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1. Introdução
2. Atenas
1
DICIONÁRIO DE CIÊNCIAS SOCIAIS (1987) p. 433-434.
2
DUMONT (1985) p.18. O antropólogo francês Louis Dumont, através do estudo da sociedade indiana,
chama atenção à hierarquia nos sistemas de valores: “Se se considera os sistemas de idéias e valores, pode-se
ver os diferentes tipos de sociedades como representantes de outras tantas opções diferentes, entre todas as
alternativas possíveis. Mas tal modo de ver não basta para consolidar a comparação, para formalizá-la, por
pouco que seja. Para tanto, cumpre levar em conta, em cada sociedade ou cultura, a importância relativa dos
níveis de experiência e de pensamento que ela reconhece, ou seja, usar os valores mais sistematicamente do
que tem sido feito, de um modo geral, até agora. Com efeito, nosso sistema de valores determina toda a nossa
paisagem mental. Vejamos o exemplo mais simples. Suponha-se que a nossa sociedade e a sociedade
observada apresentam ambas, em seus respectivos sistemas de idéias, os mesmos elementos A e B. Basta que
uma subordine A a B e a outra B a A para que resultem diferenças consideráveis em todas as concepções. Por
outras palavras, a hierarquia interna da cultura é essencial para a comparação” [grifo do autor].
3
É preciso salientar o cuidado necessário no tratamento da relação entre orientações valorativas e
comportamentos efetivos: GEERTZ (1989) p. 28 “Os sistemas culturais têm que ter um grau mínimo de
coerência, do contrário não os chamaríamos sistemas, e, através da observação, vemos que normalmente eles
têm muito mais do que isso. Mas não há nada tão coerente como a ilusão de um paranóico ou a estória de um
trapaceiro” ... “ Como em qualquer discurso, o código não determina a conduta, e o que foi dito não precisava
sê-lo, na verdade”. LÉVI-STRAUSS (1975) p. 27 “uma distinção contudo é essencial: a que existe uma
função primária, correspondente a uma necessidade atual do organismo social, e função secundária, que se
mantêm apenas por causa da resistência do grupo em renunciar a um hábito. Pois dizer que uma sociedade
funciona é um truísmo; mas dizer que tudo, numa sociedade, funciona é um absurdo”.
2.1. Entre Pérsia e Esparta
2.2.
É curioso que o nome que usamos para um dos campos da atividade humana mais
importantes atualmente, a economia, tenha surgido com um sentido bastante diferente do
qual o atribuímos hoje. A este significado original, o da concepção grega antiga, é dedicado
uma obra; Economico (), de Xenofonte. Xenofonte de Atenas nasceu no demo
de Érquia provavelmente entre 430 e 425 a.C. Sua vida se estende aproximadamente até
entre os anos de 359 e 355. Ora, pode-se dizer que ele é mais um homem do século IV que
do V. Todavia os valores éticos da belle époque grega subsistiram, apesar de constantes
mudanças, até muito depois, provavelmente até o tempo de Aristóteles e Alexandre o
Grande4. Entre suas obras estão incluídos escritos históricos, como Helênicas; pedagógico-
éticos, como Sobre a Equitação; e escritos chamados socráticos: diálogos onde Sócrates
figura como protagonista; obviamente, não se trata da verdadeira figura de Sócrates, mas de
uma mistura da lembrança de seus ensinamentos com as próprias idéias e concepções éticas
de Xenofonte. É a esta última classe que pertence a obra que se verá agora: Econômico.
- Critobulo: ... mas o que nos parece quando, de um lado, vemos alguém que tem saber
e meios com que , trabalhando, pode fazer crescer seu patrimônio, e, de outro,
percebemos que não o quer fazer e, por isso, vemos que seu saber em nada lhe é
proveitoso? Para essa pessoa nem o saber nem a propriedade são riquezas?
- Sócrates: É a respeito dos escravos5, Critobulo, que procuras discutir?
- Critobulo: Não, por Zeus! Não é a respeito deles, mas de algumas pessoas
consideradas bem nascidas que eu vejo tendo, umas, as ciências da guerra, e outras,
4
Karl Polanyi relata as mudanças que estariam acontecendo no decorrer do século IV, principalmente no
campo econômico, com a leitura do livro 1 de Política e do livro V de Ética a Nicômaco de Aristóteles.
POLANYI (1957) p. 83. “Commercial trade, or, in our terms, market trade, arose as a burning issue out of the
circumstances of the time. It was a disturbing novelty, which could neither be placed, nor explained, nor
judged adequately. Money was now being earned by respectable citizens through the simple device of buying
and selling. Such a thing had been unknown, or rather, was restricted to low class persons”. O crescimento da
importância das relações de mercado trouxeram o segintes conflitos com a ética tradicional, na literatura de
Aristóteles: POLANYI (1957) p. 89 “Market and trade are here thought of as separate and distinct
institutions; prices, as produced by custom, law or proclamation; gainful trade, as ‘unnatural’; the set price, as
‘natural’; fluctuation of prices, as undesirable; and the natural price, far from being an impersonal appraisal of
the goods exchanged, as expressing the mutual estimation of the statuses of the producers”.
5
A questão da escravidão antiga já é tangenciada nesta passagem, na metáfora de Xenofonte em que o escravo
é alguém que age fora dos padrões éticos da época. Percebe-se a associação de diversos valores éticos
negativos a uma figura, o escravo. Este é realmente um símbolo, dotado de uma significação essencial na
construção dos valores antigos. Voltaremos ao tema da escravidão antiga mais adiante.
as da paz, mas não querendo exercê-las porque, penso eu, justamente não tem um
senhor.
- Sócrates: E como não teriam senhores? Não se gabam de serem felizes, não querem
fazer aquilo donde teriam ciosas boas e disso não são impedidos pelos que os
governam?
- Critobulo: Mas quem são esses que os governam mesmo sendo invisíveis?
- Sócrates: Por Zeus! Não são invisíveis! Ao contrário, são bem visíveis. Que são
muito maus nem tu podes deixar de ver, se julgas que a ociosidade, a fraqueza de
alma e a negligência são maldade. E há umas outras senhoras enganadoras que se
fazem de prazeres, a jogatina e a má companhia, que, com o correr do tempo, aos que
foram enganados, revelam-se como sofrimentos disfarçados em prazeres e,
dominando-os, os afastam das ações proveitosas.
- Critobulo: Mas também outros há que por elas não são impedidos de trabalhar mas,
ao contrário, são muito apegados ao trabalho e à busca de ganho para si mesmos. Até
seu patrimônio, contudo, exaurem e ficam emperrados pela ausência de recursos.
- Sócrates: Escravos são também esses, e de senhoras muito duras, uns da gulodice,
outros da libertinagem, outros da embriaguez, outros de ambições tolas e
dispendiosas que tão duramente governam os homens sobre os quais tem domínio
que os obrigam, enquanto os vêem jovens e aptos a trabalhar, a trazer-lhes o produto
do trabalho e a pagar por suas próprias paixões, mas, quando os percebe incapazes de
trabalhar por causa da velhice, deixam-nos envelhecer miseravelmente e, de novo,
tentam usar outros como escravos.6
Vemos um verdadeiro inventário de vícios para o homem que tem de cuidar de seu
patrimônio, de seu oikos. Pois assim como a polis precisa de bons governantes, o oikos
precisa de bons administradores e o que Xenofonte faz é tentar identificar as qualidades do
bom administrador do patrimônio familiar. Logo, ociosidade, fraqueza de alma,
negligência, gulodice, libertinagem, embriaguez e ambições tolas se mostram eticamente
condenadas no pensamento grego antigo.
Mais adiante no texto, Sócrates relata seu encontro com Iscômaco, um homem tido
como um verdadeiro belo e bom (cidadão. Quando perguntado
sobre a gestão de seu oikos, Iscômaco fala, primeiramente, sobre sua esposa: “Já que ambas
as tarefas, as do interior e as do exterior da casa, exigem trabalhos e zelo, desde o início, na
minha opinião, o deus lhes preparou a natureza, a da mulher para os trabalhos e cuidados do
interior, a do homem para os trabalhos e cuidados do exterior da casa”7. A divisão sexual do
trabalho no oikos fica clara nessa passagem. Além disso, a ética grega colocaria a mulher
como encarregada da nutrição e cuidado dos filhos quando pequenos e a atribuiria a
vigilância da casa frente as servas. Obviamente as mulheres não exerciam atividades como
cidadãs da polis. Sua existência social era limitada a esfera domiciliar e familiar.
A ordem parece ter um papel bastante grande no sistema de valores, segundo o
discurso de Xenofonte. Ainda comentando as atribuições da mulher na casa, ele dedica um
capítulo inteiro à ordem, colocando diversos elogios no monólogo de Iscômaco. “Nada,
minha mulher, é tão conveniente e belo para o homem quanto a ordem”; “a desordem para
mim é como se o agricultor guardasse juntos grãos de cevada, de trigo e as favas e, depois,
quando precisasse fazer uma massa ou pão ou prato de legumes, precisasse separá-los em
vez de pegá-los já separados e usá-los”; “quão belo nos parece o que vemos, quando as
sandálias, sejam quais forem, estão dispostas em fileira!”; ou até mesmo “afirmo ainda – e
6
XENOFONTE (1999), p. 8-9.
7
XENOFONTE (1999), p. 38.
disso rirá, não o homem austero, mas o pedante – que até as panelas parecem algo
harmonioso quando arrumadas com bom gosto!”8.
- Sócrates: As artes manuais não gozam de bom nome e, naturalmente, são depreciadas
nas cidades. Arruínam os corpos dos trabalhadores e dos feitores obrigando-os a ficar
sentados no interior das casas, e algumas delas até a passar o dia junto ao fogo. E,
quando os corpos se debilitam, também as almas tornam-se bem menos resistentes.
As chamadas artes manuais não deixam tempo livre para cuidar dos amigos e da
cidade e, assim, tais artesãos são considerados maus para ter-se como amigos e como
defensores da pátria. Em muitas cidades, sobretudo nas que têm fama de guerreiras,
não se permite que um cidadão exerça artes manuais.
- Critobulo: E nós Sócrates? Que tipo de arte nos aconselha exercer?
- Sócrates: Será que nos envergonharíamos de imitar o rei dos persas? Dizem que ele,
por julgar que a agricultura e a arte bélica estão entre as mais belas e necessárias, dá
muita atenção a ambas.13
3. Roma
Se há um apogeu que o império romano conheceu no início do século III foi, sem
dúvida, a de sua maior extensão territorial atingida. Isto não só geograficamente, mas
culturalmente, o que, desta forma, acabou definindo os rumos da história européia a partir
de então. As línguas oficialmente foram universalisadas, latim no ocidente, grego no
oriente; as atividades econômicas e as comunicações sistematizavam-se em função de
Roma; e, o mais surpreendente, os valores latinos se difundem fortemente dentro dos
limites do império, a ponto de, por exemplo, até mesmo um aristocrata da judéia recém
convertido ao cristianismo, Paulo, proclamar “ciuis romanus sum”.
Apesar de tudo, o decorrer do século III d.C. é um período de crise para domínios
romanos. A historiografia tradicional toma-o como princípio do baixo império, isto é, o
tempo da franca decadência. A famosa pax romana, que reinou nos dois primeiros séculos
da era cristã, foi substituída pelas invasões, do Danúbio à Britânia, do Saara ao Eufrates, de
diversos povos tidos pelos romanos como “bárbaros” e pela desordem marcada pela
vertiginosa sucessão de imperadores, aos quais a fortuna deu todo tipo de fim: desde o
13
XENOFONTE (1999), p. 20.
14
ANDERSON (1987), p. 23.
15
DURKHEIM, MAUSS (1903), p. 403 “Toda classificação implicam uma ordem hierárquica da qual nem o
mundo sensível nem nossa consciência nos oferece o modelo. Deve-se, pois, perguntar onde fomos procurá-
lo”. DURKHEIM, MAUSS (1903), p. 419 “O que caracteriza estas últimas [as mudanças, a dinâmica social] é
que as idéias são aí organizadas segundo um modelo fornecido pela sociedade”.
assassinato pelas próprias tropas, passando pelo cativeiro na mão de povos estrangeiros, até
a morte em batalha contra invasores ou usurpadores. Essa crise institucional é o ápice de
uma espécie de câncer do regime; “o império oscilará entre a escolha pelo Senado, a
aclamação pelo exército, a designação pelo príncipe de seu sucessor. A ausência de regra
constitucional para a transmissão do poder, denunciando a verdadeira raiz do império, é o
seu cancro permanente”16.
Enfim, ao termino da dinastia antonina, em 192 d.C., o império romano está no topo
de sua opulência. A partir daí, com a entrada definitiva no século III e a subida da dinastia
dos severos ao poder, percebe-se os primórdios e desenvolvimento do declínio através da
desordem interna e da invasão. Os últimos anos deste século são caracterizados pelas
medidas de Diocleciano, principalmente a que funda a tetrarquia, a qual, por fim, se subtrai
a uma diarquia oriental-ocidental. Vem o cristianismo e a crescente orientalização dos
costumes políticos; e, da antiga diarquia apenas se deixa sobreviver ao século V, como bem
se conhece, o império bizantino.
Aparentemente o Tribunado surgiu em condições nefastas. Porém, Cícero está certo de que
por trás de tudo está o mos maiorum e, no fim, faz reinar a concórdia: “Sed tu sapientiam
maiorum in illo vide”19.
“Les Romains, peuple de la fides”: é assim que P. Boyancé 25 descreve a ligação dos
romanos com este valor moral e forma de conduta. A fides é um modo de se relacionar que
delineia a “aliança”, seja entre Roma e as províncias, entre o patrício e o cliente ou, até
mesmo, entre o bom escravo e o amo. “É com toda a solenidade que Énio escreve em
fragmento muito citado: ‘Accipe daque fidem foedusque feri bene firmum’26. Esta fides é
um juramento que compromete ambas as partes na observância de um pacto ‘bem firme’”27.
Um bom exemplo do funcionamento da fides como princípio ético em Roma se
dava na política. Esta, definitivamente, não existia na concepção de atividade particular a
qual um grupo qualquer se dedica através de vínculos impessoais. “As funções públicas
eram tratadas como dignidades privadas e o acesso a tais dignidades passava por um elo de
fidelidade”28 (fides). A atividade na coisa pública era moralmente obrigatória e qualquer
cidadão digno que se ausentasse dela era censurado por seus pares; ela era parte de um todo
do homem virtuoso. A obtenção de magistraturas ou a evolução através no cursus honorum
obedecia a uma dinâmica social interna que de forma alguma funcionava diferentemente de
outros tipos de relação cotidiana. Existe uma espécie de “patronato” de carreiras. Assim
como o cliente “recebe e dá a fides e forja uma aliança bem firme”, os jovens aristocratas
romanos em idade de ingressar na política estabeleciam este tipo de relação com
magistrados. “O protetor assim eleito o recomendará pela única razão de que o jovem,
ainda na véspera talvez um desconhecido, se confiou a ele, sabendo que, se não aceitar essa
fidelidade que lhe é oferecida, outro a receberá” 29. Desta forma, o protegido ganhava
indicações a cargos e o patrono mais prestígio social e mais “aliados” políticos; uma
reciprocidade de favores que, provando a não ruptura do fenômeno na estrutura histórica,
não nos é, de maneira alguma, desconhecida.
24
As idéias de MAINE influenciaram grandemente TOENNIES na sua obra Gemeinschaft um Gesellschaft.
Posteriormente os conceitos de ambos aparecem nos trabalhos de WEBER. In: POLANYI (1957) p. 69.
25
Citado por PEREIRA (1990), p. 321.
26
“Recebe e dá a fides e forja uma aliança bem firme”.
27
PEREIRA (1990), p. 322.
28
VEYNE (1997), p. 103.
29
VEYNE (1997), p. 112.
Este tipo de escravidão teve conseqüências éticas profundas, sobre as quais nossas noções
modernas de racismo e exploração foram construídas. Por isso é necessário, em primeiro
lugar, deixar bem claro que a escravidão em Roma ou na Grécia Antiga é dotada de
significado totalmente diferente da escravidão moderna. A falácia cotidiana se estende até o
campo científico, onde muitos historiadores apelam para julgamentos de valores
anacrônicos em seus estudos. A isso o historiador Moses Finley chama de falácia
teleológica: “Consiste em presumir a existência, por assim dizer, desde o princípio dos
tempos, dos valores do escritor – no caso, a rejeição da escravidão como um mal – para
então examinar todo o pensamento e práticas anteriores como se estivessem, ou devessem
estar, a caminho de uma tal compreensão das coisas; como se homens de outros períodos se
perguntassem as mesmas questões e encarassem os mesmos problemas que o historiador e
seu mundo”30.
O escravo antigo era aquele que exercia trabalho compulsório para outrem, sendo
que o outro controla o produto e a maneira de desempenhar as tarefas. Todavia esta
descrição quase somente operativa obviamente não é suficiente. Sob essa ótica, o próprio
trabalhador assalariado contemporâneo abre mão de parte de sua independência ao aceitar
um emprego. Além disso, existiram, através do tempo, diversas formas deste mesmo tipo
de trabalho dito “compulsório”: o já citado escravo africano moderno, o servus romano, o
hilota espartano, etc. O que, na verdade, caracteriza a escravidão antiga são suas
especificidades contextuais, uma vez que em uma mesma sociedade poderiam haver
diversos tipos de escravos: do chefe administrativo em um grande cargo político ao mais
miserável lavrador. Os hilotas de Esparta, por exemplo, exerciam uma espécie de servidão
coletiva. Eles trabalhavam para a polis e, de fato, eram grupos inteiros subjugados cuja
situação se assemelhava a de servos medievais. Eles tinham várias regalias como a
possibilidade de se apropriar de uma parte da colheita, além de serem relativamente
“temidos” pelos amos, pois suas revoltas costumavam ser bastante organizadas e
devastadoras.
Embora as especificidades de cada tipo de escravidão na antiguidade sejam cruciais,
algo que pode ser observado como fato comum é que os servos, apesar de serem bens, não
eram considerados como coisas. Pelo contrário, eram vistos como humanos e como tais
deveriam apresentar determinado comportamento segundo uma certa ética. No caso do
servus romano temos verdadeiramente uma instituição, cercada de valores morais que
ditam as regras de sua conduta: “fanatismo religioso, exagerada inclinação para o amor,
gosto imoderado pelos espetáculos e pelas pinturas, tais são os defeitos que um mercador
de escravos deve declarar ao comprador”31. Logicamente, a psicologia do servus não era,
presumivelmente, a nossa atual e, nem mesmo, a de seu senhor. A aparência de que ao
escravo era imposta uma pesada subtração de si mesmo resulta apenas de uma leitura
anacrônica dos fatos. Na ética do bom escravo o que importa é se ele é próprio ou
impróprio para o serviço em uma relação de intensa fidelidade para com o amo, a ponto de,
num humilde heroísmo, dar a vida pelo seu senhor ou segui-lo na morte.
A relação entre servus e senhor em Roma se definia de uma forma não muito
diferente do clientelismo ou do paternalismo político; sua natureza era a mesma, variando
apenas em graus hierárquicos. A convivência cotidiana entre escravo e amo era baseada,
também, em fides, em oposição a empregados assalariados, uma posição impessoal e muito
30
FINLEY (1991), p. 19.
31
VEYNE (1997), p. 71.
desprezada. Enfim, fides é um fato que acontece em várias instâncias da ética romana,
dando unidade e coerência ao seu sistema de valores sociais.
4. Sidarta Gautama
Sidarta Gautama nasceu em uma família nobre32 do reino dos Sakyas, situado ao
nordeste da Índia, local também chamado de Índia gangética. O ano de seu nascimento é
bastante impreciso. Alguns apontam o ano de 657 a.C., outros 623 a.C.; porém, há
concordância em assinalar o século VI a.C. como o tempo de Buda, a época da formação e
difusão de seus ensinamentos.
O século VI, na Índia, foi marcado por dois acontecimentos principais: a invasão
dos persas da Índia setentrional e o surgimento de novas religiões, entre elas o próprio
budismo. A grandeza do império persa revelou-se, através da expansão levada a cabo por
Dario I, em sua maior configuração; as conquistas se estendiam desde as colônias gregas na
Ásia Menor até o vale do Indo. A presença persa se fez sentir em influências na arquitetura,
arte e vários outros elementos da cultura hindu, durante todo o período em que se
cristalizou na região, até sua queda, em 331 a.C, com Alexandre da Macedônia. Quanto às
novas religiões, elas aparecem em um contexto em que os antigos Vedas se tornam formas
arcaicas e vazias em sentido da expressão religiosa da população; e, para os indianos, essa
expressão é a própria vida social.
32
Alguns autores o atribuem até mesmo o título de príncipe.
33
GEERTZ (1989) relata este tipo de comportamento ainda recentemente em seu trabalho de campo, na
companhia de sua esposa, em Bali, onde a população também faz uso das categorias do varna, porém apenas
como referência em um sistema de títulos de status mais complexo. “Nós éramos invasores, profissionais é
verdade, mas os aldeões nos trataram como parece que só os balineses tratam as pessoas que não fazem parte
de sua vida e que, no entanto, os assediam: como se não estivéssemos lá. Para eles, e até certo ponto para nós
mesmos, éramos não-pessoas, espectros, criaturas invisíveis”. P.278.
que meras categorias econômicas no sentido de determinação ocupacional, como pode
parecer aos nossos olhos. Elas fazem parte da organização do universo (dharma). Esse tipo
de classificação que, a princípio, parece ser religioso, não respeita as arbitrárias
compartimentações do pensamento ocidental. O varna define, portanto, as relações e as
condutas em boa parte das esferas da vida social. Essa determinação de um papel social
através da casta é tão crucial que, se por ventura algo foge a este domínio, é logo
determinado pelas regras das çreni, corporações de artesão e comerciantes; pela gotra, a
linhagem do indivíduo; ou mesmo pelas rígidas relações familiares. Tudo isso faz parte da
estrutura de uma sociedade que não vive sem a classificação e a atribuição no seio de seu
organismo.
Um bom humanista do começo do século XXI pode argumentar que isso é uma
prisão para o indivíduo; este está encarcerado em uma posição do nascimento à morte, sem
reconhecimento, por um lado, de seus méritos para progredir socialmente, ou, por outro
lado, de sua incompetência e uma conseqüente regressão. Mas este é realmente o ponto a
ser ressaltado: ao contrário da ideologia moderna, o indivíduo não era moralmente o
“centro do universo” ao qual tudo deve ser sacrificado. Na verdade, o indivíduo
rousseauniano como átomo da sociedade não existia na Índia tradicional. Desta forma,
nossa sociedade individualista encontra, como contrapartida, uma sociedade holista34.
5. Confúcio
37
O tao é o conceito chinês de ordem natural do universo. De certa forma, muito semelhante ao dharma
hindu.
costumes e moral, os antigos sacerdotes da dinastia Shang foram gradualmente sendo
incorporados ao novo regime.
38
EBERHARD (1948), p. 56. Tradução livre do autor; segue a passagem original: “Während aber Europa das
Ideal des Individualismus aufgestellt hat und nun daran krankt, dass es keine Ethik mehr hat, der sich die
Individualen freiwillig unterstellen; während für den Inder das gesellschaftliche Problem in der Lösung der
Frage bestand: wie ist es möglich, dass jeder Mensch möglichst ungestört von den Mitmenschen sein Leben
führen kann, löste der Konfuzianismus das Problem, wie in einer übervölkerten Land Gruppen von Familien
mit oft Hunderten von Einzelmenschen in Frieden und wirklicher Gemeinschaft miteinander leben können.
Jedem Menschen war seine Stellung in der Familie und damit in weiterem Sinne im Staat bekannt; damit
waren ihm seine Rechte und auch seine Pflichte vorgeschrieben”.
estruturação de valores éticos nos diz o que é bom e o que é ruim; tudo isso faz parte dessa
organização que é, na verdade, um pré-requisito para a existência do ser humano em
sociedade. A citação anterior de Eberhard já serve como uma conclusão comparativa de
algumas formas diferentes de resposta para essa necessidade.
Ambas China e Índia antiga são sociedades que podem ser consideradas holistas.
Ou seja, grupo vem antes do indivíduo, pois este só existe em função daquele; é a
sociedade que determina seu lugar, sua função e seu comportamento em todos os âmbitos
da vida comunitária. A diferença está no fato de que a China tinha realmente uma
Weltanschauung universalista, enquanto isso não acontecia na Índia. Com isso, entende-se
a visão do Imperador chinês como responsável pela harmonia em todo o mundo. Na Índia
as relações eram mais restritas; só era incluído no mundo quem estava em uma casta. A
capacidade de englobamento do que era estranho pela cultura chinesa foi causa de situações
intrigantes como, quando no século XVIII, os ingleses tentaram estabelecer comércio com
a terra do Imperador. Os ingleses mandavam amostras de seus produtos, frutos da ainda
recente revolução industrial, que eram compreendidos de forma bastante singular na China:
como tributos. “Os tributos dos bárbaros eram sinal do poder de atração da virtude
imperial, objetivações dos poderes civilizatórios do soberano celestial. Eram
obrigatoriamente produtos especiais do país dos bárbaros e, em certos aspectos simbólicos,
quanto mais estranhos fossem, melhor: significariam a capacidade do Imperador de abarcar
uma diversidade universal”39.
Roma e Grécia, por sua vez, contém já a semente do que se tornará a ideologia
moderna do individualismo. Logicamente sua estrutura é permeada de um holismo
essencial, como podemos observar na fides romana. A aplicabilidade de conceitos como
status e contractus, Gemeinschaft e Gesellschaft, individualismo e holismo, demonstra a
existência de um elemento determinante: a oposição entre indivíduo e sociedade. Porém,
mesmo que pareça contraditório, a noção do indivíduo moral que herdamos da antiguidade
clássica ocidental é criada dentro da sociedade: somos socialmente moldados para sermos
indivíduos.
7. Bibliografia