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DIREITO

À
CIDADE:
NOVOS
OLHARES

Samara Takashiro

3
DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO.
Apresentação
Com muita satisfação, o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico - IBDU lança o
Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico - IBDU segundo volume da linha editorial “Direito à Cidade - Novos Olhares”, composta por
Diretoria Executiva | Gestão 2016-2017
Presidente: Daniela Campos Libório publicações coletivas com o intuito de promover reflexões sobre o direito à cidade a par-
Vice-Presidente: Betânia de Moraes Alfonsin tir de recortes de gênero, raça, diversidade sexual e identidade de gênero.
Tesoureira: Vanessa Koetz
Diretora Administrativa: Ligia Maria Silva Melo de Casimiro
O primeiro volume já lançado, dedicou-se a discutir o direito à cidade a partir de um
Diretor Administrativo: Alex Ferreira Magalhães olhar de gênero. Para isso, contamos com a colaboração de dezesseis mulheres que abor-
Secretário Executivo: Henrique Botelho Frota daram temáticas como mobilidade urbana, conflitos fundiários, direito à saúde, direitos
sexuais e reprodutivos, formulação de políticas públicas, luta por moradia, dentre ou-
Organização e edição: tros. A receptividade desta primeira publicação, demonstrou o quanto essas percepções
Vanessa Koetz
são necessárias e urgentes na atualidade.
Helena Duarte Marques
Jessica Tavares Cerqueira No entanto, desde a idealização do projeto editorial - que foi concebido para o mês
Projeto Gráfico e diagramação: de março em referência ao dia internacional da mulher -, já tínhamos clareza de que uma
Mariana Boaventura
Fotos: única edição não poderia suprir todas as abordagens possíveis, mesmo que dentro de
Coletivo Dicampana um só recorte, como o de gênero feminino.
e Samara Takashiro Por isso, para este novo volume, convidamos mais mulheres a contar suas vivências
e percepções acerca do direito à cidade, por meio de pequenos textos, ensaios e imagens.
Essas autoras, em sua maioria ativistas e militantes, ajudaram-nos a dirigir o olhar para
IN59 Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico - IBDU questões não exploradas no primeiro volume. As intersecções entre raça e gênero, por
Direito à Cidade: uma outra visão de gênero - São Paulo: IBDU, 2017.
exemplo, são muito mais marcantes neste volume dialogando com o dia 25 de julho, o
113p. dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.
ISBN: 978-85-68957-06-6 Por reconhecer as desigualdades que se colocam nos territórios, de variadas formas,
1. Direito à Cidade 2. Gênero 3. Diversidade 4. Sociedade 5. Brasil I. Título II. o IBDU visa ampliar essas vozes para que ecoem entre os círculos acadêmicos, militan-
Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico III. Fundação Ford Brasil tes, ou de formulação de políticas, que tratam de assuntos relativos ao planejamento ur-
bano. Mas, principalmente, que esse debate supere as fronteiras dos grupos já iniciados
CDD 349 + 305 e possa chegar a população de uma maneira geral.
CDU 305-055.2 Considerando o empenho de todas que abraçaram essa proposta de construção co-
letiva, agradecemos imensamente as autoras que aceitaram o nosso convite, assim como
as fotógrafas que ilustram o livro, e a designer gráfica que deu forma e identidade visual
a este trabalho.
Entendemos que o papel de publicações como essa não é esgotar os debates ou fechar
questões, pois a historicidade e complexibilidade dos temas não cabe e nem se resolve em
um conjunto de textos. A intenção é muito mais lançar provocações e algumas reflexões
Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International (CC BY-NC-SA 4.0)
no sentido do acúmulo coletivo. Não temos, ainda, qualquer pretensão em ser pioneiras,
pois reconhecemos e valorizamos que muitas outras mulheres têm contribuído para o
direito à cidade, nem sempre em produções técnicas e acadêmicas, mas igualmente ou
www.ibdu.org.br até mais importantes. Nossos passos vêm de longe!

Salve Carolina Maria de Jesus!

Boa leitura!

As organizadoras.
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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO.
SUMÁRIO
Apresentação.............................................................................................................................................. 5

1.

2.
Nossos corpos, nossa cor, nossa cidade: Os impactos causados pelas intervenções
decorrentes dos grandes projetos de urbanização no Rio de Janeiro
Marielle Franco; Mônica Francisco; Rossana Tavares ............................................................. 10

Sociabilidade e Resistência Negra na Cidade de São Paulo


Thaís Santos ..................................................................................................................................... 18
1
3. Mulheres negras e ocupação do espaço público: ativismo cultural nos saraus da cidade
de São Paulo
Bruna da Silva Magno; Diana Mendes dos Santos ................................................................... 25

4. Barreiras visíveis e invisíveis na favela: Pelo bem viver das nossas mulheres
Jessica Tavares Cerqueira .............................................................................................................. 32

5. Mães pretas em luto(a): para se ter direito à cidade, é preciso viver


Paula Nunes dos Santos................................................................................................................. 42 Marielle Franco é vereadora da cidade do Rio de Janeiro (PSOL)
6. Mulheres vítimas da velha guerra e da Nova Luz
e mestra em políticas públicas (UFF).
Helena Duarte Marques................................................................................................................. 48
Mônica Francisco é membro da Rede de Instituições do Borel, co-
7. Mulheres e uso problemático de álcool e outras drogas: desmontando estigmas e
colhendo sonhos ordenadora do Grupo Arteiras e consultora na ONG ASPLANDE.
Fernanda Araújo de Almeida......................................................................................................... 56

8. Gênero e Cidades: Violência, Assédio e Exclusão Rossana Tavares é arquiteta urbanista e professora. Doutora em
Anna Luiza Salles Souto................................................................................................................. 70 urbanismo (UFRJ).
9. Violência contra a mulher e feminicídio: A urgente necessidade de informação
atualizada e contínua.
Patrícia Tuma Martins Bertolin; Denise Almeida de Andrade................................................. 75

10. A casa delas, na luta e no direito


Simone Gatti .................................................................................................................................... 83

11. Lugar de mulher é no espaço público! E que o teatro tem a ver com isso?
Fernanda Azevedo........................................................................................................................... 92

12. A visibilidade em outros espaços: Os papéis sociais mudam o modo como uma mulher
se coloca como cidadã?
Grazielle Albuquerque.................................................................................................................... 98

13. CIDADE, Substantivo Feminino


Amanda Marcatti; Isadora Penna ................................................................................................ 104

14. Di campana ...................................................................................................................................... 109

15. Samara Takashiro............................................................................................................................ 112

DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO.


Samara Takashiro

1
LÉFÈBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001, p. 56.
2
LÉFÈBVRE, Henri. De lo rural a lo urbano. Barcelona: Edicciones Península, 1973, p. 206.

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. AS MULHERES E O DIREITO À CIDADE: UM GRANDE DESAFIO DO SÉCULO XXI
isolamento no espaço público (nos bairros) e privado (em casa), restrição/controle sobre
o direito de ir e vir (vigilância e moralidade; dificuldade de acesso ao transporte público
e andar a pé como “alternativa”), vulnerabilidade física e psicológica (assédio, violência
doméstica e urbana, depressão). Sobre isso, as mulheres constroem sua resistência pela
solidariedade: puxadinhos, improvisos, coabitação, diversidade, laços fortes de vizi-
nhança que são fundamentais - apesar de alguns desses aspectos serem vistos pelo senso
NOSSOS CORPOS, NOSSA COR, NOSSA CIDADE: comum, basicamente, como problemas. Nesse sentido, valorizar esse ponto de vista da
OS IMPACTOS CAUSADOS PELAS INTERVENÇÕES segregação, tenciona inclusive o debate clássico do feminismo sobre o antagonismo entre
espaço público (masculino) e espaço privado (feminino).
DECORRENTES DOS GRANDES PROJETOS DE O modo como o patriarcado historicamente traduziu a propriedade privada sempre
URBANIZAÇÃO NO RIO DE JANEIRO foi de modo a apartar as mulheres do direito ao seu domínio jurídico, isolando-a ao es-
paço doméstico. As mulheres nas favelas ressignificam essa dualidade, revelando como
Marielle Franco essa condição se reconfigura na luta pelo direito à cidade. Não é por acaso que nós es-
tamos em maior número nos movimentos de moradia e contra os despejos forçados. A
Mônica Francisco
conquista pela preferência à titularidade da moradia em programas de habitação popu-
Rossana Tavares lar realmente é ganho diante desse processo histórico, mas o direito à cidade nos impõe
avançar no entendimento sobre o acesso à terra. Nos basta a propriedade?
As experiências urbanas das pessoas em uma cidade como o Rio de Janeiro não po- Circulamos e somos para além desses limites. Mesmo nas periferias e nas favelas,
dem ser vistas de uma forma única, sobretudo quando colocamos o foco no cotidiano e precisamos disputar e resistir para fora das fronteiras impostas por outra dualidade: a
nos desafios de mulheres negras e faveladas. O debate sobre violência urbana e segu- cidade formal x informal, ou o asfalto x o morro. Somos uma mão de obra barata mas
rança pública tem roubado a cena nos últimos anos. E ganha contornos mais complexos que ativamente interfere na dinâmica social da cidade através do trabalho. Em grande
quando o associamos à problemática da moradia, da mobilidade e da saúde pública, que parte dos bairros mais pobres do Rio de Janeiro, metade dos domicílios são chefiados
projetam o valor de resistência dos nossos corpos nesta cidade. por mulheres. As campanhas contra o assédio nas ruas e no transporte público e o polê-
A visibilidade pública e política destas questões ainda estão em disputa, já que de- mico vagão rosa que, apesar das críticas se incorpora como interesse das que se sentem
pende do lugar de fala e a própria perspectiva do debate que centralmente aponta para vulneráveis à violência machista, revelam esse processo contraditório mas necessário de
um viés economicista de efeitos em curto prazo em detrimento da perspectiva de gênero, resistência urbana cotidiana.
raça e geração. Nesse contexto, como é possível dar conta do reconhecimento destas dife- Numa cidade acostumada, nos últimos anos, a grandes projetos arquitetônicos que
renças quando buscamos pensar os efeitos da indiferença quanto ao déficit de cidade às favorecem basicamente processos especulativos da terra urbana, trazer à tona a noção
mulheres negras, empurradas para um processo de segregação paradoxal? Essa pergun- acerca do direito à cidade na perspectiva das desigualdades de gênero aponta para a
ta não se explica somente por questões materiais e geográficas, mas também simbólicas valorização dos espaços públicos. É preciso diferenciar o valor de troca, que vincula a
e culturais que operam simultaneamente. Independentemente de estarmos no centro, na cidade à ideia de mercadoria, do valor de uso, que é o lugar da garantia da democracia,
zona sul ou na favela, sobre nossos corpos se impõe uma perversidade que restringe e da diversidade dos modos de apropriação do espaço urbano.
limita nossa experiência urbana onde atuam machismo e racismo. Por essa razão, o modo como tem sido concebido programas de urbanização de fa-
Segregação nos espaços de representação: quando conquistamos um lugar de lide- velas como foram o Favela-Bairro, PAC das Favelas e Morar Carioca não responde às
rança e de poder, outros desafios surgem; de manter e garantir esse lugar de fala e dispu- demandas e interesses dos favelados. Um grande problema é a mobilidade, sobretudo
ta política. Do contrário, ser apartada ou colocada na invisibilidade política faz parte da para as mulheres que precisam circular pelos becos estreitos e íngremes para ir trabalhar,
dinâmica de perpetuação deste espaço como um lugar de homens. Reafirmar a identida- levar as crianças na escola, fazer compras, cuidar de seus idosos.
de feminina negra como feminista potencializa oposições e conflitos. Desse modo, estar Saídas possíveis seriam a melhoria das calçadas, pavimentação de vias para desloca-
como vereadora e nas assessorias é uma conquista cotidiana para contribuir de fato para mentos a pé, de bicicleta, de moto e até escadas rolantes em determinados trechos - vide
a construção de alternativas no legislativo para garantia ao direito à cidade, onde impe- experiência em Medellín. Essas são formas de melhoria de locomoção com custos meno-
ram a lógica do favor, da fragmentação, do sexismo/machismo e racismo. res e que valorizam a realidade e as características das favelas. No entanto a resposta
A segregação pode ser entendida pela localização: espaço doméstico, nos conjuntos apresentada à questão da locomoção foi a construção de teleféricos que serviram mais à
habitacionais e loteamentos periféricos, nas favelas. Entre seus efeitos podemos destacar: construção de uma imagem global para os megaeventos associado ao turismo, e a uma

10 NOSSOS CORPOS, NOSSA COR, NOSSA CIDADE: OS IMPACTOS CAUSADOS PELAS INTERVENÇÕES DECORRENTES 11
DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. DOS GRANDES PROJETOS DE URBANIZAÇÃO NO RIO DE JANEIRO
ideia forçada de integração do Complexo do Alemão1 e Providência ao restante da cida- a vivência diária de uma cidadania mutilada e incompleta, gera ainda uma tensão iden-
de. titária, pois não é possível usufruir plenamente a sua negritude (cabelos, vestimentas,
Apesar da urgência, é preciso levar em consideração os desafios da participação na linguagem e mitos) nos diversos espaços da cidade.
elaboração das propostas. Mas ao mesmo tempo, “pequenas” soluções e intervenções Deste modo, os impactos causados pelas intervenções decorrentes dos grandes proje-
urbanas, podem ter um efeito significativo na vida das mulheres negras e consequen- tos de urbanização dos quais a cidade do Rio de Janeiro foi alvo ao longo de sua história
temente na vida da cidade como um todo. A iluminação pública e a valorização das vão além das mudanças na infraestrutura e na estética dos lugares. Atravessam estas
calçadas pode ser revolucionário para contribuir para a construção de uma cidade mais políticas uma série de questões, entre elas a questão da Segurança Pública. Com as mu-
segura. danças no tecido urbano, a formulação das políticas públicas de segurança sempre foram
médias da sociedade, o que produziu certa hostilidade ao corpo negro no todo urba- voltadas para o controle da circulação dos corpos negros no todo da cidade. Basta per-
no. No que se refere às mulheres negras, estas sempre tiveram sua circulação e vivência ceber a implantação de projetos de segurança pública, onde forças de segurança oficiais
da cidade completamente distintos das mulheres brancas, inclusive das mulheres bran- são implementadas nas áreas onde habitam as camadas populares, e as medidas que cer-
cas pobres. ceiam o deslocamento desta população pela cidade, sendo a Zona Sul da cidade do Rio
O racismo estrutural produziu uma série de injustiças, dentre elas as injustiças ur- de Janeiro, o local onde essa prática é observada de maneira mais óbvia.
banas, que se traduzem na forma como estas mulheres são percebidas ou não na sua No andamento da política de ocupação dos espaços populares pelas forças policiais
movimentação pela cidade. Movimentação esta eivada de preconceitos e estigmas, cir- na atualidade (UPP) , tendo como pano de fundo a implementação de obras de infraestru-
cunscrevendo as mulheres negras a determinados lugares sociais e estereótipos e geran- tura do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do Morar Carioca . O adoeci-
do uma fixidez na sua maneira de viver a cidade. Assim, o fluxo das mulheres negras, mento, o sofrimento mental e morte são os efeitos colaterais nefastos deste processo. Suas
quando acessam a possibilidade de romper com esta lógica e transpor estes lugares, aces- maiores vítimas, sem dúvida alguma, são as mulheres negras e as brancas pobres. Dentre
sando lugares diferentes dos socialmente determinados, geram surpresa, incômodo e elas, as negras são as que mais sofrem com as instabilidades produzidas na relação com
hostilidade. a cidade. Seja com o próprio poder público, seja pela incompletude das obras, seja pela
Como a maioria da população negra ocupa os espaços de pobreza, vulnerabilizados indefinição nos casos de remoções, realocações e indenizações. São as mulheres negras
por políticas públicas de habitação e infraestrutura precárias, as mulheres negras, maio- e pobres que ainda gastam mais horas no cuidado da casa e da família, que sofrem com
ria na população também nestas áreas, acabam sofrendo ainda mais todas estas iniqüi- a precariedade do saneamento, da iluminação, da falta de equipamentos públicos que
dades. Em contexto mais amplo no entendimento das violências concretas e simbólicas atendam as necessidades das famílias e delas mesmas, como creches, escolas, postos de
produzidas pelo Estado, não seria diferente neste âmbito, dada a precariedade destas saúde e áreas de lazer e de convivência.
políticas e suas descontinuidades quando são direcionadas a esta população, gerando As mudanças na malha viária, por exemplo, com a extinção de linhas de ônibus e a
resultados absurdos no que se refere à qualidade de vida das mulheres negras. redução do transporte alternativo, em detrimento da sua regulamentação, a mudança de
O Rio de Janeiro nos últimos 20 anos se configurou em um dos sítios onde as mu- itinerários, o horário da circulação de muitos ônibus em determinadas áreas da cidade e a
danças urbanísticas ocorreram de forma diferenciada das demais capitais. Embora não má qualidade do transporte público também afetam diretamente a vida dessas mulheres.
seja mais capital federal desde a década de 1960, sua capitalidade2 , fenômeno que a torna A circulação na cidade se torna objeto de tensão e medo. A mudança de diversas
uma espécie de paradigma para o resto do país, faz com o que ocorre nela rapidamente paradas de ônibus, por exemplo, transferindo-os para áreas mal iluminadas e hostis à
reverbere. Conseqüentemente, a cidade se transforma em um grande laboratório para o noite, com itinerários que fazem com que os ônibus circulem por áreas desertas, demon-
capital financeiro internacional, recebendo uma grande quantidade de investimentos e stram a dificuldade de se pensar nas mulheres no momento da formulação das políti-
se transformando em uma espécie de vitrine para o mundo e, mais do que isso, ela mes- cas públicas de mobilidade urbana. E isto em todos os modais. Neste contexto, são as
ma um produto valorizado e disputado, e ainda se consagra como cenário perfeito para mulheres que apresentam nos seus corpos e mentes os sinais da relação com a perda
protagonizar a realização de megaeventos e se torna laboratório para projetos na área da das referências, com a violência do apagamento da memória dos lugares de afeto e da
segurança pública. Nesse contexto, a população mais pobre e os espaços populares se ruptura nas relações pessoais, na perda de familiares e na reconstrução de si mesmas,
tornam alvo de intervenção pesada. sempre atravessadas pela violência institucional. As mulheres sofrem com a dificuldade
A desumanização do corpo negro feminino, produzida pela perda histórica de sua
cidadania plena, e sua eleição como sujeita de segunda classe, encerrando nestes corpos 3
Unidade de Polícia Pacificadora: projeto da Secretaria Estadual de Segurança do Rio de Janeiro que pretende instituir polícias comu-
nitárias em favelas, principalmente na capital do estado, como forma de desarticular quadrilhas que, antes, controlavam estes territórios
como verdadeiros estados paralelos. (Fonte:Wikipedia)
1
No Complexo do Alemão o teleférico construído fez parte do PAC Favelas, inaugurando em 2011, e na Favela da Providência o teleférico 4
O 3º Programa de Aceleração do Crescimento lançado em 28 de janeiro de 2007, foi um programa do governo federal brasileiro que en-
inaugurado em 2014, fez parte do escopo do Morar Carioca. Ambos estão parados. globava um conjunto de políticas econômicas, planejadas para os quatro anos seguintes, e que teve como objetivo acelerar o crescimento
2
Trata-se de uma característica singular da cidade do Rio de Janeiro no cenário da Federação brasileira: o fato dela ter se construído his- econômico do Brasil, prevendo investimentos totais de R$ 503,9 bilhões até 2010, sendo uma de suas prioridades o investimento em
toricamente como o “eixo da capitalidade” do país ou como a sua “cidade-capital”. Giulio Argan (1964). infraestrutura, em áreas como saneamento, habitação, transporte, energia e recursos hídricos, entre outros.(Fonte Wikipedia)
5
Programa de Integração de Assentamentos Precários Informais Morar Carioca. (Fonte: Prefeitura do Rio de janeiro)

12 NOSSOS CORPOS, NOSSA COR, NOSSA CIDADE: OS IMPACTOS CAUSADOS PELAS INTERVENÇÕES DECORRENTES 13
DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. DOS GRANDES PROJETOS DE URBANIZAÇÃO NO RIO DE JANEIRO
de transitarem de maneira livre em muitas partes da cidade e, neste caso, as mulheres
negras são as que apresentam as maiores dificuldades no que se refere à circulação.
A eleição do corpo negro (seja masculino ou feminino) como sujeito(a) a suspeição
permanente, atitude cristalizada na sociedade e consequentemente pelos aparatos de se-
gurança oficiais e que são reproduzidos por seguranças privados em diversos contextos
da cidade, acirram as atitudes violentas contra esta população. Nesse sentido, as mul-
heres negras vêm acumulando um déficit de acesso à cidade em toda a sua trajetória de
vida e uma quase anulação da sua figura no tecido urbano, o que vai de encontro ao que
deveria ser a dinâmica lógica das cidades, que deveriam propiciar o encontro e a troca
entre os(as) diferentes.
Assim, são cada vez mais necessárias ações de fortalecimento das redes de atuação
e de solidariedade onde nós mulheres estamos inseridas e que privilegiem a escuta e a
nossa participação plena na construção das políticas públicas que contemplem as nossas
reais necessidades e demandas no âmbito da cidade. Queremos circular com segurança,
2
acessar a saúde, as formas de lazer e cultura e poder expressar nossas escolhas em todos
os sentidos.

Thaís Santos - Ativista do movimento negro e feminista intersec-


cional. Cientista Social e Mestranda em Sociologia, investiga os
estereótipos raciais de mulheres negras.

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO.
Di Campana

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DIREITO
DIREITOÀÀCIDADE:
CIDADE:UMA
UMAVISÃO
OUTRAPOR
VISÃO
GÊNERO.
DE GÊNERO. ÁGUAS DE 8 DE MARÇO DE 2017, FEMINISTAS E FEMININAS
questão de segurança pública. Mas o que dizer quando o Estado discrimina a partir de
características físicas determinado segmento social, impedindo o acesso do mesmo a lo-
cais de livre circulação? A solução do poder público foi a criação do “Rolezinho da Cida-
dania” pela Prefeitura de São Paulo, uma tentativa de concentrar a atividade em espaços
que não fossem Shoppings, mas em outros locais públicos controlados pela gestão do
SOCIABILIDADE E RESISTÊNCIA NEGRA NA município. Surpreende, o rebuliço causado pelos “indesejados”, ou ainda, o que acontece
CIDADE DE SÃO PAULO quando a juventude negra e periférica sai do lugar que lhe foi pré-determinado.
Outro exemplo é a proibição dos “fluxos”, bailes de funk nas periferias que agluti-
nam jovens nas ruas de zonas residenciais. Existentes desde 2005, começaram a aglutinar
Thaís Santos
cada vez mais pessoas, sendo separados entre legais e ilegais; ou seja, aqueles liberados
pela prefeitura nos espaços permitidos. Uma tentativa de conter o enorme crescimento
“Os preto dança todo mundo igual sem errar! dos eventos na gestão Haddad foi a tentativa de colocá-los em Centros de Cultura, ig-
Agradecendo aos céus pela chuva que cai, norando as demandas desses jovens que por vezes não queriam se deslocar até pontos
Deus me fez funk, obrigada meu Pai!” como a Nova Cachoeirinha, caso morem no Peruche, para chegar nas festas do CCJ1.
O que ambos os exemplos explicitam é, sobretudo, uma urgência de se debater as
A frase da música “Sou função” do grupo Racionais MC’s ilustra bem a sociabilida- demandas dessa juventude negra e pobre, disposta a se deslocar aos locais centrais, ou
de negra, que desde a década de 1970 dominou as comunidades paulistanas. Os bailes mesmo entre as próprias periferias em busca de um lazer que o poder público, além de
blacks, como eram chamados, imperaram no centro da cidade mobilizando a juventude não contribuir para suprir, estimula a repressão dos mesmos. Restringindo geografica-
periférica para dançar ao som de soul, funk e R&B. Inclusive a união do próprio Racio- mente os espaços de circulação permitidos a essa população, que não pode marcar ro-
nais foi o encontro de KL Jay e Edi Rock, da Zona Norte, com os primos Mano Brown e lêzinho no Parque Ibirapuera ou Shopping Tatuapé, e deve se limitar aos seus locais de
Ice Blue, do Capão Redondo – Zona Sul de São Paulo, no centro da cidade na Rua São moradia sem, contudo, atrapalhar os moradores para evitar a repressão policial. De fato,
Bento, reduto dos grafiteiros e rappers dos anos 80. O caso ilustra uma realidade que se são limitações e tanto!
repetiria ano após ano.
Passados quase 40 anos, o deslocamento de jovens no sentido periferia–centro, conti- Jovens negras, vivas e agentes!
nua sendo um tema central para pensar o direito do jovem periférico ao acesso à cidade
e ao lazer. Fazendo um recorte à periferia negra, esse direito passa a se relacionar com Surpreende, no entanto, que se não há interesse do poder público em suprir as de-
temas que intersectam os direitos humanos, fala-se sobre racismo e segurança pública, mandas dessa população, os mesmos parecem encontrar suas próprias saídas para viver
também. Proponho aqui refletir sobre alguns casos que mostram como cultura e lazer es- o lazer, direito básico para uma vida plena. Neste contexto, um dos agentes que têm se
tão intimamente relacionados a estratégias de resistência dos sujeitos, sobretudo sujeitas, sobressaído é a juventude negra LGBT, as festas Batekoo, Don’t Touch My Hair, Sarrada
negras e periféricas. no Brejo e Afrogeladinho são apenas alguns dos exemplos. A maior parte delas com uma
O sujeito indesejado em circulação ou o que acontece quando a periferia sai do lugar. equipe de produção inteira feminina, parece dizer: Agora é nossa vez!
A cultura e o lazer são direitos fundamentais que devem ser assegurados pelo Estado E o é de fato. A festa Batekoo teve início nas periferias de Salvador, trazida para São
de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas não é nova a ideia de que Paulo pelo DJ baiano Miranda e logo se tornou a principal festa LGBT da cidade. Organi-
na ausência do Estado a população precisa resolver suas demandas e angústias. A exem- zada por Miranda, Renata Prado e Arthur Santoro, passou reunir centenas de jovens no
plo disso, cito os “rolêzinhos”, que desde 2014, reúne adolescentes, que se organizam centro da cidade, das mais longínquas periferias. A festa reúne um público ansioso por
em eventos no Facebook para promover encontros em Shoppings localizados nas áreas usar seus cabelos naturais, nas mais diversas cores e formatos, roupas de estilos ousados
“nobres” da cidade, mobilizando cada vez mais adolescentes de periferia – em um deles e inovadores esbanjam o chamado estilo “afrofuturista”, lésbicas e bis negras se beijam,
6 mil jovens compareceram ao Shopping do Metrô Itaquera. também os meninos, todos incluídos nesse espaço pensado para a sociabilidade preta.
O evento tem despertado diferentes reações, alguns casos foram proibidos, em outros No palco, a DJ e produtora Renata Prado fala sobre genocídio negro ao mesmo tempo
tantos casos a saída foi a repressão, a ponto de ano passado uma juíza proibir o “rolêzi- que toca os funks mais recentes – a playlist é só de músicos negros – para embalar o pú-
nho” e ordenar a restrição de acesso aos que parecessem “ter perfil” de frequentadores blico animado que só pelas 7 horas esvazia a pista rumo a suas “quebradas”. O sucesso
do evento. É inevitável pensar: quem eles restringem o acesso, quando se atentam ao
perfil do adolescente periférico que vai para o rolêzinho? O tema praticamente se tornou 1
Centro Cultural Municipal da Juventude (CCJ) – Equipamento da Secretaria Municipal de Cultura, sediado na Vila Nova Cachoeirinha.

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. SOCIABILIDADE E RESISTÊNCIA NEGRA NA CIDADE DE SÃO PAULO
da festa foi imediato, de mensal para quinzenal, por vezes aos sábados, por vezes aos A perspectiva interseccional que essas experiências impõem se explicita também nas
domingos, sempre lotada a festa teve a ousadia de realizar a comemoração de aniversá- estratégias de resistência. Uma mulher negra lésbica que frequenta uma festa para exer-
rio de seu um ano, na Cidade Tiradentes, lotando a pista mais uma vez. Na página do cer sua liberdade sexual e afetiva contesta não só os estereótipos raciais que impõe que
Facebook, os animados participantes combinavam como chegar ao local, montavam bon- seu corpo deve estar a serviço do interesse, olhar e desejo masculino branco, mas tam-
des para sair do metrô Itaquera, grupos no Whatsapp e propunham companhias para os bém questiona o direito ao lazer, à cultura e à vida que é sistematicamente negado para
mais tímidos que estavam sozinhos. essa população.
Unindo extremos, a festa AfroGeladinho é uma dissidência da Batekoo, o empreen- Se lembramos que os principais temas com que se enfrentam a juventude negra hoje
dimento de duas jovens negras teve início na festa para logo se tornar um evento inde- é o genocídio e encarceramento sistemático de corpos negros – basta lembrar do caso de
pendente, também lotado. Uma produtora do extremo sul e a outra, da outra ponta da Claúdia da Silva Ferreira ou de Rafael Braga – que conseguimos compreender a impor-
cidade, reunidas para a produção do Afrogeladinho, mas também para conduzir a festa. tância de espaços em que ser negra ou negro não seja um crime.
O que teve início para arrecadar algum dinheiro para as duas jovens desempregadas Festas negras conectam periferias. Festas negras criam laços entre pessoas que o Es-
acabou adquirindo uma proporção maior, política e social. tado julga que não deveriam sequer estar vivas. Festas negras são resistência. Surpreen-
É interessante notar quantos temas são interseccionados e solucionados parcialmente de que o público que mais tenha aparecido nos últimos tempos sejam as gays, lésbicas
a partir destas iniciativas, além de propor um local seguro para um enorme contingente e bissexuais. Demonstrando que há uma forte demanda de espaços de cultura, lazer e
que parecia não se localizar em nenhum espaço – Ou como imaginar mulheres negras fazer político para esse público, mas mostram principalmente que há uma energia mobi-
jovens lésbicas e bissexuais com um espaço para se desejar, se sentir belas e viverem lizadora que ronda tais grupos a ponto de já não esperarem que o Estado resolva as la-
suas sexualidades sem se preocupar com exotização ou hiperssexualização, apenas en- cunas, tão pouco se escondem dentro dos armários que hiperssexualizam corpos negros,
tre seus pares? É uma pequena revolução em alguns dias dos finais de semana por mês. privando-os de individualidade. Periferias conectadas e coloridas dizem: Resistimos
Questionando a estrutura que segrega socialmente, oprime institucionalmente e limita
politicamente.
No caso da festa Sarrada no Brejo, o público-alvo ainda mais direcionado propõe
algo inédito no país: uma festa exclusiva para mulheres lésbicas e bissexuais, cujo o pú-
blico prioritário são as mulheres negras. Com filas que dobram o quarteirão e lotam as
duas pistas da casa de festa, a balada é organizada pela Coletiva Luana Barbosa, grupo
formado no início de 2016 a partir do trágico caso de assassinato de Luana Barbosa dos
Reis na cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. O caso que chocou pela brutali-
dade, envolveu um espancamento de policiais militares sob a jovem Luana, que faleceu
poucos dias depois após ser mal atendida no hospital, por a considerarem uma crimino-
sa que desacatou as autoridades policiais. A repercussão fez com que atos acontecessem
na cidade e movimentou jovens da capital até a cidade de Ribeirão Preto para questionar
a violência racista, machista e também lesbofóbica que assassinou Luana.
A partir desse caso a Coletiva tomou a iniciativa de organizar as festas, como espaços
seguros que concentram jovens mulheres das mais diversas regiões, atentas a diferentes
demandas. Como por exemplo, o Brejinho, iniciativa precursora de instaurar uma creche
para que as mamães possam frequentar a festa e deixar seus filhos em um local seguro,
outras iniciativas como rodas de conversa sobre redução de danos, isto é, o consumo
de bebidas alcoólicas e outros tipos de drogas; conversa sobre abusos e assédios entre
mulheres; situações decorrentes das festas que as mulheres se preocuparam em tratar
publicamente e em espaços de discussão política.
A Coletiva e a Batekoo são dois, dos exemplos mais importantes, sobre como pensar
a sociabilidade negra na cidade de São Paulo é debater temas como violência sexista,
lesbofóbica e homofóbica, mas, sobretudo, debater como as jovens negras tem transfor-
mado experiências dolorosas em resiliência.

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. SOCIABILIDADE E RESISTÊNCIA NEGRA NA CIDADE DE SÃO PAULO
Sarau das Pretas - foto enviada pelas autoras
3 MULHERES NEGRAS E OCUPAÇÃO DO ESPAÇO
PÚBLICO: ATIVISMO CULTURAL NOS SARAUS
DA CIDADE DE SÃO PAULO

Bruna da Silva Magno


Diana Mendes dos Santos

Nós, mulheres negras, somos 44% da população brasileira e segundo os dados do


último censo do IBGE de 2014, a população preta e parda representa 53,6% do total de
brasileiros. Desse total, na parcela dos mais ricos, 79% são brancos. As estatísticas nos
mostram uma assimetria que não é apenas econômica, mas também de condições de vida
e acesso.
Podemos nos perguntar a quantas políticas públicas temos acesso? Territorialmente,
Bruna da Silva Magno - Graduada no Bacharelado em Ciência e há uma concentração da população negra em bairros mais afastados como Itaim paulis-
Tecnologia da Universidade Federal do ABC ta, M’Boi Mirim, Cidade Ademar, Guaianazes, Cidade Tiradentes, São Mateus1 e tantos
Graduanda no Bacharelado em Matemática da Universidade outros bairros e muitas vezes o estado não chega até lá.
Federal do ABC Se o poder público não alcança essa população, o que a atinge, então? A auto-orga-
nização das comunidades que se levanta em todos os âmbitos, colocando em prática seu
Mestranda em Matemática da Universidade Federal do ABC
direito à cidade, especialmente por meio da arte.
Militante do Coletivo Negro Vozes UFABC
É importante ressaltar que partimos do entendimento que o racismo é uma ques-
tão complexa. Não é somente uma questão sobre “negros contra brancos”, pois também
Diana Mendes dos Santos - Graduada no Bacharelado em Ciên- envolve diversas contradições que afetam todos os outros grupos raciais ou étnicos no
cias e Humanidades da Universidade Federal do ABC mundo. Contudo, parafraseando Lênin, em última instância o racismo é “uma questão
Graduada no Bacharelado em Relações Internacionais na Uni- de pão”. Se não há o suficiente para todos, as pessoas vão se dividir ao longo de linhas
versidade Federal do ABC secundárias para lutar pelo que sobra na mesa. A história mostra que, quando as con-
Graduanda no Bacharelado de Políticas Públicas da Universi- dições de vida melhoram para todos, as tensões raciais, étnicas e de gênero começam a
dade Federal do ABC afrouxar. No entanto, enquanto vivermos em um mundo em que a maioria sofre com a
Militante do Coletivo Negro Vozes UFABC escassez e a desigualdade social, o flagelo do racismo vai continuar (PETERSON, 2014).
Diante desse contexto, a ideia proposta no presente artigo é lançar luz exatamente
onde é escuro para o governo e para a maioria da população, mostrando como a popu-
lação negra, mesmo diante do racismo, criou políticas, especialmente culturais, que são
protagonizadas pelas mulheres negras nos seus bairros, falando das suas realidades e da
disparidade social por meio dos saraus e dos slams. Iniciamos com o poema Menimelí-
metros de Luz Ribeiro (2016) sobre o que não é dito nas pesquisas sobre a periferia:

1
Dados do Relatório de Gestão da Secretaria de Políticas de Igualdade Racial em São Paulo, 2013. Disponível em:
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/igualdade_racial/arquivos/relatorios/Relatorio-de-Gestao-SMPIR-2013.pdf

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DIREITO
DIREITO
À CIDADE:
À CIDADE:
UMA VISÃO
UMA OUTRA
POR GÊNERO.
VISÃO DE GÊNERO. MULHERES NEGRAS E OCUPAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO: ATIVISMO CULTURAL NOS SARAUS DA CIDADE DE SÃO PAULO
“Os meninos passam liso estado para com a população negra e até questões como o amor afrocentrado.
Pelos becos e vielas A intersecção entre arte e política é analisada por Chaia (2007A) em uma trajetória
Você que fala becos e vielas histórica dos movimentos sociais no final da década de 60, que estavam ligados à luta
Sabe quantos centímetros cabe em um menino? por direitos civis, mobilizações estudantis e à contracultura. Esses acontecimentos so-
ciais tornaram-se referências que acionam o ativismo cultural na contemporaneidade.
Sabe de quantos metros ele despenca quando uma bala perdida o encontra? O surgimento do próprio grafite e cultura hip hop como arte urbana tem origem
Sabe quantos nãos ele já perdeu a conta? não somente como movimento artístico, mas também, como processo político e social
possibilitando às camadas mais baixas um instrumento artístico de expressão e pro-
Quando ceis citam quebrada nos seus tccs e teses testo contra a opressão social que as mesmas sofrem.
Ceis citam as cores das paredes O momento histórico estudado por Chaia (2007A) somado à arte conceitual da
natural tijolo baiano? década de 70 resulta na emergência da arte ativista a partir dos anos 80. Portanto,
Ceis citam os seis filhos que dormem juntos? pode-se entender que há uma trajetória histórica e política no surgimento da arte nas
Ceis citam o geladinho que é bom porque custa 1,00? cidades, e estando a cultura negra inserida nesse cenário, os saraus e os slams podem
Ceis citam que quando ceis chegam pra fazer ser entendidos como um produto dessa mesma trajetória.
suas pesquisas seus vidros não se abaixam?’’ As mulheres artistas ativistas estão em uma relação social fundamentada no de-
sejo de luta e responsabilidade social por reconhecer os conflitos sociais, o racismo,
O sarau é um espaço para compartilhamento artístico, seja ele escrito, musicado ou as opressões e as violências diárias que sofrem. Durante essa relação, é fundamental
corporal. Entre os saraus organizados somente por mulheres negras se destacam o Sarau o reconhecimento do outro, afinal, a construção dos saraus e slams tem o objetivo de
Das Pretas que é itinerante e o Sarau das Pretas Peri que acontece no Jardim Camargo provocar reflexão em outra pessoa que não só, as próprias artistas e poetas. A arte
Velho (Zona Leste de São Paulo). Citamos também alguns saraus onde a mulher negra política tem um realismo político que dá à arte uma função sócio-política. Uma reali-
tem posição de destaque na organização, como o Sarau da Ponte Pra Cá que tem em sua dade que começa nas ruas (microcosmo) e chega até as redes como internet (macro-
organização Thata Alves e é realizado no Campo Limpo (Zona Sul de São Paulo), o Sarau cosmo) como é o caso das poetas e dos artistas que publicam seus trabalhos nas redes
Mínimo e o Sarau da Ademar (este último já inexistente) localizados na Cidade Ademar sociais:
(Zona Sul de São Paulo). “Esta prática desloca o cenário da arte e da política para o espaço público. Sai do
O slam é uma batalha de poesia que funciona com algumas regras: as poesias apre- espaço fechado e branco para o espaço cinza das ruas ou para o espaço virtual da in-
sentadas devem ser autorais não podendo ser repetidas, não é permitido a utilização de ternet.” (CHAIA, 2007, pág. 3)
objetos ou acompanhamentos musicais ou cênicos/visuais e a apresentação não pode Por fim, a ocupação do espaço público por meio do ativismo cultural perpassa
ultrapassar 3 minutos. Em 2008, Roberta Estrela D’Alva inaugurou o primeiro slam no a história da população negra e a identificação com a mesma e com a realidade pre-
Brasil, Zona Autônoma da Palavra ou ZAP Slam como é conhecido. Desde então eles têm sente em todas as manifestações artísticas nos saraus e slams. O surgimento e conti-
se propagado e as mulheres seguem se colocando e disputando estes espaços como no nuidade de manifestações culturais como essas, nas cidades, só é possível porque a
caso do Slam da Norte, que tem na sua organização Ingrid Martins e o Slam das Minas, população se reconhece nelas.
com Luz Ribeiro e Mel Duarte. Em 2016, oito anos após a criação do primeiro por parte Angela Davis explicitou em seu livro Mulheres, Raça e Classe (2016) que há um
de uma mulher negra, Luz Ribeiro ganhou o Slam BR, que é a competição nacional, sen- legado da escravidão que estabelece parâmetros para uma nova condição da mulher,
do a primeira mulher a ganhar o campeonato. especialmente a mulher negra. As mulheres escravas foram quem transmitiram para
Entendemos que essa manifestação artística é política, porque além da arte, ela faz suas descendentes do sexo feminino, nominalmente livres, um legado de trabalho
com que possamos avistar a cidade como nossa também, expressando nossa cultura e/ou duro, perseverança e autossuficiência, um legado de tenacidade, resistência e insis-
recitando poesias sobre a nossa realidade aos quatro cantos. tência na igualdade sexual – em resumo, um legado que explicita os parâmetros para
A relação entre arte e política estudada por Miguel Chaia (2007B) pode acontecer de uma nova condição da mulher.
duas maneiras: a primeira, quando as atividades artísticas se querem políticas e a segun- Por isso, é possível ver o levante das mulheres negras na luta por seus direitos,
da, quando as práticas políticas buscam suporte na arte. Tomando como estudo de caso, incluindo o direito à cidade na construção da nossa cultura e acesso a políticas pú-
os saraus e os slams organizados por mulheres negras, percebe-se uma arte urbana que blicas. O mapeamento presente no artigo em relação aos saraus e slams mostra uma
quer ser política. Elas transmitem um discurso político por meio da arte e da poesia. Em pequena parte de onde queremos chegar com nossos sonhos e nossas realidades. Da
suas poesias as mulheres negras abordam temas como violência policial, o descaso do Zona Leste à Zona Sul, queremos uma sociedade livre do racismo e da desigualdade

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. MULHERES NEGRAS E OCUPAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO: ATIVISMO CULTURAL NOS SARAUS DA CIDADE DE SÃO PAULO
para a nossa população.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHAIA, Miguel, Arte e Política – Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2007A.


CHAIA, Miguel, Artivismo – Arte e Política Hoje – Aurora, Revista de Artes, Mídia
e Política, PUC, 2007B.
DAVIS, Angela, Mulheres, Raça e Classe - Editora Boitempo, 2016. p. 41.
PETERSON, John. Sobre o Programa do Partido dos Panteras Negras: Que caminho
seguir para os trabalhadores e jovens negros? - Parte I. Publicado em 04/11/2014. Dispo-
4
nível em: http://www.marxismo.org.br/content/sobre-o-programa-do-partido-dos-pan-
teras-negras-que-caminho-seguir-para-os-trabalhadores-e
RIBEIRO, Luz. Menimelímetros. 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=09KDfTVPAeE
Jessica Tavares Cerqueira - é mulher negra e feminista, que at-
ravessa cidades. Bacharela em Ciências e Humanidades
Bacharela em Políticas Públicas
Assistente de Coordenação do Instituto Brasileiro de Direito Ur-
banístico
Acredita que a vida não cabe em apresentações.

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. MULHER E O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO: DIGRESSÕES SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS MUNICIPAIS
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Di Campana
entanto, ainda no Brasil Imperial, a promulgação da Lei Áurea, em 1888, já havia levado
alguns negros a migrarem para o espaço urbano, uma vez que, alijados ao trabalho na
terra, a população negra foi jogada à própria sorte.
A abolição da escravatura não trouxe consigo quaisquer reparações sociais e econô-
micas. Fora promulgada completamente deslocada de uma política de democratização
BARREIRAS VISÍVEIS E INVISÍVEIS NA FAVELA: do solo, e por essa razão, forçou com que muitos negros mudassem para os centros urba-
nos em busca de oportunidades e de condições de moradia.
PELO BEM VIVER DAS NOSSAS MULHERES. É fundamental frisar que nossa abolição não resultou do reconhecimento de um pas-
sado vergonhoso da desumanização de um povo, mas sim de uma mudança necessária
Jessica Tavares Cerqueira para a inserção no sistema econômico mundial, que já havia adotado o trabalho assala-
riado. E não há como realizar qualquer debate acerca do direito à cidade sem considerar
“É que em todo o lado, mesmo no invisível, há a privação das pessoas negras, em relação ao atraso a que foram submetidos no acesso à
uma porta. Longe ou perto, não somos donos, mas
terra, quando esta virou propriedade privada.
simples convidados.
Segundo MARICATO (2003) a emergência de mão de obra livre, em 1888, contribuiu
A vida, por respeito, requer licença.”
(Mia Couto) para definir o início de um processo, no qual industrialização e urbanização caminharam
juntas sobre o lema positivista da ordem e do progresso.
A lógica da constante formação das metrópoles brasileiras, nós já sabemos. Ao con-
Em julho de 2016, eu pedia licença a moradores da favela da Vila Sônia Maria, em São trário do que se esperava, o espaço urbano não superou as heranças deixadas pelos pe-
Bernardo do Campo, para falarmos sobre o projeto de urbanização previsto no âmbito ríodos colonial e imperial, marcados pela concentração de renda e terra, clientelismo,
do PAC-UAP1 para o assentamento precário. A proposta era falar de lacunas na partici- monocultura e patriarcado. Pelo contrário, estes são elementos estruturantes do nosso
pação dos moradores na elaboração e implementação do projeto. Para isso, foi feito um espaço urbano. As cidades atuais espelham nossas desigualdades de classe e raça, em-
roteiro de entrevistas, focado principalmente em questões urbanísticas. purrando para as favelas aqueles que são a base da força de trabalho do país.
Nossas conversas renderam horas de áudio e mostraram as mais variadas lacunas
de participação social e crises de representatividade. No entanto, o que gritava nas repe-
tidas vezes em que eu examinava aquele material era o que as mulheres contavam nas Desenho urbano, agente do isolamento físico das favelas
entrelinhas: solidão e abandono. O trabalho concluiu-se focado em sua proposta inicial,
É difícil conceituar o que é uma favela no Brasil. O alto índice do déficit habitacional
e apenas hoje, retomo à contundência desses depoimentos.
faz com que sejam desenvolvidas as mais diversas soluções habitacionais, e em territórios
Por isso, peço mais uma vez licença a todas as dedicadas vozes que já se debruçaram
com topografias também muito variadas. Dessa maneira, o que pode ser lido, na região
sobre o tema da solidão e isolamento de mulheres pobres e negras. Em nome de todas,
Sudeste, como favela - caracterizando um aglomerado espontâneo subnormal, de padrão
cito a gigante Carolina Maria de Jesus, que anunciou a favela como quarto de despejo da
construtivo precário, e ausência de serviços de saneamento - pode e provavelmente terá
cidade. Para mim, seus escritos evidenciaram uma solidão que não era apenas urbanísti-
outras características e/ou nomenclaturas nas demais regiões do país.
ca, mas, sobretudo, social.
Nesse sentido, é importante salientar que a percepção sobre a abrangência da pobre-
Nossos passos vêm de longe.
za urbana considera aspectos mais amplos do que apenas o padrão construtivo de uma
casa. A favela é caracterizada principalmente pela ocupação irregular de áreas em que o
Raízes da desigualdade e a cor das sem terra mercado imobiliário não pode atuar - ou seja, principalmente em áreas protegidas am-
bientalmente e/ou áreas de risco -, ausência de serviços de infraestrutura urbana, maior
Para falar de mulheres é necessário reafirmar quem elas são e os porquês de sua con- exposição à violência seja por parte do estado, seja por parte de criminosos, assim como
dição, questões que guardam estreita relação com o nosso processo de urbanização. maior exposição aos problemas da ordem de saúde pública, entre outros.
A concentração da terra e da renda inviabilizou a sobrevivência no campo, levando a Ser favelada é estar na periferia dos direitos. E, em muitas vezes, esta situação dese-
uma espécie de expulsão dos mais vulneráveis para as cidades pela falta de oportunida- nha um círculo vicioso, em que uma privação leva a outra. Como por exemplo, a falta de
des e condições de subsistência. A intensificação do êxodo rural foi vivido apenas a partir salubridade da habitação leva a problemas de saúde que afetam o rendimento escolar das
da década de 1930, com os incentivos ao trabalho urbano movido pela modernização. No crianças e adolescentes. Em geral, são as mães que se responsabilizam pelos cuidados da
família e, por isso, precisam levar os filhos frequentemente a hospitais, pedindo dispensa
1
Programa de Aceleração do Crescimento - Urbanização de Assentamentos Precários

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. BARREIRAS VISÍVEIS E INVISÍVEIS NA FAVELA: PELO BEM VIVER DAS NOSSAS MULHERES
do trabalho ou equilibrando triplas jornadas. Esses exemplos são tão especulativos quan- de qualquer serviço público, mas por que chega e vai embora sem qualquer justificativa
to podem ser realidade, e gostaria de chamar atenção aqui, para as suas implicações no da não resposta, sobre o vácuo que ecoará pelos próximos quatros anos, até que voltem
bem viver dessas mulheres. a debater urbanização.
Para falar sobre solidão e isolamento, cito o caso da favela da Vila Sônia Maria, mais
conhecida como “Buraco Quente”, que resiste há 49 anos. Para contextualizar a fala das “Sempre vem eles, sempre mostra, quando é política eles vão e nunca
moradoras, segue breve panorama da tipologia física urbanística da área ocupada.2 faz, vão embora.”
As vias públicas existentes não se enquadram na estrutura de hierarquização viária “Eles não dão resposta de nada” a última vez que vieram foi em no-
do município. O sistema viário tem pavimentação somente nas ruas dos principais aces- vembro do ano passado”
(Moradora 1)
sos, sendo o restante sem pavimentação e, em muitos pontos, com pavimento irregular
e sem calçadas.
“Eu to aqui há 09 anos, e as reuniões foi só política. ninguém nunca
O assentamento precário ocupa fundo de vale com inclinação entre 10 e 20º e chegou aqui pra dar uma resposta pra gente”
apresenta a área total de 18.178,07. De forma sintética, trata - se de assentamento não (Moradora 2)
consolidado, caracterizado pela carência de infraestrutura, traçado irregular, e apre-
senta a necessidade de execução de obras de infra - estrutura urbana, consolidação geo- “Eu moro aqui há 26 anos, só promessas, eles vêm e vão”
técnica ou de drenagem urbana, abrigando habitações inadequadas. (Moradora 3)
A maior parte dos imóveis possuem metragem inferior a 40m² e apenas 20% é isola-
do no terreno, sendo as demais germinadas de um ou ambos os lados. As habitações de Não se recebe com indiferença tamanho descaso. Esse ir e vir, vir e sumir causa de-
madeira representam 10% do total de imóveis do assentamento. sesperança nas chefes de famílias que se desdobram para acompanhar reuniões onde
A drenagem de águas pluviais do núcleo Vila Sônia Maria ocorre, em sua maioria, se debate urbanização, e são deixadas no limbo das instituições, até que saia a próxima
através do escoamento superficial direto nas vielas existentes ou tubulação para captação licença, a próxima liberação de recurso, e enquanto isso, elas seguem sem acreditar. O
de chuva nas coberturas, apenas naquelas que possibilitam a instalação deste tipo de dis- padrão de comportamento, em que a visita na favela se segue de anos sem resposta, mina
positivo. Algumas vielas são estreitas e ainda mais limitadas devido sua utilização para um lugar da cidadania dessas mulheres, que deveria ser de incentivo a participação e
instalação de escadas de acesso aos imóveis, disposição de varais e descarte de resíduos monitoramento mas é transformado em abandono e em quebra de confiança.
de diversas categorias. “Eu não acredito que vai sair nada aqui, fazer igual o santo: ver pra crer”
Esse é o cenário. E como esta desagradável realidade impacta a vida e sonhos das (Moradora 2)
moradoras? Como colocam seu corpo na cidade e para quê? Para quem? Quem pode
enxergar as violações de vidas de promessas de urbanizações que não se concluem? De A presente fala, que associa política à presença no território, denota a sensação de
despejos e ameaças de remoções? Em que medida, a precariedade física e visível, torna- uso a que são submetidas. Não são reconhecidas como sujeitas de direito, merecedoras
-se agente de barreiras que, com anos, transformam essas mulheres não somente isoladas da responsividade do Estado. São peças necessárias para o jogo político.
da cidade legal, mas principalmente solitárias afetivamente? “O que mudou foi o que a gente fez. Era barraco e constrói de al-
venaria, o esgoto era tampado com madeira e aí colocamos cimento, e
Desromantização da favela e a Solidão afetiva da mulher cada um tenta melhorar dentro da sua casa, mas da casa pra rua, nao
tem infraestrutura nenhuma.”
Bell Hooks em sua brilhante e elucidativa obra Vivendo de Amor, escreveu sobre a (Moradora 3)
solidão afetiva da mulher negra. Ao ouvir as falas das moradoras da Vila Sônia, não pude
deixar de lembrar desse texto e de como dialoga com a solidão que é causada pelo dese- A contagem dos anos em que estão à espera aparece com frequência. Quem esquece,
nho urbano das favela, e que se expande para o campo afetivo. são eles. Nós não. Estamos contando. E para as moradoras de buracos, morros, margens
Bell Hooks fala das barreiras históricas que afastaram a mulher negra de vivenciar o de córregos, a medida que o tempo avança, fica cada vez mais difícil de se imaginar em
amor, e neste caso, proponho pautar o quanto as condições de precariedade afastam as outro lugar, e se tornam muito destrutivos quando alteram nossa habilidade de lutar e
mulheres faveladas de possibilidades de sociabilidade. acreditar.
Um ponto significativo para iniciar a discussão que pode ser clichê mas bastante Outro ponto possível de ser abordado de acordo com as vivências diárias em locais
central, é o abandono do Estado. Não somente o abandono porque não chega em forma de precariedade é como podem e limitam nossas relações no campo afetivo. Talvez, o que
há de tão urgente quanto urbanizações participativas, é que estas venham acompanha-
2
Informações concedidas pela Secretaria de Habitação de São Bernardo do Campo. Relatório para Obtenção de Licença Prévia das do cuidado da saúde mental dos e das que ali vivem.

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. BARREIRAS VISÍVEIS E INVISÍVEIS NA FAVELA: PELO BEM VIVER DAS NOSSAS MULHERES
“É um buraco, não é uma área plana... e há 26 anos eu sonho com esta mulher deve ser ainda agente ativa que autoriza e convida o outro para o seu lugar.
isso” Neste processo, em que apresenta o seu lugar, ainda que o considerando inferior e ver-
“Nós temos aqui esgoto a céu aberto, tudo embolora, móveis, gonhoso, as mulheres tentam vencer os estigmas e isolamentos sociais.
travesseiro, colchão…é uma situação bem ruinzinha”
(Moradora 3) “A gente não tem acesso a rua, a nada, fica aqui nesse buraco,
parados, sem acesso a nada.”
Afirmo isso, pois para a sociabilidade da mulher favelada há um componente com-
A gente quer mesmo é sair daqui. Isso aqui é um buraco”
plicador, que a atinge para além do machismo e do racismo: a discriminação de classe. (Moradora 4)
E que se torna potencialmente danoso quando é interiorizado, onde se cria o sentimento
de inferioridade.
A convivência com esgoto a céu aberto, lixo, disputa por espaço, falta de privacidade,

abandono estatal e interiorização da inferioridade, modificam a forma como colocamos
“Qualquer um dos dois (apartamento ou casa) seria bom.
nossos corpos na cidade. Nos sentimos menos aptas para deixar de atravessar lugares
Pra quem quer uma moradia digna, entrar um carro, uma cor-
para passar a ocupá-los.
respondência, a gente poder receber nossos amigos de outro
tipo de classe, porque faz vergonha, os becos da favela é muito Qual a relação que as moradoras conseguem estabelecer com os espaços de lazer?
sujo. Eu não tenho coragem de trazer o pessoal da igreja na Caso haja tempo e recurso, elas os têm frequentado?
minha casa. Tem um lá que é louco pra vir, mas eu tenho verg- Em artigo anterior, de minha autoria, “Mulheres que atravessam as cidades”, já ha-
onha de trazer um engenheiro aqui.” via levantado sobre a forma que a relação centro-periferia para as mulheres paulistanas
Moradora 2 se dá predominantemente no deslocamento casa - trabalho, ou em atividades que sejam
extensões de seus papel social no espaço privado. Como por exemplo, levar os filhos a
A fala acima sintetiza a minha motivação maior de escrever este breve artigo falando escola ou ao hospital, ir ao mercado, etc.
sobre sentimento e solidão, da perspectiva urbana. Explícita é a ausência de espaços em que as mulheres se sintam confortáveis de ocu-
Quando assumimos que pisar no esgoto, descer vielas, subir ladeiras não é para to- par, no âmbito do lazer e da cultura.
dos, que o encontro não pode se dar no meu lugar, porque não é digno de receber o outro,
eu já estou em um espaço diferente. Que é sujo, apertado, íngreme, inapropriado e não “Deixa eu ver o meu sonho! Tem uma praça, tudo bonitinho?”
(Moradora 3)
quero que ninguém me veja aqui. Dentro de nós, esse lugar é uma ilha. Só partilhamos
“Se sair, vai ser ótimo! Ter área de lazer.”
entre nós, que dividimos esse agrupamento solitário. (Moradora 1)
Dói, que em seus íntimos, estejam de acordo que um engenheiro não possa vir a visi-
tar, porque implica que se interiorizou que da favela também não podem sair engenhei- O texto traz mais perguntas que afirmações, porque precisamos começar a deixar
ros e nem médicos, advogados, urbanistas e gestores. Eles não pisam aqui. que respondam. A cuidar. A ouvir. Apenas quando essas mulheres se sentirem parte da
Nós pisamos, porque nos acostumamos que somos um pouco menos. Um pouco cidade, ela será realmente justa e democrática. E só quando o debate de direito à cidade
menos gente. Há tantos anos aqui sem respostas, mesmo com tantas perguntas que nos chegar na favela, estaremos próximos de alcançá-lo.
fazem no censo, nos mestrados e doutorados. Nós que nos relacionamos entre nós, por-
“A gente vive aqui numa situação bem difícil de infraestrutura,
que as visitas externas, no geral, acontecem quando o waze, manda alguém para uma as crianças tem muito problema de alergia, respiratório, aqui já teve
quebrada, e desesperados: meia volta e fim. Ou quando precisam de algo que vendem até cobra, preá, isso seria uma melhoria de vida e de saúde principal-
por aqui, neste caso, não há constrangimento. No que mais podemos servir? mente, e de auto estima, só traria benefícios pra nós (...) a gente preci-
A sociedade por engano ou pelo vício. O Estado para nos matar e encarcerar. E por sa de uma moradia digna.”
amor, quem vem? As barreiras físicas e visíveis nem nos afastam tanto, mas o que se mol- (Moradora 3)
da em torno delas, sim. O desafio da sociabilidade da mulher favelada, deixa de ter teor
puramente urbanístico e se agrava em barreiras do campo afetivo. Nós, militantes, agentes públicos e acadêmicos, temos muito o que aprender com
Busco incitar provocações que explicitam a insegurança e vulnerabilização psicológi- essas vozes, que nas entrelinhas ensinam sobre corpo e cidade e como o meio tem inter-
ca causadas pelo projeto de desenvolvimento urbano excludente brasileiro. ferido no campo afetivo e consequentemente, político.
Ainda que uma intervenção urbanística aconteça, foram anos, evitando visitas, caro- Nós, enquanto gente, de carne, osso e sentimentos devemos lutar incansáveis para
nas, e situações de estigma. Para que desenvolva laços fora de seu núcleo habitacional, que a regra da condição de habitação de pessoas predominantemente negras no Brasil
deixe de ser precária e irregular, e que a consequência disto, cause mais isolamento e so-

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. BARREIRAS VISÍVEIS E INVISÍVEIS NA FAVELA: PELO BEM VIVER DAS NOSSAS MULHERES
lidão de nossas mulheres.
“A gente merecia uma coisa melhor, e é o sonho de todo mundo”
Moradora 2

5
Paula Nunes dos Santos - Mulher negra. Advogada criminalista
formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO.
Samara Takashiro

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. O PAPEL DAS MULHERES NA LUTA PELO DIREITO À MORADIA
O histórico da relação entre mães e filhos negros

Ao tratar da escravidão dos negros nos Estados Unidos, a pesquisadora e professora


Angela Davis destacou que “as mulheres têm autoinduzido abortos desde o início os pri-
MÃES PRETAS EM LUTO(A): PARA SE TER DIREITO meiros dias da escravidão. Muitas escravas se recusavam a trazer crianças a um mundo
de trabalho forçado interminável, em que correntes, açoites e o abuso sexual de mulheres
À CIDADE, É PRECISO VIVER eram as condições da vida cotidiana” (DAVIS, 2016, p. 207).
Durante quase todo o período da escravidão, nos países onde ela existiu, não era
Paula Nunes dos Santos garantido às negras o direito à maternidade. Filhos eram arrancados de suas mães ainda
muito jovens para serem comercializados como escravos e, para evitar a dor da separa-
243. Esse número aparentemente pequeno ganha proporção estrondosa quando se ção ou o sofrimento de suas crianças, muitas mulheres abortavam.
tem ciência de que é a quantidade de “mortes decorrentes de intervenção policial”1, ocor- Enquanto, no auge do século XIX, a expectativa social em torno das mulheres brancas
ridas somente no estado de São Paulo entre 1º de janeiro e 5 de abril deste ano, segundo era de constituição do matrimônio e imposição da maternidade, as mulheres negras eram
levantamento da Polícia Civil.2 avaliadas pela sua capacidade reprodutiva tão somente para que se estimasse a quantos
Apenas no segundo semestre de 2016, 295 denúncias por homicídio foram recebidas novos escravos elas poderiam dar à luz.
pela Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, ou seja, 6,12% a mais do que o regis- Mesmo passados quase 130 anos desde a abolição da escravidão e o fortalecimento
trado no mesmo período do ano de 2015. O total de denúncias formalizadas pelo órgão da ideologia da miscigenação como possibilidade de integração e mobilidade social, as
no ano passado foi de 525. mulheres negras continuam correndo o risco de se separar involuntariamente de seus
Não há novidades no fato de que a polícia militar brasileira é a que mais mata no filhos e ver a vida deles ceifada em nome da suposta garantia da segurança pública, não
mundo 3. Também não é novidade que o perfil das vítimas é essencialmente formado por importa a idade que tenham.5
homens jovens e negros. O último Mapa da Violência4 divulgado demonstrou que mor- Isso porque, mesmo com o advento da suposta democracia – na qual está embutido o
rem por arma de fogo no país, proporcionalmente, 158,9% mais negros do que brancos. conceito de democracia racial -, os negros continuam sendo categorizados como ameaça
Pouco se fala, no entanto, de uma parte que existe e resiste nessa estatística: as mães à ordem pública o que faz com que, ainda que de forma velada, a sua vida tenha menos
pretas do genocídio, mulheres que sobrevivem e se reinventam para superar a dor da valor.
perda de seus filhos assassinados pela polícia em todo o mundo. Nesse sentido, leciona E. Zaffaroni que “na América Latina, todo suspeito é tratado
Além da dor, as mulheres negras protagonizam a luta contra a violência policial. Um como inimigo, apesar da legitimação do direito processual penal. Em geral, a categoria
grande exemplo de protagonismo feminino negro é o movimento Black Lives Matter, dos do inimigo não é expressamente introduzida ou não são feitas referências claras a ela no
Estados Unidos, que nasceu a partir da hashtag com o mesmo conteúdo criada por três direito ordinário, visto que ao menos institui-se sua incompatibilidade com o princípio
mulheres negras - Alicia Garza, Opal Tometi e Patrisse Cullors – depois da absolvição do do Estado de direito” (ZAFFARONI, 2007, p. 189-190).
segurança responsável pelo assassinato de Trayvon Martin, de 17 anos, em 2013.
No Brasil, há anos, mães de jovens assassinados pela polícia se organizam para trans-
formar o luto em luta, como é o caso do Movimento Mães de Maio, que surgiu depois do
O direito à vida negra como direito à cidade
assassinato de pelo menos 564 pessoas entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, no estado Ao tratar do direito à cidade, é necessário compreender que parte importante da po-
de São Paulo. O movimento não abarca apenas as mães das vítimas daquele período, mas pulação brasileira está lutando para, ao menos, ter garantido o seu direito à vida.
funciona como referência para mães que tiveram os seus filhos assassinados desde então Em uma realidade marcada por taxas de homicídio que ultrapassam as de impor-
até os dias atuais. tantes guerras ao redor do mundo, um jovem negro ter mais de 24 anos é, literalmente,
quebrar uma estatística.
1
A Resolução nº 5 da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, de 7 de janeiro de 2013, determina que, desde aquela data, as au- Ainda que a maior marca seja a violência policial, o racismo se expressa nas diversas
toridades policiais não podem se utilizar mais da nomenclatura “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte”, que devem ser
substituídos por “lesão decorrente de intervenção policial” ou “morte decorrente de intervenção policial”. A Resolução conjunta nº 2, pub- instituições que compõem a estrutura do sistema capitalista. As mães pretas em luto, que
licada em 4 de janeiro de 2016, e elaborada pela Polícia Federal e pelo Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil adotou a utilização
dos termos “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”. 5
Dados levantados pelo O Globo a partir de informações do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde demon-
2
https://ponte.org/onde-e-quem-a-pm-de-sp-matou-em-2017/ straram que entre 2005 e 2015, 82 crianças e adolescentes até 14 anos foram assassinadas pela polícia, sendo que 50 casos ocorreram
3
http://exame.abril.com.br/brasil/policia-brasileira-e-a-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio/ no Rio de Janeiro
4
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf. (https://oglobo.globo.com/rio/estado-do-rio-teve-em-dez-anos-50-criancas-mortas-por-policiais-60-de-todos-os-casos-no-pais-15789318).

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. MÃES PRETAS EM LUTO(A): PARA SE TER DIREITO À CIDADE, É PRECISO VIVER
quase sempre vivem nas extremidades das grandes cidades, são as mesmas que lidam
com o desemprego e a precariedade dos trabalhos terceirizados e que atravessam as ci-
dades todos os dias em transportes públicos sub-humanos.
São elas também que chefiam mais da metade das famílias chefiadas por mulheres no
país - com salário médio aproximadamente 50% menor do que o recebido por mulheres
brancas -, sendo que menos de 3% delas dividem esse posto com um cônjuge ou compa-
nheiro.6
Para idealizar e concretizar uma cidade inclusiva para as mulheres, é necessário o
desenvolvimento da compreensão de que uma análise estritamente de gênero não é su-
ficiente, mas sim a articulação entre gênero, raça e classe.
Seguindo o exemplo das mães negras que transformam o luto em luta, o objetivo
daqueles que almejam uma cidade transformada e inclusiva para as mulheres deve ser
pensar uma cidade em que elas não mais precisem chorar a morte de seus filhos e na qual
a sobrevivência não seja, também, uma luta.
6
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Helena Duarte Marques - Mulher, feminista e advogada popu-
lar. Assessora jurídica do IBDU. Graduada em Direito pela PUC-
CARAMANTE, André (organização). Mães em luta – dez anos dos crimes de maio de
2006 - São Paulo: Nós por nós, 2016.
SP. Mestrando em Direitos Humanos na Faculdade de Direito da
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe - São Paulo: Boitempo, 2016. Universidade de São Paulo
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos - São Paulo: Global, 2013.
MARCONDES, Mariana Mazzini (organização). Dossiê mulheres negras: retrato das
condições de vida das mulheres negras no Brasil – Brasília: Ipea, 2013.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2016: Homicídios por armas de fogo
no Brasil. 26 de agosto de 2015.
ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal – Rio de Janeiro: Renavan, 2007.

6
MARCONDES, Mariana Mazzini. Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil – Brasília: Ipea,
2013.

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO.
Samara Takashiro

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DIREITO
DIREITOÀÀCIDADE:
CIDADE:UMA
UMAVISÃO
OUTRAPOR
VISÃO
GÊNERO.
DE GÊNERO. O PESO DA VIDA URBANA SOBRE OS OMBROS DAS MULHERES E A DIMENSÃO DOS DESPEJOS FORÇADOS
de e é justamente na Cracolândia, local na região central de São Paulo, que se concentra
diversas pessoas nesta situação.
Os motivos que levaram estas pessoas a viveram na rua são muitos, desde a crise
econômica que assola o nosso país, como problemas familiares, psicológicos, e também
o uso problemático de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas.
As pessoas que vivem em situação de rua passam por condições extremas de miséria,
MULHERES VÍTIMAS DA VELHA GUERRA E DA violência e vulnerabilidade. São vítimas de repressão e da “higienização” promovidas
NOVA LUZ pelo poder público. Sofrem com as abordagens policiais, ações de despejo e reintegração
de posse violentas e até ataques com jatos d´água feitos por funcionários da prefeitura.
Helena Duarte Marques Ou seja, a espinha dorsal da política pública é a lógica da criminalização.
É verdade que se aumentou o consumo de crack nos últimos anos, deste fato não
A guerra às drogas teve início no século XX, sendo uma política liderada pelos Esta- podemos escapar. Porém, é preciso destacar o sensacionalismo da grande mídia sobre a
dos Unidos que impôs a centralidade da proibição das drogas com uma forte campanha Cracolândia e a população em situação de rua no centro de São Paulo.
militar e ideológica não só em seu próprio território, como também nos países nos quais O senso comum predominante é de que o centro de São Paulo é um lugar degradado,
exerce o seu imperialismo. violento, perigoso, nojento, lotado de “crackudos”, que vivem como zumbis, agressivos
Nas grandes cidades da América Latina, esse discurso se traduz, na prática, como e não deveriam estar ali (ou em verdade, para este senso comum, ali ou em lugar algum).
uma guerra aos pobres, sendo seu alvo principal, a juventude negra que vive nas perife- Desta forma, é criada uma narrativa pró-higienista que justifica a “limpeza” social
rias dos centros urbanos. por meio da força policial. Ao mesmo tempo em que se criminaliza as pessoas em situa-
A esquemática é simples: sob o argumento de combater o tráfico de drogas, o Esta- ção de rua, sendo elas usuários, traficantes ou não, também se legitima o discurso de que
do, intervém militarmente nos territórios, promovendo um verdadeiro genocídio dessa o centro necessita de um projeto de revitalização que o salve do abandono.
juventude, e aos que sobrevivem a este extermínio resta a vigilância e a repressão cons-
tantes, como é o caso das ocupações militares nas comunidades do Rio de Janeiro. A “revitalização”
O discurso de guerra às drogas é “perfeito” para legitimar a intervenção militar nas
cidades e justificar políticas, que sob o manto da moralidade do combate ao uso de dro- As soluções propostas são calçadas na criminalização das drogas e na apresentação
gas, tem em seu cerne objetivos escusos muito mais lucrativos. Este é o caso da Cracolân- de um projeto de “revitalização” para a região. De forma simultânea, há a imposição
dia na cidade de São Paulo. de violência policial para retirada dos moradores, prisão de diversas pessoas e políticas
como a internação compulsória, e também há a apresentação de um projeto de “reno-
O centro, a droga e a Cracolândia vação” urbanística da região, com a construção de praças, canteiros, espaços de lazer e
novos prédios.
Desde as décadas de 1970 e 1980 houve uma migração na cidade de São Paulo, em No entanto, os principais objetivos destes projetos de “revitalização” não é a melho-
que os mais ricos da população saíram do centro da cidade, levando seu comércio e ser- raria da cidade ou oferecer condições mínimas de vida digna para as pessoas em situação
viços para outras regiões, a exemplo da Paulista e Faria Lima. de rua. Aqui, a roda gira no sentido do lucro empresarial. Há uma grande especulação
A partir da década de 1990, os escritórios de alto padrão e centros comerciais também imobiliária, de forma que a valorização de uma área com um projeto de “revitalização”
mudaram seu endereço para as mesmas regiões, acrescentando locais na Avenida Berrini gera lucro para as empresas donas dos terrenos da região.
e Marginal Pinheiros. O exemplo emblemático do lucro dessas grandes corporações com a revitalização do
Ao mesmo tempo que houve este movimento das classes médias e ricas para longe centro, são as parcerias público-privadas, especificamente, o projeto do Banco Itaú para
do centro, houve uma ocupação crescente da população de baixa renda, seja pela facili- revitalização do Vale do Anhangabaú.
dade de transporte (inauguração da estação de metrô Sé, em 1978) ou oportunidades de Na Cracolândia não é diferente. Há diversos interesses econômicos na região, que
emprego e moradia. Este contexto e esta movimentação permanecem até hoje. vem ganhando espaço. O projeto proposto, hoje pelo atual prefeito João Dória é chama-
De acordo com pesquisa realizada em 20151, no ano, havia 15.905 pessoas em situa- do Nova Luz e em muito se assemelha com propostas inclusive de mesmos nomes, dos
ção de rua na capital paulista, sendo que mais de 52% desse total estão no centro da cida- antigos prefeitos José Serra e Gilberto Kassab.
Vale destacar que esta ideia de “revitalização” do centro é anterior a estes políticos. O
1
Censo da população em situação de rua na cidade de São Paulo, 2015.
primeiro projeto deste tipo surgiu na década de 1970, criado pelo prefeito Olavo Setúbal.

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. MULHERES VÍTIMAS DA VELHA GUERRA E DA NOVA LUZ
O projeto atual ainda não foi apresentado por completo, mas o antigo envolvia uma uma grande instabilidade. Assim, muitas estão na rua com os seus filhos.
parceria bilionária entre o poder público e setor privado, com a transformação de mais Vivendo nas ruas, estas mulheres ficam desamparadas de qualquer direito, como
de 40 quadras no centro da cidade em uma área com comércio, serviços e polos cultu- saúde, educação, moradia digna. As soluções paliativas, como abrigos temporários igno-
rais direcionados às elites. Outro ponto da “revitalização” seria o conjunto de incentivos ram a realidade destas mulheres e se tornam ineficazes. Há menos vagas para mulheres
fiscais oferecido pelo poder público a empresas de hotelaria, lazer, cultura, entre outros. nestes equipamentos, e nem todos aceitam crianças pequenas. E não há nenhuma políti-
O próprio projeto era alarmante, uma vez que havia diversos pontos controversos, ca que garanta assistência no sentido de moradia definitiva ou emprego.
sendo os dois principais o uso do instrumento de concessão urbanística (previsto no Pla- A violência também é um ponto de destaque na vida destas mulheres. Neste ponto,
no Diretor Estratégico de 2005) que permitiria ao setor privado que desapropriasse os ficamos em um campo cego, uma vez que não há pesquisas com o enfoque de produzir
imóveis; e a falta de participação da sociedade civil no projeto - que, inclusive, é assegu- dados sobre a violência da mulher sofrida por aquelas que vivem nas ruas.
rada pelo Estatuto da Cidade. E tudo isto seria viabilizado por meio da Operação Dor e No entanto, sabemos que viver na rua, para as mulheres, implica a necessidade de
Sofrimento - cujo nome já é, por si, só simbólico. construírem relações que assegurem a viabilidade da sua vida cotidiana. Sozinhas elas
Ainda que formalmente o atual prefeito não tenha apresentado um projeto para a estão muito mais vulneráveis às violências da rua. Por isso, muitas vezes se envolvem em
região, ele, materialmente, já vem sendo implementado na Cracolândia. relações violentas e/ou abusivas para assegurar a sua sobrevivência.
Na realidade o projeto se expressa pelas cenas de extrema violência protagonizadas É consensual que as ruas da cidade não oferecem segurança a nenhuma mulher, to-
pela polícia na região, em que já efetuou a prisão de supostos traficantes e retirada da po- dos os dias os assédios e estupros ocorrem em locais públicos. Assim, àquelas mulheres
pulação em situação de rua. Além disso, iniciou-se o processo de demolição dos prédios, que vivem na rua estão muito mais suscetíveis a estas formas de violência. Situação que
sem a legalidade cabível à situação, chegando ao absurdo de demoli-los com pessoas ainda é pior para as lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.
ainda dentro. A violência também se expressa nas intervenções policiais contra as pessoas em si-
É importante entender que este projeto não contempla políticas públicas de longo tuação de rua, como as ações realizadas na Cracolândia, que atingem as mulheres. Tanto
prazo capazes de, minimamente ,dar conta de questões históricas como déficit habitacio- porque são retiradas com violência dos locais onde estavam, como pela criminalização
nal, atendimento permanente às populações vulneráveis e acesso à educação e à saúde das usuárias e traficantes.
pública – tudo isso agravado pelas questões estruturais que aumentam esses problemas: No Brasil, desde a implementação da Lei de Drogas (Lei 11.343 de 23/08/2006), a po-
o racismo e o machismo. pulação carcerária feminina aumentou 117%. O tráfico de drogas foi o crime que mais
motivou a prisão de mulheres (64%), seguido por roubo (10%) e furto (9%). O perfil des-
As mulheres tas mulheres é comum, 50% têm entre 18 e 29 anos e 60% são negras. Sabemos que, no
tráfico, estas mulheres cumprem um papel coadjuvante, raramente ocupando postos de
Para as mulheres este cenário é brutal. Partindo do pressuposto que as mulheres já comando, mas para a justiça brasileira, isto pouco importa.
sofrem com todas as expressões do machismo na sociedade, quando elas estão em situ- As condições precárias e desumanas das prisões brasileiras afetam as mulheres pre-
ação de rua e/ou são criminalizadas por serem usuárias ou traficantes, elas são dupla ou sas que não tem acesso a absorventes, não tem estruturas mínimas para receberem seus
triplamente invisibilizadas. filhos ou para dar a luz. Apenas em abril deste ano o projeto de lei 23/20175, que altera o
Segundo pesquisa de 20152 , 14,6% das pessoas em situação de rua na cidade de São Código de Processo Penal acrescentando um parágrafo único ao artigo 292 e proibindo o
Paulo são mulheres. Um estudo específico3 realizado na Cracolândia apontam o seguinte uso de algemas nos partos das mulheres presas, foi sancionado.
perfil: 16,8% são mulheres, 3,7% são transexuais e 17% das mulheres estão grávidas. A criminalização tem um efeito negativo àquelas mulheres que tem um uso proble-
As razões que as levam a esta situação tem especificidades em relação aos homens. mático de drogas, gera um grande medo e elas, dificilmente, sentem confiança de pedir
Na sociedade, as mulheres, principalmente as negras, ocupam os piores empregos, e re- ajuda. A atual legislação não distingue os traficantes dos usuários, o que só aumenta o
cebem substancialmente um salário menor apesar de realizarem o mesmo trabalho que problema.
os homens. O desemprego atinge mais as trabalhadoras femininas4.
Ademais, as mulheres são as responsáveis pela família. Mesmo quando tem com- Considerações Finais
panheiros, o peso do cuidado familiar recai sobre a mulher. Algumas criam seus filhos
sozinhas, enquanto outras dependem financeiramente de seus companheiros, o que gera Os projetos de “revitalização” geram o discurso de uma cidade “mais humana”,
“mais limpa” e “melhor para todos”. Mas na verdade, eles excluem, ignoram e crimina-
2
Senso da população em situação de rua na cidade de São Paulo, 2015.
lizam uma grande parcela da população que vive nos centros urbanos.
3
Pesquisa do Programa Recomeço, 2017.
4
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2016. 5
Lei 13.434 de 12/04/2017.

50 51
DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. MULHERES VÍTIMAS DA VELHA GUERRA E DA NOVA LUZ
A cidade “melhor para todos”, não é melhor para as pessoas em situação de rua, uma
vez que sequer tem medidas simples que poderiam ser concretizadas. Como moradias
definitivas, já que há mais imóveis vazios do que famílias sem moradia na capital paulis-
ta6 ou então a garantia de aluguel social.
É necessário pensar uma política de superação das desigualdades da cidade, ao mes-
mo tempo, a legalização das drogas é central. Uma vez que envolve um conjunto de me-
didas como uso consciente, redução de danos, cuidado com aqueles que queiram deixar
de usar drogas. Além de ter um grande impacto, principalmente, em relação a população
negra da periferia, diminuindo os índices de mortes, encarceramento. Outra consequên-
cia se dá sobre a violência gerada pelo tráfico.
O tema da Cracolândia deve ser pensado a partir de toda a sua complexidade, ou
seja, a partir da relação entre as contradições do espaço urbano e a criminalização das
drogas, e a transversalidade do racismo, machismo e LGBTfobia nestas questões. As so-
luções só podem surgir a partir do encontro de todos estes olhares.
7
Fernanda Araújo de Almeida - Mulher, filha da Mazé Araujo,
operária fabril, boadrasta da Maju Rodrigues, secunda femini-
sta, tia da Julinha Almeida, boa semente para o futuro. Ciclista.
Assistente Social, servidora pública municipal, atua em Centro
de Apoio Psico-Social – Álcool e Drogas (Caps – AD). Professo-
ra convidada da Fundação Perseu Abramo. Pesquisadora desde
2005 do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ética e Direitos Hu-
manos (Nepedh) da PUC-SP, coordenado pela professora Dra.
Maria Lúcia Barroco. É frequente nas ruas e nas lutas populares.

6
Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2010.

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO.
Samara Takashiro

6
https://www.facebook.com/lutapopular/

54 DIREITO
DIREITOÀÀCIDADE:
CIDADE:UMA
UMAVISÃO
OUTRAPOR
VISÃO
GÊNERO.
DE GÊNERO.
Tempo que é tão frenético quanto à fissura dos dependentes químicos, ou nos termos do
saudoso Antonio Lancetti, é a Contrafissura4 em uma velocidade máxima, que impulsio-
na ações e as respostas imediatas e não planejadas, aquelas que não respeitam o Tempo
da democracia, da diversidade e do respeito aos Direitos Humanos. Nesse sentido, a
ação do Estado se assemelha a fissura dos dependentes químicos. A mesma impulsivida-
MULHERES E USO PROBLEMÁTICO DE ÁLCOOL E de que move o dependente em busca de diminuir o mal-estar causado pela abstinência,
OUTRAS DROGAS: DESMONTANDO ESTIGMAS E move o governante em diminuir o “mal-estar” causado pela presença e permanência de
usuários de drogas em vias públicas. São pressões de ordens distintas, mas que cami-
COLHENDO SONHOS nham no mesmo sentido. Eliminar o mal-estar!
A Contrafissura nunca foi tão explícita quanto agora, ao desmistificar o simulacro
Fernanda Araújo de Almeida da epidemia de crack, Lancetti cunhou o termo Contrafissura para caracterizar a ânsia
tanto da sociedade quanto de gestores públicos por “resolver” os “problemas” de forma
rápida e imediata, construindo campanhas alarmistas que produzem efeitos contrários
Acelera São Paulo: a contrafissura em velocidade máxima
à diminuição do consumo problemático de álcool e outras drogas. Para ele, a raiz da
Contrafissura reside na lógica do proibicionismo, e da Guerra às Drogas que pregam
“Acelera São Paulo”. Com esse slogan o prefeito de São Paulo, João Dória, vai impri-
um mundo sem drogas, promovem a violência de Estado e a criminalização dos sujeitos.
mindo seu ritmo na implantação de seu programa de governo e revelando seu modo de
Igualmente, ele afirma que, “também o enfrentamento desse sintoma social não se resol-
fazer política. O prefeito tem pressa. No entanto, sua urgência tem conflitado com o Tem-
ve mudando de problema de segurança para problema de saúde porque uma das raízes
po socialmente necessário para enfrentar um dos problemas mais complexos da cidade
do proibicionismo foi precisamente à autoridade médica moral”. (LANCETTI, 2015).
– a chamada “cracolândia” na região central1.
Como vimos recentemente, na contramão da Contrafissura, o debate foi encampado
Mas que Tempo2 é esse? Para a reflexão que pretendemos fazer aqui é necessário ex-
pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) que criticou a
plicitar que o Tempo é tomado no seu sentido mais amplo, ou seja, é mais que tempo de
ação policial na “cracolândia”5 , chamando a atenção para a complexidade do problema
relógio, é o Tempo da história e de seus processos, ou, como sugere Antônio Cândido, “o
e sua necessidade de articulação de políticas sociais integradas6. O que queremos afir-
tempo é o tecido da nossa vida”. Ao mesmo tempo, ele é aqui uma categoria de análise,
mar é que tratar a uso problemático de álcool e outras drogas, assim como a própria de-
uma dimensão que precisa ser compreendida na sua totalidade, pois, vivemos um Tem-
pendência química7, como um problema de segurança é um erro, mas do mesmo modo,
po em que os gestores pedem aceleração.
enquadrá-la como problema de saúde é simplificar demais a questão, pois o consumo de
Essa dimensão frenética das coisas não é um acaso, ou somente uma peça de marke-
drogas envolve diversas dimensões da vida social – cultura, desejo, miséria, ausência de
ting daqueles que imaginam que a rapidez e a velocidade são as saídas para a resolução
projetos individuais e coletivos, enfim, um emaranhado de objetividades e subjetivida-
de tão graves problemas. Essa aceleração é própria da sociabilidade do tempo presente,
des – uma complexidade que exige tempo, política pública de Estado8, trabalho técnico
do efêmero e do fugaz. É próprio da pós-modernidade3 e daqueles que desconhecem e
estruturado e muito diálogo.
desprezam a história e os processos já existentes.
O contrário disso é o aprisionamento, o confinamento e a exclusão, são as formas
Sim, temos urgência na resolução dos graves problemas sociais do nosso País, do
mais tradicionais e conservadoras para resolver o problema dos “indesejáveis” da cida-
mesmo modo que do nosso Estado e da nossa Cidade. Sim, temos pressa em recompor o
Estado Democrático de Direito – ultrajado pelo Golpe de 2016 – entendendo-o como pa-
tamar mínimo e limitado, porém, necessário para avançar nos direitos dos trabalhadores Antonio Lancetti em “Contrafissura e plasticidade psíquica” (2015).
4

5
Nota no site do CREMESP:
e trabalhadoras e para a população mais vulnerável, mas não aceitamos essa urgência https://www.cremesp.org.br/novaHome.php?siteAcao=Imprensa&acao=crm_midia&id=634
dissimulada que desconsidera a história e os processos já consolidados. Dito de outra 6
Da mesma forma, o Conselho Federal de Psicologia qualificou como “barbárie” a ação da Prefeitura de São Paulo. Juntamente com out-
ras entidades de classes, moradores e beneficiários do Programa “Braços Abertos”, parlamentares, movimentos sociais, profissionais da
maneira, esse Tempo acelerado que aí estão propondo é o Tempo da alienação em todas saúde, militantes dos direitos humanos, no dia 26/05/2017 protestaram em Audiência Pública na Câmara Municipal contra a ação do
as suas dimensões, da negação dos direitos conquistados, da venda da cidade aos inte- Governo do Estado e Prefeitura. http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/05/gestao-doria-promove-cacada-humana-na-crac-
olandia-denunciam-ativistas
resses imobiliários – é o Tempo do capitalismo financeiro na sua fase de Barbárie. Um 7
Optamos nesse artigo por tratar de forma distinta, dependência química e uso problemático de álcool e outras drogas, pois, assim como
Maristela Moraes, “não entendemos que seja possível um mundo sem drogas porque elas fazem parte das práticas humanas, nem parti-
1
Maior cena de uso de consumo de drogas da cidade de São Paulo – o território será detalhado mais adiante. mos do princípio de que todo uso de droga é sempre problemático” (2011).
2
O livro “O tempo e o cão: a atualidade das depressões” (2009) de Maria Rita Kehl serviu de referência e fonte de inspiração para essa
8
Existem diversos estudos que descrevem o processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil. De forma bem resumida podemos considerar que
reflexão. Nele, ela afirma que o “tempo é construção social”. a Reforma tem como diretrizes o atendimento humanizado pautado na liberdade, na cidadania e na defesa dos direitos humanos. Sob a
3
Como referência para a Pós-Modernidade indicamos Perry Anderson em “As origens da Pós-Modernidade” (1999) e David Harvey em consigna de uma “sociedade sem manicômios” a Reforma Psiquiátrica no Brasil segue como grande referência e paradigma a ser percorri-
“Condição Pós-Moderna” (1989). do. O Sistema Único de Saúde (SUS) incorporou na estruturação da política de saúde mental seus princípios e a defesa dessas conquistas
está na ordem do dia.

56 57
DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. MULHERES E USO PROBLEMÁTICO DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS: DESMONTANDO ESTIGMAS E COLHENDO SONHOS
de. A história da humanidade possui diversos capítulos nos quais é possível perceber A contrafissura é o primeiro obstáculo a ser vencido para poder se
que parcelas da sociedade quando não se “enquadram” num determinado padrão de relacionar com as pessoas, biografias, corpos e também para elaborar
comportamento e/ou característica física, são imediatamente expulsos. Tratadas como políticas inteligentes e eficazes. Mas quando programas assistenciais
pessoas abjetas perdem o “título” de cidadãos e transformam-se em meros problemas. começam a funcionar os egos crescem paralelamente aos drogados
que assistem, e a contrafissura, metamorfoseada, reaparece. Nunca
No caso do consumo problemático de álcool e drogas, sobretudo o crack, nas gran-
nos livraremos dela. (LANCETTI, 2015, p. 41).
des cidades brasileiras, tais pessoas ganharam a alcunha de “zumbis”, em alusão à sua
suposta morte psíquica e moral. Quem se dispõe a ter um diálogo mínimo com algumas
dessas pessoas perceberá que existem: histórias, sonhos, desejos, projetos, sensibilidade,
Uso problemático de álcool e outras drogas, miséria e gê-
inteligência, carências, sofrimentos e solidão, ou seja, existem humanos na sua inteireza,
com tudo aquilo que admiramos e odiamos, ou como diz o poeta afirmando uma concep-
nero12
ção eminentemente ontológica, “Nada do que é humano me é estranho”9. A dependência química é um tema controvertido em nosso país, que divide a socie-
Ainda segundo Lancetti, a Contrafissura está impregnada em todos os poros da so- dade, a opinião pública, bem como os especialistas . Tais polêmicas revelam nossa ori-
ciedade, “é um afã por resolver imediatamente e de modo simplificado problemas de gem extremamente conservadora, repressora e que somadas à questão de gênero revela
tamanha complexidade”: nossa face estruturalmente patriarcal. Com isso, indicamos que o debate sobre o uso pro-
Noias queimam pedra, e autoridades, políticos e editores de jornais blemático de álcool e outras drogas deve ser construído articulando diversas dimensões
escritos e televisivos ficam alterados. Mas a Contrafissura não se ma- da vida social .
nifesta somente em matérias sensacionalistas de jornais, revistas e te- Em vista disso, a questão do uso problemático de álcool e outras drogas pelas mu-
levisão, ela orienta também programas de governo como o Programa lheres merece toda a nossa atenção; embora pesquisas interessantes venham sendo reali-
Recomeço que inicia com internação para estatização e continua com zadas nas universidades , acumulando informações e dados reveladores, essa discussão
internação em comunidade terapêutica para aprender a viver em so- precisa ser apropriada pelas mulheres num amplo debate público com a sociedade. As-
ciedade. O programa é tão eficaz do ponto de vista da propaganda sim como as mulheres tomaram a cena pública mais recentemente e retomaram a direção
política como fracassado na prática, porque é focado na droga e não na
política do debate sobre seus direitos, numa jornada de lutas internacionais, igualmente
pessoa. (LANCETTI, 2015, p. 30).
será necessário pautar a complexa questão das drogas. Ou seja, se há um ranço em des-
construir valores machistas e conservadores, quando somamos à questão das drogas a
Por fim, enquanto escrevia esse texto, aturdida, observava os helicópteros sobrevo-
batalha é ainda maior, pois envolve superar uma moralidade que é extremamente hipó-
arem a região da Luz anunciando que a resistência organizada por parte da militância e
crita com quem faz uso de substâncias psicoativas, sobretudo se forem pobres, negros e
toda a repercussão das ações desastrosas do triste domingo de 11 de junho de 2017 não
negras, mulheres e a população LBGT. Portanto, nossa intenção é deixar pistas para o
conteve a Contrafissura do Prefeito e do Governador. Uma nova ação policial e midiáti-
debate, sabendo que ainda existe um longo percurso pela frente.
ca10 perseguiu maltrapilhos e esfarrapados – mulheres e homens fragilizados pela depen-
Inicialmente é importante ressaltar que o uso problemático de álcool e outras drogas
dência e pela miséria – criando uma espécie de ponte imagética com a Nau dos Loucos
por mulheres ultrapassa as classes sociais – ainda que seja por elas particularizado –, é
do período da Renascença descrita por Foucault em “História da Loucura”. A cidade
em que meses antes os havia tratado com os “Braços Abertos”11, em mais uma manhã 12
Para fins de definição, tomaremos emprestada a discussão de Gênero elaborada no artigo, “Gênero e usos de drogas: porque é impor-
dominical – a mais fria do ano de 2017 – era um ambiente de guerra e destruição. Há um tante articular esses temas”?, da professora Maristela Moraes. Nesse artigo a autora recupera o debate conceitual sobre gênero. Para ela
há uma banalização que se expressa pela simplificação do termo, ou seja, “feminino” e “masculino”, são, por exemplo, substituídos pelo
desafio originário para o enfrentamento desses problemas: termo gênero. Para ela o debate está na compreensão de que tanto feminino quanto masculino, e até mesmo a categoria gênero são con-
struções sociais, portanto, devem ser compreendidos a partir de sua estrutura histórica e social. Assim, ela toma por definição apontando
que: “gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças entre os sexos; é uma forma primária de relações
9
De autoria de Publio Terêncio Afro, dramaturgo e poeta romano, nascido entre 195-185 a.C, a frase ficou popularizada quando de sua
significantes de poder; um campo primário dentro do qual ou por meio do qual se articula o poder; facilita um modo de descodificar o sig-
utilização por Karl Marx – 1818-1883..
nificado e de compreender as complexas conexões entre várias formas de interação humana” (2010, p. 17) disponível em:
10
Em 20 dias (21/06/2017 e 11/06/2017) o Governo do Estado e a Prefeitura realizaram duas operações policiais de dimensões sur-
http://psicologiasocial.uab.es/fic/es/webfm_send/523
preendentes na região da Luz, zona central da cidade. Tal qual a primeira, os policiais chegaram durante a madrugada dispersando 13
São polêmicas que envolvem questões políticas, ideológicas, religiosas, morais e que se sobrepõe às questões científicas e técnicas,
usuários e recolhendo seus pertences. A estratégia foi apontada pelo Governador Geraldo Alckmin como necessária para diminuir o fluxo e
desmistificando assim, a suposta neutralidade das ciências.
ação dos traficantes. http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/nova-operacao-na-cracolandia-prende-2-traficantes-e-doria-diz-que-fluxo-vai- 14
Para um estudo aprofundado sobre isso e outras questões indicamos Maria Cristina Brites em: “Ética e uso de drogas: uma contribuição
diminuir.ghtml. Por outro lado, Guilherme Paiva e Felipe de Paula, em artigo contundente apresentam outra perspectiva do ponto de vista
da ontologia social para o campo da saúde pública e da redução de danos.” Tese de Doutorado em Serviço Social (2006). A autora tem
da gestão, nacional e municipal, http://revistaconstrucao.org/politica-social/fazer-o-simples-e-persistir-no-erro-sobre-a-acao-publica-que-
como perspectiva situar o uso de drogas como uma atividade que responde às necessidades postas pela práxis social.
quer-varrer-a-cracolandia/#_ftn2 15
Ressaltamos o trabalho do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), um serviço ligado ao Departamento de
11
O Programa “Braços Abertos” foi uma iniciativa da Gestão do Prefeito Fernando Haddad (PT) ancorada nos fundamentos da Política de
Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e também o Programa da Mulher Dependente Química (Promud) doHospital
Redução de Danos. Com políticas intersetoriais, o programa previa moradia em hotéis da região, alimentação e uma bolsa trabalho com
das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq – HC FMUSP).
remuneração semanal. Premiado internacionalmente, o Prefeito eleito João Doria (PSDB) anunciou sua extinção imediatamente após ser
eleito.

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. MULHERES E USO PROBLEMÁTICO DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS: DESMONTANDO ESTIGMAS E COLHENDO SONHOS
preciso buscar as determinações daquilo que é comum e ao mesmo tempo fazer a dis- Outras particularidades e agravos à saúde foram observados, sobretudo vinculados
tinção das consequências quando os fatores econômico e cultural tornam-se preponder- à gestação e aos cânceres de mama e útero – agravos de saúde que são tipicamente da
antes. Dito de outra maneira, sabemos que mesmo entre as mulheres há uma profunda composição física das mulheres – no entanto, outras pesquisas no campo da saúde men-
diferença que é socialmente determinada, seja pela condição de classe, raça, etnia, orien- tal vêm sendo desenvolvidas: estas envolvem as depressões, alto índice de tentativas de
tação sexual, identidade de gênero e condição física revelando a necessidade de respos- suicídios, entre outros. A alta exposição a doenças sexualmente transmissíveis também
tas distintas16. Daquilo que é comum pode-se apontar algumas razões e muitos estigmas. é uma preocupação no campo da saúde para quem trabalha com dependentes químicos.
Pesquisas e estudos vêm apontando o aumento significativo de mulheres com uso De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as mulheres representam mais
problemático de álcool e outras drogas. Alguns fatores incidem para esse aumento – são da metade das pessoas infectadas pelo vírus HIV no mundo. Em 2012, 86,8% dos casos
determinações, como já apontamos, de ordem econômico-social e ideo-culturais –, entre registrados de pessoas infectadas pelo HIV, são do sexo feminino, e decorreram de rela-
os quais vale destacar: ções heterossexuais.
• o estresse relacionado à dupla jornada de trabalho; Nossa experiência em CAPS-AD acompanha alguns dos indicadores. Embora o nú-
• a cobrança social por melhores empregos e colocação no mercado de trabalho; mero de mulheres seja inferior em relação aos homens, quando chegam ao serviço suas
• a violência doméstica; histórias, na maioria das vezes são carregadas de significados e trazem o estigma da so-
• a prostituição; ciedade patriarcal, machista e homofóbica.
• a cobrança moral em relação à família e aos filhos; Em certo atendimento individual, uma jovem mulher de 32 anos, (mãe de 2 filhos
• a própria violência relacionada ao uso de drogas ilegais, seja pelo envolvimento pequenos, babá e manicure nos finais de semana, com histórico de violência doméstica, e
com narcotráfico e ou ações ilícitas, ou ainda pela condição de rua. abandono na infância, dependente química desde os 13 anos de álcool e cocaína. Quan-
do chegou ao CAPS apresentava importantes sintomas de crise de abstinência, especial-
Ao mesmo tempo, o estigma carregado pelas mulheres que fazem uso de substân- mente do álcool) relatou que na noite anterior ao atendimento havia sido muito difícil
cias psicoativas é muito forte e tem um significado subjetivo devastador. De “louca à controlar as fissuras e manter-se abstinente. Pedimos que ela então descrevesse qual era
fraca”, de “irresponsável à inconsequente”, quem nunca ouviu frases como: “mulheres a situação em que estava. Ela assim enumerou suas tarefas após um dia de trabalho: “pe-
que bebem não merecem respeito” ou ainda, “é muito feio homem que usa drogas, mas gar filhos na creche; dar banho; fazer o jantar; ajeitar a casa; lavar a louça do jantar; aju-
a mulher é horrível”. É comum nos atendimentos em Centros de Atenção Psicossocial de dar o irmão adolescente fazer trabalho escolar; separar briga dos filhos pelo controle da
Álcool e Drogas - CAPS-AD ouvirmos isso, mesmo entre as mulheres. Quando chegam televisão; passar os uniformes escolares; dar recomendações ao irmão adolescente para
ao serviço de saúde em busca de tratamento o estigma social e moral é muitas vezes o dia seguinte; falar no “zap” com o namorado que perdeu a confiança depois da últi-
maior e mais danoso que sua dependência. A vergonha, por vezes retarda a busca por ma recaída; colocar os filhos pra dormir... ao final ela disse que estava cansada, chorou
ajuda e tratamento, assim, construir estratégias para reconhecer quais as principais de- baixinho para não acordar ninguém e sentiu uma enorme vontade de relaxar, sentiu-se
terminações para o uso problemático e ainda produzir mais pesquisas qualitativas com sozinha”. Histórias como essas são frequentes e dão real medida da necessidade de es-
mulheres que fazem uso de substâncias psicoativas auxilia na elaboração de políticas tabelecer atendimentos humanizados não focados nas drogas, mas sim nas pessoas, não
para atender as especificidades, acolher suas demandas e humanizar o atendimento. focados na dependência, mas sim nas histórias de vida.
Ainda no tocante aos aspectos de saúde, já há acúmulo científico importante que Por sua vez, a condição de rua torna-se uma particularidade ainda mais complexa
explicita o quanto o álcool e demais drogas são mais prejudiciais à saúde das mulheres. para as mulheres. As questões acima descritas ganham contornos ainda mais ásperos e,
Tais pesquisas apontam fatores biológicos e que necessitam de atenção. Segundo Drauz- portanto, exigem maior atenção por parte dos governos e da sociedade.
io Varella, nas mulheres, por exemplo: A cidade de São Paulo possui maior concentração de população de rua do país; de
A fragilidade aos efeitos embriagadores é justificada pela maior pro- acordo com o último censo 201517, realizado pela FIPE, estão em condição de rua 15.905
porção de tecido gorduroso, por variações na absorção do álcool no pessoas, destas, 8.570 estão em centros de acolhida e 7.335 permanecem durante todo
decorrer do ciclo menstrual e porque a concentração gástrica da desi- o tempo nas ruas. São 13.046 que declararam sendo do sexo masculino e 2.326 do sexo
drogenase alcoólica (enzima essencial para a decomposição do álcool) feminino, há ainda um número de 533 que não foram identificados (esse dado não está
é mais baixa do que nos homens17. detalhado).
Na gestão do prefeito Fernando Haddad algumas pesquisas importantes foram re-
16
A publicação de Angela Davis “Mulher, raça e classe” (1981 original, e recentemente 2016) reascende a urgente necessidade de refletir alizadas. O próprio Censo Rua 2015, embora muito criticado pelos movimentos organi-
sobre as questões de gênero articuladas com as concepções de raça e classe. Seguindo a mesma trilha a Rede Iniciativa Negra por uma
Nova Política sobre Drogas (INNPD) vem fomentando o debate e ações que permitam dar visibilidade aos efeitos perversos da atual política 17
Link com os relatórios das pesquisas censitárias realizadas sobre população em situação de rua, e outros estudos: http://www.prefei-
de drogas sobre parcela significativa da população negra brasileira, sobretudo jovem.
tura.sp.gov.br/cidade/secretarias/assistencia_social/observatorio_social/pesquisas/index.php?p=18626
17
Mais informações no site: https://drauziovarella.com.br/drauzio/artigos/as-mulheres-e-o-alcool-2/ e https://drauziovarella.com.br/de-
pendencia-quimica/alcoolismo/alcoolismo-em-mulheres/

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. MULHERES E USO PROBLEMÁTICO DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS: DESMONTANDO ESTIGMAS E COLHENDO SONHOS
zados, revela indicadores que podem ser apropriados para elaboração de políticas mais A cidade como palco de violência
estruturadas. Outra pesquisa relevante foi elaborada pela Secretaria Municipal de Direi-
tos Humanos e Cidadania de São Paulo – Pesquisa Social Participativa – e envolveu uma
Essa informação foi amplamente divulgada nas redes sociais: São Paulo e região me-
equipe de pesquisadores profissionais e por pessoas em situação de rua. Os dados quali-
tropolitana tem 29,6% de sua população com algum problema mental23. Os problemas
tativos18 e a própria metodologia desenvolvida pela “SUR Clínica e Intervenção Social”
diagnosticados mais comuns foram ansiedade com 19,9%, seguido de mudanças com-
são aparatos emblemáticos na construção de respostas.
portamentais, impulsividade e abuso de substâncias químicas. De acordo com os pesqui-
Mais especificamente sobre a região da Luz, a Open Society Foundations19 , financiou
sadores, o índice é um reflexo da alta urbanização juntamente com privações sociais. A
uma ampla pesquisa com os beneficiários do “Programa Braços Abertos”. A pesquisa
reportagem cita ainda:
foi coordenada pela doutora em antropologia Taniele Rui e contou com a consultoria
do Coordenador da Plataforma Brasileira de Políticas sobre Drogas Mauricio Fiore, e do Os dois grupos mais afetados são os homens migrantes e as mulheres
psiquiatra e professor Luiz Fernando Tófoli. A pesquisa envolveu o Centro Brasileiro em regiões de instabilidade social. A região metropolitana de São Pau-
de Análise e Planejamento (Cebrap) e o Laboratório de Estudos Interdisciplinares so- lo deixou para trás inclusive os Estados Unidos, que apesar de não ter
bre Psicoativos (Leipsi). O relatório da pesquisa, assim como outras informações pode revelado a cidade pesquisada, contabilizou quase 25 casos de doenças
mentais por cada grupo de 100 habitantes pesquisados. Além de lide-
ser obtido na Plataforma Brasileira de Políticas sobre Drogas. Duas outras publicações
rar o ranking da OMS para maior incidência de doenças mentais, São
merecem ser citadas, pois são emblemáticas para a compreensão das condições de vida
Paulo também ficou na frente quanto à gravidade desses problemas.
da população em situação de rua e das graves violações de direitos humanos – o livro Capital e região metropolitana somaram 10% de casos graves, enquan-
“Saúde Mental das pessoas em situação de Rua: conceitos e práticas para profissionais to a cidade norte-americana ficou com 5,7%, seguida da Nova Zelân-
da assistência social”, de âmbito municipal e o “Manual sobre o cuidado à saúde junto à dia, com 4,7%. A Pesquisa foi financiada pela FAPESP.24
população em situação de rua”, uma publicação nacional.20
Retomando a questão das mulheres em situação de rua, todos esses relatórios e pu-
blicações expressam a necessidade do reconhecimento de suas particularidades – evi- Ainda que seja necessário qualificar melhor os critérios adotados para o enquadra-
dentemente a população LGBT sofre de condições semelhantes, em algumas vezes até mento – algum problema mental – e ainda, entender quais foram os parâmetros para
mais agravadas, dadas as condições e a estrutura de gênero do nosso país, a condição das realização da pesquisa, uma vez que o debate sobre saúde mental e loucura exija mais do
travestis em situação de rua causa arrepios até naqueles que têm um mínimo de empatia, que a classificação de doenças e produção de diagnósticos , os dados saltam aos olhos.
sua saúde mereceria uma atenção altamente especializada. Submetidas a toda forma de Estudos mostram a saturação da vida nas grandes metrópoles, se tomarmos como
violência e estigma essas mulheres – todas – resistem à própria sorte. Se somarmos todos referência só mobilidade e o deslocamento nos grandes centros urbanos encontraremos
esses documentos aqui citados, e que são em sua maioria publicações com a participação um potencial extraordinário de estresse e ansiedades. E mais uma vez são as mulheres as
do próprio Estado veremos que há uma violação de direitos assistida e consentida. Ao que mais sofrem, por todas as razões antes mencionadas.
mesmo tempo, o Brasil possui uma aparato jurídico significativo21, que contrasta com Por outro lado, de acordo com o psiquiatra Dartiu Xavier, “ao examinarmos a his-
a Contrafissura impregnada na sociedade e nos meios de comunicação, dificultando, tória da humanidade constatamos que o homem (e mulheres) sempre procurou estados
por exemplo, a abertura do debate sobre a Legalização da Drogas e regulamentação da alterados de consciência. São conhecidos registros de uso de drogas nas mais diversas
produção. Portanto, a explicação para tais condições não pode ser simplificada a opi- culturas desde a antiguidade”. Outras tantas pesquisas buscam demonstrar na história
nião pública, os movimentos sociais, não podem estar dispersos diante dos discursos e quando as drogas se transformaram em problemas e doenças.
jogos eleitorais que confundem e minimizam as determinações seja das condições das A “cracolândia” paulistana existe desde a década de 1990, quando o crack se trans-
mulheres, do consumo de substâncias psicoativas, ou mesmo da miséria, resultado de formou numa preocupação para saúde pública para a cidade. Trata-se de uma impor-
uma sociedade altamente estratificada e que cada vez mais criminaliza as mais bárbaras tante cena de uso de drogas – prioritariamente o crack, mas não exclusivo – nas ruas da
expressões da Questão Social22. região do bairro da Luz.
De lá para cá muita coisa aconteceu, há diversas e complexas questões a serem com-
A cidade como palco de violência preendidas. Vale ressaltar que a região é constantemente foco dos interesses da especu-
18
Link com publicação sobre a pesquisa http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/direitos_humanos/Pesquisa%20 lação imobiliária. Projetos não faltam, no entanto, a degradação e abandono coexistem
Social%20Participativa.pdf
19
Link com o relatório final da pesquisa https://www.opensocietyfoundations.org/sites/default/files/crack-reduzir-danos-20170129.pdf
20
Ver ambos em referências bibliográficas 23
Os dados indicados são da OMS.
21
Ver em referências bibliográficas. 24
http://www.saopaulo.com.br/sao-paulo-tem-o-maior-indice-de-problemas-mentais-do-mundo/
22
Para estudo da Questão Social indicamos: “Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social” 25
Para aprofundar esse debate indicamos, “Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros” de Christian Ingo
(2007) de Marilda Villela Iamamoto. Lenz Dunker.

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. MULHERES E USO PROBLEMÁTICO DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS: DESMONTANDO ESTIGMAS E COLHENDO SONHOS
com ações de extrema violência. Cada gestão municipal imprime sua forma de buscar área já produziram importantes reflexões, perdoem essa recém-chegada profissional da
enfrentar o problema, há muitos registros sobre esse processo que é histórico. Mais re- saúde, sabemos das profundas lacunas e muito provavelmente da reiteração de muito
centemente, no dia 21 de maio de 2017, iniciada durante a madrugada, a Prefeitura em do que já foi dito. Atenta às incompletudes sabemos que não foi possível citar todas as
parceria com o Governo do Estado realizou a maior operação já então vista na região. Um importantes pesquisas produzidas. Contamos com a generosidade e nos colocamos nas
efetivo de 900 policiais adentrou nas ruas estreitas com objetivo de acabar com o assim fileiras para juntas enfrentarmos tais questões. Em terreno que não se conhece pede-se
chamado “fluxo” – cena de uso e venda de drogas. Foi uma operação com características licença para entrar e agradece a oportunidade de opinar.
de guerra. Amplamente noticiado pela mídia, um vídeo do Prefeito circulou pelas redes
sociais no qual ele anuncia o “fim da cracolândia”. Ao final do mesmo dia as pessoas se Se o Tempo foi a categoria de análise escolhida para abrir o debate nesse artigo, ele
reagruparam e um novo fluxo se estabeleceu a poucos metros do epicentro da operação26 que é uma dimensão essencialmente humana, é com ele, o Tempo que apontamos os
, em algumas horas ele já era maior e mais exposto. desafios atordoantes para o futuro, como preveniu Bertolt Brecht – “Que tempos são es-
Mauro Iasi no posfácio do livro “Violência” de Slavoj Zizek, obra que analisa as gran- tes, em que temos que defender o óbvio?” – assim, a compreensão temporal ajuda-nos a
des convulsões urbanas como resultante do processo de segregação fruto das relações pensar que a história não se repete. Façamos a história do nosso tempo. O Tempo é agora.
sociais no capitalismo contemporâneo aponta:

A violência psiquiátrica, então, protege o próprio louco contra ele mes-


mo, assim as operações de limpeza urbana que recolhem os viciados
em crack das ruas de nossas cidades são apresentadas como “trata-
mento”, mesmo que forçado, se necessário. (2014, p. 173).

Vivemos em tempos de imagem, quem acompanhou as duas últimas ações na “cra-


colândia” deve ter observado que aquele território parecia montado. As imagens são tão
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
fantásticas que nem parecem reais. Um olhar mais atento e sensível logo vai notar men-
sagens escritas nos muros, frases que contrastam com a força armada dos homens vesti- BRASIL. Manual sobre o cuidado à saúde junto à população em situação de rua.
dos de preto pisando firme com seus coturnos. Hollywood gasta milhões para produzir Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica.
algo parecido. Mas aquelas frases não estavam ali por acaso. Elas fizeram parte de um Brasília: Ministério da Saúde, 2012. 98 p.: il. – (Série A. Normas e Manuais Técnicos)
Projeto Piloto chamado Casa Rodante que levou arte, cultura, informação e buscou cons- BRASIL. Legislação e políticas públicas sobre drogas no Brasil. Brasília: Ministério da
truir integração entre o “fluxo” e os moradores do bairro. O projeto integrava as ações de Justiça; Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2011. 106 p.
intersetorialidade, por meio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, BRITES, Cristina Maria. Ética e uso de drogas: uma contribuição da ontologia social
do Programa “Braços Abertos”.27 para o campo da saúde pública e da redução de danos. 148 f. Tese (Doutorado em Serviço
A jornalista Gleyma Lima em oposição a Contrafissura que segue institucionalizada e Social). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.
legitimada escreveu um belíssimo relato intitulado “Mulheres da Cracolândia – Cidadãs CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. São
sem classe”28, no qual a história de quatro mulheres é descrita a partir uma perspectiva Paulo: Cortez, 2017.
feminina e feminista. Uma página na rede social facebook – Mulheres da Cracolândia – DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani. 1ª ed. Boi-
relata ações para o autocuidado dessas mulheres. tempo: São Paulo, 2016.
Sabemos do abismo social e da conjuntura extremamente desfavorável. O objetivo DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia
aqui foi demonstrar que há aparato científico, técnico e jurídico para minimizar o sofri- do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.
mento dessas mulheres. Nesse sentido a disputa está no campo da política e das lutas FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na idade clássica. Tradução José Teixeira
sociais. Coelho. São Paulo: Perspectiva, 2010.
Por fim, para não ser injusta, sabemos que muitas mulheres maravilhosas, (e também IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital fi-
homens) comprometidas com o tema, com muito mais conhecimento e experiência na nanceiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2007.
LANCETTI, Antonio. Contrafissura e plasticidade psíquica. São Paulo: Hucitec, 2015.
26
Mais informações no site: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/05/1886022-policia-faz-megaoperacao-de-com- (Políticas do Desejo).
bate-ao-trafico-na-cracolandia.shtml
27
Mais informações no site: https://www.cartacapital.com.br/revista/927/na-cracolandia-o-fim-do-convite-ao-convivio
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitem-
28
Mais informações no site: http://www.huffpostbrasil.com/gleyma-lima/mulheres-da-cracolandia-cida- po, 2009.
das-sem-classe_a_22122662/?utm_hp_ref=br-homepage&ncid=fcbklnkbrhpmg00000004

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. MULHERES E USO PROBLEMÁTICO DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS: DESMONTANDO ESTIGMAS E COLHENDO SONHOS
MORAES, Maristela; CASTRO, Ricardo; PETUCO, Dênis. (Orgs.). Gênero e drogas:
contribuições para uma atenção integral à saúde. Recife: Instituto PAPAI, 2010. (Série
Homens e Políticas Públicas).
NIEL, Marcelo; da SILVEIRA, Dartiu Xavier. Drogas e Redução de Danos: uma car-
tilha para profissionais de saúde/ Marcelo Niel & Dartiu Xavier da Silveira (orgs). – São
Paulo, 2008. xi, 149f.
RUI. T; FIORI, M; TÓFOLI, L. F. Pesquisa preliminar de avaliação do Programa “De
Braços Abertos”. Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas (PBPD)/ Instituto Brasilei-
ro de Ciências Criminais (IBCCRIM). São Paulo, 2016.
SANTANA, Carmen Lúcia Albuquerque de; ROSA, Anderson da Silva. (Orgs.). Saú-
de mental das pessoas em situação de rua: conceitos e práticas para profissionais da as-
sistência social. São Paulo: Epidaurus Medicina e Arte, 2016.
SOUZA, Márcia Rebeca Rocha de; OLIVEIRA, Jeane Freitas de Oliveira; NASCIMEN-
TO, Enilda Rosendo do. A saúde de mulheres e o fenômeno das drogas em revistas brasi-
8
leiras. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v23n1/pt_0104-0707-tce-23-01-00092.
pdf
ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradução Miguel Serras Pereira. São
Paulo: Boitempo, 2014.

Anna Luiza Salles Souto - Socióloga, coordenadora das áreas de


juventude e participação cidadã do Instituto Pólis.

66 67
DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO.
Samara Takashiro

68 69
DIREITO
DIREITOÀÀCIDADE:
CIDADE:UMA
UMAVISÃO
OUTRAPOR
VISÃO
GÊNERO.
DE GÊNERO. DO LAR ÀS RUAS: PIXO, POLÍTICA E MULHERES
Para além de tantas outras desigualdades de gênero expressas, por exemplo, no aces-
so ao mercado de trabalho ou nas disparidades salariais entre homens e mulheres, como
a desigualdade de gênero se manifesta no uso e apropriação do espaço urbano? Como as
mulheres vivenciam as cidades?
Os dados de outra pesquisa, publicada em março de 2017 pelo Fórum Brasileiro de
GÊNERO E CIDADES: VIOLÊNCIA, ASSÉDIO E Segurança Pública (FBSP)3, revelam um quadro alarmante. Os números falam por si:
EXCLUSÃO 43% dos casos mais graves de agressão sofrida por mulheres nos 12 meses anteriores
ao levantamento ocorreram em casa, seguido pela rua com 39%. Ao contrário das mu-
Anna Luiza Salles Souto lheres brancas ou de mais alta renda, cuja vitimização está mais concentrada em casa,
as agressões sofridas por mulheres com baixos rendimentos e também as de raça/cor
negra distribuem-se igualmente entre a casa e a rua. A mesma pesquisa revela que 40%
As desigualdades no mundo urbano se fazem sentir em múltiplas dimensões e de-
das entrevistadas relataram ter sofrido algum tipo de assédio, chegando a 70% entre as
mandam ações urgentes para reverter o quadro das iniquidades e a violação de direitos
mais jovens e 43% entre as negras (versus 35% das brancas). Entre as negras, chega a 47%
de amplos segmentos da população. Para além do direito à moradia, ao saneamento, à
a taxa entre as autodeclaradas de cor preta. Entre os tipos de assédio mais frequentes,
infraestrutura urbana, ao transporte, aos serviços públicos etc., todos e todas cidadãs têm
36% das mulheres citaram “receber comentários desrespeitosos ao andar na rua” e 10%
direito à cidade, aqui compreendido numa dimensão integral dos direitos humanos no
mencionam o assédio físico no transporte público. Se considerarmos o recorte racial, as
território. Assim, o direito à cidade é um direito de todos os habitantes dessa e das futu-
mulheres negras sofrem em maior proporção todas as modalidades de assédio.
ras gerações, de ocupar, usar e produzir cidades justas, inclusivas, sustentáveis, pacíficas
Renda e o território, portanto, não são os únicos fatores que respondem pelas desi-
e livres de discriminações. Como diz David Harvey, “o direito à cidade não é apenas um
gualdades na cidade. Gênero e raça, ainda mais quando sobrepostos, incidem fortemente
direito condicional de acesso aquilo que já existe, mas sim um direito ativo de fazer a ci-
nas experiências de vida urbana, comprometendo o exercício do direito à cidade. Para
dade diferente, de formá-la mais de acordo com nossas necessidades coletivas (por assim
as mulheres, a rua, ou melhor, o espaço público é um locus de constrangimento, não de
dizer), definir uma maneira alternativa de simplesmente ser humano. Se nosso mundo
liberdade.
urbano foi imaginado e feito, então ele pode ser reimaginado e refeito”1.
A fala de uma jovem entrevistada na pesquisa realizada pelo Instituto Pólis intitulada
Nas grandes cidades brasileiras, as desigualdades territoriais são gritantes e visíveis
Juventude e Cultura no Mundo Urbano reafirma as intimidações e restrições vivenciadas
a olho nu. É notório que a infraestrutura urbana e o acesso a serviços de transporte, saú-
pelas mulheres no espaço urbano:
de, educação e a equipamentos de cultura e lazer estão concentrados em determinadas
regiões da cidade, onde vivem moradores de mais alta renda. Eles podem fazer muita coisa que a mulher não pode. Eu acho que eu
No entanto, há outras desigualdades que, manifestas de múltiplas formas, têm por nunca vou ver um cara atravessar a rua porque tem um bar cheio de
base o machismo, o racismo e as diversas discriminações vigentes na nossa sociedade. mulher, porque ele sabe que ele vai passar ali e as mulheres não vão
Nunca é demais ressaltar o quanto a igualdade de gênero se impõe como princípio a mexer com ele. É muito desconfortável estar andando e, se tem um bar
ser perseguido para a construção de cidades mais inclusivas, solidárias e democráticas. cheio de caras, provavelmente vão fazer graça. Não vai me agradar,
então sou obrigada a teoricamente atravessar a rua.
Pesquisa publicada pelo IPEA em março de 20172 aponta o aumento na proporção
de domicílios chefiados por mulheres ao longo da série histórica compreendida entre os
As desigualdades de gênero também aparecem entre a nova geração, com implica-
anos 1995 e 2015. Esse fenômeno, marcadamente urbano, mostra que em 20 anos as che-
ções no modo como as mulheres vivenciam a cidade. A pesquisa Agenda Juventude Bra-
fes de família passaram de 25% para 40%, sendo que nas cidades houve um aumento de
sil4 – pesquisa nacional de perfil e opinião dos jovens brasileiros levantou uma riqueza de
aproximadamente 18 pontos percentuais no período.
informações sobre o universo juvenil, abordando, entre outros aspectos, o uso do tempo
Não cabe aqui analisar as implicações desse fenômeno e seus efeitos no que tange à
livre e o acesso a bens e equipamentos culturais. E nesse caso são visíveis as disparida-
vulnerabilidade de grande parte dessas famílias, mas apenas chamar atenção para o fato
des de comportamento entre jovens homens e mulheres. Apenas a título de exemplo, as
de que as mulheres vêm, ao longo do tempo, assumindo um novo papel social ao mesmo
jovens mulheres seguem pouco envolvidas em atividades de lazer e/ou entretenimento
tempo em que seguem sofrendo violências e opressões no seu cotidiano, muitas delas
fora do ambiente doméstico, reproduzindo o papel social tradicionalmente atribuído ao
vivenciadas no espaço público.
segmento feminino.
1
Harvey, David. A liberdade da cidade, in Cidades Rebeldes: Passe Livre e as Manifestações que Tomaram as Ruas no Brasil. São Paulo.
Boitempo - Carta Maior. 2013
3
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil. 2017.
2
IPEA et al. Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça. 4ª ed. Brasilia. IPEA. 2011.
4
Novaes, R.; Venturi, G.; Ribeiro, E.; Pinheiro, D. (Orgs). Agenda Juventude Brasil: leituras sobre uma década de mudanças. Rio de Janei-
ro. Unirio. 2016.

70 71
DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. GÊNERO E CIDADES: VIOLÊNCIA, ASSÉDIO E EXCLUSÃO
Ainda que os dados disponíveis não possibilitem o cruzamento entre local de mo-
radia (rural/urbano) e gênero, podemos considerar que as informações levantadas são
representativas dos jovens urbanos, já que 84% deles moram nas cidades.
Assim, os dados da pesquisa revelam que as jovens mulheres se mostram mais casei-
ras do que os homens em todas as faixas etárias que compõem o universo juvenil (15 a 29
anos de idade). Metade delas (50%) diz realizar atividades dentro de casa em seu tempo
livre nos finais de semana frente a 39% dos homens. O cruzamento sexo-idade reafirma
as disparidades, mostrando que as mulheres entre 15 e 17 anos são mais caseiras do que
os homens dessa mesma faixa etária (79% delas citam atividades dentro de casa ante 64%
deles); mostra também que com o aumento da idade as mulheres, em maior proporção
do que os homens, abrem mão das atividades de entretenimento e lazer: de 45% entre as
meninas de 15 a 17 anos, a dedicação a esse tipo de atividade cai para 29% entre as mais
velhas. Entre os homens os índices oscilam menos: de 49% para 41% nas respectivas fai-
9
xas etárias.
Os dados aqui arrolados revelam os constrangimentos impostos à livre circulação
das mulheres na cidade e as limitações ao usufruto do que esta oferece em termos de
entretenimento, lazer e oportunidade de novas sociabilidades. Mais do que isso, expres-
sam o quanto as desigualdades de gênero limitam o direito à cidade das mulheres e, en-
quanto tal, interpelam-nos a seguir lutando contra o sexismo e o racismo que produzem
e reproduzem desigualdades de diversas naturezas, inclusive no que tange à vivência e à
ocupação do espaço urbano. Patrícia Tuma Martins Bertolin - Pós-Doutora pela Superin-
  tendência de Educação e Pesquisa da Fundação Carlos Chagas.
Doutora e Mestre em Direito do Trabalho pela Universidade de
São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Di-
reito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mack-
enzie. Líder do Grupo de Pesquisa Mulher, Sociedade e Direitos
Humanos.

Denise Almeida de Andrade - Pós-doutoranda em Direito Políti-


co e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
(CAPES-PNPD). Doutora e Mestre em Direito Constitucional pela
Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Pesquisadora do Grupo de
Pesquisa Mulher, Sociedade e Direitos Humanos.

72 DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO.


VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E FEMINICÍDIO:
A URGENTE NECESSIDADE DE INFORMAÇÃO
ATUALIZADA E CONTÍNUA1.
Patrícia Tuma Martins Bertolin
Denise Almeida de Andrade

A violência contra a mulher é ainda uma realidade no Brasil, e na América Latina,


em pleno século XXI. São múltiplas as suas formas de expressão: física, psicológica, se-
xual, patrimonial, moral2, a partir das quais se estabelece um ciclo de violência de difícil
superação sem o auxílio de terceiros (sejam profissionais da saúde, do serviço social, dos
órgãos de segurança).
Dentre as variadas formas de agressão, a expressão mais extrema é o homicídio. De
acordo com o Mapa da Violência 20153, aproximadamente 7 mulheres são assassinadas
por dia, tendo como homicida, um familiar. Esse número representa a totalidade de mor-
tes, ou seja, contempla todos os casos de homicídio (morte no trânsito, por tráfico de
drogas etc.).
Destacamos, para este ensaio, o homicídio praticado por (ex)parceiro/marido/namo-
rado, uma vez que se maximiza a crueldade da violência, na medida em que além de
acontecer no âmbito da residência da vítima, é praticada por alguém que deveria contri-
buir para a qualidade de vida e segurança desta mulher.
Nestes casos, também de acordo com o Mapa da Violência 20154 , a média é de 4 fem-
inicídios por dia.
Para além de todas as dificuldades de que o Estado brasileiro padece no enfrentamen-
to à violência contra a mulher, entendemos que a ausência de informação de qualidade,
essencial à compreensão adequada desse fenômeno é imprescindível para a elaboração

¹ Esse texto se refere às reflexões preliminares em pesquisa realizada com o apoio do CNPq (Feminicídio: quando a desigualdade de
gênero mata”, processo CNPq n0 449640/2014-0).
2
Vide artigo 7o da Lei no 11.340 de 2006 – Lei Maria da Penha: “Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher,
entre outras: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psi-
cológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe
o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, con-
strangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não
desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua
Samara Takashiro

sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição,
mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a
violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer
suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”(grifamos).
3
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil. 2015. Brasilia. Disponível em: http://www.mapa-
daviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf. Acesso em: 20 mai. 2017.
4
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil. 2015. Brasilia. Disponível em: http://www.mapa-
daviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf. Acesso em: 20 mai. 2017.

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DIREITO
DIREITOÀÀCIDADE:
CIDADE:UMA
UMAVISÃO
OUTRAPOR
VISÃO
GÊNERO.
DE GÊNERO. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E FEMINICÍDIO: A URGENTE NECESSIDADE DE INFORMAÇÃO ATUALIZADA E CON-
TÍNUA
de ações e políticas oficiais verdadeiramente eficientes, tem comprometido sobremaneira ca contra a mulher.
a atuação satisfatória do poder público.
Não há no Brasil, atualmente, pesquisa com dados primários, obtidos por meio de in- Em relação à agressão física, 2,5 milhões de pessoas de 10 anos ou mais
de idade foram vítimas, o que representa 1,6% da população do País.
dicadores básicos que contemplem as inúmeras variáveis atinentes à complexidade deste
Nas Regiões Norte e Nordeste, foram observadas as maiores frequ-
crime. Referida lacuna compromete as ações públicas voltadas ao enfrentamento desse
ências, 1,9% e 1,8%, respectivamente. As menores frequências foram
crime, uma vez que não estão subsidiadas em informações precisas e atuais. registradas nas Regiões Sudeste e Sul, ambas com 1,4% (Tabela 6.13).
Segundo o Informe de los Amigos de la Presidencia de la Comisión de Estadística de Na desagregação das agressões por último agressor, segundo o sexo
las Naciones Unidas5 são indicadores básicos sobre violência contra as mulheres: a) taxa da vítima, observa-se que, em cerca de 70% das agressões sofridas por
geral, e por grupo de idade, de mulheres vítimas de violência física (no interregno dos mulheres, o agressor era uma pessoa conhecida e, em 25,9% dos casos,
últimos 12 meses, da data da realização da pesquisa), por gravidade do ato, relação entre o era o cônjuge ou ex-cônjuge.7
autor e vítima e a frequência dos atos de violência já praticados; b) taxa geral, e por grupo
de idade, de mulheres vítimas de violência física ao longo de sua vida, por gravidade do
Essas informações foram reiteradas na Pesquisa do IBGE sobre Vitimização e Acesso
ato, relação entre autor e vítima e a frequência dos atos de violência já praticados; c) taxa
à Justiça, publicada a partir das mesmas fontes de dados.8
geral, e por grupo de idade, de mulheres vítimas de violência sexual (no interregno dos
últimos 12 meses, da data da realização da pesquisa), por gravidade do ato, relação entre
autor e vítima e a frequência dos atos de violência já praticados.
Os dados sobre violência contra as mulheres que têm sido produzidos pelo Brasil,
e também pelos demais países da América Latina e Caribe, são de difícil comparação,
pois, apesar de se contar com os indicadores do Informe dos Amigos da Presidência da
Comissão de Estatística da ONU, parece ser muito difícil a adoção de indicadores ho-
mogêneos com validade internacional nos países da região.
A coleta dos dados é, em geral, descentralizada e sem consistência, nos diferentes
Estados e mesmo entre diversas repartições de um mesmo Estado. Não existe consenso,
nacional e internacionalmente, sobre os atos que devam constar dos registros e também
sobre a maneira de registrá-los, para que seja possível se contar com dados comparáveis.
Há problemas como o subregistro dessas ocorrências, o duplo registro, o registro in-
completo (dos quais não se extrai informações suficientes sobre a prática do homicídio),
os quais se relacionam diretamente com a ausência de pesquisas, censos ou estatísticas
de qualidade.
No cenário ideal, defendemos que a coleta das informações seja feita de maneira
autônoma, com dados primários, obtidos por instituição de credibilidade. As estatísticas
deveriam resultar de um sistema único e integrado que contemplasse as diversas insti-
tuições envolvidas no acompanhamento das vítimas de violência contra a mulher e suas
famílias. Sabemos, contudo, que, ao menos em curto prazo, não teremos essa resposta.
Diante disso, poderia ser uma alternativa a inserção de módulos específicos em ini-
ciativas já existentes, como o Censo do IBGE, realizado a cada 10 anos. O IBGE, desde A pesquisa importou dados da Central de Atendimento à Mulher – Disque 180 – da
2009, inseriu como indicadores - na categoria Direitos Humanos da Pesquisa Nacional Secretaria de Política para as Mulheres (SPM), para abordar a violência contra a mulher
por Amostra de Domicílios do IBGE6 que trata do direito de não ser submetido à tortura, e assim elaborar um detalhamento das características dos crimes praticados contra as
a tratamento e punição desumanos e degradantes - perguntas sobre a violência domésti- mulheres, agrupadas no gráfico a seguir:
5
NACIONES UNIDAS. Consejo Económico y Social. Informe de los Amigos de la Presidencia de la Comisión de Estadística de las Naciones
Unidas sobre los indicadores de la violencia contra la mujer. 2010. Disponível em: https://unstats.un.org/unsd/statcom/doc11/2011-5-
7
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio: indicadores sociais 2009. Dis-
FOC-GenderStats-S.pdf. Acesso em: 21 mai. 2017. ponível: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv62715.pdf. Acesso em: 14 set. 2015.
6
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio: indicadores sociais 2009. Dis-
8
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Características da vitimização e do acesso à justiça no Brasil: 2009. Disponível:
ponível: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv62715.pdf. Acesso em: 14 set. 2015. http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv47311.pdf. Acesso em: 14 set. 2015.

76 77
DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E FEMINICÍDIO: A URGENTE NECESSIDADE DE INFORMAÇÃO ATUALIZADA E CON-
TÍNUA
com pesquisas futuras.
Admitimos que não foram poucas as pesquisas realizadas no Brasil, nos últimos 5
anos, objetivando apreender a prevalência e a ocorrência das diversas formas de violên-
cia contra a mulher. Entre elas: O Poder Judiciário na Aplicação da Lei Maria da Penha,
do Conselho Nacional de Justiça (2013); Percepção da sociedade sobre violência e as-
sassinato de mulheres, do Instituto Patrícia Galvão/Data Popular (2013); Percepções de
Homens sobre a Violência contra as Mulheres, do Instituto Avon/Data Popular (2013);
Pesquisa Nacional de Vitimização, do Senasp/Data Folha (2013); Mapa da Violência 2012
– Atualização: Homicídio de Mulheres no Brasil, do CEBELA e do FLACSO Brasil; Tol-
erância social à violência contra as mulheres do Ipea (2014); Violência contra a Mulher:
o jovem está ligado?, do Instituto Avon/Data Popular (2014); Balanço 2014 – Ligue 180.
Todavia, cada uma dessas pesquisas têm objetivos diferentes, adota metodologia di-
versa e atinge um universo também diferente, de modo que o Brasil parece estar muito
distante de uma utilização dos indicadores do Informe de los Amigos de la Presidencia
de la Comisión de Estadística de las Naciones Unidas sobre Indicadores de la violencia
contra la mujer.
Acreditamos que no Brasil, especialmente por suas características de extensa di-
mensão territorial, grande diversidade cultural e intensa concentração da população nas
zonas urbanas, entre outras, as medidas oficiais de enfrentamento à violência contra a
mulher e ao feminicídio só serão eficazes quando subsidiadas por informações atuais e
fidedignas. Somente o conhecimento do atual cenário de violência e suas peculiaridades
Percebemos que há um esforço para mapear a situação da violência contra a mulher, se traduzirá em uma atuação eficiente do Estado.
contudo os resultados oriundos desta adaptação (inserção de módulos sobre o tema em
pesquisas já existentes) não são completos, tendo em estar inserida no escopo de outra
pesquisa, o que, por conseguinte, impõe algumas limitações.
No que se refere a termos um registro único e integrado de todos os serviços de aten-
dimento à vítima ou sua família, acreditamos que teriam baixo custo, pois de certa forma
já existem, no Estado brasileiro. Uma vez que as unidades de saúde, os distritos policiais
e os serviços sociais têm que catalogar as ocorrências, mas em sistemas independentes,
bastaria que se comunicassem e que funcionassem ininterruptamente, garantindo a con-
tinuidade da coleta, além de uma unificação das metodologias utilizadas nos registros,
para que o país dispusesse de dados fidedignos.
Desta forma, com um registro único superaríamos os duplos registros, bem como
consolidaríamos as informações coletadas. A cada ocasião de atendimento, o agente pú-
blico teria oportunidade de coletar mais dados, inserir mais detalhes sobre as circun-
stâncias do crime, sobre a vítima e autor, os quais se traduziriam na consolidação das
informações.
Reconhecemos, todavia, que mesmo implantado um sistema único e integrado, tería-
mos dados apenas dos casos levados ao conhecimento dos órgãos de atendimento; e
sabemos que, não raro, as mulheres não denunciam ou buscam atendimento, por verg-
onha, medo de novas agressões e descrença na atuação do Estado.
Diante disto, defendemos a urgência de pesquisas que sejam realizadas com period-
icidade, a partir de indicadores básicos claros e metodologia que permita comparação

78 79
DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E FEMINICÍDIO: A URGENTE NECESSIDADE DE INFORMAÇÃO ATUALIZADA E CON-
TÍNUA
Samara Takashiro

80 DIREITO
DIREITOÀÀCIDADE:
CIDADE:UMA
UMAVISÃO
OUTRAPOR
VISÃO
GÊNERO.
DE GÊNERO.
10 A CASA DELAS, NA LUTA E NO DIREITO
Simone Gatti

A conquista de direitos pelas mulheres no âmbito do acesso à moradia no Brasil re-


gistra pequenos e significativos avanços ao longo da última década, tanto do ponto de
vista legal, com inclusão de medidas protecionistas nos programas de moradia de alcan-
ce federal, como do ponto de vista do empoderamento feminino, relacionado à participa-
ção política e a ruptura dos processos de opressão e privação de direitos.
O Governo Dilma avançou alguns capítulos no processo de inclusão de gênero nas
políticas habitacionais. Desde 2012 as mulheres passaram a ter a preferência na escritura
das casas do Programa Minha Casa Minha Vida, e o programa ainda passou a prever
que mulheres separadas com renda inferior a três salários mínimos pudessem adquirir o
imóvel mesmo sem a assinatura do cônjuge ou sem divórcio judicial, caso o pai não tenha
a guarda dos filhos.
Simone Gatti - Arquiteta e urbanista e doutora pela Faculdade Essa medida visa proteger o direito das mulheres, que são as principais vítimas dos
de Arquitetura e Urbanismo da USP. Atualmente é professora de danos decorrentes dos processos de separação. A titulação tem o importante papel de
planejamento urbano e pós-doutoranda na FAU USP. Trabalhou fornecer a segurança jurídica da posse para os moradores, mas ainda não é suficiente
na coordenação de diversos e projetos urbanos, foi consulto- para promover a integração socioespacial, evitar a dissolução das comunidades e reduzir
ra do Instituto Pólis e conselheira no Conselho Gestor da ZEIS a desigualdade de gênero.
3 inserida no perímetro do projeto Nova Luz e co-fundadora Em 2015, 89% das moradias do programa federal eram de propriedade das mulheres.
da AMOALUZ. É autora do livro Espaços Públicos: Diagnóstico e Já no Programa Nacional de Habitação Rural (criado no âmbito do programa Minha Casa
Metodologia de Projeto e ministra curso homônimo de capaci- Minha Vida Rural para atender agricultores familiares, comunidades indígenas, descen-
tação para os municípios brasileiros, sob iniciativa do programa dentes de quilombolas, extrativistas e pescadores que vivem em áreas rurais, ribeirinhos
ou cidadãos que moram em regiões de difícil acesso) as mulheres respondiam em 2016
Soluções para Cidades da ABCP. Publicou artigos e capítulos de
por 75% dos contratos das residências, segundo dados da Superintendência Nacional de
livros sobre habitação e projetos urbanos no Brasil e no exterior
Habitação Rural da Caixa Econômica Federal.
e atuou como docente no Centro Universitário SENAC, na UNIABC Em contraposição, pesquisa recente realizada por Priscila Specie e Miguel Jacob a
e na FAU USP. Atua como pesquisadora do NAPPLAC (Núcleo de partir dos dados georeferenciados do IPTU, a quantidade de imóveis pertencentes às
apoio à pesquisa, produção e linguagem do ambiente construí- mulheres na cidade de São Paulo é quase duas vezes menor do que a dos homens. E as
do e representa o IABsp na Comissão Executiva da Operação paulistanas mais pobres têm ainda menos acesso à propriedade imobiliária, já que os
Urbana Centro da Prefeitura Municipal de São Paulo. imóveis com proprietárias mulheres estão concentrados no centro expandido, área mais
  rica da cidade, o que mostra uma dificuldade de acesso das mulheres pobres aos serviços
públicos e ao emprego, concentrados nas áreas mais centrais.
Estes dados são cruciais considerando que a forma de moradia dominante nas cida-
des brasileiras se dá pelo acesso à propriedade, grande parte dela na esfera privada, mas
também aponta a necessidade da implantação de formas alternativas de acesso à mora-
dia, que possa oferecer habitação de aluguel aos mais pobres por valores proporcionais à

82 83
DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. A CASA DELAS, NA LUTA E NO DIREITO
renda familiar na escala do déficit habitacional, independente do gênero.
Frente ao déficit e à falta de alternativas de habitação acessível em áreas bem locali-
zadas e próximas ao emprego e aos serviços básicos, a sociedade civil tem se estruturado
em outros formatos, não endossados pelo Estado. Neste contexto se sobressai a luta de
mulheres engajadas na pauta do direito à moradia junto a movimentos organizados. São
lutas que permeiam à margem das esferas públicas e do regramento jurídico, lutas es-
pontâneas que se solidificaram em movimentos de transformação, lutas cotidianas que
acumulam conquistas coletivas, conquistas para o outro. Estas lutas vão à contramão do
direito adquirido, já que se dão pela busca deste direito inexistente, a partir da formata-
ção de grupos independentes que caminham na direção oposta dos espaços instituciona-
lizados.
Cito três mulheres, que representam dezenas de centenas de outras conectadas a elas
direta ou indiretamente, com quem tive a honra de me deparar na minha trajetória pro-
fissional e se tornaram referência e inspiração para permanecer nesta injusta e árdua ba-
talha pelo direito à moradia. Seus nomes são Olga Quiroga, Ivanete Araújo e Paula Ribas.
Uma conheci de perto, freqüentei sua casa, conheci sua história e sua família. Paula,
uma jornalista que morava no coração da Santa Efigênia, a que queriam transformar em
Nova Luz, e que hoje querem fazer nova novamente. Essa mulher começou uma luta
por interesses particulares na defesa do seu prédio que poderia ser desapropriado, e em
poucos meses essa luta se transformou na luta do bairro todo, na luta pelos pobres ou
imigrantes clandestinos moradores de cortiços que não se julgavam no direito de reivin-
dicar direitos.
Paula se empoderou do discurso pelo direito à moradia, conheceu as leis que regiam
o território onde vivia e, empunhada de um megafone e do poder de comunicação que Paula Ribas e o “Papo com Megafone” realizado em um domingo de 2010 nas ruas do
era só dela, ia pra feira do bairro mobilizar a população e informar os mandos e desman- perímetro do Projeto Nova Luz [Foto: Camila de Oliveira].
dos da gestão Kassab. A presença de Paula Ribas na liderança da AMOALUZ possibili-
tou a integração de diversos setores da sociedade civil em um objetivo comum. Comer- dicação do projeto da Vila dos Idosos junto à Secretaria Municipal de Habitação de São
ciantes, associações de bairro, movimentos sociais organizados e moradores, sejam eles Paulo. A Vila dos Idosos é o melhor exemplo do Programa Locação Social, construído na
locatários ou proprietários, se integraram no debate sobre o projeto Nova Luz e na busca gestão da prefeita Marta Suplicy e que hoje abriga mais de 200 idosos, todos aposenta-
pela inclusão em um processo previamente excludente e autoritário. dos ou beneficiários da Lei Orgânica de Assistência Social que pagam o correspondente
Foi ao lado dessa mulher que formamos o primeiro Conselho Gestor de uma Zona a 10% da renda para o aluguel no edifício de propriedade pública.
Especial de Interesse Social em áreas centrais na cidade de São Paulo, a ZEIS 3. Foi onde Aos 80 anos de idade, Dona Olga atua ativamente na militância não somente dos
conheci as principais lideranças dos movimentos de moradia da cidade e me deparei com idosos, mas junto aos inúmeros movimentos sociais que atuam em prol da moradia no
dezenas de mulheres tão cheias de força como ela, as mulheres da moradia, as mulheres município. Junto ao Garmic, “preparamos, capacitamos politicamente o idoso para que
do direito á cidade, mulheres vindas de tão longe a tão paulistanas como nenhuma outra. ele more com dignidade. Falamos a ele que tem direitos, assegurados pela Política Nacio-
Dona Olga é a que veio de mais longe. Uma senhora animada, com brilhos nos olhos nal do Idoso e pelo Estatuto do Idoso. Também desenvolvemos trabalho conjunto com a
e sotaque castelhano, que veio do Chile na década de 50 depois de ter se filiado a um Defensoria Pública, na defesa dos idosos contra maus tratos.”
partido radical de esquerda. Vi esta mulher pela primeira vez em uma das jornadas pela Por último, a Neti, Ivaneti Araújo, mulher símbolo da resistência dos movimentos de
moradia organizada pelo Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, em 2011. Ela or- ocupação dos edifícios vazios no centro da cidade, já foi personagem de filme e atua em
ganizava a mística, uma espécie de dança que abre ou encerra os atos dos movimentos diversas frentes na luta pelo direito à moradia. Conheci a Neti quando ela coordenava o
sociais e convida todos os presentes para um momento de motivação e celebração. MSTC, Movimento do Sem Teto do Centro, e era uma das lideranças da Ocupação Mauá,
Dona Olga é uma das coordenadoras do Garmic, o Grupo de Articulação para a Con- edifício localizado em frente à Estação da Luz que ficou anos vazio sem cumprir a função
quista de Moradia dos Idosos da Capital, fundado em 1999 e responsável pela reivin- social da propriedade e foi ocupado pelos movimentos de moradia.

84 85
DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. A CASA DELAS, NA LUTA E NO DIREITO
A ocupação Mauá se tornou um
dos símbolos das ocupações, foi de-
clarada de interesse social e estava
para ser desapropriada, reformada
e transformada em habitação social
na gestão Haddad. Hoje, enfrenta
novamente ameaças de reintegração
de posse e, da mesma forma que foi
sede das ações de resistência da so-
ciedade civil contra o projeto Nova
Luz na gestão Serra- Kassab, está
novamente sendo palco da forma-
ção de luta pela permanência da po-
pulação residente da ZEIS alvo de
demolições e remoções na área dos
Campos Elíseos, onde se concentra-
va o fluxo dos usuários de crack.
Neti, juntamente com dezenas
de outras mulheres ativistas, con-
tinua à frente da articulação dos
movimentos de ocupações, no en-
frentamento da permanência da
Mauá como habitação de interesse
social e na luta contra as demolições
e despejos na revisão dos Campos
Elíseos.

Dona Olga e o morador mais idoso da Vila dos Idosos, em 2013 [Foto da autora]
Ivaneti Araújo nos bastidores do filme Estamos Juntos, de Toni Venturi, 2011.
A importância da atuação dessas mulheres na militância dos movimentos de ocu-
pações se materializa não só como exemplo de empoderamento para outras mulheres, Conquistas recentes, como as citadas no âmbito do Programa Minha Casa Minha
mas nas próprias características físicas destes espaços, à medida que crianças, gestantes, Vida, contribuíram para o país subir, nos anos de 2014 a 2015, de 97 para 75 no ranking
mães sem a presença dos cônjuges e idosos recebem uma atenção especial de proteção global de igualdade de gênero. O processo para o alcance da igualdade de gênero está
diante da fragilidade de suas condições. A instalação de creches, o direcionamento para em curso, mas ainda enfrenta importantes desafios e ameaças constantes. Neste contexto,
as crianças freqüentarem escolas e regras de convívio condominial são conquistas impor- as batalhas cotidianas e articuladas entre os campos formais e informais e a militância
tantes da presença das mulheres nos edifícios ocupados pelos movimentos organizados. sempre presente das nossas Olgas, Ivanetis e Paulas não são apenas necessárias, mas in-
O papel dessas mulheres militantes no contexto da aquisição de direitos e estratégias dispensáveis.
de enfrentamento se faz ainda mais pertinente em momentos de crise política e possibi-
lidades de rupturas de conquistas históricas e programas sociais, tais quais o Brasil vem
enfrentando desde 2016. Os cortes sociais têm um alcance independente do gênero, mas
as mulheres são atingidas duplamente, em função dos encargos acumulados entre traba-
lho, afazeres domésticos e maternidade, bem como são vítimas em índices ascendentes
da violência doméstica.

86 87
DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. A CASA DELAS, NA LUTA E NO DIREITO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GATTI, Simone Ferreira. Entre a permanência e o deslocamento: ZEIS 3 como instru-
mento para a manutenção da população de baixa renda em áreas centrais. Tese de dou-
torado. FAU USP, São Paulo, 2015. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16133/tde-29102015-143015/pt-br.php
SPECIE, Priscila e JACOB, Miguel. A propriedade imobiliária das mulheres na cida-
de de São Paulo. CEPESP-FGV, 2016.
ZARIAS, Alexandre; FERREIRA, Suzy L. N. G. e QUEIROZ, Felipe R. Mulheres e
11
o direito à moradia: a função social da propriedade na perspectiva de gênero. In: 17º
Encontro Nacional da rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre a
Mulher e Relações de Gênero, 2012.

Fernanda Azevedo - Mestranda em Artes Cênicas no Instituto de


Artes da Unesp. Atriz e integrante da Kiwi Companhia de Teatro
desde 2006. Militante feminista/socialista e ativista dos Movi-
mentos de Arte e Cultura da cidade de São Paulo.

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. CIDADE, SERÁS FEMINISTA!
Di Campana

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DIREITO
DIREITOÀÀCIDADE:
CIDADE:UMA
UMAVISÃO
OUTRAPOR
VISÃO
GÊNERO.
DE GÊNERO. SOBRE CIDADE, NÃO-LUGAR E SEXUALIDADE DAS MULHERES
causar, se multiplicam até nossos dias.
Se, como diz Walter Benjamin, “todo documento de cultura é também um documen-
to de barbárie”, o exercício de uma arte revolucionária seria trabalhar na chave da con-
tracultura. Ainda sob a influência de Benjamin, arrisco dizer que caberia também aos
artistas a função de escrever a História a contrapelo.
LUGAR DE MULHER É NO ESPAÇO PÚBLICO! E As artistas mulheres, mesmo sendo constantemente caladas e jogadas para debaixo
do tapete da História, não se eximiram da tarefa de ocupar, de forma crítica, o espaço
QUE O TEATRO TEM A VER COM ISSO? público.

Fernanda Azevedo
Algumas palavras sobre a participação das mulheres na
cena teatral brasileira
“(...)
Rua A pesquisadora Heloísa Pontes sinaliza as décadas de 1940 e 1950 como um momento
Te quero das mulheres de convergência entre o pensamento universitário, a produção teatral e o contexto social
Ensinadas desde cedo que só podem brincar dentro de
na cidade de São Paulo. A presença de intelectuais, professore(a)s e diretores(a)s teatrais
casa
Porque a rua é perigosa, porque a rua é violenta vindos dos países europeus para o Brasil no período da segunda guerra mundial marcou
Porque a rua é dos meninos que não sabem respeitar profundamente as vidas e as carreiras artísticas de quem sofreu suas influências, além
Rua eu te conheço, quem ameaça as meninas e mulheres de todo um sistema intelectual e cultural da cidade que se transformava em metrópole.
É a mesma opressão que torna as casas inseguras
É neste período também que algumas mulheres irão assumir um papel de protagonis-
Muito mais do que as ruas
A rua é de todos os amores mo não só como atrizes respeitadas, mas também como “donas” de companhias teatrais
Todo discurso moralista que se opõe à igualdade importantes, mesmo que ainda em parceria com seus companheiros de vida e trabalho.
Que se opõe à autonomia sobre o corpo Ainda que não rompessem totalmente com a visão masculina e o domínio dos homens
É um pouco tribunal da Inquisição
no ambiente cultural, mulheres como Maria Della Costa, Tônia Carrero, Nydia Lícia, Fer-
A rua não comporta privilégios
Não tem dono nem tem preço nanda Montenegro e Cacilda Becker, conseguiram se firmar como figuras incontornáveis
É como o vento, o sol, a chuva da historiografia teatral do país. Vale lembrar que, em 1958, Patrícia Galvão, a Pagu, será
Por isso hoje eu vim pra rua!” uma das criadoras do Festival Santista de Teatro Amador – FESTA. Festival que existe
(Hino à rua - Coletivo Baderna Midiática)
até hoje, como forma de resistência do teatro numa cidade tão maltratada pelo descaso
público no campo da arte e da cultura.
Arte e realidade – Irmãs siamesas Elza Cunha de Vincenso, no livro Um teatro da mulher – dramaturgia no palco con-
temporâneo, procura compreender a presença da escrita dramatúrgica feminina no cená-
Diversos (a)s autores(as) e artistas discutem, na teoria e na prática, a relação entre
rio teatral brasileiro, até então prioritariamente espaço masculino, e analisa especialmen-
arte e sociedade. A arte não está fora do mundo e, nesse sentido, responde aos perigos de
te o período da ditadura civil-militar (1964 - 1985). Segundo a autora, é nos momentos de
sua época, como disse o dramaturgo e diretor britânico Edward Bond.
ebulição política e social, quando todas as forças são necessárias no combate ao inimigo
Bertolt Brecht insiste na necessidade de o teatro estar conectado ao contexto histórico
autoritário, que se abrem brechas para a participação das mulheres na vida política e nos
e investigar os mecanismos sociais a fim de transformá-los. Frida Kahlo e Diego Rivera
espaços socialmente importantes. Não é diferente com as mulheres dramaturgas que,
estiveram ligados ao Partido Comunista Mexicano, aos camponeses zapatistas e partici-
neste momento conseguem sair da relação de intimidade com seu público – característica
param ativamente da vida política de seu país. Júlio Cortázar dedicou esforços e os direi-
da literatura, atividade a qual algumas destas escritoras se dedicavam – e experimentar
tos de alguns de seus livros à Revolução Sandinista na Nicarágua. O coletivo feminista
sua voz e suas ideias no embate público e coletivo através do teatro. Era preciso ir às ruas,
argentino de arte e ativismo Mujeres Creando se utiliza do humor, da ironia, do jogo e
ocupar os palcos, criar assembleias de discussão para falar contra o regime. Num mo-
inversões de significados na criação de seus cartazes e colagens para tratar das questões
mento em que o teatro se colocava como espaço de transformação social e se propunha a
referentes às opressões de sexo e gênero. Nos anos 1960 e 70, cineastas, artistas de tea-
pensar criticamente o país, a produção de mulheres como Hilda Hilst, Renata Pallottini,
tro e música resistiram bravamente ao autoritarismo da ditadura civil-militar no Brasil
Leilah Assumpção, Consuelo de Castro, Isabel Câmara e Maria Adelaide Amaral esta-
(muitos foram perseguidos e exilados e, alguns, assassinados). Os exemplos são muitos
vam presentes no front de batalha. Estas mulheres fizeram parte de um grupo amplo de
e, graças à inquietude e recusa ao apaziguamento que a experimentação artística pode

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. LUGAR DE MULHER É NO ESPAÇO PÚBLICO! E QUE O TEATRO TEM A VER COM ISSO?
dramaturgos estreantes que, em 1969, recebe o nome de “nova dramaturgia”. romance...”.
Mesmo que muitas delas não se considerassem feministas, Elza reconhece que o fe- Se a literatura se apresentou como uma forma inicial de expandir as experiências fe-
nômeno da “eclosão da dramaturgia feminina brasileira” destes anos está, em parte, vin- mininas para além do espaço privado, no século XX estas vozes femininas não se conten-
culado ao renascimento do movimento feminista europeu e norte-americano do final da tam mais em permanecer como objeto de consumo individual. O clamor das ruas atinge
década de 1960. Movimento este que reformulou não só as escolhas dramatúrgicas, mas as artistas de diversas linguagens e a fala feminina se faz presente e passa a ser dita em
também a forma cênica e o modo de produção teatral. voz alta. As mulheres entram na discussão política e ampliam o debate público através
Em diversos textos das dramaturgas brasileiras, mesmo que não reproduzissem di- de uma produção artística com características específicas.
retamente o pensamento feminista da época, era patente a reivindicação de uma sexu- A radicalidade social do trabalho de artistas como Marcia X, Ana Mendieta, Regina
alidade liberada, de uma recusa da família tradicional e a discussão sobre o poder dos Galindo, Cindy Sherman, Valie Export e Orlan, trazem à tona o mote da segunda onda
homens sobre as mulheres. feminista (no Ocidente): “todo pessoal é político”, através de performances que incluem
Muitas são as tentativas de exercitar a imaginação política e pensar outras formas de as experiências de vida e os próprios corpos das artistas como base dos trabalhos.
vida e ocupação da cidade. Em razão do contexto atual, de violência concreta em diver- Inspiração e braços fortes não nos faltam: Violeta Parra, Clara Schumann, Chiqui-
sos níveis e do atraso da sociedade brasileira em relação a direitos essenciais das mulhe- nha Gonzaga, Dolores Duran, Maria Eliza (primeira palhaça negra brasileira!), Lucinha
res, novas Companhias Teatrais e Coletivos Artísticos irão centrar forças nesta discussão. Turnbull (nossa primeira guitarrista), Inezita Barroso, Frida Kahlo, Tina Modotti, Pagu,
Os exemplos são muitos. Lygia Clarck, a palestina Mona Hatoum, Jesusa Rodrigues e Liliana Felipe, Maria Galin-
As Loucas de Pedra Lilás são militantes feministas pernambucanas que resolvem do e as Mujeres Creando, a escritora marxista Elfriede Jelinek, Raquel de Queiroz, entre
usar a linguagem do teatro de rua para desmistificar o feminismo, desconstruindo este- tantas outras que tiveram ousadia e coragem e abriram o caminho para as novas gerações
reótipos perpetuados pelos meios de comunicação de massa. de mulheres insurgentes.
O Grupo As Marias das Graça, promovem há mais de uma década um festival inter-
nacional de mulheres palhaças no Rio de Janeiro. Quebrando o machismo que circunda
o mundo do circo e da palhaçaria.
Também no Rio de Janeiro, o Grupo As Madalenas, utiliza os métodos do teatro fó-
rum, de Augusto Boal, para exercitar o protagonismo feminino. Depois de alguns anos
surgem também As Madalenas Anastácias, grupo dedicado especialmente às questões REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
das mulheres negras.
(Em) Companhia de mulheres, de Florianópolis, formado inicialmente por 3 atrizes/ BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Trad.
pesquisadoras, surge no desdobramento do grupo de estudos Teatro e Gênero coordena- Sergio Paulo Rouanet. In Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas I, São Paulo:
do pela Prof.ª. Drª. Miranda, em 2010.
Brasiliense, 1985.
Em São Paulo, fruto movimento de teatro de grupo que renasceu na cidade a partir
da década de 1990, formaram-se alguns coletivos de mulheres preocupadas em avançar MIRANDA, Maria Brígida de. Teatro feminista: da pesquisa à sala de aula. In Revista
no debate a respeito do lugar ocupado pelas artistas mulheres na produção teatral, além de Investigação em Artes, Florianópolis, v.3, n.1, ago.2007/ jul.2008. Disponível em: http://
das discussões sobre sexo e gênero e das diversas opressões sofridas pelas mulheres.
docplayer.com.br/16931973-Teatro-feminista-da-pesquisa-a-sala-de-aula-1-2-3.html.
Rubro Obsceno, Capulanas – Cia de arte negra, Madeirite Rosa, Coletivo Vulva da Vovó,
Mãe da Rua, Companhia das Atrizes, são alguns exemplos desta nova safra de grupos. Acesso em: 18 dez. 2016.
As temáticas feministas estão presentes também em trabalhos de Companhias de forma- PONTES, Heloisa. Teatro, gênero e sociedade (1940-1968). In Tempo Social, revista de
ção mista: como Carne – Patriarcado e capitalismo, da Kiwi Companhia de Teatro; Cas-
sociologia da USP, v. 22, n. 1: 29-46. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v22n1/
sandra – na calada da voz, do Núcleo Bartolomeu; Ida, do Coletivo Negro; Naturaleza
Muerta, de Las Desdenhosas, entre outros. v22n1a02.pdf . Acesso em 15 dez. 2016
WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. São Paulo: Círculo do Livro, 1994.
Finalmente...
VINCENZO, Elza Cunha de. Um teatro da mulher – dramaturgia no palco contem-
Segundo Virgínia Woolf “todo treino literário de que a mulher dispunha no início do
século XIX resumia-se a um treino de observação de personalidade e análise de emoções. porâneo. Edusp. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1992.
(...) quando começou a escrever, no século XVIII, a mulher dedicou-se, naturalmente, ao

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. LUGAR DE MULHER É NO ESPAÇO PÚBLICO! E QUE O TEATRO TEM A VER COM ISSO?
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Grazielle Albuquerque - Jornalista, doutoranda em Ciência Políti-
ca pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e fellow
research no German Institute of Global and Area Studies (Giga).

Di Campana

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO.
Por mais instigantes que sejam os números da presença feminina nessas transações
imobiliárias, se aprofundarmos uma análise crítica da questão, o que se destaca é o me-
canismo, a estratégia de fazer sem dizer, um drible à impossibilidade de se construir um
papel de autonomia diante da cidade e da lei. Esta questão se atualiza se pensarmos que,
há muito, as mulheres constroem formas de sobreviver e se apropriar do espaço em que
A VISIBILIDADE EM OUTROS ESPAÇOS: OS PAPÉIS vivem, diante do Sistema de Justiça. Mas talvez a marca singular dos tempos contempo-
SOCIAIS MUDAM O MODO COMO UMA MULHER râneos seja a reivindicação de visibilidade para múltiplas identidades.
As reflexões sobre o constrangimento feminino no transporte público, o medo da
SE COLOCA COMO CIDADÃ? violência, o “cuidado” com o uso da indumentária e a gramática de “alertas” que toda
menina aprende como forma de proteção para o convívio social urbano têm vindo à tona
Grazielle Albuquerque em abordagens cada vez mais eloquentes e necessárias. É preciso tirar o véu sobre a míti-
ca de que homens e mulheres vivem a mesma cidade com igualdade de condições no seu
Falar sobre mulheres, direito e cidade é colocar-nos diante do que não é dito, daquilo
uso. Esse movimento é tão importante que a expressão “tirar o véu” não é apenas retóri-
que existe, mas que precisa ser dissimulado por uma estratégia de sobrevivência.
ca, já que, em muitos aspectos, as pautas feministas servem mesmo para desnaturalizar
Alguns dados históricos sobre Fortaleza ilustram bem esse fenômeno. Na década de
discursos, fazer ver o que sequer antes era percebido.
1930, o centro da cidade passava por um processo de verticalização e, em paralelo, casas
Contudo, há ainda outras camadas a serem observadas, como a da cidadã que se mo-
de taipa e telha eram comercializadas em outras áreas. Na época, a elite estava em bairros
biliza, através da lei, por ser mulher. Os papéis sociais mudam o modo como uma mulher
como Jacarecanga e Benfica e a cidade vivia um período de intensa transformação. Com
se coloca como cidadã? Uma pergunta prática pode clarear a questão: será que o número
a urbanização, diversos lugares foram sendo ocupados por vilas, sobretudo o bairro da
de mulheres que ingressam com uma ação movida por conflito social urbano tem algu-
Aldeota, onde há um esquadriamento do terreno para essas construções.
ma proporcionalidade com o de mulheres que entram com uma ação de alimentos? Eis o
Essa parece ser uma história trivial do crescimento urbano, mas o que pouca gente
ponto: na esfera institucional, na minha posição de cidadã e mulher, que lugar eu ocupo?
sabe é que, nesse período, 33% dos imóveis e terrenos que estavam sendo comprados e
Vê-se que a cidade e seu uso estão em um plano mais amplo do que o estritamente físico.
vendidos eram negociados por mulheres. O número – descoberto na pesquisa de mes-
Na atualidade, alguns exemplos ligados a essa inquietação podem ser vistos. As polí-
trado do professor de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), Mário Martins
ticas de moradia e regularização fundiária, que passaram a priorizar a titulação em nome
- impressiona.
das mulheres, garantiram segurança aos núcleos familiares majoritariamente chefiados
O espanto é maior, sobretudo, se lembrarmos que tanto a Constituição quanto o Có-
por elas e também asseguraram maior eficiência aos programas sociais com esse recorte.
digo Civil vigentes à época reservavam o lar e, não o mundo dos negócios, como o espaço
Ou seja, é uma política pública perpassada pela questão de gênero que, ao atentar para
primordialmente destinado à ação feminina. À mulher cabia um papel secundário, era a
a realidade, mudou seu mecanismo-chave e se tornou mais efetiva. O que estava sendo
consorte do marido, ou estava guardada pela família. Dito isso, diante dos postulados da
visto é que, sim, são as mulheres que permanecem nas famílias. Elas ficam, responsabili-
lei, as mulheres desenvolveram, como sempre, estratégias de sobrevivência. Se desde o
zam-se e isso muda as coisas.
século XIX, as viúvas já negociavam, comprando e vendendo imóveis e terrenos, depois,
De forma mais ampla vemos que, ainda que tateando os caminhos, o Direito contem-
nas décadas de 20 e 30, solteiras e casadas passam a aparecer mais nos registros. No final
porâneo tem como grande desafio atentar às questões das identidades. Se pensarmos
dos anos 30, as solteiras dominavam.
nas pautas dos diversos movimentos dos anos 60 e das contestações que tiveram seu
A pesquisa de Mário Martins mostra algumas táticas. Como, obviamente, as pro-
marco nas bandeiras progressistas da segunda metade do século XX, sem dúvida são as
priedades pertenciam à classe alta, ao preço de uma boa assessoria jurídica, as mulheres
questões relativas aos papéis sociais e, sobretudo, ao nome e a imagem que se dá a eles,
conseguiam garantir o manuseio dos bens e, em consequência, sua independência finan-
que despontam hoje. Ser negra, ser lésbica, ser gay, ser travesti, ser transgênero.... As de-
ceira. Em muitos casos, a tática estava nos testamentos deixados por mães ricas às suas
mandas pelo reconhecimento de identidades destacam-se com uma força que transpassa
filhas. No documento existiam cláusulas que retiravam os bens das filhas que casassem
até mesmo as tradicionais demandas da esquerda. Não à toa, a parte o sectarismo que se
(numa vertente contrária ao dote) ou excluíam o marido do manuseio do espólio. Os tes-
ensaia hoje com seus apelos a um estado policial, são áreas como o Direito de Família e o
tamentos compõem uma das hipóteses para os dados encontrados, podem haver outras
Direito Urbanístico que conseguem trazer questões novas e plurais aos tribunais, ser um
explicações. Mas o fato é que em plena década de 30, sem alarde, um terço dos negócios
eixo inovador dentro da normativa dos “doutores da lei”.
imobiliários de Fortaleza estavam em mãos femininas1.
1
das quais 2581 envolviam homens e 1287 envolviam mulheres. Somadas as duas décadas, o resultado final é de 67,4% de escrituras
1
Na década de 20 foram registradas 1009 escrituras, sendo destas 706 envolvendo homens e 303 envolvendo mulheres. Na década de com participação masculina e 32,6% com participação feminina. Mais detalhes em: “As mulheres na expansão material de Fortaleza nos
30, com a expansão da cidade, aumentou-se também o número de escrituras registradas. No total, foram 3868 escrituras registradas, anos de 1920 e 1930”, de Mário Martins Viana Júnior, dissertação de mestrado, Departamento de História, UFC.

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. A VISIBILIDADE EM OUTROS ESPAÇOS: OS PAPÉIS SOCIAIS MUDAM O MODO COMO UMA MULHER SE COLOCA COMO
CIDADÃ?
Sendo direta, em um sistema erguido sobre o dever-ser, como lidar com uma lógica
não binária? Ao se falar sobre as capacidades civis (quem pode o que sobre quais con-
dições), é possível atentar à fluidez da vida moderna? A centralidade das aglomerações
urbanas e o uso dos seus espaços alcança a diversidade de identidades que são reivindi-
cadas hoje? São tantos os dilemas entre o dever-ser e o ser que exemplos e digressões não
caberiam em um artigo.
Há, contudo, um ponto central a ser colocado aqui: a possibilidade de fazer uma rela-
ção entre a gama de direitos (e portanto a capacidade de se acessar o Sistema de Justiça,
de ser sujeito de direitos), o espaço em que se vive e as identidades pessoais. Essa tríade
argumentativa pode ser voltada para a questão feminina, mas vai além dela. O desafio
identitário é amplo e ele não se contenta mais com o reconhecimento restrito à informali-
dade. O grande pulsar da contemporaneidade está em ter um nome, uma voz, um corpo
e uma imagem com legitimidade e reconhecimento públicos. Esse é o desafio das demo-
cracias modernas com imigrantes, refugiados, grupos de diversas etnias e, vejam só, nós
13
mulheres que, a parte todos esses outros signos, sempre tivemos identidades femininas
negociadas às condições de sobrevivência de uma época, dos costumes, das culturas, das
esferas política e econômica.
É difícil achar respostas nas quais as identidades não suplantem as questões de al-
teridade, tão fundantes de sociedades igualitárias e justas, humanas em sua essência. O
desafio permanece. As democracias contemporâneas têm que dar conta não mais apenas
das clássicas demandas dos direitos civis, políticos e sociais. E, no que concerne a nós Amanda Marcatti - Advogada popular
mulheres, o que me parece fundamental é perceber isso: a luta por ir e vir, pelo espaço
físico, está intimamente ligada a ocupar ou não este ou aquele papel, com nome, voz, Isadora Penna - Advogada popular
corpo e reconhecimento.

100 DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. 101


DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS: UMA CONSTRUÇÃO CONSTANTE
Di Campana

102 DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. 103


a. A moral social e a cultura do estupro

É comum que o problema da violência contra a mulher seja atribuído quase que,
exclusivamente, às condições de desigualdade econômica e social da mulher, o que cer-
CIDADE, SUBSTANTIVO FEMININO tamente se verifica.
Contudo, observa-se que a desigualdade histórica da condição da mulher no acesso a
Amanda Marcatti direitos produz não somente uma relação de desigualdade econômica. Em verdade, pro-
duz uma consciência social coletiva que reduz a mulher da condição de sujeito e coloca
Isadora Penna sua vida e seu corpo como propriedade pública e, se essa for casada, do próprio homem.
Era uma vez, uma cidade em que as mulheres eram tão gente quanto os homens. As É necessário fazer essa provocação porque as situações cotidianas de violência pelas
mulheres dessa cidade tinham tempo de frequentar as praças, as reuniões dos conselhos quais as mulheres passam todos os dias, não se explicam unicamente pela reprodução
municipais, os shows e as igrejas. É que nessa cidade, havia restaurantes, lavanderias do machismo nas relações privadas. É preciso reconhecer esse nível de reprodução do
públicas e creches por período integral. machismo na subjetividade geral das massas, já que todos os dias quando as mulheres
Além do tempo que as mulheres tinham, nessa cidade também não havia o medo. saem as ruas são assediadas por homens com os quais não mantém nenhuma relação.
Nenhuma mulher, antes de sair de casa, olhava-se no espelho e pensava se aquela rou- É que, ao terem menos acesso a direitos, as mulheres têm também a sua identidade
pa iria suscitar qualquer tipo de violência ou assédio contra ela. De madrugada, as ruas humana e social retiradas de si mesmas; ou seja, há um pacto consciente coletivo, ainda
iluminadas estavam cheias de mulheres que riam e dançavam sem medo de terem seus que não explicitado, que diz que somos menos gente do que os homens. E isto se aplica
corpos violados. em diferentes proporções, já que além da reprodução patriarcal, também existe o racis-
Nessa cidade a política era feita também por mulheres. Conselheiras, lideranças de mo, que também compõe, no Brasil, em especial, essa subjetividade geral das massas.
bairros, agentes comunitárias, políticas em todos os âmbitos. Essas mulheres tinham voz, Dessa consciência produzida por meio de mecanismos ideológicos é que se conso-
e o conteúdo que verbalizavam era respeitado e tratado como prioridade, porque a vida lida o que denominamos de cultura do estupro - que terminologicamente está correto,
das mulheres dessa cidade valia o mesmo que a de um homem. inclusive, pela constatação que se fez quanto ao caráter estrutural, objetivo e subjetivo da
reprodução do machismo enquanto ideologia.
***** Por essa razão, é que a definição das formas de violência contra a mulher e, princi-
palmente, as propostas de combate a esse fenômeno social, político e antropológico não
A realidade das cidades brasileiras está longe desse cenário traçado, mas é com esse podem se resumir a reivindicações econômicas. É necessário ir além, é urgente e im-
objetivo que precisamos, cada vez mais, pensar um programa concreto para que o espaço prescindível construir uma identidade contra-hegemônica, cultural e social, feminista e
urbano deixe de ser intimidador às mulheres e, passe a pertencê-las, assim como perten- antirracista.
ce aos homens. Aliás, é preciso observar que, existem diversas formas de violência contra a mulher
Neste sentido, o presente artigo busca provocar reflexões sobre este tema e, para tan- que sequer passam pela agressão física, a exemplo, o próprio assédio sexual, tão comum
to, irá se basear no processo de construção da Audiência Pública sobre a rede de Enfren- nos mais diversos tipos de ambiente de trabalho, mas não só... A quantidade de casos de
tamento à Violência Contra a Mulher da Cidade de São Paulo - ocorrida em 31.03.2017 mulheres que tem vídeos de suas relações sexuais ou fotos de sua intimidade dissemina-
- em que foram realizadas visitas a alguns aparelhos públicos componentes das Redes de dos nos meios virtuais é um exemplo que comprova a necessidade de ampliar o conceito
Enfrentamento à Violência contra Mulher, a fim de partir da análise do real e do concreto que, em regra, se tem sobre o que consiste em a violência contra a mulher.
do cotidiano das mulheres para, assim, provocar as devidas reflexões teóricas.
Entendemos esse como um dos primeiros temas de abordagem necessária do tema b. Protagonismo da mulher no processo de rompimento
mulheres e o direito à cidade: nada pode vir antes do que a garantia da integridade física
da mulher quando ela acessa o espaço público.
do ciclo de violência
Como se sabe, infelizmente, é comum que a mulher em situação de violência sofra
I. O Combate À Violência Contra a Mulher novas formas de violência no processo de rompimento deste ciclo; já que esse rompimen-
to, em muitos casos, significa uma profunda alteração no seu convívio social e, muito
frequentemente, rompimento com o seu círculo social, profissional, familiar e afetivo.

104 105
DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. CIDADE, SUBSTANTIVO FEMININO
A mulher que se encontra nessa situação é, em regra, socialmente (ainda que de forma d. Publicidade e construção da identidade feminina
silenciosa) responsabilizada pela existência da violência, inclusive, de forma a conven-
cê-la que a violência que a ela é desferida é expressão do seu próprio fracasso enquanto A publicidade tem como fim principal, não apenas vender produtos, mas criar de-
mulher. Para ilustrar, nos casos de violência em âmbito doméstico, quando se culpabiliza manda por este ou aquele bem de consumo. Para tanto, o mecanismo de formulação de
a mulher/vítima pelo “fim” da família, em decorrência da mesma ter apresentado denún- propagandas precisa que seu público-alvo se identifique com a fórmula publicitária e
cia contra seu marido/agressor. com a narrativa apresentada.
De outro lado, nos demais casos, a principal reação é buscar justificativas para o É daí que se extrai a importância desse tema para o combate à violência contra a
comportamento do agressor nas condutas individuais da mulher, tais como, a sua rou- mulher, porque a publicidade, como existe, serve apenas para reproduzir e consolidar a
pa, a “postura sexual” ou a “ingenuidade”. Como romper o ciclo de violência envolve, cultura do estupro.
com frequência, a busca de um terceiro para ajudar a mulher/vítima e, inevitavelmente, As propagandas de alguns bens de consumo são exemplos até clichês disso, cujo
também envolve dar ciência do fato aos familiares, amigos, conhecidos, etc., todos esses público principal é o masculino, tais como automóveis e bebidas alcoólicas, nelas, o pa-
prés julgamentos/condenações sociais tornam ainda mais difícil que a mulher/vítima se pel da mulher é o de “brinde”, ou seja, vende-se o produto e a mulher como um objeto
encoraje a fazer a denúncia. sexual.
É preciso romper com a ideia de uma mulher que, no processo de superação do ciclo Ao mesmo tempo, há, também, as propagandas que reduzem a identidade da mulher,
de violência, seja um sujeito passivo e não ativo desse. Nesse sentido, é que políticas pú- exclusivamente, enquanto mães ou esposas, ou seja, no papel de subserviência subjetiva
blicas voltadas ao que se chama de “empoderamento individual da mulher” que está em e objetiva aos homens. Ainda, é preciso fazer referência ao padrão de beleza reproduzido
situação de violência são, de fato, importantes, ainda que tenham limitações do ponto de que contribui para a inferiorização de mulheres que não se adequam a ele.
vista de combater a reprodução do machismo enquanto ideologia porque são políticas de A empresa de comunicação Heads Propaganda, em pesquisa realizada, constatou
recuperação individual. que somente 15% dos posts na rede social do Facebook publicados pelas 127 marcas ana-
A situação de uma mulher negra e periférica, a fim de exemplificar, que por anos lisadas contribuíam para a igualdade entre homens e mulheres, enquanto outros 14%,
foi proibida por seu marido de trabalhar ou em outra situação comum na qual a mulher reforçavam os estereótipos.
tem que abandonar o trabalho para despistar seu agressor, necessariamente precisa de A reprodução de narrativas na televisão também confirma a teoria, dos 33% de ho-
canais/políticas públicas para se reinserir no mercado de trabalho. mens protagonistas, 83% são brancos, enquanto que das 26% de mulheres protagonistas,
Nessas funções, vale mencionar as iniciativas de coletivos e organizações do terceiro 84% são brancas.
setor, quanto à elaboração de oficinas para buscar alternativas para aquela mulher que, Nesse sentido, por entender a publicidade como parte do processo de construção
em situação de violência, precisa encontrar formas de subsistir. É preciso, inclusive, de- e desconstrução da consciência social e coletiva, é que se conclui o papel essencial que
fender que tais iniciativas sejam geridas pelo poder público, inclusive, para que garanta essa tem no presente tema. É preciso ter medidas duras e pedagógicas (a exemplo das
a qualidade do serviço. multas) às empresas que reproduzem conteúdo machista e depreciativo. De outro lado,
é importante também, medidas que incentivem empresas que se comprometam com a
c. Pré-Violência desconstrução desse papel social.
Para tanto, os mecanismos que existem são absolutamente ineficazes. Veja-se que,
em 2014, a CONAR - Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, recebeu
No sentido do quanto exposto, defende-se que, para de fato acumular um programa apenas 18 denúncias de publicidade com conteúdo machista depreciativo, dessas, 17 fo-
de combate à violência contra a mulher, é preciso refletir não apenas sobre o tratamento ram arquivadas.
adequado e humano àquela que foi agredida, mas na desconstrução dessa consciência Conclui-se que, a publicidade deve ter mecanismos de controle público e que não se
coletiva e ideológica, a qual, denominamos de cultura do estupro. diga que tal é cerceamento de liberdade expressão. Ao contrário, trata-se da promoção de
Por essa razão, é que o combate à violência contra a mulher não pode ser tratado ex- valores de liberdade e humanidade por meio da publicidade.
clusivamente como uma questão de segurança pública, mas sim como política de estado,
no sentido de que a erradicação desse fenômeno social só será possível quando houver
e. O papel da educação no combate à violência contra a
um programa coeso, totalizante e multidisciplinar para atender à demanda.
mulher
Em pesquisa realizada pela agência Énóis Inteligência Jovem, em parceria com o Ins-

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DIREITO À CIDADE: UMA OUTRA VISÃO DE GÊNERO. CIDADE, SUBSTANTIVO FEMININO
tituto Vladimir Herzog e o Instituto Patrícia Galvão, revelou-se que 39% das jovens mu-
lheres brasileiras já sofreram algum tipo de preconceito na escola ou faculdade relacio-
nado ao seu gênero.
Por si só, esse dado já demonstra a importância da educação no combate à violência
contra a mulher, enquanto violência de gênero.
Em 2015, na cidade de São Paulo, por exemplo, o debate sobre o Plano Municipal de
Educação causou alvoroço, quando dividiram-se os vereadores da Câmara Municipal,
entre aqueles que defendiam a inclusão do debate de gênero no texto do projeto de lei e
aqueles contrários.
A inclusão sobre o debate de gênero tem o intuito de garantir que nenhuma criança
será discriminada e nem sofrerá violência de gênero por apresentar comportamento que
a diferencie dos padrões heteronormativos - não é nenhuma novidade que a discrimina-
ção e a violência ocorra com frequência no ambiente escolar. Ademais, o debate de gêne-
ro que se quer incluir é também no sentido de impulsionar discussões acerca do debate
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DI CAMPANA - Estar atento. Estar de olho, cauteloso. Esperto a
todo movimento, registrando tudo que acontece: DiCampana.
de violência contra a mulher e para combater a reprodução da consciência social que é
Há centenas de periferias espalhadas pelo mundo. São milhares
responsável direta pelas formas de violência aqui debatidas.
Acredita-se que não é necessário discorrer sobre a importância que a vivência escolar
de pessoas residindo nesses locais que, em muitos casos, abrigam
exerce na construção da identidade dos jovens, já que é o primeiro e principal espaço de a contradição econômica e cultural de uma grande metrópole,
formação coletiva e social da juventude. Neste sentido, é importante que o ambiente es- como mansões e favelas dividindo praticamente o mesmo es-
colar, inclusive, envolva os pais das crianças nesse processo, em especial, porque muitas paço mais a violência que é colocada na conta da periferia. O
delas vivenciam situações de violência no ambiente familiar e, assim, a educação tem cotidiano destas regiões, que abrigam milhões de pessoas, ul-
enorme potencial para desconstruir a própria violência doméstica. trapassa o estereótipo midiático reforçado por clichês e estig-
mas que cativam o povo. No entanto, a cultura, o lazer, a rotina,
a vida do nosso povo é diferente.
Entendendo que a narrativa do nosso povo, vem sendo registra-
da praticamente pelos mesmos meios há décadas, a proposta
do DiCampana é fazer uma cobertura introspectiva e continua
do cotidiano das periferias através da fotografia realizada por
periféricos, favelados.
A construção de outro imaginário na perspectiva cultural e a
denúncia de violações de direitos humanos conduzirão a nossa
produção, visando contribuir para construção de um imaginário
que contemple os múltiplos recortes da periferia.

Fotógrafos:
gSé Silva
José Cícero da Silva
Léu Brito
Naná Prudêncio Zalika
Weslley Tadeu

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Samara Takashiro

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AS MULHERES E O DIREITO À CIDADE: UM GRANDE DESAFIO DO SÉCULO XXI
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REALIZAÇÃO

Formada em Cinema e Fotografia a paulistana Samara Takashi-


ro gosta de registrar o urbano, as contradições do cotidiano e
detalhes que passariam despercebidos pelos olhares menos
atentos, sendo assim, tem estado na rua para registrar a nossa
sociedade, seus acontecimentos e mudanças. Com alguns dess-
es registros teve a oportunidade de participar de algumas ex-
posições coletivas, concursos e livros.

APOIO

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