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BRAUDEL Documento de Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial

Associado à Fundação Armando Alvares Penteado

PAPERS

Nº 05 - 1994
A Fábula das Abelhas
Eduardo Giannetti da Fonseca

A Fábula das Abelhas 03

A Colméia Ruidosa, ou os
Canalhas que se Tornaram Honestos 14
BRAUDEL
PAPERS
Fernand Braudel Institute
of World Economics
Associated with FAAP
(Fundação Armando Alvares Penteado)
03 A fábula das abelhas
Rua Ceará, 2 – 01243-010 (Eduardo Giannetti da Fonseca)
São Paulo, SP – Brazil “Vícios privados, benefícios públicos?”
Phone: 55- 11 3824-9633
e-mail: ifbe@braudel.org.br
www.braudel.org.br
14 A colméia ruidosa, ou os
Conselho Diretor: Rubens Ricupero (Presidente), Beno canalhas que se tornaram honestos
Suchodolski (Vice-Presidente), Roberto Paulo César de (Bernard Mandeville)
Andrade, Roberto Appy, Alexander Bialer, Diomedes “Uma grande colméia, de abelhas repleta,
Christodoulou, Roberto Teixeira da Costa, Edward T. Que viviam em luxuosidade completa,...”
Launberg, Carlos Alberto Longo, Luiz Eduardo Reis de
Magalhães, Idel Metzger, Mailson da Nóbrega, Yuichi
Tsukamoto e Maria Helena Zockun.

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Braudel Papers é publicado pelo Instituto


Fernand Braudel de Economia Mundial

Editor: Norman Gall


Jornalista Responsável: Pedro M. Soares
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Promoção e Marketing: Nilson V. Oliveira; Matthew
Taylor
Online version: Emily Attarian Braudel Papers é uma publicação
Layout by Emily Attarian bimensal do Instituto Fernand Braudel
de Economia Mundial com o especial
Copyright 1994 Instituto Fernand apoio da The Tinker Foundation e
Braudel de Economia Mundial Champion Papel e Celulose
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A fábula das abelhas
Eduardo Gianetti da Fonseca
A ética lida com aquilo que pode ser diferente do — imediatamente notamos uma mudança radical. O
que é. O terremoto que aniquila uma comunidade ou cardíaco é livre para decidir se vai ou não consultar
a leucemia que destrói de um jovem provocam em nos um médico e o cirurgião escolhe a melhor técnica para
um sentimento intimo de revolta, mas não se prestam à reparar o coração defeituoso. Ciente de que a digestão do
condenação moral. São eventos naturais, determinados alimento ingerido ocorre à sua revelia, o prisioneiro pode
por mecanismos causais inerentes ao mundo físico e ainda optar pela greve de fome como forma de protesto.
que independem por completo da vontade e escolha Agir ou deixar de agir são eventos que de alguma forma
humanas. Podemos, é claro, evitar a construção de partem do indivíduo e que estão, portanto, abertos à
cidades em áreas de risco e buscar a cura da leucemia; interferência de seus estados mentais — suas crenças,
ou aceitar estoicamente os fatos; ou rezar. Mas seria preferências e opiniões.
absurdo supor que eventos como esses possam ser Algumas atividades, é curioso notar, parecem situar-
diferentes do que são. Completamente distinta é a nossa se na fronteira cinzenta do controlável. Se prestarmos
reação diante do bombardeio aéreo de civis, do desvio atenção ao fato (e se tivermos paciência para isso)
de verbas públicas ou de um atropelamento na porta podemos acelerar ou retardar a respiração; de outro
de uma escola. Ao sentimento de revolta junta-se aqui modo (e enquanto dormimos) ela encontra o seu próprio
a desaprovação moral — o juízo ético e a atribuição de ritmo. Há um sentido em que acordar na hora desejada
responsabilidade (dolosa ou culposa) aos causadores do é um ato de vontade — algo que podemos nos forçar
mal. Fazemos isso porque acreditamos estar diante de a fazer — , ao passo que nenhum esforço da vontade
eventos que, de alguma forma, poderiam perfeitamente consciente consegue nos fazer adormecer quando o sono
não ter ocorrido. Em contraste com a ótica estritamente não vem. Estar ciente de que se deseja e precisa dormir
científica dos fenômenos, dentro da qual “apenas o que costuma ser, de fato, um traço comum da insônia.
acontece é possível”, o ponto de vista moral abre uma A experiência subjetiva dessa cisão entre aquilo que
brecha para a possibilidade de que o mundo como ele e nos acontece e aquilo que fazemos é algo que cada um
esteja aquém do mundo como ele pode e deve ser. pode facilmente constatar por si mesmo. O porquê da
A ética parte da crença na existência de um hiato — cisão e o que faz com que a fronteira esteja onde está
alguns diriam abismo — separando a realidade humana — podemos mexer o dedo e a língua mas não o pâncreas
do potencial humano. Esta crença no hiato, por sua vez, e o nervo óptico — são questões que se prestam a um
baseia-se numa experiência de liberdade que podemos tratamento científico e que a biologia poderá talvez
facilmente apreciar por nós mesmos. algum dia ajudar a esclarecer.
A condição humana padece de uma singular cisão. O que é certamente mais difícil imaginar é que o
As funções vitais do organismo — todos os processos avanço da ciência possa algum dia refutar a validade
metabólicos que ocorrem dentro do nosso corpo — são da nossa experiência subjetiva da cisão. A história
eventos imunes à nossa vontade e escolha conscientes, da ciência, é verdade, tem sido em grande medida a
O coração bate, o sangue circula, o pulmão trabalha história da destruição das nossas crenças em causalidades
e o alimento é digerido sem que possamos decidir imaginárias: com um simples par de prismas polidos,
como acontecerá tudo isso. Sob o efeito do estímulo por exemplo, Newton enterrou milênios de fantasias
apropriado, o fígado segrega a bílis e as glândulas sobre as causas do arco-íris. Mas dai a supor que a nossa
supra-renais a adrenalina. A eficácia de um anestésico sensação de liberdade ao agir no mundo seja também ela
independe das crenças que o doente possa ter sobre o uma ilusão antropocêntrica há um fosso intransponível.
seu funcionamento. Trata-se aqui de uma questão metafísica sobre o lugar da
Mas quando passamos do metabolismo interno espécie humana no universo — o homem como parte
do corpo para a nossa relação com os eventos do apenas ou também como parceiro da criação - e uma das
ambiente externo — para as nossas ações no mundo poucas certezas firmes que se pode ter sobre o assunto é

Eduardo Giannetti da Fonseca é professor da Faculdade de Economia da USP e realizou este trabalho como Profes­sor de Pesquisa Octávio Gouvêa de
Bulhões no Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. Esta pesquisa está publicada em seu livro Vício privados, benefícios públicos? pela Companhia
das Letras.

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que ele continuará fornecendo matéria-prima seu poder sobre nossas ações — por exemplo
para especulação e debate enquanto ainda impedindo que, numa situação de perigo
houver filósofos no mundo para especular e coletivo, cada um se entregue cegamente ao
debater. impulso de sobrevivência.
Do ponto de vista da ética, a O mesmo raciocínio se aplica para a
experiência da cisão entre aquilo variada gama de ocorrências emocionais que
que nos acontece, de um lado, nos impelem não a evitar ou fugir de alguma
e aquilo que fazemos quando coisa, mas a buscar e perseguir um objetivo.
agimos ou deixamos de agir, “A preservação da nossa vida” observou
de outro, é crucial. O ponto Sócrates, “depende de uma escolha
fundamental é que, como correta do prazer... se ele é mais ou
no caso dos eventos corporais menos, se é amplo ou estreito,
acima descritos, nossos se é mais remoto ou mais
processos mentais também próximo” (Protágoras,
estão, em larga medida, 357a). Como até mesmo
apenas parcialmente sob um libertino consumado
nosso controle. termina mais cedo ou
O medo, a raiva, o mais tarde descobrindo,
pavor e o pânico, por discriminar prazeres
exemplo, são ocorrências é condição de
emocionais às quais estamos sobrevivência para o
sujeitos em determinadas indivíduo (e não só por
circunstâncias. São eventos causa da Aids..). “Os
que, por assim dizer, nos efeitos de uma seqüência
atravessam sem pedir de prazeres dissolutos”,
licença ou fazer cerimônia; adverte o bispo e filósofo
processos mentais que não moral inglês Joseph Butler,
podemos simplesmente “são com freqüência
escolher se desejamos ou não mortais”.
ter, assim como podemos As coisas e imagens que
escolher, digamos, espontaneamente, sem nos
a hora em que pedir licença, suscitam
desejamos despertar em nós o desejo e a
ou a cor da roupa ambição, nem sempre
que vamos vestir. são aquelas que
Se os nossos processos mentais estivessem inteiramente também merecem governar o nosso desejo e ambição.
sob nosso comando consciente, poderíamos não só As aparências enganam. Entre o desejado, de um lado,
escolher à vontade a personalidade e o caráter que nos e o desejável, de outro, está uma opinião — um juízo
parecessem mais aprazíveis, mas poderíamos também de valor que faz daquilo que se deseja algo merecedor
viver em estado permanente de êxtase amoroso, furor do nosso desejo. A ética incide precisamente ai. Ela é o
criativo e embriaguês eufórica. Ninguém precisaria filtro que separa o desejado do desejável.
escolher, como propõe o poeta, entre morrer de vodca A diferença entre o desejado e o desejável ajuda a
ou de tédio. A indústria do álcool e a mídia de massa esclarecer a posição de Adam Smith quanto à ambição
iriam à falência. material e o valor moral da riqueza. Para ele, o livre-
A ética é um filtro. Ela existe para impedir, em alguma mercado e o desejo da maioria de melhorar de vida são as
medida, que aquilo que nos acontece espontaneamente duas variáveis responsáveis pelo desempenho econômico
- o sentimento agudo de medo - numa situação de das nações, com o auto-interesse e o empenho dos
perigo por exemplo — determine sem mediação aquilo jogadores sendo ainda mais decisivos do que as regras do
que faremos ao agir no mundo. A ética opera como um jogo. Na síntese formulada pelo próprio Smith:
filtro que modula e modera o apelo dos estados mentais O esforço natural de cada indivíduo para melhorar sua
em relação aos quais somos passivos, de modo a atenuar própria condição, quando se lhe permite ser exercitado com

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liberdade e segurança, é um princípio tão poderoso que ele a conduta humana ao seu redor e foi capaz de constatar,
é capaz, por si só, e sem qualquer assistência, não apenas por exemplo, que “para a maior parte das pessoas ricas
de conduzir a sociedade à riqueza e prosperidade, mas de a principal fruição da riqueza consiste em poder exibi-
sobrepujar uma centena de obstruções impertinentes com as la, algo que aos seus olhos nunca se dá de modo tão
quais a estupidez das leis humanas com tanta freqüência completo como quando elas parecem possuir aqueles
estorva sua operação. sinais de opulência que ninguém mais pode ter a não
A hipótese comportamental adotada por Smith é a de ser elas mesmas”. Quase sem nos darmos conta (e não
que os indivíduos desejam ardentemente melhorar sua apenas no sentido literal) nós tendemos “a exibir nossas
condição de vida material, que eles lutarão com afinco riquezas e a esconder nossa pobreza”.
por isso, e que usarão a liberdade conquistada — ou Mas ao contrário dos moralistas clássicos, entretanto,
os favores que porventura arrancarem da autoridade Smith jamais condenou a aspiração espontânea da maioria
política — para fazer valer seu auto-interesse econômico. e muito menos alimentou a ilusão de que a pregação
“Gente do mesmo ramo de negócios”, observou Smith, moral, a doutrinação bem-intencionada ou um “golpe
“raramente se encontra, até mesmo para entretenimento de marketing” pela ética pudessem algum dia alterar
e diversão, sem que a conversa termine em alguma essa realidade. Em sua teoria econômica, ele reconheceu
conspiração contra o público ou em algum conluio para a força do desejo pela riqueza e procurou analisar seus
elevar os preços”. Isso é o desejado, ou seja, assim age na efeitos sob diferentes arranjos institucionais.
prática não um ou outro gato pingado, mas o que ele Nada disso, contudo, o levou a confundir o desejado
costumava chamar de “a grande multidão humana”. com o desejável. Embora tolerável do ponto de vista
Mas Smith jamais confundiu o desejado e o desejável. moral, e sob muitos aspectos surpreendentemente
benéfico para o conjunto da sociedade, o auto-interesse
Na Teoria dos Sentimentos Morais, ele procurou mostrar
econômico do indivíduo estava longe de ser alguma coisa
porque “a grande multidão humana” deseja o que deseja
admirável. Imaginar que a riqueza e o poder pudessem
e porque o desejado, embora moralmente tolerável, ter o dom de tomar os seus detentores pessoas mais ou
estava longe de ser o desejável: menos merecedoras do nosso respeito e estima sempre
Nós desejamos ambas as coisas, ser respeitáveis e ser foi visto, por Adam Smith, como uma “corrupção dos
respeitados. Nós receamos ambas as coisas, ser desprezíveis e ser nossos sentimentos morais”.
desprezados. Mas ao chegarmos ao mundo logo descobrimos Uma posição teórica muito distinta da smithiana,
que a sabedoria e a virtude não são de forma alguma os únicos e que acabou em larga medida dominando a ciência
objetos de respeito, nem o vício e a estupidez de desprezo. econômica no século 20, é a tese do egoísmo ético.
Nós assistimos com freqüência as atenções respeitosas do Trata-se aqui, como será visto a seguir, da afirmação
mundo mais fortemente dirigidas para os ricos e poderosos do do auto — interesse governado pelo motivo-monetário
que para os sábios e virtuosos. Nós assistimos com freqüência não tanto como uma regularidade empírica, mais ou
os vícios e a estupidez dos imponentes muito menos menos próxima dos fatos observáveis, mas como uma
desprezados do que a pobreza e a fraqueza dos inocentes. prescrição — como um ideal normativo de conduta para
Merecer, conquistar e usufruir o respeito e a admiração o indivíduo — tendo em vista os objetivos de promover
da humanidade são os grandes objetivos da ambição e da a eficiência produtiva e alocativa da economia e de
emulação. Dois caminhos distintos se apresentam diante de maximizar o nível de bem-estar material da sociedade.
nós, os dois igualmente levando à consecução deste objetivo Dentro dessa perspectiva, o desejável é precisamente
tão desejado: um deles, pelo estudo da sabedoria e pela prática aquilo que a “grande multidão humana” retratada por
da virtude; o outro, pela aquisição da riqueza e poder Dois Adam Smith deseja. Para os adeptos do egoísmo ético
tipos distintos de caráter se apresentam à nossa emulação: “é apenas necessário que cada indivíduo aja de forma
um deles, de ambição orgulhosa e avidez ostentatória; o egoísta para que o bem de todos seja atingido”, já que
outro, da modéstia humilde e da justiça equânime... “os melhores resultados seriam obtidos se as pessoas
São os sábios e virtuosos; um grupo seleto embora, eu não pensassem de todo em termos morais, mas agissem
tema, reduzido, os verdadeiros e resolutos admiradores da meramente de modo egoísta”.
sabedoria e da virtude. A grande multidão humana são os O principal objetivo deste ensaio será apresentar e
admiradores e veneradores, e, o que pode parecer ainda mais discutir criticamente o argumento que levou à tese do
extraordinário, com freqüência admiradores e veneradores egoísmo ético na economia moderna. A intenção é
desinteressados, da riqueza e do poder. examinar os limites dessa tese e analisar à luz da pesquisa
As simpatias de Smith enquanto filósofo moral teórica e empírica mais recente, a importância da ética
dispensam comentário. Ele observou com frieza analítica como fator de produção.

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É praticamente certo que o egoísmo ético não tem as abelhas da colméia se descobrem condenadas a uma
precedente nas filosofias antiga e medieval. Na filosofia existência insípida e medíocre, porém virtuosa, no
moderna, sua formulação original remonta ao que era, interior de uma árvore oca. Antes da súbita conversão
de início, um poema satírico publicado anonimamente das abelhas, nenhuma outra colméia era tão pujante,
em 1705 sob o título de A Colméia Ruidosa; ou canalhas próspera e bem governada quanto aquela. Sua indústria
feitos honestos. O impacto inicial do poema foi quase e seu poderio militar conferiam-lhe respeito e renome
nulo. Nove anos mais tarde, contudo, ele reapareceu internacionais. Suas leis, arte, ciência e tecnologia eram
como parte de uma obra mais ampla, também anônima, admiradas e copiadas pelas colméias vizinhas. Embora
e que acabou se tomando um dos maiores, senão o houvesse grande desigualdade social entre as abelhas,
maior, succès descandale em um século notório pela não havia desemprego na colméia. E o avanço da técnica
ousadia e prodigioso vigor de sua vida intelectual. Na e da capacidade produtiva eram de tal ordem que todos
sua nova roupagem, o poema original era seguido de um se beneficiavam de alguma forma. Graças a isso, até os
ensaio sobre “a origem da virtude moral” e cerca de vinte pobres de agora podiam “viver melhor que os ricos do
comentários emprosa aprofundando temas específicos passado”.
abordados na sátira. O novo conjunto foi batizado Mas não obstante todas estas conquistas e feitos
A Fábula das Abelhas; ou vícios privados, benefícios notáveis, a insatisfação era geral. As abelhas não tinham
públicos; e o seu autor, como logo transpareceu, era paz e viviam se acusando e recriminando umas às outras.
Bernard Mandeville, um médico holandês radicado na Nunca perdiam a chance de reclamar amargamente de
Inglaterra. sua triste condição. Um close-up da base motivacional
Entre as características de Mandeville como da colméia ajuda a esclarecer a razão.
intelectual, uma das mais salientes foi sem dúvida A economia da colméia girava alimentada pelos
o seu gosto irreverente pelo paradoxo. Suas causas vícios que moviam as abelhas como consumidoras e
prediletas pareciam calculadas para atiçar nos leitores produtoras. Sua pujança e afluência resultavam de um
mais ortodoxos o máximo de frisson e repulsa. Sob o espetáculo pouco edificante: “milhões procuravam dar
verniz de uma retórica mordaz e esmerada, ele defendeu satisfação mútua a sua cupidez e ostentação”.
a prostituição feminina em nome da proteção da Ao gastar seus rendimentos, as abelhas se entregavam
castidade sexual e atacou a educação popular em nome a um hedonismo insaciável. Eram escravas da volúpia, do
da preservação da felicidade do povo — a ignorância exibicionismo e do capricho da moda. Já na produção,
servindo, no caso, como uma espécie de ópio capaz de elas pertenciam a uma das duas classes fundamentais
trazer contentamento e alegria aos menos favorecidos. em que se dividia a sociedade da colméia: os canalhas
Mas o seu mais fecundo paradoxo — aquele que assumidos e os canalhas dissimulados. O grupo dos
fez de sua Fábula, como ironizou Samuel Johnson, assumidos era composto por parasitas, especuladores,
“um livro que todo jovem possui em suas estantes na charlatões, falsificadores, estelionatários, proxenetas,
crença errônea de que é um livro depravado” — foi o ladrões comuns e todos aqueles que sendo inimigos
argumento desenvolvido no poema satírico de 1705 do “honesto labor, com sagacidade tiravam vantagem
e imortalizado na fórmula elíptica “vícios privados, considerável da lida do vizinho incauto e afável”.
benefícios públicos”. O outro grupo, mais numeroso, era constituído de
A colméia da Fábula é uma miniatura da sociedade abelhas ostensivamente honestas mas que, sempre que
inglesa tal como a percebia Mandeville: “esses insetos podiam fazê-lo sem muito risco, aplicavam algum
viviam como os homens, e todas as nossas ações eles as truque ou trapaça contra clientes e fornecedores: “de
faziam em pequena escala”. A principal característica todos os negócios a fraude era pane, nenhuma profissão
da colméia era a profunda dissociação entre as suas era isenta dessa arte”. A este grupo pertenciam, entre
brilhantes realizações práticas e econômicas, de um lado, outros, advogados, comerciantes, industriais, militares,
e o descontentamento ético das abelhas consigo próprias médicos, enfermeiras, balconistas, professores, políticos,
de outro. Na sua ingenuidade, elas não se davam conta padres, ministros de Estado e oficiais de justiça.
de que ambas as coisas estavam intimamente ligadas O grande sonho de cada abelha individual, não
entre si, que o vínculo entre uma e outra era o mesmo importando a classe a que pertencesse, era encontrar o
que une um efeito à sua causa. Tudo lá transcorria sem caminho mais fácil e curto para sobrepujar as demais em
maiores abalos, até o dia em que suas preces são afinal fama, poder e riqueza. Aberta ou secretamente, todas
atendidas por um deus impaciente que expulsa o vício, elas viviam segundo a máxima do verso horaciano: “Da
a má-fé e a hipocrisia de suas vidas. Em pouco tempo, maneira honesta se você conseguir, mas de qualquer

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maneira faça dinheiro”. A virtude era o crime bem- apenas uma, de modo que mais alguns milhares se
sucedido. vão”.
Mas o problema é que as abelhas não eram apenas No setor privado, os efeitos do decreto de Júpiter
aproveitadoras, corruptas e egoístas. Elas também eram são ainda mais amplos. Sem guerras não há indústria de
míopes e incapazes de ver que o esplendor econômico armamentos; sem o desejo de ostentar não há produção
da colméia, do qual tanto se orgulhavam, resultava e comércio de bens de luxo; sem vaidade e inconstância
precisamente de seus vícios e taras, “tal como na harmonia não há indústria da moda. Bares, hotéis e restaurantes
musical sons dissonantes produzem unidos um acorde”. se esvaziam e as abelhas passam a vestir a mesma roupa
Elas não viam que, como de fato no seu próprio caso, durante anos. O comércio externo declina. Lojas e
“uma bela superestrutura pode ser construída sobre uma fábricas fecham em dominó. Os preços desabam e o
fundação podre e desprezível”. desemprego explode. As abelhas perdem o interesse que
E como cada abelha individual se considerava melhor as movia: já não se ligam em ganhar mais, ao menor
que as demais, e acreditava sinceramente estar muito custo, para poder gastar mais. “Ruína da indústria, a
acima de toda a desonestidade e depravação que percebia satisfação faz com que apreciem o que possuem e nada
à sua volta, o resultado era um clamor estrondoso pela mais cobicem ou busquem”.
implantação da ética e da justiça na colméia. A cada nova O resultado final de toda essa cadeia de efeitos
denúncia, a cada novo escândalo, ao menor incidente interdependentes deflagrada pela súbita conversão das
que se tornasse público, as abelhas embarcavam numa abelhas é uma dupla depressão — uma queda sem
verdadeira orgia de insultos, acusações e recriminações precedentes na economia e a pasmaceira existencial.
mútuas, cada uma clamando por mais honestidade e Uma tentativa de invasão externa e rechaçada a duras
rezando pela regeneração moral das demais. penas, com o sacrifício de milhares de abelhas, até que
É aí que Júpiter acaba perdendo a paciência com por fim a colméia outrora grandiosa e radiante se resigna
as abelhas e resolve atendê-las. Ele baixa um decreto ao padrão de vida típico dos insetos sociais — uma
eliminando qualquer traço de egoísmo, oportunismo e existência estagnada, reta e sem brilho, “abençoada pelo
corrupção da “colméia lamuriante”. De agora em diante, contentamento e honestidade”, dentro de uma árvore
todos os hedonistas e canalhas (de ambas as classes) serão oca. E como toda a fábula tem uma moral, esta também
paradigmas da retidão e da virtude. termina anunciando a sua. Como esclarece o próprio
A primeira coisa que acontece é um sentimento Mandeville no prefácio da obra:
profundo e geral de vergonha. Cada abelha olha para O principal objetivo da Fábula (tomo é brevemente
o seu passado e se depara com aquilo que antes não via explicado na moral) é mostrar a impossibilidade de
— suas próprias fraquezas, vícios e imperfeições. Cai a usufruir lodosos mais elegantes confortos da vida, com os
máscara da hipocrisia e caí o preço da carne. Os tribunais quais nos deparamos em qualquer nação industriosa, rica
se esvaziam. Os devedores vão atrás dos credores para e poderosa, e ao mesmo tempo ser abençoado com toda a
pagar o que devem, mas estes preferem perdoar e esquecer. virtude e inocência que se poderia desejar numa idade de
A advocacia desaparece do mapa como profissão (ainda ouro; e a partir disso exibir a tolice e insensatez daqueles
não existiam economistas naquele tempo). A própria que, desejosos de pertencer a um povo florescente e próspero,
justiça e o sistema penal tornam-se ociosos, e com eles e maravilhosamente sequiosos dos benefícios que podem
se vão todos os delegados, policiais, carcereiros e oficiais receber enquanto tal, estão no entanto sempre murmurando
de justiça. Alguns poucos médicos continuam existindo, e condenando aqueles vícios e saliências que desde o início
mas melhor distribuídos pela colméia e voltados apenas do mundo até o dia presente sempre foram inseparáveis de
para o bem-estar do paciente. O uso de remédios todos os remos e Estados que se renomaram pelo seu poderio,
despenca. O clero desperta do seu torpor, mas é tarde riqueza e refinamento ao mesmo tempo.
demais — já não há pecados a perdoar. O argumento da Fábula, vale notar, vira de ponta-
Aos poucos, as repercussões da nova ordem se fazem cabeça a tese do “neolítico moral”, segundo a qual
sentir por toda parte. Os políticos e ministros de Estado a raiz dos nossos problemas sociais estaria numa
tomam-se frugais e passam a viver apenas do seu salário. disparidade crescente entre o avanço científico,
O setor público da economia experimenta uma brutal tecnológico e econômico da humanidade, de um lado,
contração. Os parasitas largam a mamata “e todos os e o retardamento ético dos indivíduos de outro. O vício
cargos ocupados antes por três abelhas, que assistiam à não é o filho bastardo e corrigível da prosperidade. Ele é
canalhice umas das outras, e com freqüência ajudavam- o pai dela. O barro das motivações e taras humanas
se por coleguismo no roubo, agora são ocupados por — egoísmo, ganância, inveja, vaidade, lascívia,

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cupidez, avareza — é o insumo indispensável para a
fina porcelana da civilização. O vínculo entre vício
e progresso não é de simples concomitância (mais ou
menos indissociável), como muitos supõem. Trata-se de
uma relação causal direta na qual, graças a uma espécie
de “alquimia divina” (Mandeville), os mais brilhantes
efeitos têm como causa as mais condenáveis e
inconfessáveis paixões.
O núcleo lógico do paradoxo mandevilliano consiste
numa reductio ad absurdum da posição adotada pelos
moralistas clássicos. Imagine que algum dia, por um
verdadeiro milagre, a humanidade não só se disponha a
ouvir com a devida atenção a pregação destes moralistas,
mas passe também a agir de acordo com ela. Como seria
viver numa comunidade inteiramente povoada por gente
como São Francisco de Assis, Madre Tereza de Calcutá
e Mahatma Gandhi? O que aconteceria na prática, se
as pessoas se tomassem genuínas amantes do bem e da
virtude, seguindo à risca a regra central da razão prática
kantiana segundo a qual cada um deve agir de tal modo
que a máxima da sua vontade possa ao mesmo tempo
ser um princípio universal de ação? Ou ainda, se cada
um de nós concluísse por si que “existem poucas coisas
que desejaríamos com intensidade se nós realmente frontalmente a essa idéia. Ambas sugerem que a tese do
soubéssemos o que queremos”? egoísmo ético padece de sérias falhas analíticas e precisa
O resultado de tanta virtude, responde Mandeville, ser profundamente revista.
só poderia ser um — a mina do comércio e da indústria, Antes, contudo, de passar à análise crítica do
a estagnação científica e tecnológica e o embotamento egoísmo ético e ao exame do papel da moral como
geral da civilização. O argumento central da Fábula, não fator de produção, valeria à pena tentar esclarecer,
se pode negar, contém muito de verdadeiro. O excesso ainda que rapidamente, três pontos relevantes para um
de moralidade cívica leva à colméia ossificada. Sua entendimento adequado do paradoxo mandevilliano:
imposição de cima e de fora (no caso pela autoridade (a) o papel das leis e da justiça, (b) o rigorismo ético
divina) acaba produzindo não o paraíso sonhado, mas um e (c) a questão da “alquimia divina”.
limbo estagnado e insípido. O valor moral dos grandes Mandeville reconheceu, embora sem muita ênfase
mártires e heróis da humanidade reside precisamente ou rigor, a importância de um arcabouço respeitado
na escassez relativa dos seus méritos e virtudes. Se todos de lei e ordem para conter dentro de certos limites o
nós fôssemos tão bons quanto eles, ninguém mais no frenesi aquisitivo das abelhas. Na moral da fábula, ele
mundo se destacaria pela sua bondade. Imaginar que se não apenas reforça a mensagem central de que “a virtude
possa basear todo um sistema econômico na hipótese nua e crua não é capaz de levar nações ao esplendor”,
de que os indivíduos agirão de acordo com o ideal da mas ele também introduz uma cláusula nova, que não
perfeição moral é não só uma fantasia tola, mas uma fora até então mencionada, e que atenua em parte o
receita para o desastre, (Talvez a própria reprodução caráter paradoxal do argumento: “Assim, o vício o bem
sexual da espécie humana ficasse comprometida!). A vai causar, se a justiça o atar e podar”. É curioso notar
mais valiosa contribuição da sátira de Mandeville foi ainda que, embora Mandeville não tenha escrito um
mostrar o quanto há de verdade e bom senso nessas comentário especifico para aprofundar este ponto, na
proposições. Por outro lado, e como será sugerido digressão sobre o consumo suntuoso (‘Observação L’ da
abaixo, o mesmo não pode ser dito da noção de que a Fábula) ele voltaria ao assunto:
moral não tem nada a ver com o desempenho produtivo O comércio é o principal mas não o único requisito
ou serve apenas para atrapalhá-lo. A evolução recente da para engrandecer uma nação. há outras coisas das quais
teoria econômica e a pesquisa sobre os determinantes é preciso cuidar além disso. O meum e tuun precisam ser
do grau de desenvolvimento das nações contrapõem-se garantidos, os crimes punidos, e todas as outra’ leis quanto

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à administração da justiça sabiamente elaboradas e e uma atenção prudente aos nossos assuntos particulares
estritamente executadas. são princípios louváveis de ação, assim como a apatia
O fato, contudo, é que a trama da sátira de e a preguiça — o descaso e o desleixo em relação à
Mandeville parece ser em larga medida inconsistente nossa própria pessoa — nada têm de meritório. Fazer
com a implementação desse preceito. Pois se a justiça do ascetismo monástico o padrão universal da conduta
fosse estritamente implementada, isso levaria à extinção ética foi um dos estratagemas empregados com inegável
de uma das duas classes fundamentais da colméia, os arte por Mandeville para potencializar o caráter paradoxal
canalhas assumidos. Claramente, enfatizar a importância da Fábula.
de um arcabouço respeitado de lei e ordem em nada Finalmente, há o problema da interpretação da
contribuiria para reforçar o tom de provocação e afronta fórmula “vícios privados, benefícios públicos”. Há
da fábula. uma elipse enigmática separando as duas metades dessa
Outro ponto que merece atenção é o rigorismo ético expressão. Qual seria, mais precisamente, a natureza
sobre o qual se ergue o argumento central da Fábula. do mecanismo — da “alquimia divina” — responsável
Para alcançar o efeito desejado, Mandeville trabalha pela transformação do vício das partes no esplendor do
com uma visão extraordinariamente restritiva do que é todo?
conduta moral: a noção de que toda a virtude é feita Entre as respostas possíveis, existem duas linhas
de renúncia, isto é, da “rendição das paixões através básicas de interpretação. Num pólo está a posição,
de uma ambição racional de ser bom”; ao passo que, defendida por Jacoh Viner, de que Mandeville é ainda
por oposição, toda conduta auto-interessada, e que de basicamente um mercantilista, e de que é através da
alguma forma beneficie o próprio agente, constitui ipso “administração engenhosa por políticos habilidosos”,
facto uma ação egoísta e merece portanto ser chamada como diversas vezes ressalta o autor da Fábula, que os
de vício. vícios privados se tornariam beneficio público.
Que a renúncia seja um dos elementos centrais No outro pólo está a posição adotada por Hayek,
da conduta moral é algo que dificilmente se poderia entre outros, de que Mandeville é um precursor da “mão
contestar. Mas defini-la como uma total e absoluta invisível” smithiana, e de que é através da liberdade
“rendição das paixões” e elevá-la à condição de único econômica e de “regras gerais de conduta justa”, como
caminho da virtude — tudo o mais caindo na vala insiste o economista austríaco, que os vícios privados
comum do vício — é um passo altamente questionável. desaguarão no beneficio público.
Um passo que, se não coloca a ética definitivamente fora Ambas as posições, é preciso admitir, são
do alcance de meros bípedes mortais como nós humanos, razoavelmente plausíveis. Em diversas passagens, por
no mínimo retira dela qualquer relevância prática. exemplo, Mandeville expressa o seu temor de que “a
Adam Smith, ao criticar o “sistema licencioso” de sabedoria míope de pessoas talvez bem intencionadas
Mandeville na Teoria dos Sentimentos Morais, pôs o possa roubar-nos de uma felicidade que fluiria de modo
dedo no nervo da questão: “A grande falácia do livro espontâneo da própria natureza de qualquer grande
do Dr. Mandeville é representar toda paixão como sociedade, se ninguém desviasse ou interrompesse essa
inteiramente viciosa, na medida em que ela o seja em corrente”. Uma das principais funções de “leis sábias”
qualquer grau ou em qualquer direção”. Da mesma forma seria justamente a de proteger o bem comum dos
Hume, criticando o “entusiasmo moral” associado ao “grandes prejuízos” causados “pela falta de conhecimento
rigorismo ético, ironizou: “Imaginar que a gratificação ou de probidade dos ministros, se algum deles se mostrar
de qualquer sentido, ou a satisfação de gostos refinados menos capaz e honesto do que desejaríamos que fosse”.
em carnes, bebidas ou vestes, constitui por si um vício, Tudo isso seria difícil negar, é água no moinho dos
é algo que jamais poderá entrar numa cabeça que não que preferem Mandeville no panteão dos pioneiros do
esteja desorientada pelos desvairios do entusiasmo. De liberalismo econômico.
fato, ouvi contar de um monge estrangeiro que, como Mas o fato, entretanto, é que existem fortes evidências
as janelas de sua cela se abriam por sobre uma bela apontando também na direção oposta. A importância
paisagem, fez um pacto com os seus olhos para que eles que Mandeville atribui, por exemplo, à existência de uma
nunca se voltassem naquela direção e recebessem uma população grande e mal instruída (“abençoada” pela sua
gratificação tão sensual”. ignorância), à preeminência internacional da colméia e,
Nem só de renúncia é feita a conduta moral. A ainda, ao seu poderio militar, são traços inequívocos de
afirmação de valores na vida prática, a busca da felicidade suas inclinações mercantilistas.

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Ainda mais sintomática é a ausência na sua obra, de forem as regras do jogo econômico, o auto-interesse
qualquer argumento econômico articulado mostrando crasso é muito mais um obstáculo do que um insumo
o mecanismo pelo qual vícios privados redundariam na busca da eficiência e do crescimento econômicos.
em beneficio público. Todas as vezes em que se refere O fato, como será visto em detalhe a seguir, é que a
ao conteúdo subentendido na elipse de sua fórmula, simples maximização do auto-interesse individual, sem
Mandeville invariavelmente ressalta o papel da inibições e preocupações morais, é um princípio de
autoridade política no desenho e implementação de conduta inadequado — e com freqüência letal — tanto
políticas e instituições que tomem o interesse privado para o bom desempenho da economia como para a
subserviente ao bem comum. A mediação entre o barro própria existência do mercado enquanto mecanismo de
tosco das partes e a fina porcelana do todo se dá através coordenação econômica.
de um processo político que depende, por sua vez, da Afirmar que a virtude pura não funciona na economia,
existência de “políticos habilidosos”. Mandeville pregou o que é verdadeiro, de forma alguma significa dizer que
a liberdade econômica sem explicar porque ela poderia o vício puro funcione, o que é falso. E para mostrar
funcionar. Não deixa de ser um espetáculo curioso isso não é necessário invocar um planeta povoado por
contemplarmos um médico descrente (assumido) e, no Hitlers, Stalins, Neros e Genghis Khans. Basta examinar
entanto, capaz de acreditar na “alquimia divina” com alguns casos concretos onde a ética — pela sua presença
tamanha fé. ou ausência — parece de fato decidir o resultado da
A força do paradoxo mandevilliano deriva de partida.
um exercício contra-factual. À colméia que aí está é O imperativo da justiça, como condição de existência
contraposta uma outra colméia, hipotética, onde a da vida comunitária em sociedades complexas, ocupa
virtude e a honestidade ocupam o lugar do vício e da lugar de destaque no pensamento de Adam Smith, e nem
corrupção. A questão proposta é: o que aconteceria se os mesmo Mandeville deixou de fazer uma clara reverência
membros da comunidade suprimissem suas inclinações — ainda que um tanto encabulada — na sua direção.
egoístas, hedonistas e oportunistas para abraçar, digamos, No limite, como assinala Joan Robinson em Filosofia
o princípio da ética franciscana do “dar sem contar o Econômica, “uma sociedade constituída de egoístas
custo, trabalhar sem pedir recompensa”? A moral da irrefreados se espatifaria em pedaços”. A existência de
fábula sugere a futilidade do clamor pela virtude e induz um arcabouço respeitado de lei e ordem, protegendo
à reconciliação da “colméia ruidosa” com a colméia que cada indivíduo contra atos de violência, roubo e fraude,
ai está. O desejado é o desejável. Amor fati. O primeiro é o que nos separa da guerra. E a guerra é a negação da
passo para tornar clara a fragilidade desse raciocínio e economia.
mostrar o que há de fundamentalmente errado com a O mínimo legal da convivência humana civilizada
tese do egoísmo ético é recorrer a um argumento contra- na política (democracia) e na economia (mercado) pode
factual na direção oposta. Suponha que os indivíduos parecer pouca coisa. Mas a experiência vem mostrando,
adotem como princípio de conduta na vida prática o entretanto, como por exemplo nas economias do Leste
mais estrito, vigoroso e inexpugnável auto-interesse, isto Europeu em transição para o mercado ou nas sociedades
é, que eles sejam absolutamente alheios a qualquer tipo atrasadas do Terceiro Mundo onde as instituições da
de consideração pelo bem‑estar dos demais (egoísmo) troca não se firmam, que conquistar e consolidar este
e que jamais percam uma chance sequer de tirar pouco é tarefa bem mais difícil do que parece.
proveito em benefício próprio da violação de normas Mesmo sendo pouco, o mínimo legal já é, de fato,
de convivência social (oportunismo). Pergunta-se: o que muita coisa. Como qualquer regulamento, o arcabouço de
aconteceria? Quais seriam as conseqüências prováveis lei e ordem apenas é respeitado quando a grande maioria
da generalização do auto-interesse crasso — egoísmo + dos indivíduos se dispõe a obedecê-lo voluntariamente.
oportunismo — por toda a sociedade? Até que ponto Para que isso ocorra, o poder coercitivo da autoridade
se poderia supor, como sustentam Milton Friedman, estatal e o cálculo racional do auto-interesse crasso não
George Stigler e outros adeptos recentes do egoísmo bastam. A ordem social e a ordem do mercado estão
ético, que uma população assim constituída conduziria ancoradas numa infra-estrutura ética. Para escapar do
a sociedade ao máximo de eficiência e prosperidade, naufrágio, nenhuma das duas pode prescindir dela.
desde que o Estado não atrapalhe demais e os jogadores A adesão ao mínimo legal requer uma dose considerável
sejam livres para perseguir o seu auto-interesse dentro de sentimentos e crenças morais, formadas a partir de um
das regras do jogo da economia de mercado? longo processo de aprendizado na família e no sistema
Há boas razões para acreditar que, sejam quais escolar, que contenham a violação das leis dentro de

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certos limites. As estatísticas de crimes violentos não só que a teoria econômica dá ao sistema de livre-iniciativa,
em países pobres, mas também em algumas das nações baseia-se no pressuposto de que o empreendimento é
mais ricas do planeta, revelam os limites e a fragilidade não apenas privado e livre , mas que é competitivo”. A
da adesão ao mínimo legal no mundo contemporâneo. competição estimula a - empresa livre e privada a buscar
Nos Estados Unidos, por exemplo, 25% das escolas ganhos de produtividade através da inovação técnica e
de segundo grau em áreas urbanas já adquiriram e organizacional. Mas para que esses ganhos cheguem até
instalaram detectores de metais para tentar coibir o uso onde se deseja, ou seja, até o bolso, o estômago e a sala
de armas pelos alunos no recinto da escola. O futuro não de estar do público consumidor, é imprescindível que
está escrito. Mas é preciso lembrar que, ao contrário dos ela opere num ambiente competitivo.
atributos físicos do corpo, crenças e sentimentos morais Outro elemento crucial para que o sistema funcione
não são transmitidos geneticamente entre gerações. é a confiança, por parte de cada indivíduo e de cada
Do ponto de vista econômico o mínimo legal empresa, de que o resultado final de suas atividades
pressuposto pelos adeptos da teoria econômica pura, será avaliado e remunerado de forma independente, de
com base no princípio do egoísmo ético, está longe acordo com a disposição dos consumidores em pagar
de ser tudo. O que é enganoso, contudo, é supor de por eles.
antemão a sua existência como dada ou o respeito a ele O problema é que se este vínculo entre atividade,
pelos jogadores como universal. avaliação e remuneração se toma irregular e incerto,
A conquista e a consolidação do mínimo legal são ou seja, se o mínimo legal do mercado não é garantido
tarefas mais complicadas do que se poderia imaginar pelo Estado e passa a ser amplamente contestado e
à primeira vista e o sucesso em realizá-las, mesmo desrespeitado, os agentes não só perdem a confiança de
sem ser tudo, é já grande coisa. O risco de pressupor que poderão de fato colher mais à frente o que decidirem
o mínimo legal como dado na economia é perder de plantar hoje, como passam a reorientar seus esforços
vista a variabilidade e a precariedade da adesão a ele. e talento na tentativa de colher agora o que os outros
O fato relevante é que, longe de ser alguma coisa dada plantaram antes. Os efeitos dessa quebra de confiança
de antemão, poder usufruir de um mínimo legal bem- no mínimo legal do mercado são bem analisados por
definido e amplamente acatado é em si mesmo um David Ricardo:
extraordinário beneficio para qualquer economia. A A quantidade de emprego num país depende não apenas
real dimensão desse beneficio é dificilmente notada e da quantidade de capital, mas da sua distribuição vantajosa
apreciada enquanto se pode contar com ele. Como a e, sobretudo, da convicção de cada capitalista de que lhe
saúde, o mínimo legal da interação econômica apenas será permitido usufruir sem ser molestada, dos frutos do seu
costuma se fazer notar quando falta. capital, sua habilidade e sua capacidade empreendedora.
O mínimo legal da economia de mercado inclui, além Retirar dele tal convicção é aniquilar de uma só vez metade
da legislação criminal básica, regras que estabelecem a da indústria produtiva da nação e seria mais fatal para o
fronteira entre o que é lícito e o que é ilícito na atividade trabalhador pobre do que para o próprio capitalista rico.
econômica. Sabotar as operações da empresa rival ou O problema é que tanto um Estado fraco e inoperante
subornar o seu gerente de marketing são violações das quanto um Estado excessivamente forte e voraz minam a
regras mínimas da competição. Mas manter para si (ou confiança do setor privado no mínimo legal do mercado.
patentear) um segredo industrial ou atrair o tal gerente O primeiro porque se mostra incapaz de garantir a
oferecendo um salário mais alto fazem parte das regras justiça e proteger os agentes dos avanços predatórios dos
do jogo, embora suas conseqüências para a empresa rival demais; e o segundo porque ele próprio acaba se tornando
possam ser muito piores do que no primeiro caso. a grande ameaça de invasão predatória, colhendo para si,
O mínimo legal da ordem do mercado — direitos através de impostos e confiscos, o resultado das atividades
de propriedade bem-definidos, liberdade e garantia produtivas do setor privado.
de execução de contratos e prevenção de práticas anti- Pior do que um ou outro, apenas uma combinação
competitivas — tem como objetivo básico barrar as perversa de ambos: o Estado que combina a inoperância na
tentativas dos agentes econômicos de viver às custas dos administração da justiça com a voracidade irresponsável
demais, colhendo o que não plantaram. do lado fiscal.
A importância da prevenção de práticas anti- Infelizmente, esse híbrido monstruoso — uma espécie
competitivas nesse contexto é bem assinalada por Viner: de leviatã anêmico — é uma praga teimosa da qual
“Praticamente todo apoio, em termos éticos e econômicos, diversas economias na América Latina e África parecem

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não conseguir se livrar. A manutenção do mínimo Sem ética há uma regressão infinita: quem guarda os
legal do mercado, como dizia Mill sobre a segurança, guardiões?
“consiste na proteção pelo governo, e na proteção contra O ponto central é que a qualidade dos jogadores afeta
o governo”. O que ele não poderia imaginar é que algum a natureza e a robustez das regras do jogo. Jogadores
dia ambas as coisas pudessem ser urgentes ao mesmo motivados pelo auto-interesse crasso não se contentam
tempo. em perseguir seus objetivos dentro da ordem do mercado
Entre as causas da erosão do mínimo legal do e jogar limpo todo o tempo: eles irão persistentemente
mercado, a inflação crônica merece lugar de destaque. tentar — e muitas vezes conseguirão — driblar as
A moeda é parte do sistema de pesos e medidas que dão restrições que o mínimo legal do mercado define.
precisão e transparência às transações econômicas. A E pior: quando a própria autoridade política — o
falta de um padrão monetário com valor relativamente juiz da partida — fraqueja ou adota o auto-interesse
estável torna precário qualquer cálculo de retomo crasso como princípio de ação, o resultado é a total
das atividades econômicas. Ela promove enormes deturpação não só do andamento do jogo, mas do placar
transferências arbitrárias de renda entre o setor público final medido em termos de eficiência produtiva e criação
e o privado, bem como no interior deste, estimulando de riqueza.
padrões de conduta incompatíveis com a ética e a lógica A lei sem suporte moral é letra morta. A falta de
do mercado. (Uma abordagem preliminar das relações compromisso com a ética torna precária e incerta a
entre ética e inflação encontra-se no ensaio Ética e vigência do mínimo legal do mercado. Muitas vezes
inflação, publicado em Braudel Papers no. 1.). ela acarreta o seu completo desvirtuamento, com sérias
Um fator crucial para a defesa do mínimo legal do conseqüências para o desempenho da economia. Mais do
mercado pelo governo e contra o governo é a própria
moralidade dos governantes. Poucas coisas seriam (e são)
mais corrosivas do respeito às regras do jogo da economia
de mercado do que a extensão da tese do egoísmo ético
para os ocupantes de cargos no setor público. Se os
membros do governo e os oficiais de justiça passassem a
pautar suas ações pela busca do auto-interesse crasso, o
resultado seria não só a prática generalizada do “para os
amigos tudo, para os inimigos a lei”, mas a subordinação
do próprio processo legislativo a interesses pessoais.
Que isso já ocorra, em alguma medida, na prática,
como apontam os teóricos da “escolha pública”, parece
ser um fato inegável. Mas seria também difícil negar,
por outro lado, que a experiência internacional de
corrupção e abuso do poder político é marcada por uma
espantosa diversidade, com situações que vão da Suíça
à Nigéria. Entre as causas dessa diversidade está muito
provavelmente a operação de sanções e condicionantes
morais no exercício de funções públicas. É importante
deixar claro que a proposta favorita dos adeptos da
“escolha pública” para lidar com o problema do abuso
do poder em regimes democráticos — a criação de regras
e salvaguardas constitucionais impondo limites para a
margem de decisão e ação discricionária dos governantes
— de forma alguma prescinde de um generoso insumo
de moralidade política.
Os requisitos morais da proposta são: (a) a existência
de constituintes dispostos a legislar pelo que acreditam
ser o bem comum; e (b) a atuação vigilante de um poder
judiciário capaz de fazer cumprir a constituição apesar
da resistência (ou coisa pior) de políticos recalcitrantes.

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Mas se adotarmos a perspectiva da ética como fator
de produção o quadro se altera radicalmente. Quanto
às regras do jogo, não há muito o que discordar. A
economia de mercado regida pelo sistema de preços
é a melhor solução para o problema da coordenação
econômica e da alocação eficiente de recursos. A grande
diferença está no peso atribuído à variável qualidade dos
jogadores — e à ética em particular — enquanto fator
determinante do desempenho econômico de empresas
e nações.
O que está em jogo, portanto, não são as propriedades
notáveis e surpreendentes da “mão invisível” smithiana
ou a universalidade e a força do desejo de cada pessoa de
melhorar de vida. Até ai tudo bem. O que se questiona
é o que se faz a partir daí: a tese de que as regras do jogo
do mercado representam uma espécie de sinal verde para
o vale-tudo no campo da ética e de que o auto-interesse
dentro da lei basta.
Como procurei argumentar neste ensaio, existem
duas razões básicas e de caráter rigorosamente
prático — para não invocarmos motivos mais
elevados — pelas quais se deve rever a noção
que se tornou dominante na teoria econômica
do pós-guerra e segundo a qual o mercado
significa “férias morais” para os jogadores.
que isso, a tese do Primeiro, porque as regras do jogo
egoísmo ético econômico — inclusive, é claro, a adesão
se revela um ponto e o respeito ao mínimo legal do mercado
de vista inadequado e — dependem da qualidade dos jogadores.
deficiente mesmo na Como foi sugerido acima, a existência de
hipótese (generosa) de que um Estado enxuto e capaz de administrar
as regras do jogo do sistema a justiça, de um lado, e a disposição da
de mercado estão dadas maioria dos indivíduos de acatar as regras
de antemão e não serão do jogo, de outro, pressupõem um
violadas de forma sistemática generoso insumo de moralidade cívica.
pelos jogadores ou pelo juiz da Na ausência deste insumo — como
partida. parece ser o caso em boa parte das nações
Qual a natureza da relação em desenvolvimento — as instituições do
entre o ético e o útil? O mercado competitivo não se firmam e o jogo
egoísmo ético, inspirado na econômico da sociedade tende a prosseguir de modo
“mão invisível” smithiana, precário, instável e desordenado.
privilegia as regras do jogo E segundo, porque o bom funcionamento das regras
econômico, ou seja, o livre- do jogo do mercado e das organizações hierárquicas da
mercado propelido pelo auto- sociedade dependem da qualidade dos jogadores. Tanto
interesse dos jogadores, como fator responsável pela a experiência de homens práticos como a evolução da
riqueza das nações. Dado o mercado e um arcabouço teoria econômica fornecem boas razões para sustentar
respeitado de lei e ordem, a prosperidade econômica é a tese de que a ética conta. Dado o sistema de mercado
atingida apesar da falta de ética dos jogadores (Adam e um arcabouço respeitado de lei e ordem, a riqueza
Smith) ou por causa dela (Mandeville e Chicago). O útil das nações é, em larga medida, explicada pela presença
independe do ético ou é função negativa dele. de valores éticos e normas sociais na vida prática dos

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jogadores. Entre o desejado por cada indivíduo, de um e exercem, juntamente com elas, um papel decisivo no
lado, e o desejável para o grupo a que ele pertence, de desempenho da economia.
outro, existem valores e normas de interesse comum a Tanto a constituição econômica vigente quanto o
serem preservados. O útil, em suma, é função positiva exercício da cidadania na vida produtiva dependem
do ético. de um processo de formação de crenças e sentimentos
No “grande tabuleiro de xadrez da sociedade humana” morais sobre o qual muito pouco se sabe de um ponto
as regras do jogo são importantes, mas estão longe de de vista científico. Uma coisa no entanto, parece certa.
ser tudo. É ilusão supor que o auto-interesse dentro Negligenciar esse processo e as variações a que ele
da lei é tudo o que o mercado precisa para mostrar do está sujeito é perder de vista um dos fatores decisivos
que ele é capaz na criação de riqueza. A qualidade dos na explicação das causas da riqueza e da pobreza das
jogadores — as variações de motivação e conduta na nações.
ação individual — afetam a natureza das regras do jogo

A colméia ruidosa, ou os canalhas


que se tornaram honestos
Bernard Mandeville
Uma grande colméia, de abelhas repleta, Que não requeriam senão o impudor,
Que viviam em luxuosidade completa, E sem um centavo podiam se impor
Porém tão famosa por leis e ação Como parasitas, gigolôs, ladrões,
Quanto por copiosa população, Punguistas, falsários, magos, charlatões,
Constituía o grande manancial E todos os que, por inimizade
Do saber científico e industrial. Ao honesto labor, com sagacidade
Não havia abelhas com governo melhor, Tiravam vantagem considerável
Com mais contentamento, inconstância menor; Da lida do vizinho incauto e afável.
Não eram escravas da tirania, Chamavam-nos canalhas, mas os diligentes,
Nem sofriam com democracia, Exceto o nome, não agiam diferente.
Mas tinham reis, que errar não podiam, De todos os negócios a fraude era parte,
Pois seu poder as leis comediam. Nenhuma profissão era isenta dessa arte.
(...) (...)

Embora o enxame a fértil colméia abarrotasse, Assim, o vício em cada parte vivia,
Essa multidão fazia com que ela prosperasse; Mas o todo, um paraíso constituía;
Milhões procuravam dar satisfação Temidos na guerra, na paz incensados,
Mútua a sua cupidez e ostentação; Pelos estrangeiros era respeitados,
Outros tantos entravam na lida E, de riquezas e vidas abundante,
Para ver sua obra destruída. Entre as colméias era a preponderante.
Abasteciam o mundo com sobra, Tais eram as bênçãos daquele estado;
Mas tinham mais trabalho que mão-de-obra. Seus crimes tomavam-no abastado;
Alguns, com pouco esforço e grande capital, E a virtude, que com a politicagem
Faziam negócios de lucro monumental; Aprendera bastante malandragem,
Outros, condenados a foices e espadas Tomara-se, pela feliz influência,
E a todas essas árduas empreitadas Amiga do vício; por conseqüência,
Em que, voluntariamente, infelizes suavam O pior elemento em toda a multidão
Para poder comer, as forças esgotavam; Realizava algo para o bem da nação.
Outros ainda a mistérios estavam votados, (...)
Aos quais poucos aprendizes eram encaminhada
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Assim, o vício fomentava o engenho Vede agora na colméia renomada
Que, unido ao tempo e ao bom desempenho, Honestidade e negócios de mão dada;
Propiciava da vida as comodidades, O show terminou; foi-se rapidamente,
Seus prazeres, confortos e facilidades, E mostrou-se tom face bem diferente>
A tal extremo que mesmo os miseráveis Pois não apenas foram-se embora
Viviam melhor que os ricos do passado, Os que gastavam muito a toda hora,
E nada podia ser acrescentado. Como multidões, que deles dependiam,
Como é vã dos mortais a felicidade! Para viver, forçadas, também partiam.
Soubessem eles da precariedade, Era inútil buscar outra profissão,
E de que, cá embaixo, a perfeição Pois vaga não se achava em toda nação.
Não pode dos deuses ser concessão, Enquanto que orgulho e luxo minguavam,
Teriam os animais se contentado Gradativamente os mares deixavam,
Com ministros e governo instalados. Não os mercadores, mas companhias
Porém eles, a cada sobrevento, Fábricas fechavam todos os dias.
Como seres perdidos e sem tento, Artes e ofícios mortos estão.
os políticos e as armas maldiziam, Ruína da indústria, a satisfação
Enquanto “Abaixo os desonestos!” rugiam. Faz com que apreciem o que possuem
Os próprios defeitos podiam tolerar, E nada mais cobicem ou busquem.
Mas dos demais, barbaramente, nem pensar! Assim, poucos na colméia ficaram,
(...) Nem centésima parte conservaram
Contra os ataques de inimigos vários,
A menor coisa que um erro mostrasse, A quem sempre enfrentavam, temerários,
Ou que os negócios públicos trancasse, Até encontrar algum refúgio forte,
E todos os velhacos gritavam aos céus: Onde se defendiam até a morte.
“Se ao menos houvesse honestidade, oh Deus!” Em suas forças não houve mercenários;
Mercúrio sorria ante o descaramento, Valentemente, lutaram eles próprios.
Já outros chamavam de falta de tento Sua coragem e integridade total
Protestar sempre contra o mais amado. Foram coroadas com a vitória final.
Mas Júpiter, de indignação tomado Triunfaram, porém não sem azares,
E, por fim, irritado, jurou de vez Pois as abelhas morreram aos milhares.
Livrar a colméia da fraude. E assim fez. Calejadas de árdua lida e exercício,
No mesmo momento em que ela partia Consideraram a comodidade um vício,
De honestidade o coração se enchia; O que aperfeiçoou sua moderação
Tal como para Adão, se lhes revelaram Tanto, que para evitar dissipação
Aqueles crimes dos quais se envergonharam, Instalaram-se duma árvore na cavidade,
Que então, em silêncio, confessaram, Abençoadas com satisfação e honestidade.
E ante sua torpeza coraram,
Como menino de mau comportamento
Que pela cor denuncia o pensamento,
Imaginando, ao ser olhado,
Que os outros vêem o seu passado.
(...)

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