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Marilá Dardot Magalhães Carneiro A obra de Marilá Dardot baseia-se

nasceu em Belo Horizonte-MG, em 1973. em alguns pressupostos. Em primeiro


Formou-se em Comunicação Social pela lugar, apoia-se numa crença ferrenha
na escrita como gatilho humanístico
UFMG, em 1996. Cursou Artes Plásticas na
e afetivo que nos reposiciona diante
Escola Guignard, na mesma cidade, de 1997 a
de nós, dos outros e do mundo. O
1999. Iniciou, em 2001, mestrado em
ângulo escolhido não resvala no
Linguagens Visuais no programa de
esmiuçamento da linguagem e do
pós-graduação da Escola de Belas Artes da discurso pelo viés estruturalista ou
UFRJ, Rio de Janeiro-RJ. mesmo pós-estruturalista, mas na
capacidade poética das fissuras,
das pausas, da volumetria e da
sensualidade do universo da escrita
(o livro como objeto de desejo e de
afeição, capítulos, espaçamentos
dos textos, o sentido dos textos,
coleções de palavras e de frases).

Cristiana Tejo em
Escrita, Afetividade e
Colaboração

“Pouco a pouco”, de Marilá Dardot, sob


curadoria de Glória Ferreira, trouxe, à
Galeria Laura Alvim, um charmoso centro
cultural do Rio debruçado sobre a praia de
M A R I L Á D pAo u Rc o Da pOo u cTo
Ipanema, obras de instalação, vídeo, pintura
e escultura, tendo como eixos principais a
cor, a geometria, o tempo e a literatura.
Junho-agosto de 2014.
frases que tivesse a palavra silêncio, quando eu estava lendo o livro que deu
origem ao filme do Kubrick: De olhos bem fechados. Daí, eu gostei muito

Estou aqui.
de uma frase que tinha a palavra silêncio. Acho que virou uma obsessão
ocasional e eu passei a anotar frases que tivessem a palavra silêncio nos
livros que eu lia. No começo eu não sabia o motivo pelo qual eu anotava.
Eu fui percebendo que o silêncio pode aparecer em qualquer ocasião:
calma, inquietante, aterrorizante. E essa característica me interessou
Insônias, deslocamentos, silêncios, páginas:
A atitude artística de Marilá Dardot aponta para o reavivamento de um outro tempo: de suspensão, de doação, de muito. Com isso, eu fui classificando os tipos de silêncio que eu ia lendo:
arquivos de arquivos. É preciso revirá- los.
afeto, de contemplação, de degustação no mais amplo sentido, de humanidade, em suma. É um contraponto a silêncio e morte, silêncio e casal, silêncio e amor. E eu ainda os coleciono.
A poética de Marilá Dardot constitui-se
O arquivo continua, eu não resisto. Esse é um caso especial”, conta. No
em um território movente, que se espraia uma sociedade do desapego, do descartável, do imediato, da histeria, do medíocre e do individualismo.
que toca a produção de Marilá Dardot, propõe-se um vínculo da noção
por meio das ressonâncias entre as artes
de arquivo à de coleção benjaminiana, em certa medida. Associa-se esse
visuais e a literatura. É por essa paisagem
procedimento a um encantamento pela
de hibridismos que foi possível reativar a
relação de propriedade com coisas, que não
rede de criação da artista, com um olhar
apresentam, pelo menos aparentemente,
processual, observando como se dão os seus
uma serventia imediata, a não ser o fato
procedimentos de criação.
de colecioná-las, detê-las e simplesmente
Marilá Dardot não escreve. Prefere atuar arquivá-las para demonstrar seu afeto
nas entrelinhas que já foram abertas e fazê-las renascer. Posse é a relação
pela literatura. Melhor que fundar uma mais íntima “que se pode ter das coisas:
para a frente com cuidado, espremendo-se
literatura, é reagir à vida, de dentro dela. não que elas estejam vivas dentro dele
de encontro à grade de palavras, até a
Melhor que construir uma cidade, é tentar [o colecionador], é ele que está dentro
matéria do corpo se fundir à matéria das
alguma intimidade com os habitantes das delas” (Walter Benjamin). Depois de
palavras e ultrapassá-las pelo ato de sê-las
que já existem. Melhor que moldar uma adquiridas, as coisas colecionadas entram
ao menos por um instante. Marilá Dardot
lua, é inventar uma NASA. Dardot atua, numa espécie de limbo inútil. Pois bem,
aprendeu esta técnica, que nos disponibiliza
como artista, no branco que sobra do para o “artista arquivista”, como Marilá
em suas obras, com os fantasmas que
papel escrito, nos adjetivos cortados pelas Dardot, há um passo adiante. Enquanto
ultrapassam paredes e, por isso, se divertem
revisões, nos instantes dos textos indicados há avidez pela busca, a artista encontra-se
mais. Quando nos convida para uma
à respiração, no parágrafo onde o escritor ansiosa, e as coisas colecionadas ainda
confraternização qualquer dentro da região
solta a mão do leitor e o abandona. Ela não se relacionam, são estranhas umas às
literária onde vive, Dardot propõe que a
conforta leitores abandonados.Marilá outras - o suave tédio da ordem ainda não
encontremos por acaso ao perambularmos
Dardot se locomove no espaço das palavras. as envolve. Quando a busca cessa, o arquivo
pelas obras que faz. É um jogo: sempre que
Para os espaços vazios e abertos, entre de objetos parece exigir reformulação
a encontramos numa destas obras, Marilá
uma letra e outra, Dardot nos ensina a e relações. Os objetos escolhidos e
Dardot de repente desaparece em nossa
encolher a barriga, tomar cuidado com editados são como uma matéria-prima
frente para, misteriosamente, reaparecer
a ponta das serifas, deslizar o corpo e transformável. A artista formula a
no próximo capítulo. O livro que Marilá
passar sem atrito pelos vãos; nos espaços expressão que ajusta a ligação e a relação
Dardot jamais escreverá já existe. Está
preenchidos e ocupados por letras, Marilá na coleção, é o que Walter Benjamin
espalhado nas milhares de páginas por
Dardot aconselha-nos a projetar o corpo chama de “a existência do colecionador
onde a artista transita, para, olha para trás
e, em silêncio, nos joga um aceno. Talvez [e também, por analogia, a do “artista-
a artista não acredite num livro universal, colecionador” que é uma tensão dialética
coletivo, sendo escrito aos poucos. É bem entre os pólos da ordem e da desordem]”.
provável que Dardot prefira acreditar Assim, é possível observar que na poética
numa realidade universal, coletiva, em de Marilá Dardot, a formação de arquivos,
que há a participação de outras pessoas
na transformação, no desenrolar ou na O livro das mil e uma noites (2014)
criação, e que é vivida aos poucos. Escultura
Livros de capa dura
Essa realidade coletiva começou por seus encadernados com tecido
arquivos: “Eu comecei um arquivo com 40,5 cm × 47 cm × 33 cm

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como processo autoconstitutivo e provedor
de obras, também depende de um outro
procedimento: a edição. Seus arquivos
provenientes de leituras, de registros, de
anotações particulares pressupõem inscri-
ções, marcas, impressões a serem decodifi-
cadas, interpretadas e remanejadas. Esses
processamentos e reorganizações de arqui-
vos da artista podem ser entendidos como
traduções intersemióticas, por efetivarem
uma relação entre passado e presente,
que atualiza os elementos do arquivo; um
diálogo crítico-criativo; e também por se
caracterizar como uma prática de produ-
ção de efeitos, de transmutação criativa de
uma linguagem em outras possibilidades
de linguagem.
A partir desse breve inventário sobre os
livros de artista de Marilá Dardot, pode-se
observar que há um exercício constante de
indagações e de exploração de visualidades
e de coletâneas de referências. A artista age
em regiões deslizantes inventivamente para
buscar novos investimentos em outras linhas para mim. Eu realmente penso em arquivo
de fuga até o limite, quando é tempo de como um procedimento. É quase que nem
outras reinvenções. É como se os arquivos, o Marcel Broodthaers: depois de cumprir a
que a artista monta, fossem frequentemente missão da obra, a coleção acaba”, explica
revisitados, vasculhados entropicamente. a artista. A artista não inicia a formação
Nessa outra mirada, seus componentes de um arquivo com uma intenção pré-
podem ser reorganizados, gerando princípios estabelecida. Os interesses surgem em
direcionadores para obras. situações novas e a coleção vai agrupando
elementos ao longo de um tempo, sem um
É preciso pontuar que a artista não forma
desejo de transformação em obra. Para ela,
arquivos como uma ação estética. Seus
são acasos: acontecimentos ou elementos
arquivos são casuais e fazem parte de um
que entram no caminho e começam a fazer
percurso de criação, são procedimentos
parte de interesses.
detonadores de produções visuais. “Eu
não acho que arquivo é uma obsessão “Mesmo que o arquivo não exista
Verde, Paulo (2013) fisicamente, mesmo que não se tenha
Série
clareza dessa organização, todo mundo
Impressão mineral sobre papel Matt Cotton trabalha com arquivos mentais. O homem é
Smooth e pintura em tinta gouache Talens homem porque organiza. Selecionar, separar
sobre papel, passepartout, moldura e parede
e juntar é constituição de pensamento, é
48 cm × 66 cm (moldura)
58 cm × 76 cm (com pintura na parede)
recorrer a arquivos. Eu recorro a várias
espécies de arquivos. E eu guardo coisas
naturalmente, não fico me forçando a
olhar para tudo e enxergar um possível
arquivo. Às vezes, acontece e vira obra,
mas não é só formar arquivo e a obra
aparece”, esclarece a artista.
As transformações de arquivos e a
contribuição/participação do “outro” (seja
esse outro os autores dos seus livros, os
seus amigos ou o público de exposições,
para compor seus arquivos ou para acionar
20 seus trabalhos) apontam para mecanismos 21
sugestivos que o livro guarda em si - o
potencial de participação do leitor-usuário
para folheá-lo. Apontam também para
o livro como nobre depositário de um
arquivo organizado para leitura. O livro e
as relações desencadeadas pelo convívio com
esse universo são observados e explorados
por Marilá, em um processo de formação
de repertório e de potencialização de
livros de artista. A artista opera desvios e
aproximações do ambiente “biblio-literário”,
estetizando características já enraizadas em
seu imaginário. Num movimento constante
de releitura e redesenho, Marilá usa seus
repertórios como/em arquivos, formatações
visuais, instalações, proposições, ações,
objetos, narrativas.
O livro é discurso artístico: nas significações
retidas de suas leituras, nos arquivos de
anotações e citações criados, é procedimento
e método de construção. Enquanto seus
arquivos não adormecem e pedem por
outros territórios de acomodação.
A atitude artística de Marilá Dardot
aponta para o reavivamento de um outro
tempo: de suspensão, de doação, de afeto,
de contemplação, de degustação no mais
amplo sentido, de humanidade, em suma.
É um contraponto a uma sociedade do
desapego, do descartável, do imediato, da
histeria, do medíocre e do individualismo

Avant et après la lettre (2011)


Instalação
Livro interferido e fragmentos de livros

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