Você está na página 1de 16

Quais as principais diferenças de tipo ético entre as sociedades antigas, como aquelas

em que viveram Confúcio e Sidarta Gautama, o Buda, nos séculos VI e V, e as


sociedades ateniense e romana nos seus períodos de apogeu, respectivamente nos
séculos V a.C. e III d.C.

1. Introdução

Como se trata da análise da ética de determinadas culturas históricas, é preciso


estabelecer, em primeiro lugar, uma definição de ética. O conceito aqui usado é o fornecido
no Dicionário de Ciências Sociais da FGV por Jesús María Vázquez1: “Ética é a ciência
dos costumes ou atos humanos, e seu objeto é a moralidade, entendendo-se por moralidade
a caracterização desses mesmos atos como bem ou mal”. Os costumes e atos humanos são
definidos por um sistema de valores, por um modelo cultural, enfim, por um ethos; e, desta
forma, através da ótica desses mesmos valores sociais hierarquizados 2 obtemos uma
apreciação moral sobre sua bondade ou maldade “intrínseca”. Assim, estaremos vendo o
que em uma certa sociedade “deve ser”, não exatamente o que “é”; o que analisar-se-á é um
sistema “ideal” de procedimentos cotidianos e rituais, em outras palavras, as construções
sociais de uma mentalidade aprovativa ou depreciativa de atos, comportamentos e mesmo
idéias. Todavia, o hiato entre a orientação dos valores e conduta real dos indivíduos
empíricos3 será, portanto, uma questão que, embora de importância crucial, não é da
competência deste estudo da ética. O método adotado será o exame de fontes históricas,
como obras literárias de Xenofonte e Gayo, no caso de Roma e Grécia, e a apreciação dos
ensinamentos e doutrinas originadas das figuras de Confúcio e Sidarta Gautama no oriente.
Isso tudo, porém, com um esclarecimento contextual histórico e morfológico das devidas
sociedades, dando-se ênfase ao econômico onde for possível.

2. Atenas
1
DICIONÁRIO DE CIÊNCIAS SOCIAIS (1987) p. 433-434.
2
DUMONT (1985) p.18. O antropólogo francês Louis Dumont, através do estudo da sociedade indiana,
chama atenção à hierarquia nos sistemas de valores: “Se se considera os sistemas de idéias e valores, pode-se
ver os diferentes tipos de sociedades como representantes de outras tantas opções diferentes, entre todas as
alternativas possíveis. Mas tal modo de ver não basta para consolidar a comparação, para formalizá-la, por
pouco que seja. Para tanto, cumpre levar em conta, em cada sociedade ou cultura, a importância relativa dos
níveis de experiência e de pensamento que ela reconhece, ou seja, usar os valores mais sistematicamente do
que tem sido feito, de um modo geral, até agora. Com efeito, nosso sistema de valores determina toda a nossa
paisagem mental. Vejamos o exemplo mais simples. Suponha-se que a nossa sociedade e a sociedade
observada apresentam ambas, em seus respectivos sistemas de idéias, os mesmos elementos A e B. Basta que
uma subordine A a B e a outra B a A para que resultem diferenças consideráveis em todas as concepções. Por
outras palavras, a hierarquia interna da cultura é essencial para a comparação” [grifo do autor].
3
É preciso salientar o cuidado necessário no tratamento da relação entre orientações valorativas e
comportamentos efetivos: GEERTZ (1989) p. 28 “Os sistemas culturais têm que ter um grau mínimo de
coerência, do contrário não os chamaríamos sistemas, e, através da observação, vemos que normalmente eles
têm muito mais do que isso. Mas não há nada tão coerente como a ilusão de um paranóico ou a estória de um
trapaceiro” ... “ Como em qualquer discurso, o código não determina a conduta, e o que foi dito não precisava
sê-lo, na verdade”. LÉVI-STRAUSS (1975) p. 27 “uma distinção contudo é essencial: a que existe uma
função primária, correspondente a uma necessidade atual do organismo social, e função secundária, que se
mantêm apenas por causa da resistência do grupo em renunciar a um hábito. Pois dizer que uma sociedade
funciona é um truísmo; mas dizer que tudo, numa sociedade, funciona é um absurdo”.
2.1. Entre Pérsia e Esparta

O século V a.C. na Grécia é fruto da guerra contra os Persas. Da primeira campanha


de Mardónio em 492 à derrota final de Xerxes em 479, cristalizaram-se as condições para o
desenrolar dos acontecimentos durante o resto do século; dentre elas, o fortalecimento da
democracia ateniense criada por Clístenes na última década do século VI, que realizou a
unidade e integração necessária à guerra do corpo cívico da Ática. Com a derrota do
inimigo “bárbaro”, constitui-se um quadro onde há um sistema político bastante seguro,
uma cultura em plena ascensão e, além disso, a disposição de um tesouro, o da Liga de
Delos, que serviria a construção do “império” ateniense.
A liga de Delos foi criada logo após a derrota dos persas, em 478. A palavra
“derrota” deve, no entanto, ser usada com restrições: no fim da batalha naval de Salamina,
nem Xerxes teve dificuldades em se retirar nem os helenos se atreveram a perseguir os
destroços da frota inimiga. Por essa razão, o fantasma do retorno persa ainda assombrava
várias das cidades gregas. A Liga se formou, então, como uma espécie de confederação,
comandada por Atenas, com o objetivo de livrar o mar Egeu dos persas e se precaver no
caso de uma nova campanha. As polis que se filiavam eram obrigadas a contribuir com
trirremes ou dinheiro, porém, na maioria das vezes, a contribuição, devido à estrutura
mínima de algumas cidades, era feita através de dinheiro colocado no tesouro da ilha de
Delos. Em mais ou menos doze anos os objetivos da Liga foram atingidos, mas ao invés de
se dissipar ela continuou crescendo; e, porquanto a influência de Atenas era tão grande na
Liga, o tesouro de Delos acabou sendo submetido a ela. Desta forma, o poder ateniense foi
crescendo de tal maneira que em torno de 454 a Liga virou um império; as cidades eram
forçadas a entrar nela e, em certos casos, eram sitiadas caso tentassem sair. Naxos tentou
sair da Liga em 466 e “foi a primeira cidade aliada a ser escravizada contrariando o
costume estabelecido” como diz Tucídides (Livro I, 98). Atenas interferia com freqüência e
rigidez nos assuntos internos de alguns estados da Liga; alguns crimes tinham de ser
julgados em Atenas, o direito de cunhar moeda foi abolido durante certo tempo, entre
outros tipos de intervencionismo.
Esparta, que também se destacou no status de “potência” da Hélade após a guerra
contra os persas, via-se ameaçada com esse expansionismo ateniense. A disputa pela
hegemonia helênica desencadeia, então, em 430 a.C., a guerra entre os gregos, também
conhecida como Guerra do Peloponeso. Essa guerra, em que Atenas foi derrotada, trouxe
um enfraquecimento geral para toda a Grécia, culminando numa verdadeira crise
institucional da polis clássica e na subseqüente emergência macedônia na península
balcânica e no interior da Ásia. Era o fim do apogeu ateniense.

2.2. 

É curioso que o nome que usamos para um dos campos da atividade humana mais
importantes atualmente, a economia, tenha surgido com um sentido bastante diferente do
qual o atribuímos hoje. A este significado original, o da concepção grega antiga, é dedicado
uma obra; Economico (), de Xenofonte. Xenofonte de Atenas nasceu no demo
de Érquia provavelmente entre 430 e 425 a.C. Sua vida se estende aproximadamente até
entre os anos de 359 e 355. Ora, pode-se dizer que ele é mais um homem do século IV que
do V. Todavia os valores éticos da belle époque grega subsistiram, apesar de constantes
mudanças, até muito depois, provavelmente até o tempo de Aristóteles e Alexandre o
Grande4. Entre suas obras estão incluídos escritos históricos, como Helênicas; pedagógico-
éticos, como Sobre a Equitação; e escritos chamados socráticos: diálogos onde Sócrates
figura como protagonista; obviamente, não se trata da verdadeira figura de Sócrates, mas de
uma mistura da lembrança de seus ensinamentos com as próprias idéias e concepções éticas
de Xenofonte. É a esta última classe que pertence a obra que se verá agora: Econômico.

A Ética no Oikos

Econômico é um , um tratado eminentemente prático sobre a


economia, a arte de bem administrar o oikos. O oikos, por sua vez, pode ser melhor
compreendido por termos como o inglês household, o alemão Haushalt ou, como é algumas
vezes traduzido para o espanhol, hacienda. A falta de equivalentes diretos no português
evidencia a complexidade do conceito. O oikos engloba muito mais que a oikia, isto é, a
casa onde reside a família, e surge, também, em oposição à polis. É o âmbito privado, o
espaço em que o indivíduo age como membro de uma família e, como tal, defende seus
interesses particulares, tendo deveres a cumprir em relação aos membros de sua família, às
suas tradições e também em relação aos seus bens. Do lado oposto, temos a polis, onde os
indivíduos agem como cidadãos e participam do governo exercendo cargos civis ou
militares ou se sujeitam às decisões daqueles a quem incumbiram de representá-los diante
da comunidade.
O que é importante aqui, entretanto, são as concepções éticas que permeiam a obra.
Podemos observar, no seguinte trecho, certos valores típicos da Hélade no seu apogeu, que
Xenofonte coloca na boca de Sócrates quando ele e seu interlocutor, Critobulo, tentam
chegar a definição e origem da riqueza:

- Critobulo: ... mas o que nos parece quando, de um lado, vemos alguém que tem saber
e meios com que , trabalhando, pode fazer crescer seu patrimônio, e, de outro,
percebemos que não o quer fazer e, por isso, vemos que seu saber em nada lhe é
proveitoso? Para essa pessoa nem o saber nem a propriedade são riquezas?
- Sócrates: É a respeito dos escravos5, Critobulo, que procuras discutir?
- Critobulo: Não, por Zeus! Não é a respeito deles, mas de algumas pessoas
consideradas bem nascidas que eu vejo tendo, umas, as ciências da guerra, e outras,

4
Karl Polanyi relata as mudanças que estariam acontecendo no decorrer do século IV, principalmente no
campo econômico, com a leitura do livro 1 de Política e do livro V de Ética a Nicômaco de Aristóteles.
POLANYI (1957) p. 83. “Commercial trade, or, in our terms, market trade, arose as a burning issue out of the
circumstances of the time. It was a disturbing novelty, which could neither be placed, nor explained, nor
judged adequately. Money was now being earned by respectable citizens through the simple device of buying
and selling. Such a thing had been unknown, or rather, was restricted to low class persons”. O crescimento da
importância das relações de mercado trouxeram o segintes conflitos com a ética tradicional, na literatura de
Aristóteles: POLANYI (1957) p. 89 “Market and trade are here thought of as separate and distinct
institutions; prices, as produced by custom, law or proclamation; gainful trade, as ‘unnatural’; the set price, as
‘natural’; fluctuation of prices, as undesirable; and the natural price, far from being an impersonal appraisal of
the goods exchanged, as expressing the mutual estimation of the statuses of the producers”.
5
A questão da escravidão antiga já é tangenciada nesta passagem, na metáfora de Xenofonte em que o escravo
é alguém que age fora dos padrões éticos da época. Percebe-se a associação de diversos valores éticos
negativos a uma figura, o escravo. Este é realmente um símbolo, dotado de uma significação essencial na
construção dos valores antigos. Voltaremos ao tema da escravidão antiga mais adiante.
as da paz, mas não querendo exercê-las porque, penso eu, justamente não tem um
senhor.
- Sócrates: E como não teriam senhores? Não se gabam de serem felizes, não querem
fazer aquilo donde teriam ciosas boas e disso não são impedidos pelos que os
governam?
- Critobulo: Mas quem são esses que os governam mesmo sendo invisíveis?
- Sócrates: Por Zeus! Não são invisíveis! Ao contrário, são bem visíveis. Que são
muito maus nem tu podes deixar de ver, se julgas que a ociosidade, a fraqueza de
alma e a negligência são maldade. E há umas outras senhoras enganadoras que se
fazem de prazeres, a jogatina e a má companhia, que, com o correr do tempo, aos que
foram enganados, revelam-se como sofrimentos disfarçados em prazeres e,
dominando-os, os afastam das ações proveitosas.
- Critobulo: Mas também outros há que por elas não são impedidos de trabalhar mas,
ao contrário, são muito apegados ao trabalho e à busca de ganho para si mesmos. Até
seu patrimônio, contudo, exaurem e ficam emperrados pela ausência de recursos.
- Sócrates: Escravos são também esses, e de senhoras muito duras, uns da gulodice,
outros da libertinagem, outros da embriaguez, outros de ambições tolas e
dispendiosas que tão duramente governam os homens sobre os quais tem domínio
que os obrigam, enquanto os vêem jovens e aptos a trabalhar, a trazer-lhes o produto
do trabalho e a pagar por suas próprias paixões, mas, quando os percebe incapazes de
trabalhar por causa da velhice, deixam-nos envelhecer miseravelmente e, de novo,
tentam usar outros como escravos.6

Vemos um verdadeiro inventário de vícios para o homem que tem de cuidar de seu
patrimônio, de seu oikos. Pois assim como a polis precisa de bons governantes, o oikos
precisa de bons administradores e o que Xenofonte faz é tentar identificar as qualidades do
bom administrador do patrimônio familiar. Logo, ociosidade, fraqueza de alma,
negligência, gulodice, libertinagem, embriaguez e ambições tolas se mostram eticamente
condenadas no pensamento grego antigo.
Mais adiante no texto, Sócrates relata seu encontro com Iscômaco, um homem tido
como um verdadeiro belo e bom (cidadão. Quando perguntado
sobre a gestão de seu oikos, Iscômaco fala, primeiramente, sobre sua esposa: “Já que ambas
as tarefas, as do interior e as do exterior da casa, exigem trabalhos e zelo, desde o início, na
minha opinião, o deus lhes preparou a natureza, a da mulher para os trabalhos e cuidados do
interior, a do homem para os trabalhos e cuidados do exterior da casa”7. A divisão sexual do
trabalho no oikos fica clara nessa passagem. Além disso, a ética grega colocaria a mulher
como encarregada da nutrição e cuidado dos filhos quando pequenos e a atribuiria a
vigilância da casa frente as servas. Obviamente as mulheres não exerciam atividades como
cidadãs da polis. Sua existência social era limitada a esfera domiciliar e familiar.
A ordem parece ter um papel bastante grande no sistema de valores, segundo o
discurso de Xenofonte. Ainda comentando as atribuições da mulher na casa, ele dedica um
capítulo inteiro à ordem, colocando diversos elogios no monólogo de Iscômaco. “Nada,
minha mulher, é tão conveniente e belo para o homem quanto a ordem”; “a desordem para
mim é como se o agricultor guardasse juntos grãos de cevada, de trigo e as favas e, depois,
quando precisasse fazer uma massa ou pão ou prato de legumes, precisasse separá-los em
vez de pegá-los já separados e usá-los”; “quão belo nos parece o que vemos, quando as
sandálias, sejam quais forem, estão dispostas em fileira!”; ou até mesmo “afirmo ainda – e

6
XENOFONTE (1999), p. 8-9.
7
XENOFONTE (1999), p. 38.
disso rirá, não o homem austero, mas o pedante – que até as panelas parecem algo
harmonioso quando arrumadas com bom gosto!”8.

2.2.1. A Ética da Polis

Evitar os “sofrimentos disfarçados em prazeres”, a mulher enquanto figura


exclusiva de funções domésticas e a ordem são questões que certamente, em diferentes
graus, estão ligadas à vida na polis, mas Xenofontes as trata predominantemente sob a ótica
doméstica. De certa forma, podemos entender que a vida virtuosa na polis começa no oikos.
É do oikos que vêm os recursos para as mais diversas atividades públicas, segundo a fala de
Sócrates: “Percebo ainda que a cidade exige que pagues grandes tributos: manutenção de
cavalos, subvenção aos coros e às competições ginásticas, e o exercício da presidência; e,
se ocorrer uma guerra, sei bem que te imporão a trierarquia 9 e tantas contribuições que não
te será fácil suportá-las. Se acharem que cumpres alguns desses encargos não a contento,
sei que os atenienses te punirão como se te apanhasse roubando seus bens” 10. Todavia, é
preciso ter em mente que esse tipo de tributação não se dava de forma institucionalizada
como nós a entendemos em um estado nacional moderno. Em primeiro lugar, as
contribuições não eram contínuas, mas aconteciam segundo as necessidades do momento.
Em segundo, e aqui está o mais importante, as contribuições para a polis faziam parte de
um conjunto geral da ética grega, ou seja, eram uma forma de demonstração pública da
hierarquia interna dos cidadãos, não só através da riqueza, mas sempre ligada às virtudes
reconhecidas socialmente como ter antepassados gloriosos, exibir qualidade de oratória na
Ágora, coragem e liderança na guerra, etc.
A organização de diversos eventos através de contribuições particulares é, de fato,
um fenômeno da coletividade, da formação hierárquica da sociedade, enquanto grupo
determinado por certos valores. Por outro lado, onde observamos uma das ligações mais
íntimas entre as atividades domésticas e a vida pública é na agricultura e, o que parece ser
seu contra-ponto voltado para o exterior social, a guerra. Esta está para a polis assim como
aquela para o oikos. No diálogo, Sócrates, falando a Critobulo, expõe a afinidade “natural”
entre homem e campo da seguinte maneira: “Cuidar dela [a agricultura], acho, é ao mesmo
tempo uma atividade prazerosa, um meio de fazer crescer o patrimônio e exercitar o corpo
para que esteja apto para tudo quanto convém a um homem livre”, e mais adiante, “Que
arte torna os homens mais aptos para correr, atirar dardos e saltar do que a agricultura?”11.
Para os gregos antigos, a forma máxima da vida pública se concretizava na guerra.
E, se o cultivo da terra traz benefícios ao cidadão, é porque prepara o corpo para a guerra,
treina o salto, o correr, o arremessar de dardos, “habitua os homens a suportar o frio do
inverno e o calor do verão” e, além disso “exercitado os que a lavram com as próprias
mãos, aumenta-lhes o vigor, e aos que exercem a vigilância da lavoura torna viris,
despertando bem cedo e forçando-os a caminhar compasso firme”12. No seguinte trecho,
8
XENOFONTE (1999), p. 42-47.
9
Ônus, imposto aos cidadãos mais ricos, do pagamento das despesas com as armas e equipamento de uma
trirreme.
10
XENOFONTE (1999), p. 11-12.
11
XENOFONTE (1999), p. 26-27.
12
XENOFONTE (1999), p. 26.
Sócrates fala a Critobulo, depreciando as chamadas “artes manuais” e enaltecendo a arte
bélica e, como conseqüência, também a agricultura:

- Sócrates: As artes manuais não gozam de bom nome e, naturalmente, são depreciadas
nas cidades. Arruínam os corpos dos trabalhadores e dos feitores obrigando-os a ficar
sentados no interior das casas, e algumas delas até a passar o dia junto ao fogo. E,
quando os corpos se debilitam, também as almas tornam-se bem menos resistentes.
As chamadas artes manuais não deixam tempo livre para cuidar dos amigos e da
cidade e, assim, tais artesãos são considerados maus para ter-se como amigos e como
defensores da pátria. Em muitas cidades, sobretudo nas que têm fama de guerreiras,
não se permite que um cidadão exerça artes manuais.
- Critobulo: E nós Sócrates? Que tipo de arte nos aconselha exercer?
- Sócrates: Será que nos envergonharíamos de imitar o rei dos persas? Dizem que ele,
por julgar que a agricultura e a arte bélica estão entre as mais belas e necessárias, dá
muita atenção a ambas.13

O combate e o trabalho no campo eram as atividades que moldavam o perfeito


cidadão e o perfeito indivíduo familiar. Bem, não se pode achar estranho que uma
sociedade que apresenta tal morfologia, isto é, “supremacia anômala da cidade sobre o
campo numa economia esmagadoramente rural”14, envolvida constantemente em batalhas
entre si e contra estrangeiros tenha o seu locus ético nestes dois termos: agricultura e
guerra15.

3. Roma

3.1. Século III: Inflexão do Ápice à Decadência

Se há um apogeu que o império romano conheceu no início do século III foi, sem
dúvida, a de sua maior extensão territorial atingida. Isto não só geograficamente, mas
culturalmente, o que, desta forma, acabou definindo os rumos da história européia a partir
de então. As línguas oficialmente foram universalisadas, latim no ocidente, grego no
oriente; as atividades econômicas e as comunicações sistematizavam-se em função de
Roma; e, o mais surpreendente, os valores latinos se difundem fortemente dentro dos
limites do império, a ponto de, por exemplo, até mesmo um aristocrata da judéia recém
convertido ao cristianismo, Paulo, proclamar “ciuis romanus sum”.
Apesar de tudo, o decorrer do século III d.C. é um período de crise para domínios
romanos. A historiografia tradicional toma-o como princípio do baixo império, isto é, o
tempo da franca decadência. A famosa pax romana, que reinou nos dois primeiros séculos
da era cristã, foi substituída pelas invasões, do Danúbio à Britânia, do Saara ao Eufrates, de
diversos povos tidos pelos romanos como “bárbaros” e pela desordem marcada pela
vertiginosa sucessão de imperadores, aos quais a fortuna deu todo tipo de fim: desde o
13
XENOFONTE (1999), p. 20.
14
ANDERSON (1987), p. 23.
15
DURKHEIM, MAUSS (1903), p. 403 “Toda classificação implicam uma ordem hierárquica da qual nem o
mundo sensível nem nossa consciência nos oferece o modelo. Deve-se, pois, perguntar onde fomos procurá-
lo”. DURKHEIM, MAUSS (1903), p. 419 “O que caracteriza estas últimas [as mudanças, a dinâmica social] é
que as idéias são aí organizadas segundo um modelo fornecido pela sociedade”.
assassinato pelas próprias tropas, passando pelo cativeiro na mão de povos estrangeiros, até
a morte em batalha contra invasores ou usurpadores. Essa crise institucional é o ápice de
uma espécie de câncer do regime; “o império oscilará entre a escolha pelo Senado, a
aclamação pelo exército, a designação pelo príncipe de seu sucessor. A ausência de regra
constitucional para a transmissão do poder, denunciando a verdadeira raiz do império, é o
seu cancro permanente”16.
Enfim, ao termino da dinastia antonina, em 192 d.C., o império romano está no topo
de sua opulência. A partir daí, com a entrada definitiva no século III e a subida da dinastia
dos severos ao poder, percebe-se os primórdios e desenvolvimento do declínio através da
desordem interna e da invasão. Os últimos anos deste século são caracterizados pelas
medidas de Diocleciano, principalmente a que funda a tetrarquia, a qual, por fim, se subtrai
a uma diarquia oriental-ocidental. Vem o cristianismo e a crescente orientalização dos
costumes políticos; e, da antiga diarquia apenas se deixa sobreviver ao século V, como bem
se conhece, o império bizantino.

3.2. A Ética Romana: Os Costumes e o Direito

A sociedade romana se assentava em diversos valores expressados por conceitos


como fides, postestas, virtus e mos maiorum. Foram esses valores que constituíram a Res
Publica e era através deles que se discutia a legitimidade do princeps no império; a
pertinência desses conceitos se revela no fato de que, ainda que com algumas variações de
significado, toda a história romana, e até mesmo toda a história ocidental posterior, é
marcada por esses aspectos da ética latina. Por esse motivo, por sua onipresença no mundo
romano, faremos agora sua análise enquanto um sistema de valores que, apesar de provir de
diversas fontes de tempos diferentes, certamente fornecem um quadro ético válido do
século III.

3.2.1. Virtus e Mos Maiorum: Valores do Homem e da Sociedade Correta

Neste quadro ético romano, a virtus era um valor extremamente esclarecedor.


Etimologicamente ligada a vir, virtus é a virilidade no sentido de conjunto de qualidades
que faz um homem “bom”; este conjunto é constituído pelos valores de iustitia, fides,
sapientia, modestia, continentia, aequitas e honos17. E, enquanto a virtus fazia
interiormente, o cidadão perfeito, o mos maiorum fazia uma coletividade eticamente
correta. Neste ponto, poderíamos até substituir a palavra “ética”, que vem do grego, pelo
seu equivalente latino “moral”, ou seja, trocar ethos por mos. Juntando-se ao mos o adjetivo
maiorum, confere-se-lhe um sentido de base “absoluta” da ação social. O mos maiorum era
a tradição, os costumes antepassados feitos substantivo. O costume antigo era tão
respeitado que em determinados contextos chegava a ser temido: os Pretores, magistrados
encarregados da justiça, sempre corriam o risco, ao propor novas leis, de no fim de seu
mandato serem processados por ir contra o mos maiorum. Em uma demonstração de Cícero
16
GODINHO (1978), p. 59.
17
Serão usados os próprios termos latinos, pois seus significados em português são dotados de conteúdos
ligeiramente diferentes. Traduzir, por exemplo, fides por fidelidade ou fé é equívoco; esta palavra atual é
carregada de sentimento religioso (cristão), enquanto fides existiu em um contexto “pagão” e determinava um
tipo de relação secular; aquela, por sua vez, ainda que mais próxima do sentido latino, está imersa em um
contexto de ideologia individualista contemporâneo que não expressa corretamente a intenção da antiguidade.
sobre o Tribunado da Plebe em seu livro De Legibus, podemos entender, através da fala de
Quinto, a força da moral anciã: a potestas do Tribunado da Plebe
“in seditione et ad seditionem nata sit. Cuius primum ortum si recordari volumus, inter arma
civium et occupatis et obsessis urbis locis procreatum videmus. Deinde quom esset cito necatus
tamquam ex XII tabulis insignis ad deformitatem puer, brevi tempore nescio IX quo pacto
recreatus multoque taetrior et foedior natus est”18.

Aparentemente o Tribunado surgiu em condições nefastas. Porém, Cícero está certo de que
por trás de tudo está o mos maiorum e, no fim, faz reinar a concórdia: “Sed tu sapientiam
maiorum in illo vide”19.

3.2.2 Ética numa Sociedade Legal

Outro conceito importante do pensamento romano era a potestas. Potestas é o poder


delegado pelo cargo exercido, o poder que se apóia nas leis. Em uma civilização que é tida
como “inventora” do direito, temos, segundo Gaio (ca.120 - ca.178 d.C), as seguintes
fontes de poder legal: “En quanto a los ‘iura’ del pueblo romano, los mismos surgen de las
leyes, de los plebicitos, de los senadoconsultos, de las constituciones imperiales, de los
edictos emanados de quienes tienen el ‘ius edicendi’, de las respuestas de los prudentes”20.
Mas, apesar das diversas fontes, o direito se concretizava no magistrado; nos cônsules,
senadores, pretores, censores, edis, questores21. Cícero retrata a situação da seguinte
maneira: “Ut enim magistratibus leges, ita populo praesunt magistratus, vereque dici
potest, magistratum esse legem loquentem, legem autem mutum magistratum”22. E, para
que haja harmonia nas legais: “cum potestas in populo, auctoritas in senatu sit, teneri ille
moderatus et concors civitatis status”23.
O magistrado, então, é a lei loquente; e assim o é, pois possui potestas. Isto é, o
aparato legal, por um lado, criava um personagem social com suas respectivas
responsabilidades e direitos, caracterizado por um valor específico: potestas. Todavia, por
outro lado, é um personagem social que existe com a função de regular as relações em que
os papéis sociais não são decisivos ou inexistentes. Essa ótica sociológica do fenômeno foi
apresentada por Sir Henry Summer Maine, através das noções de status e contractus.
Aquela é uma forma de relação definida pelos diversos aspectos sociais que moldam o
18
CÍCERO (s/d), p. 135. “ella nació en la sedición; si queremos recordar el primer origen de la misma, vemos
al tribunado procreando entre las armas de los ciudadanos, y los lugares de la ciudad ocupados y cercados.
Después, como hubiese sido prontamente rechazado, tal como según las Doce Tablas, un niño insigne en
cuanto a deformidad, fué creado al breve tiempo, y nació mucho más feo y más tétrico”.
19
CÍCERO (s/d), p. 139. “Pero, ve tu en aquello la sabiduría de nuestros mayores”. Todo o desenvolver
histórico segue uma trajetória determinada por uma força maior deterministicamente positiva; a vontade
divina no cristianismo, a racionalidade para Hegel, o mos maiorum, no caso de Cícero.
20
GAIO (s/d), p. 49.
21
Obviamente, com a formação do império a figura do imperador reúne em si as funções do consulado,
tribunado e, após Teodósio, do potificado. Entretanto, o perído imperial é marcado pela crise institucional e,
com a desordem de atribuições, este modelo ciceroniano se esfacela e deixa de ser válido na realidade,
restando apenas como teoria “saudosista”.
22
CÍCERO (s/d), p. 121. “Porque así como las leyes son a los magistrados, del mismo modo los magistrados
presiden al pueblo, y en verdad puede decirse que el magistrado es la ley que habla, y la ley el magistrado
mudo”.
23
CÍCERO (s/d), p. 142. “Con la potestad em el pueblo y la auctoridad em eel senado, podría er aquel
moderado y concorde estado de ciudad”.
comportamento: parentesco, hierarquias políticas e religiosas, etc. Esta deriva de um
acordo bilateral24. Ele diz que a sociedade primitiva assentava no status, mas já em Roma,
com o aparecimento seu sistema legal, pode-se observar a gradual passagem para uma
situação de contractus. A concepção de Maine carrega, de fato, um evolucionismo
equívoco, mas, de qualquer forma, suas idéias são fundamentais para o entendimento de
dois níveis éticos. O direito é um pacto consciente para se definir relações em comum
acordo. Os costumes, por sua vez, definem inconscientemente as relações e seu comum
acordo nem precisa ser discutido.

3.2.3. Fides Enquanto Ética de Recipricidade

“Les Romains, peuple de la fides”: é assim que P. Boyancé 25 descreve a ligação dos
romanos com este valor moral e forma de conduta. A fides é um modo de se relacionar que
delineia a “aliança”, seja entre Roma e as províncias, entre o patrício e o cliente ou, até
mesmo, entre o bom escravo e o amo. “É com toda a solenidade que Énio escreve em
fragmento muito citado: ‘Accipe daque fidem foedusque feri bene firmum’26. Esta fides é
um juramento que compromete ambas as partes na observância de um pacto ‘bem firme’”27.
Um bom exemplo do funcionamento da fides como princípio ético em Roma se
dava na política. Esta, definitivamente, não existia na concepção de atividade particular a
qual um grupo qualquer se dedica através de vínculos impessoais. “As funções públicas
eram tratadas como dignidades privadas e o acesso a tais dignidades passava por um elo de
fidelidade”28 (fides). A atividade na coisa pública era moralmente obrigatória e qualquer
cidadão digno que se ausentasse dela era censurado por seus pares; ela era parte de um todo
do homem virtuoso. A obtenção de magistraturas ou a evolução através no cursus honorum
obedecia a uma dinâmica social interna que de forma alguma funcionava diferentemente de
outros tipos de relação cotidiana. Existe uma espécie de “patronato” de carreiras. Assim
como o cliente “recebe e dá a fides e forja uma aliança bem firme”, os jovens aristocratas
romanos em idade de ingressar na política estabeleciam este tipo de relação com
magistrados. “O protetor assim eleito o recomendará pela única razão de que o jovem,
ainda na véspera talvez um desconhecido, se confiou a ele, sabendo que, se não aceitar essa
fidelidade que lhe é oferecida, outro a receberá” 29. Desta forma, o protegido ganhava
indicações a cargos e o patrono mais prestígio social e mais “aliados” políticos; uma
reciprocidade de favores que, provando a não ruptura do fenômeno na estrutura histórica,
não nos é, de maneira alguma, desconhecida.

3.2.4 A Ética da Escravidão Antiga

A escravidão antiga desperta um interesse odioso, pois a palavra escravidão remete


automaticamente, em nossas mentes, à escravidão dos séculos XVI ao XIX da era cristã.

24
As idéias de MAINE influenciaram grandemente TOENNIES na sua obra Gemeinschaft um Gesellschaft.
Posteriormente os conceitos de ambos aparecem nos trabalhos de WEBER. In: POLANYI (1957) p. 69.
25
Citado por PEREIRA (1990), p. 321.
26
“Recebe e dá a fides e forja uma aliança bem firme”.
27
PEREIRA (1990), p. 322.
28
VEYNE (1997), p. 103.
29
VEYNE (1997), p. 112.
Este tipo de escravidão teve conseqüências éticas profundas, sobre as quais nossas noções
modernas de racismo e exploração foram construídas. Por isso é necessário, em primeiro
lugar, deixar bem claro que a escravidão em Roma ou na Grécia Antiga é dotada de
significado totalmente diferente da escravidão moderna. A falácia cotidiana se estende até o
campo científico, onde muitos historiadores apelam para julgamentos de valores
anacrônicos em seus estudos. A isso o historiador Moses Finley chama de falácia
teleológica: “Consiste em presumir a existência, por assim dizer, desde o princípio dos
tempos, dos valores do escritor – no caso, a rejeição da escravidão como um mal – para
então examinar todo o pensamento e práticas anteriores como se estivessem, ou devessem
estar, a caminho de uma tal compreensão das coisas; como se homens de outros períodos se
perguntassem as mesmas questões e encarassem os mesmos problemas que o historiador e
seu mundo”30.
O escravo antigo era aquele que exercia trabalho compulsório para outrem, sendo
que o outro controla o produto e a maneira de desempenhar as tarefas. Todavia esta
descrição quase somente operativa obviamente não é suficiente. Sob essa ótica, o próprio
trabalhador assalariado contemporâneo abre mão de parte de sua independência ao aceitar
um emprego. Além disso, existiram, através do tempo, diversas formas deste mesmo tipo
de trabalho dito “compulsório”: o já citado escravo africano moderno, o servus romano, o
hilota espartano, etc. O que, na verdade, caracteriza a escravidão antiga são suas
especificidades contextuais, uma vez que em uma mesma sociedade poderiam haver
diversos tipos de escravos: do chefe administrativo em um grande cargo político ao mais
miserável lavrador. Os hilotas de Esparta, por exemplo, exerciam uma espécie de servidão
coletiva. Eles trabalhavam para a polis e, de fato, eram grupos inteiros subjugados cuja
situação se assemelhava a de servos medievais. Eles tinham várias regalias como a
possibilidade de se apropriar de uma parte da colheita, além de serem relativamente
“temidos” pelos amos, pois suas revoltas costumavam ser bastante organizadas e
devastadoras.
Embora as especificidades de cada tipo de escravidão na antiguidade sejam cruciais,
algo que pode ser observado como fato comum é que os servos, apesar de serem bens, não
eram considerados como coisas. Pelo contrário, eram vistos como humanos e como tais
deveriam apresentar determinado comportamento segundo uma certa ética. No caso do
servus romano temos verdadeiramente uma instituição, cercada de valores morais que
ditam as regras de sua conduta: “fanatismo religioso, exagerada inclinação para o amor,
gosto imoderado pelos espetáculos e pelas pinturas, tais são os defeitos que um mercador
de escravos deve declarar ao comprador”31. Logicamente, a psicologia do servus não era,
presumivelmente, a nossa atual e, nem mesmo, a de seu senhor. A aparência de que ao
escravo era imposta uma pesada subtração de si mesmo resulta apenas de uma leitura
anacrônica dos fatos. Na ética do bom escravo o que importa é se ele é próprio ou
impróprio para o serviço em uma relação de intensa fidelidade para com o amo, a ponto de,
num humilde heroísmo, dar a vida pelo seu senhor ou segui-lo na morte.
A relação entre servus e senhor em Roma se definia de uma forma não muito
diferente do clientelismo ou do paternalismo político; sua natureza era a mesma, variando
apenas em graus hierárquicos. A convivência cotidiana entre escravo e amo era baseada,
também, em fides, em oposição a empregados assalariados, uma posição impessoal e muito

30
FINLEY (1991), p. 19.
31
VEYNE (1997), p. 71.
desprezada. Enfim, fides é um fato que acontece em várias instâncias da ética romana,
dando unidade e coerência ao seu sistema de valores sociais.

4. Sidarta Gautama

4.1. O Iluminado e o Século VI

Sidarta Gautama nasceu em uma família nobre32 do reino dos Sakyas, situado ao
nordeste da Índia, local também chamado de Índia gangética. O ano de seu nascimento é
bastante impreciso. Alguns apontam o ano de 657 a.C., outros 623 a.C.; porém, há
concordância em assinalar o século VI a.C. como o tempo de Buda, a época da formação e
difusão de seus ensinamentos.
O século VI, na Índia, foi marcado por dois acontecimentos principais: a invasão
dos persas da Índia setentrional e o surgimento de novas religiões, entre elas o próprio
budismo. A grandeza do império persa revelou-se, através da expansão levada a cabo por
Dario I, em sua maior configuração; as conquistas se estendiam desde as colônias gregas na
Ásia Menor até o vale do Indo. A presença persa se fez sentir em influências na arquitetura,
arte e vários outros elementos da cultura hindu, durante todo o período em que se
cristalizou na região, até sua queda, em 331 a.C, com Alexandre da Macedônia. Quanto às
novas religiões, elas aparecem em um contexto em que os antigos Vedas se tornam formas
arcaicas e vazias em sentido da expressão religiosa da população; e, para os indianos, essa
expressão é a própria vida social.

4.2 O Dharma e o Holismo Hindu

O Veda, ou “o saber”, é a forma de pensamento que regula a vida indiana. No Veda


está representada a ordem cósmica: Dharma. Este conceito é fundamental na compreensão
da ética hindu, pois é a maneira como as coisas devem ser, ou seja, dharma esta para o
hindu assim como a Natureza para um vitoriano. A organização social é, então, determinada
na famosa divisão em castas, a chamada varna. As castas, tradicionalmente, são quatro: os
brâmanes, ou sacerdotes; os shatrias, guerreiros e nobres; os vaicias, homens livres; e, por
fim, os sudras, a classe servil. Essas classificações dotavam os indivíduos de existência
social e, de certa forma, de existência em si33. Para se ter idéia do funcionamento deste
mecanismo de concepção da realidade social, a forma de compreensão do estrangeiro era
extremamente negativa; ele é considerado um “sem casta”, um intocável. Nas suas piores
escalas, mesmo o contato visual com um intocável exige a purificação ritual.
Um aspecto importante do varna é que a cada casta é atribuída uma função. Os
brâmanes deviam ensinar o Veda e prestar os ofícios religiosos, os shatrias estudar o Veda
e proteger o povo, o vaicias trabalhar e o sudras servir. Todavia, as castas são muito mais

32
Alguns autores o atribuem até mesmo o título de príncipe.
33
GEERTZ (1989) relata este tipo de comportamento ainda recentemente em seu trabalho de campo, na
companhia de sua esposa, em Bali, onde a população também faz uso das categorias do varna, porém apenas
como referência em um sistema de títulos de status mais complexo. “Nós éramos invasores, profissionais é
verdade, mas os aldeões nos trataram como parece que só os balineses tratam as pessoas que não fazem parte
de sua vida e que, no entanto, os assediam: como se não estivéssemos lá. Para eles, e até certo ponto para nós
mesmos, éramos não-pessoas, espectros, criaturas invisíveis”. P.278.
que meras categorias econômicas no sentido de determinação ocupacional, como pode
parecer aos nossos olhos. Elas fazem parte da organização do universo (dharma). Esse tipo
de classificação que, a princípio, parece ser religioso, não respeita as arbitrárias
compartimentações do pensamento ocidental. O varna define, portanto, as relações e as
condutas em boa parte das esferas da vida social. Essa determinação de um papel social
através da casta é tão crucial que, se por ventura algo foge a este domínio, é logo
determinado pelas regras das çreni, corporações de artesão e comerciantes; pela gotra, a
linhagem do indivíduo; ou mesmo pelas rígidas relações familiares. Tudo isso faz parte da
estrutura de uma sociedade que não vive sem a classificação e a atribuição no seio de seu
organismo.
Um bom humanista do começo do século XXI pode argumentar que isso é uma
prisão para o indivíduo; este está encarcerado em uma posição do nascimento à morte, sem
reconhecimento, por um lado, de seus méritos para progredir socialmente, ou, por outro
lado, de sua incompetência e uma conseqüente regressão. Mas este é realmente o ponto a
ser ressaltado: ao contrário da ideologia moderna, o indivíduo não era moralmente o
“centro do universo” ao qual tudo deve ser sacrificado. Na verdade, o indivíduo
rousseauniano como átomo da sociedade não existia na Índia tradicional. Desta forma,
nossa sociedade individualista encontra, como contrapartida, uma sociedade holista34.

4.3 A Introdução do Budismo ou do “Indivíduo-No-Mundo”

A doutrina de Sidarta Gautama traz consigo uma nova configuração de pensamento


ao contexto da Índia antiga que acabamos de descrever. A redenção segundo o Veda se dá
através da boa conduta secular ou da ascese espiritual para acabar com a transmigração da
alma, isto é, com as reencarnações sucessivas, chegando-se ao nirvana. A redenção budista,
por sua vez, também envolve a quebra no ciclo de reencarnações, mas sua especificidade
está na compreensão do mundo e da vida enquanto “dor”. A causa da dor seria o desejo e a
total supressão do desejo na alma traria a iluminação, a chegada ao nirvana. Porém, não é
essa mudança em si que acarreta em novas concepções no campo ético hindu.
Observamos que o nirvana, segundo o Veda, pode ser atingido através da boa
conduta secular; isso quer dizer, cumprir as atribuições de sua casta e das outras esferas de
regras sociais. Mas há também a possibilidade da ascese espiritual. Os que escolhem esse
caminho têm uma posição totalmente peculiar: “os ascetas são classificados sem-casta
porque o seu completo desligamento da sociedade os faz realizar o sentido do termo ‘sem-
casta’. Mas são muito respeitados”35. Dumont chama estes sujeitos de renunciantes; ao
tomar a vida espiritual eles renunciam ao mundo social, mas, como este mundo social é a
própria e única realidade palpável, há nesse processo uma grande ruptura onde, ao final, o
renunciante se descobre como indivíduo livre dos entraves da sociedade. “O renunciante
basta-se a si mesmo, só se preocupa consigo mesmo. O pensamento dele é semelhante ao
do indivíduo moderno, mas com uma diferença essencial: nós vivemos no mundo social,
ele vive fora deste. Foi por isso que chamei ao renunciante indiano um ‘indivíduo-fora-do-
mundo’. Comparativamente, nós somos ‘indivíduos-no-mundo’, indivíduos mundanos; ele
é um indivíduo extramundano”36. A hipótese que gostaria de propor aqui é que um dos
34
LALANDE, Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, Ed. PUF, Paris, 1968, p. 1254, citado em
DUMONT (1985), p. 12: Holismo, “teoria segundo a qual o todo é algo mais que a soma das partes”.
35
AUBOYER (s/d), p. 51.
36
DUMONT (1985), p. 38.
elementos da vida espiritual hindu se desenvolveu em uma nova e específica concepção de
vida. O que antes era apenas uma parte coadjuvante no mundo indiano assumiu sua
independência e emergiu a uma posição bastante destacada em todo o extremo oriente.
Sidarta Gautama foi um típico renunciante. Como vários outros fizeram, ele
abandona casa, família e riquezas e embarca em sua jornada espiritual. De fato ele se torna
um “indivíduo-fora-do-mundo”. Até este ponto não há nada de original e tudo acontece
segundo elementos já existentes na cultura hindu. E, na verdade, não são criados novos
elementos. O advento do budismo apenas desloca o locus da mentalidade indiana da vida
mundana para a extramundana. Não para a vida extramundana tradicional do asceta, mas
para uma configuração adaptada à vida em sociedade; burlescamente uma
extramundanidade mundana onde os dois conceitos opostos se conservam, se suprimem e
ao mesmo tempo se elevam a uma nova forma. Se Dumont afirma que somos atualmente
“indivíduos-no-mundo”, o que a doutrina de Gautama propiciou foi o surgimento de uma
mentalidade deste tipo de indivíduo através do elemento cultural já existente do indivíduo-
fora-do-mundo na Índia antiga.

5. Confúcio

5.1. O Contexto: “Sábios” e Religião Celestial

A sociedade que chamamos de “chinesa” se formou no decorrer dos primeiros séculos da


dinastia Chou, tempo a partir do qual as mudanças passam a resultar de desenvolvimento
ulterior interno e não mais de fusões culturais com povos de origem turca ou mongol. Este
período, que se estende do século XI a.C. ao VIII a.C., é marcado pela ascensão dos Chou,
substituindo os Shang, e a subseqüente transformação do poder imperial no contexto da
religião celestial. Neste novo contexto, tanto político como religioso, aparece no século VI
a importante figura de Confúcio: uma espécie de sacerdote moral, um “sábio”, que
sistematizou os princípios da ética chinesa, ou seja, os valores que regeram
inabalavelmente esta civilização por mais de dois milênios.
Duas coisas são indispensáveis para a compreensão de Confúcio e sua época: a
religião celestial e a constituição de um estrato social chamado “sábios”. A religião celestial
consistia no equilíbrio entre céu, ou plano das divindades, fonte do tao37, e terra. Estas duas
dimensões são reflexo uma da outra; se alguma perturbação ocorre na terra haverá, como
resultado, perturbações celestes como, por exemplo, falta de chuvas. Desta forma, o
imperador, como filho dos céus, está no mundo para garantir a ordem do cosmo. Todavia,
segundo essa crença, toda festividade ou mesmo relação cotidiana, deveria seguir
rigidamente os princípios ritualísticos do tao, da ética na concepção chinesa. É para
assegurar quais são estes princípios que aparece, então, a figura do “sábio”, um estrato da
sociedade cuja origem remonta à massa de sacerdotes desocupados com a queda dos
Shang. Durante esta dinastia, havia um grande numero de pessoas dedicadas aos ofícios
religiosos públicos, mas, com a chagada dos Chou, um novo sistema foi introduzido, no
qual a maior parte da atividade religiosa era praticada privadamente, na maioria das vezes
pelo chefe da família. Todavia, a nova organização da sociedade precisava de guardiões da
ordem terrena para que houvesse equilíbrio no universo e, enquanto grupo esclarecido dos

37
O tao é o conceito chinês de ordem natural do universo. De certa forma, muito semelhante ao dharma
hindu.
costumes e moral, os antigos sacerdotes da dinastia Shang foram gradualmente sendo
incorporados ao novo regime.

5.2. Confucionismo: Manual Ético Chinês

Confúcio pertencia ao grupo dos “sábios” e, como acontecia freqüentemente, além


de servir nos palácios para a organização correta de festividades, também era muitas vezes
encarregado da educação dos filhos de nobres. Sua importância reside nesta última esfera,
pois, como foi dito anteriormente, Confúcio sistematizou seus ensinamentos morais,
demonstrando a coerência desse sistema de valores. Um dos aspectos que se destaca em
meio a esta sistematização é a utilização do padrão de relações familiares, com centro na
figura do pai. Essa tradição patriarcal, mais um advento da dinastia Chou, é a que define,
por exemplo, a posição do imperador que está como filho para os céus. Além da relação
pai-filho, existem ainda a marido-mulher, irmão mais velho-irmão mais novo e, por fim, a
amizade.
O que é importante ressaltar são as implicações do sistema ético da religião celestial
sistematizado por Confúcio, junto à morfologia social da china antiga. O conjunto de todos
esses elementos forma um todo orgânico bastante interessante. Por um lado, não há mais o
personagem do imperador como soberano e senhor da China. Já a partir do século VIII,
com uma conspiração de assassinato, seu poder político decai em detrimento do domínio
dos senhores locais. Refugiado em seu palácio em Lo-yang, seu poder secular diminui
gradativamente, enquanto sua importância religiosa na cosmologia chinesa atinge seu
apogeu. E é assim que se encontra a China no tempo de Confúcio: vários pequenos reinos
cuja unidade se dava culturalmente através da religião celestial. Esta não era somente uma
crença espiritual, era mais um verdadeiro sistema ético coeso em todos os aspectos da vida
social. “Enquanto a Europa colocou o ideal do individualismo e agora padece, pois não há
mais ética a qual os indivíduos espontaneamente se submetem; enquanto para os indianos o
problema social consistia na resposta para a pergunta: ‘como é possível que cada ser
humano possa levar sua vida, da melhor forma admissível, sem o incômodo de seus
semelhantes’, o Confucionismo resolveu o problema de como, em uma terra superpovoada,
podem grupos de famílias, com freqüentemente centenas de indivíduos, viver em paz e em
verdadeira comunidade. Cada homem era seu lugar na família e através disso, em sentido
mais amplo, era identificado no Estado e tinha prescritos seus direitos e deveres”38.
6. Considerações Finais

O problema que se impõe a toda sociedade, obviamente não de forma consciente, é


o de sua organização através de um sistema de símbolos sociais. Seja a linguagem fonética,
ou a fala; a linguagem visual, como um sinal vermelho; a linguagem ritual, quando vemos
pessoas indo a igreja domingo de manhã para salvar suas almas; a linguagem moral, onde a

38
EBERHARD (1948), p. 56. Tradução livre do autor; segue a passagem original: “Während aber Europa das
Ideal des Individualismus aufgestellt hat und nun daran krankt, dass es keine Ethik mehr hat, der sich die
Individualen freiwillig unterstellen; während für den Inder das gesellschaftliche Problem in der Lösung der
Frage bestand: wie ist es möglich, dass jeder Mensch möglichst ungestört von den Mitmenschen sein Leben
führen kann, löste der Konfuzianismus das Problem, wie in einer übervölkerten Land Gruppen von Familien
mit oft Hunderten von Einzelmenschen in Frieden und wirklicher Gemeinschaft miteinander leben können.
Jedem Menschen war seine Stellung in der Familie und damit in weiterem Sinne im Staat bekannt; damit
waren ihm seine Rechte und auch seine Pflichte vorgeschrieben”.
estruturação de valores éticos nos diz o que é bom e o que é ruim; tudo isso faz parte dessa
organização que é, na verdade, um pré-requisito para a existência do ser humano em
sociedade. A citação anterior de Eberhard já serve como uma conclusão comparativa de
algumas formas diferentes de resposta para essa necessidade.
Ambas China e Índia antiga são sociedades que podem ser consideradas holistas.
Ou seja, grupo vem antes do indivíduo, pois este só existe em função daquele; é a
sociedade que determina seu lugar, sua função e seu comportamento em todos os âmbitos
da vida comunitária. A diferença está no fato de que a China tinha realmente uma
Weltanschauung universalista, enquanto isso não acontecia na Índia. Com isso, entende-se
a visão do Imperador chinês como responsável pela harmonia em todo o mundo. Na Índia
as relações eram mais restritas; só era incluído no mundo quem estava em uma casta. A
capacidade de englobamento do que era estranho pela cultura chinesa foi causa de situações
intrigantes como, quando no século XVIII, os ingleses tentaram estabelecer comércio com
a terra do Imperador. Os ingleses mandavam amostras de seus produtos, frutos da ainda
recente revolução industrial, que eram compreendidos de forma bastante singular na China:
como tributos. “Os tributos dos bárbaros eram sinal do poder de atração da virtude
imperial, objetivações dos poderes civilizatórios do soberano celestial. Eram
obrigatoriamente produtos especiais do país dos bárbaros e, em certos aspectos simbólicos,
quanto mais estranhos fossem, melhor: significariam a capacidade do Imperador de abarcar
uma diversidade universal”39.
Roma e Grécia, por sua vez, contém já a semente do que se tornará a ideologia
moderna do individualismo. Logicamente sua estrutura é permeada de um holismo
essencial, como podemos observar na fides romana. A aplicabilidade de conceitos como
status e contractus, Gemeinschaft e Gesellschaft, individualismo e holismo, demonstra a
existência de um elemento determinante: a oposição entre indivíduo e sociedade. Porém,
mesmo que pareça contraditório, a noção do indivíduo moral que herdamos da antiguidade
clássica ocidental é criada dentro da sociedade: somos socialmente moldados para sermos
indivíduos.

7. Bibliografia

 ANDERSON, Perry, Passagens da Antiguidade ao Feudalismo, Ed. Brasiliense,


São Paulo, 1987
 AUBOYER, Jeannine, A Vida Quotidiana na Índia Antiga, Ed. Livros do Brasil,
Lisboa.
 AZEVEDO, Murillo Nunes de, O Olho do Furacão: Um Panorama do Pensamento
do Extremo Oriente, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1973.
 CÍCERO, Marco Túlio, De Las Leyes, trad. N. A. Rufino, Editorial Tor, Buenos
Aires, s/d.
 DICIONÁRIO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, Ed. FGV, Rio de Janeiro, 1987.
 DUMONT, Louis, O Individualismo: Uma Perspectiva Antropológica da Ideologia
Moderna, Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1985.
 DURKHEIM, Émile, MAUSS, Marcel, Algumas Formas Primitivas de
Classificação (1903). in: MAUSS, Marcel, Ensaios de Sociologia, Ed. Perspectiva,
1981.
39
SAHLINS (?), p. 67.
 EBERHARD, Wolfram, Chinas Geschichte, A. Francke AG Verlag, Bern, 1948.
 EFFENTERRE, Henri van, A Idade Grega, Publicações Dom Quixote, Lisboa,
1979.
 FINLEY, M. I., Escravidão Antiga e Ideologia Moderna, Ed. Graal, Rio de Janeiro,
1991.
 GAIO, Institutas, trad. Alfredo di Pietro, Ed. Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1987.
 GEERTZ, Clifford, A Interpretação das Culturas, Ed. Guanabara Koogan, Rio de
Janeiro, 1989.
 GODINHO, V. M., A România e a Crise do Século III. In: GODINHO, Vitorino M.,
Ensaios vol. I, Ed. Sá da Costa, Lisboa, 1978.
 LÉVI-STRAUSS, Claude, Antropologia Estrutural, Ed. Tempo Brasileiro, Rio de
Janeiro, 1975.
 PEREIRA, M. H. R. Estudos de História da Cultura Clássica vol II: Cultura
Romana. Ed. Fund. Calouste Gulbenkian. Lisboa, 1990.
 POLANYI, Karl, Aristotle Discovers the Economy. in: POLANYI, ARENSBERG,
PEARSON, Trade and Market in the Early Empires, The Free Press, New York,
1957.
 SAHLINS, Marshall, Cosmologias do Capitalismo: O Setor Trans-Pacífico do
“Sistema Mundial”,
 TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso, Ed. UnB, Brasília, 1987.
 VEYNE, Paul (org.), História da Vida Privada: Do Império Romano ao Ano Mil,
Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1997.
 XENOFONTE, Econômico, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1999.

Você também pode gostar