenção e
seriedade. Aquele olhar era enigmático. Tanto podia significar “vou
te testar” quando podia significar “vou te pegar, essa é a galera do
avião”. A entidade caminhou ao redor do pequeno futuro Menino
Dragão, até que estacou à sua frente e sorriu maliciosamente.
— Está pronto para o teste, criança?
— Sim... Sim, senhor!
— Tem certeza que deseja realmente ser o próximo Menino
Dragão?
— Sim! — respondeu com firmeza.
— Ainda há tempo para voltar atrás. Se quiser desistir agora,
posso reverter a transformação e Aldebaran o levará de volta para a
casa.
— Não! — gritou, decidido.
— Deve entender, rapaz, que quando tudo era um sonho, foi
preciso desafiar o mantra e descobrir que viver disso é diferente de
viver isso. E essa geração hoje vive isso. Por isso, a cada dia mais, ela
vive disso!
Joselito não entendeu bulhufas, aquilo era mais estranho que os
clientes do bordel quando bebiam demais e ficavam dizendo absurdo
e chamando a mãe para lhe limparem as fezes no entrenádegas.
— Entende o que eu quero dizer? — indagou Phanton Phik.
— Sim, senhor. Entendo claramente.
— Pois bem, vejo que está decidido. Que comece o teste!
Nesse exato momento, luzes de neon brilharam no teto; uma
cortina dourada despencou por detrás do trono e um púlpito de vidro
emergiu do chão à frente do deus. Sobre o púlpito que emergiu do
chão à frente do deus, uma porção de fichas brilhantes cujo verso
estampava um pequeno dragão minimalista e a inscrição “SHOW DO
PHIK” em fonte Arial, corpo 72, caixa alta e negrito.
— Vamos à pergunta que vale 1000 reais!
— O que? — indagou Joselito, não entendendo que “porra era
aquela”. Phanton ignorou-o.
— No filme “Stallone Cobra”, de 1986, o protagonista e
personagem principal diz a seguinte frase: “ Você é uma doença, e eu
sou a...”
a) Culpa
b) Chuva
c) Luva
d) Cura
Joselito pôs-se a pensar. Ao menos as perguntas eram de múltipla
escolha. Pensou até seus neurônios pegarem fogo e, por fim, decidiu
chutar uma alternativa.
— Cura!
— Certa resposta! — indicou o deus e apresentador. — A próxima
pergunta vale 2000 reais! Lembrando que o candidato não tem
direito de pular, não pode pedir ajuda às placas nem aos
universitários, e se errar, vai se foder bonito!
O menino engoliu em seco. Ultimamente engolia tanto em seco
que sua garganta parecia a cidade de São Paulo.
— Pergunta número 2. What does Marcellus Wallace look like?
a) Black
b) White
c) Bitch
d) Careca
A criança começou a suar por entre as escamas. Não entedia
aquela língua, o que deixava impossível de responder. Mas ele sabia
o que fazer. Estendeu a mão e “numerou” mentalmente os 4 dedos de
“a” a “c”, então começou a escolha.
Uni duni tê, salame minguê, o sorvete colorê foi esse da...
— Letra número C! — respondeu, como se houvesse convicção na
resposta.
— Certa resposta! — gritou o deus, sorridente como um psicopata
galã. — Pergunta valendo 3000 reais! Na formação clássica do grupo
de super-sentai Power Rangers, qual animal é representado pelo
ranger preto?
a) Mastodonte
b) Tiranossauro
c) Triceratops
d) Pterodátilo
Porra do caralho, pensou Joselito. Não fazia ideia do que eram
esses tais pauer renger. Sem opções, decidiu levar adiante a
estratégia do uni-duni-tê. Fez a contagem e respondeu.
— Letra número A.
— Certa resposta! Você é bem esperto, garoto. Ou tem uma sorte
da porra, não é?
*
Uma hora mais tarde, Joselito já havia perdido as contas de
quantas perguntas respondera. A técnica, por incrível que pareça,
deu certo em todas elas.
— Você foi muito bem, pequeno. Agora, vem a prova de fogo. A
última e derradeira pergunta, valendo o grande e cobiçado prêmio: a
minha benção!
Palmas e risadas ecoaram de alto falantes que Joselito não notara
anteriormente
— Está preparado?
— Sim! — Joselito tremia por dentro e suava por fora, como uma
metáfora de si mesmo, no passado que antecede o presente que
antecede o futuro, e vice-versa.
— Vamos lá! Quem é o pai de Luke Skywalker?
a) Darth Vader
b) Kid Bengala
c) Mister Catra
d) Fabio Júnior
O menino tremeu feito vara verde. Não sabia a resposta, claro;
mas não podia errar, pois aquele momento não seria objeto de
segunda chance. Pela primeira vez na vida, Joselito respirou fundo e
seu cérebro se oxigenou, sentiu uma dor aguda no crânio e a cabeça
inteira latejar. Aquilo era algo inédito em sua vida. Aquilo era
incrível.
Aquilo se chamava raciocínio.
Joselito começou a pensar, analisar os nomes, e percebeu uma
similaridade entre eles, com exceção de um. Então, respondeu pela
primeira vez com convicção.
— Letra A!
Um silêncio quieto tomou conta do recinto. As luzes suavizaram e
Phanton Phik assumiu um ar soturno. Mas aquilo não durou muito, e
logo o deus gritou efusivamente.
— Está certo!!!! Você ganhou!
Uma chuva de papel dourado despencou do teto inalcançável e se
derramou sobre o vencedor. Joselito custou a acreditar, e quando se
deu por si, lágrimas de alegria brotaram dos olhos e escorreram pela
tez dracônica. Em seguida, pulou de alegria, soltando labaredas
acobreadas pela boca e pelos fundilhos.
Logo sentiu uma queimação nas costas, a couraça se resgando em
dois pontos simétricos. A carne se expandiu, se moldou e se cobriu
de escamas verdes e rijas. Não demorou para se fazerem vistosas as
duas asas em suas costas.
Phanton se aproximou do recém-abençoado Menino Dragão e lhe
beijou a fronte, sussurrando algo em seu ouvido dracônico.
— Gostoso — foi o que Joselito ouviu.
Até que ele gostou.
CAPÍTULO FINAL
GLÓRIA EM CHAMAS

Dois meses depois.


Após concluir as 5 tarefas e ser consagrado o novo Menino
Dragão, Joselito foi presenteado com uma enorme extensão de terra
de reforma agrária, com um imponente e imenso castelo que o
abrigasse, além de animais de toda a sorte e súditos a lhe servirem.
Ele voava sobre sua propriedade, divertindo-se com os pássaros,
vez ou outra tostando um deles ou lançando labaredas nas ovelhas
que pastavam distraídas. Fazia aquilo todos os dias, depois voltava
para os seus aposentos, onde comia carne de mamute crua e era
massageado nas escamas por odaliscas metade mulher metade vaca.
Naquele dia, sentia-se especialmente animado. Aquela vida era
perfeita, e estava cada vez mais feliz. Transbordando seu regozijo de
vitória, pensou que seria divertido incendiar algumas árvores só para
vê-las queimar e tombar sem vida.
Desceu em rasante rumo à floresta que ainda fazia parte de sua
propriedade. Embrenhou-se até encontrar uma clareira. Ali estava
perfeito. Já era outono, e as árvores abundavam folhas secas. Fitou-
as por um momento e, em seguida, liberou as línguas de fogo que
saiam da boca e do fiofó. Girou 180 graus, repetindo o movimento
nos dois sentidos diversas vezes, até que dezenas de árvores
estivessem ardendo em chamas.
Estava feito, era hora de voltar para casa e fazer a refeição, mas
aquela visão era tão deslumbrante que Joselito não podia deixá-la
para trás sem admirá-la um pouco mais. As chamas dançavam como
as meretrizes do bordel onde outrora trabalhara como faz-tudo,
perfazendo movimentos sensuais e hipnóticos. O fogo brilhante era
refletido pelos globos oculares dracônicos, aquecendo corpo e alma.
Porém, muito repentinamente, uma das árvores despencou,
projetando um dos galhos na direção do Menino Dragão. O
fragmento ardia em chamas compridas e violentas e logo o fogo
tomou também o corpo de Joselito. Foi tudo tão rápido que o menino
não teve tempo para evitar, logo o fogo consumia todo o seu corpo. O
dragão se debateu sobre o solo, chamando pela mãe, pelos animais,
pelos súditos. Mas ninguém apareceu.
A dor lhe consumia as entranhas e nem mesmo a grossa e dura
couraça era capaz de arrefecê-la. Aos poucos, Joselito foi perdendo
as forças, e os movimentos bruscos passaram a ser débeis e tímidos.
O fogo continuava torrando a carne, carbonizando órgãos e
derretendo as escamas. Contudo, agora o Menino Dragão sentia frio,
como se dormisse ao relento em uma noite de inverno. O corpo ficou
dormente, e logo parecia não existir.
Joselito era apenas consciência.
Mas não por muito tempo, pois o fragmento de racionalidade que
restava foi se apagando como o resto do fogo que terminava de
carbonizar sua carcaça já sem nenhuma gota de vida.
Antes de perecer completamente, o menino lembrou-se de tudo
que vivera até ali. As aventuras, as tarefas; lembrou-se também do
bordel, das mulheres quase nuas e dos homens quase eretos. Por
último, recordou da família, de todos os irmãos que agora se
esquecera o número, da mãe sempre grávida, e do pai – seu querido
pai — a lustrar seu membro viril enquanto escutava Amado Batista
em seu velho rádio de pilha.
Agora que tudo chegava ao fim, começava a se arrepender de ter
abandonado os seus, pensou no quanto o pai devia estar triste e
percebeu que por trás da alegria de dragão, sentia saudades de seu
genitor. Sentia muita saudades.
Assim, Joselito reuniu o último sopro de vida que ainda habitava
sua carcaça moribunda e proferiu, olhando para cima, palavras
sussurradas que, acreditava, chegariam ao grande e venerado
Nauseabundos.
— Pai, no céu tem benga?
... E morreu.
*FIM*

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