Você está na página 1de 16

CORPOGRAFIAS EM DANÇA:

um experimento entre dança e cidade

Graziela Andrade1 (UFMG)

RESUMO

Partindo-se da noção de corpografias - sob o ponto de vista de Britto e Jacques – discuti-se as


concepções de lugar, espaço e ambiência como tempos distintos da experiência corporal na entidade
física, por vias da improvisação em dança. A metodologia, em princípio desenvolvida para uma
pesquisa científica, agora é experimentada como prática de composição em sala de aula, na qual os
alunos/bailarinos são convidados a discutir suas relações com a cidade, relacionando verbos e gestos
em um registro videográfico em espaços públicos com os quais se relacionem. Assim, a composição
coreográfica é realizada tendo-se em conta a teoria Labaniana, através da qual associam-se Fatores do
Movimento e dinâmicas a cada um dos verbos que, por sua vez, estão associados aos espaços
experimentados na cidade. Junta-se a isso a representação de uma cidade fictícia, alterada a cada
experimento, que irá determinar os deslocamentos dos alunos/bailarinos pela sala/palco, diante da
provocação do acaso.

Palavras-chave: Corpografias; dança; improvisação

ABSTRACT

Starting from the notion of Bodygraphies - from the point of view of Britto and Jacques - to discuss
the concepts of place, space and ambience as different times of body experience in the physical entity,
by way of improvisation in dance. The methodology in principle developed for scientific research is
now experienced as a practical composition in the classroom, in which students / dancers are invited to
discuss their relationship with the city - linking verbs and gestures in a video, recorded in public
spaces to which they relate. Thus, the choreography is performed taking into account the Labaniana
theory by which are associated Factors of Mouvement (Space, Weight and Time) to each of the verbs,
in turn, are associated with places experienced in the city. Add in this the representation of a fictitious
city, altered at each experiment which will determine the displacements of the students/dancers
through the dance studio/stage as they face the provocation of the chance procedures.

Keywords: Bodygraphies; dance; improvisation

1
Graziela Andrade é artista da dança e professora adjunta do curso de Licenciatura em Dança da UFMG.
Doutora (2013) em co-tutela entre a UFMG, escola de Ciência da Informação e a Paris-Est, École de Science du
Langage. É mestre em Ciências da Informação (UFMG, 2008) e possui especialização em Mídias, Linguagens e
Novas Tecnologias (UNI-BH 2002). Tem suas pesquisas acadêmicas voltadas, principalmente, para as questões
que tangem ao corpo, às tecnologias e ao espaço, temas frequentemente analisados a partir de experiências no
campo da dança. Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4236763Z3

1
Introdução: em torno da espacialidade

A trama teórica2 para a qual se desenvolveu a metodologia de pesquisa que aqui será
apresentada, direcionava-se à hipótese de que o corpo experimenta, sensivelmente, a
informação, e que por vias da gestualidade podemos evidenciar essa subjacente relação. Para
tanto, através da improvisação em dança em espaços públicos, buscou-se uma produção de
sentido entre verbos e gestos, necessariamente imbricados ao espaço de construção do
movimento. Foi justamente a partir das discussões sobre espacialidade e corpo que
alcançamos a noção de corpografias, tão cara a nossas questões. Tomemos assim, como
princípio desta apresentação, os recortes teóricos sobre os conceitos de lugar, espaço e,
posteriormente, corpografias e ambiências.

Embora, tenha sido realizada uma ampla discussão sobre tais categorias, convocando autores
como – Sennett (2013), na perspectiva crítica que denuncia a privação sensorial impelida
pelos espaços da cidade que tolhem o corpo; Foucault (2010), sugerindo que os corpos são
docilizados e disciplinados pelas forças do poder e da cultura; Augé (1992 e 2007), que no
contexto da supermodernidade denuncia o esvaziamento do corpo no que tange ao seu
pertencimento e ao reconhecimento sensório em relação ao espaço público; Certeau (1990 e
1998), que vasculhando práticas cotidianas caracteriza o espaço como um lugar, quando
praticado; e, por fim, Merleau-Ponty (1971 e 2000) que centralizando a experiência no corpo
nos lembra que o espaço é existencial e a existência é espacial e, portanto, há tantos espaços
quanto houver experiências espaciais distintas –, aqui nos ateremos aos achados de pesquisa,
que propuseram a análise do lugar e do espaço a partir das noções de potência e atualização.

Assim sendo, ao nos referirmos ao lugar, estaremos mencionando o aspecto geográfico e


geométrico da categoria e que, simultaneamente, reserva em si o tempo empilhado da história.
Esse lugar é dono de inscrições anteriores, de outras presenças, de experiências, de alteridades
e, nesse sentido, sugere possibilidades em devir, anteriores ao corpo que o experimenta –
assim, o lugar é da ordem da potência. Por sua vez, o espaço é, para nós, um acontecimento na
presença do corpo, é a escrita da experiência em ato, é operação reversível – mas irrepetível –

2
A reflexão aqui apresentada pode ser vista em profundidade na tese de doutorado “Corpografias em Dança: da experiência
do corpo sensível entre informação e gestualidade”, disponível em: http://www.corpografias.com/ (Acesso: Novembro,
2015).

2
de uma atualização do lugar que jamais se esgota. Inscrições são sempre resultantes da escrita,
do exercício. No instante da efetivação de um lugar em espaço, corpo e lugar inscrevem-se
simultaneamente um no outro, espacializam-se, corpografam-se.

Para compreender o termo corpografias3 adotamos a perspectiva de Britto e Jacques (2012),


na qual corpo e cidade se coimplicam, ou seja, se configuram mutuamente - de maneira em
que os corpos se inscrevem na cidade e as cidades nos corpos. Para fundamentar essa noção,
as autoras recorrem à ideia de percepção em Nöe4 (2004) que, do ponto de vista da cognição e
da filosofia da mente, irá considerá-la, necessariamente, como um modo de ação, estando,
portanto, ligada ao movimento.

É a partir desse contexto que o conceito de corpografia urbana é traçado pelas autoras, como
consequência de uma experiência sensório-motora vivida no espaço, a partir da qual os corpos
ficam inscritos nas cidades e essas se inscrevem e configuram nossos corpos. É desta forma e
direcionando o termo à experiência de resistência nas cidades que Britto e Jacques afirmam:

Chamaremos de corpografia urbana este tipo de cartografia realizada pelo e


no corpo, que corresponde a diferentes memórias urbanas que se instauram
no corpo como registro de experiências corporais da cidade, uma espécie de
grafia da cidade vivida que fica inscrita, mas que, ao mesmo tempo,
configura o corpo de quem a experimenta. (BRITTO; JACQUES, 2012,
p.144-145, grifo das autoras)

Trata-se, assim, de uma espécie de cartografia corporal, complexa e processual, na qual o


corpo expressa a síntese de sua interação com a cidade - de maneira menos óbvia e mais
intricada do que, à primeira vista, essa afirmação pode indicar. É importante salientar que,
como querem as autoras, esse exercício de articulação entre corpo e cidade é pensado a partir
de uma lógica processual que considera a multiplicidade de ocorrências simultâneas e
contínuas de diferentes naturezas e escalas de tempo, que não podem ser distinguidas.

3
Termo inicialmente sugerido pelo arquiteto e urbanista Alain Guez apud Britto e Jacques (2012) para designar o registro da
cidade no corpo do transeunte que a experimenta.
4
O principal argumento defendido por Nöe (2004) é o de que a percepção não é algo que nos chega inesperadamente, não é
algo que nos acontece, e sim algo que operamos. Com essa, aparentemente, simples inversão, ele promove uma mudança de
paradigma que irá reorientar pesquisas, principalmente na área de cognição, a partir da concepção na qual a percepção deixa
de ser algo que, simplesmente, surge de fora para dentro, ou seja, de passiva a percepção passa a ser compreendida como um
fenômeno ativo, no qual estamos plenamente implicados. Assim, o mundo torna-se disponível à percepção por vias de nosso
movimento e interação, o que insere o corpo no campo da experiência.

3
Ao fenômeno relacional está pressuposto um sistema complexo, no qual as coisas são menos
entidades em si e mais sistemas dinâmicos, coevolutivos, onde prevalece “a noção de que
todas as coisas existentes são correlatas, em alguma medida, porque partilham as mesmas
condições de existência e, assim afetam-se mutuamente” (BRITTO; JACQUES, 2012, p.148).
O corpo e o espaço se ambientam, se reconhecem e se conformam pelo compartilhamento de
uma só existência e, nesse contexto, destaca-se, diante das noções de processo e continuidade,
a questão da temporalidade ininterrupta. Para as autoras esse é um fator essencial ao se pensar
as articulações entre o corpo e o espaço, a dança e a arquitetura, pois que é na ação do tempo
que se engendram as relações que modificam, irreversivelmente, o estado das coisas.

Submetidas desde sempre à degradação imposta pela ação do tempo, as


coisas existentes manifestam-se como sínteses transitórias dos seus
processos relacionais com outras em seu ambiente de existência. Seus
estados, portanto, são sempre circunstanciais, por mais estáveis que pareçam.
E seus processos interativos bem menos nítidos do que se costuma supor.
(BRITTO, 2008, p.13)

Ora, é, obviamente, a própria ação do tempo que instaura o movimento, articulando corpo e
espaço. Uma das resultantes dessa ação, para Britto e Jacques (2012), é a composição de
ambiências. O conceito cunhado pelo filósofo e urbanista francês Jean François Augoyard tem
caráter pluridisciplinar e vem sendo desenvolvido por pesquisadores do Centre de recherche
sur l´espace sonore et l´environnement urbain (CRESSON). De modo geral, diz respeito à
qualificação dos ambientes, resultante do uso pelos habitantes.

Integrantes de um grupo de pesquisa sobre Arquitetura, Subjetividade e Cultura, Duarte et al


(2008) explicam que a noção de ambiência envolve uma espécie de atmosfera sensível e
afetiva, que confere à entidade física espaço a entidade poética, sensorial e multidirecional.
Dessa forma, eles pensam a ambiência enquanto força motriz da experiência dos corpos no
espaço e, com isso, sugerem a ela alguns atributos intrínsecos que são: a possibilidade de
evocar a memória sensível, a participação nos processos de construção identitária e seu
potencial em permitir a experiência espacial, bem como sua apropriação. A ambiência é
dotada de características - por exemplo, aquelas de caráter sensitivo, como iluminação, sons,
ritmos, clima, configuração física ou algum outro aspecto sensível motivador do indivíduo –
que podem estruturar certa identificação pessoal. É essa experiência, muitas vezes aprazível e

4
essencialmente sensível do indivíduo, que é multiplicada, compartilhada e se faz reconhecer
em uma ambiência.

Assim, a ambiência sugere uma apropriação simbólica do lugar devido à atuação - sempre
perceptiva, vale lembrar - do usuário, sendo, portanto, condicionada por uma experiência
espacial sensível. Da mesma maneira, como Britto (2008) sugere à ideia de coevolução e
processo, também essa dinâmica da ambiência é vista por Duarte et al (2008) como fruto de
uma ação contínua e ininterrupta, como um resultado transitório da experiência do indivíduo e
que tem a capacidade de modificá-lo, e também ao espaço por ele apropriado.

Destarte, o campo de processos instaurado e vivenciado nas corpografias – sempre, como


resultado da ação interativa do sujeito – promove e configura, igualmente, ambiências e
corporalidades. As ambiências sendo a qualificação do espaço em consequência das
experimentações realizadas pelo corpo, e as corporalidades como registros dessas ações no
corpo, estabilizações singulares advindas da percepção sensório-motora.

As corpografias permitem tanto compreender as configurações de


corporalidades em termos de memórias corporais resultantes da experiência
de espacialidade, como compreender as configurações de ambiências
urbanas em termos de memórias espacializadas dos corpos que a
experimentam. Elas expressam o modo particular de cada corpo conduzir a
tessitura de sua rede de referências informativas, a partir das quais o seu
relacionamento com o ambiente pode instaurar novas sínteses de sentido que
não apenas complexifiquem suas habilidades perceptivas e coadaptativas,
mas que, simultaneamente, requalifiquem as condições interativas das
ambiências geradas nesse processo. (BRITTO; JACQUES, 2012, p.150)

Assim, as corpografias em suas configurações transitórias e individuais são utilizadas pelas


autoras como uma fonte de reflexão a respeito de nossas experiências urbanas e são, para elas,
processos valorosos no que tange aos modos de formulação das cidades e a urgência de um
redesenho do espaço público contemporâneo, no qual o corpo esteja em questão. Para elas, o
estudo dos padrões corporais, gestos e movimentos podem auxiliar na compreensão do espaço
urbano experimentado e, nesse contexto, sugerem um olhar cuidadoso e curioso para as
possibilidades de microrresistências ou para o que chamam de desvios da lógica espetacular.

5
Tendo em vista essa discussão “espaço-corporal”, seguiremos com a descrição da
metodologia de pesquisa que nomeamos Corpografias em Dança.

Metodologia de Pesquisa

A metodologia que apresentamos foi desenvolvida em três distintas etapas que abarcaram o
traçado da informação à gestualidade a partir da experiência de uma corpografia dançada, ou
seja de uma improvisação em dança acontecida em distintos lugares públicos. É importante
destacar que optamos por realizar toda a aplicação da pesquisa através da internet, uma vez
que esse meio atendeu nossa intenção de alcançar diversos ambientes culturais, apreendendo
assim, lugares e corpos distintos.

Na primeira etapa da pesquisa a intenção foi a de selecionar e traçar um breve perfil dos
participantes, que deviam então sugerir um lugar público em sua cidade, no qual pudessem
elaborar e registrar um curto vídeo de improvisação em dança e, em seguida, nos enviar.
Nosso primeiro passo foi então viabilizar a comunicação e instrumentalização entre
pesquisadores e pesquisados através de ferramentas disponíveis na internet. Nesse processo,
buscamos alguns sites que ofereciam os serviços de criação de blogs, elaboração de
formulários e upload e distribuição de vídeos. Optamos pelos seguintes5: Blog
(www.blogspot.com); Formulário (www.jotform.com) e Vídeo (www.vimeo.com).

Em um segundo momento, voltado mais diretamente para a aplicação da pesquisa,


divulgamos uma chamada de participação direcionada a bailarinos que, uma vez interessados,
eram convidados a visitar o blog da pesquisa onde era possível obter mais informações sobre
o processo e, ao mesmo tempo, acessar e preencher um breve formulário de participação.

Devido a abrangência da pesquisa (América do Sul e Europa) a chamada foi feita em


português, espanhol, inglês e francês, tal difusão aconteceu em redes sociais especializadas
em dança, revista eletrônica, facebook e listas de emails direcionadas para estudantes e
5
Para ter acesso as ferramentas de pesquisa on line acesse: http://corpographie.blogspot.com.br/ ;
http://corpographiefr.blogspot.com.br/ (francês); http://corpographiept.blogspot.com.br/ (português);
http://corpographieen.blogspot.com.br/ (inglês); http://corpographiees.blogspot.com.br/ (espanhol).
Para assistir aos vídeos e saber mais sobre a pesquisa: www.corpografias.com

6
profissionais da dança. Ao final do processo obtivemos 47 formulários preenchidos, sendo 1
em inglês, 10 em francês, 9 em espanhol e os outros 27 em português. As inscrições vieram
de 29 cidades diferentes localizadas em um dos 10 países seguinte: Alemanha, Bélgica,
Brasil, Colômbia, Chile, Espanha, França, Itália, Venezuela e República Checa. Essa
variedade atendeu ao nosso desejo de alcançar lugares distintos para o registro dos vídeos e
mostrou-se relevante para o escopo de nossa pesquisa.

Iniciou-se então a próxima etapa da pesquisa, que tratava do efetivo registro dos vídeos. Os
participantes foram instruídos a escolher três verbos que, na percepção deles, qualificassem o
local escolhidos para dançar e, por fim, deviam se dirigir até esse lugar e lá improvisar os
movimentos inspirados também pelos verbos escolhidos. O vídeo deveria ser registrado uma
só vez sem qualquer tipo de edição. Junto com todas as instruções de gravação, os bailarinos
receberam também um protocolo sobre como inserir seu vídeo na página do vimeo que
havíamos criado. No total, recebemos 19 vídeos, no entanto, três deles estavam fora das
normas e não foram considerados em nossas análises.

Interessados que estávamos em conhecer mais sobre o processo criativo de cada um dos
dançarinos e compreender suas sugestões a partir dos elementos que receberam para a
improvisação, propussemos a eles que respondessem um breve questionário a ser registrado.
Neste caso, optamos também pelo formato vídeo, pois pretendíamos visualizar também a
gesticulação do bailarino ao mencionar o processo pelo qual haviam passado. No vídeo
questionário os bailarinos deviam justificar sua escolha do espaço, associado à ideia do que
consideravam como espaço público; falar um pouco da experiência e das sensações de dançar
naquele lugar e buscar uma associação entre cada um dos três verbos escolhidos e um
movimento realizado.

Como previsto, a seleção dos participantes finais foi acontecendo de maneira natural, de
acordo com o interesse e disponibilidade de cada um, por fim, obtivemos 09 vídeo
questionários, ou seja, foram nove as bailarinas que cumpriram todas as etapas da
metodologia, sendo: 05 no Brasil (Campinas [02], Barão Geraldo, Salto e Rio de Janeiro), 02
na França (Paris e Lille) e 01 na Alemanha (Berlim).

7
Por não ser o objeto do presente artigo, não iremos detalhar aqui a análise do objeto empírico,
no entanto é relevante salientar que ela aconteceu em três tempos. A tríade deveu-se ao modo
como os instrumentos de pesquisa foram aplicados, também em três distintas etapas:
formulário, vídeo de dança e vídeo de questionário. E, principalmente, aos três tempos da
relação entre corpo-espaço que foram descritos anteriormente, sendo o primeiro aquele da
ordem da potência e que corresponde ao lugar; o segundo refere-se às atualizações e diz
respeito ao espaço; enquanto o terceiro acontece por vias da apropriação e está associado às
ambiências.

Por fim, é importante saber também que no intuito de se compreender a função dos verbos
selecionados pelos participantes da pesquisa enquanto possibilidades de ações ou
movimentos, recorremos às formulações de Laban (1978), especialmente aos Fatores do
Movimento que integram a Eukinética6.

A metodologia que acabamos de descrever serviu então de inspiração para a disciplina


Práticas de Dança V, lecionada no curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal
de Minas Gerais no segundo semestre do ano de 2015, e que gerou a composição
“Corpografias em Dança: ações entre o corpo e a cidade” em parceria com o Laboratório de
Artes Digitais e com o Laboratório de Áudio do curso de Cinema de Animação e Artes
Digitais da UFMG (CAAD), sob a coordenação do professor Jalver Bethônico. Passemos pois
a esse ponto.

6
A Eukinética compreende o estudo sobre os aspectos qualitativos do movimento, e em torno dessas qualidades incluem-se o
ritmo, a dinâmica e a expressividade, contidas na movimentação. O sistema volta-se para a relação entre o movimento do
corpo e sua capacidade de expressão, buscando revelar as nuances que podem ser apreendidas em uma ação. Para compor a
Eukinética, Laban elabora um preceito denominado Effort Shape, no qual são conjugados, o que ele determina os quatro
fatores básicos do movimento, ou, simplesmente, Fatores do Movimento: Peso, Espaço, Tempo e Fluência. Outros
elementos que integram o estudo e que também se relacionam aos fatores listados são as Ações do Movimento, divididas em
Incompletas e Completas ou Básicas, que apresentam suas ações Derivadas.

8
Composição do instante

Um dos objetivos da disciplina Práticas de Dança V é fazer a revisão dos Fatores do


Movimento propostos por Laban que, até este momento do curso, já foram aplicados nos
quatro períodos anteriores, sendo eles: Peso, Tempo, Espaço e Fluência. Dessa maneira, o
contexto se apresentou propício a uma aproximação com a metodologia Corpografias em
Dança que seria, então, experimentada pela primeira vez em sala de aula. O exercício acabou
gerando o trabalho “Corpografias: ações entre corpo e cidade” que participou de uma
seleção interna e será apresentado no evento “Mostra Junto!” da Escola de Belas Artes da
UFMG.

No processo de criação, os alunos7 foram convidados a escolher espaços públicos por eles
frequentados rotineiramente e, junto a isso, deveriam selecionar três verbos que de alguma
maneira se associassem a escolha inicial. Em sala, ouvimos juntos os relatos uns dos outros a
fim de compreender as motivações individuais que justificavam a seleção de cada um dos
seguintes lugares: Pracinha do Bairro, Praça da Savassi, Igreja, Rodoviária, Pista de Corrida,
Estação de Metrô, Atalho da Escola de Belas Artes, Rua de Casa, Porta de Escola
Fundamental e Viaduto.

Embora pudessem escolher qualquer lugar da cidade, surpreendeu-nos o fato de que, na


grande maioria dos relatos trazidos, estavam presentes sensações de incômodo, medo,
violência, apreensão, correria, invasão, entre outras – o que muito nos fez pensar sobre a
maneira como nos relacionamos com a cidade, especialmente as mulheres que eram a maioria
na sala. Sendo assim, os alunos foram convidados a escrever sobre essa experiência e todas
essas sensações foram retomadas e trabalhadas no momento do exercício de composição,
cujas especificidades descrevemos a seguir.

A partir dos três verbos que se associaram a cada um dos lugares selecionados, fizemos uma
atividade coletiva que foi a de determinar, sob o ponto de vista labaniano, os Fatores de
Movimento que poderiam ser associados a cada ação e, consequentemente, tomando as Ações

7
Os alunos participantes desta disciplina, em ordem alfabética são: Ana Paula Lima, Bárbara Silveira, Camila Magalhães,
Duna Dias, Eduarda Lobo, Flaviane Lopes, Heloisa Helena, Lívia Simão, Luísa Machala e Marcus Coelho.

9
Básicas e Derivadas de Laban, refletimos sobre como cada um dos verbos poderia integrar
uma “família de ações”. Feito isso, os alunos tinham então, três Fatores8 para serem
trabalhados na criação de células de movimento, relacionados é claro, aos verbos escolhidos.
Após essa atividade chegamos ao seguinte resultado:

Figura 01: Ações Básica e Derivadas

Fonte: Autora - Fotografia de cartaz feito em sala de aula

Assim, na Figura 01 temos, por exemplo, a Ação Básica Torcer, que tem como Fatores de
Movimento: Espaço Flexível, Peso Firme e Tempo Sustentado. Sua “família” de Ações
Derivadas, ou seja, aquelas que possuem as mesmas variações de Fatores seriam: Arrancar,

8
Optamos por trabalhar apenas com Ações Completas ou Básicas que são aquelas onde é possível evidenciar as atitudes do
agente perante a ordenação dos Fatores Espaço, Peso e Tempo, necessariamente. Elas serão caracterizadas pela combinação
entre as oito variações possíveis da movimentação em relação a esses três Fatores. Não se tem em conta o fator Fluência, uma
vez que ele não é condicionante para as ações básicas, ou seja, a ação ocorre independente da qualidade do fluxo. Tal fator
informa mais sobre o aspecto emocional do movimento e não sobre a experiência ativa.

10
Colher e Esticar. Por fim, os verbos escolhidos pelos alunos que possuem os mesmos Fatores
e, portanto, integram a “família” de Torcer são: Atravessar, o próprio Torcer, Correr e Andar.

Este exercício foi feito sucessivamente até que todos os verbos escolhidos fossem encaixados
no quadro, o que gerou bastante discussão em sala, uma vez que nem sempre as interpretações
eram coincidentes e percebemos que a intenção do verbo e seu modo de execução pode fazer
com que um mesmo verbo integre mais de uma “família”. Quanto a isso, temos, por exemplo,
o verbo Correr que apareceu em quatro “famílias” diferentes já que em nossas discussões
chegamos a conclusão de que crianças correndo da saída da escola, alguém correndo em uma
estação de metrô lotada, um homem apressado para pegar o ônibus e uma mulher fazendo
cooper, são variações de uma mesma ação, que apontam para uma combinação diferente entre
os Fatores do Movimento.

Os passos seguintes foram, diante dos Fatores destrinchados, elaborar os movimentos para os
três verbos, fazendo deles uma única e breve sequência e, então, registrar um vídeo em que
fossem executados, no espaço público, os movimentos criados. Os vídeos foram assistidos por
todos e, uma vez mais, os alunos puderam relatar suas experiências e sensações pela cidade.
Posteriormente, os bailarinos puderam criar um roteiro pela cidade, que consistia em, dentro
das opções trazidas pelos colegas, escolher duas outras sequências de movimento para
realizar. Por fim, todos eles aprenderam os movimentos uns dos outros. Todo o processo está
sendo registrado em diários de bordo individuais que serão entregues ao fim do semestre, para
avaliação normativa.

Quanto a ocupação do espaço de atuação em sala, um novo jogo foi proposto. Foram
recortadas em uma cartolina algumas formas que representavam livremente cada um dos
lugares visitados e, então, pediu-se aos alunos que dispussessem esses espaços em uma
espécie de cidade fictícia, na qual fosse possível provocar a relação entre eles. Feito isso, os
alunos projetavam na sala de aula a cidade que acabaram de montar. No entando, a cada novo
encontro tudo recomeçava e, com isso, a cidade tornara-se inconstante e provocava sempre
muitos debates sobre sua disposição. Para ilustrar o dito, vejamos a matriz abaixo que
representa um modelo da cidade:

11
Figura 02: Uma matriz da cidade fictícia

Da esquerda para a direita


temos:
1.Rodoviária
2.Viaduto
3. Rua de Casa
4. Escola
5. Estação de metrô
6. Pista de Corrida
7. Atalho
8. Pracinha do bairro
9. Igreja
10. Praça da Savassi
11. Outra estação
(posteriormente retirada)

Fonte: Elaborado pela autora

Diante deste material, de maneira despretensiosa, iniciou-se uma experiência de composição


coreográfica, na qual a formulação espacial conta com o acaso. Comandos de voz
determinavam as entradas e saídas dos bailarinos que poderiam executar sua sequência de
movimento, seu roteiro, o movimento que estivesse sendo executado pelo colega e diversas
outras possibilidade que foram surgindo na experimentação. Dessa maneira, foram se criando
transitórias ocupações do espaço que ia sendo desenhado a partir de múltiplas propostas
surgidas por simples e instantâneos comandos. Vejamos como exemplo alguns comandos:

 Cidade: Todos os alunos entram no palco e executam suas próprias sequências no


lugar determinado pelo desenho;
 Rodoviária: O bailarino que escolheu este lugar entra e executa sua sequência;
 Roteiro: Caso a Rodoviária esteja sendo executada, todos os bailarino que tem roteiro
em rodoviária entram e executam o mesmo movimento;
 Geral: Todos os bailarinos entram e executam o movimento que estiver sendo
desenvolvido anteriormente na cena.

Uma vez que este trabalho está sendo desenvolvido em parceria com os Laboratórios já
citados, tivemos então um primeiro ensaio assistido pelo professor Jalver Bethônico e que
gerou duas ações. A primeira foi a captação do material sonoro dos vídeos realizados pelos
alunos, bem como sua edição e criação de uma trilha sonora para cada um dos dez ambientes

12
experimentados. Nesta etapa participa também Leandro Souza, doutorando da Escola de
Música da UFMG e integrante do Laboratório de áudio. Além da composição da trilha, ambos
atuarão com improvisação9 musical nas apresentações do grupo.

A segunda ação foi a utilização de um software de programação para sistemas musicais


interativos, denominado Pure Data-extended (PD-extended), que foi capaz de reproduzir,
digitalmente, os comandos testados em sala. Somando trilhas individuais e sinais sonoros, aos
quais se atribuí uma função específica - ou seja, cada um representa um comando diferente -,
torna-se possível para os bailarinos reconhecer o comando de movimento a partir do som
executado. Assim, poderá ser realizada no palco uma composição instantânea e inesperada do
espaço e do movimento, em que as combinações vão da harmonia ao caos, do regimento
concreto às falhas – bem como em nossas cidades. Reservadas as devidas proporções, faremos
com o movimento algo semelhante ao que um DJ faz com a música ou um VJ com a imagem.
Orquestraremos o espaço por vias do movimento. Vejamos a interface atual10 do programa:

Figura 03: Teste com PD-extended

Fonte: Sistema elaborado por Jalver Bethônico, figura pela autora

9
Espera-se que isso aconteça quando toda a cidade estiver em cena, ou seja, todos os bailarinos juntos executando seus
próprios movimentos. Isso se dará, uma vez que, não está determinada até o momento uma trilha sonora para toda a cidade.
10
O trabalho está, atualmente, em desenvolvimento e, portanto, os comandos e recurso ainda podem sofrer alterações.

13
É possível operar esse sistema, de maneira simples, usando os teclados do computador para
disparar o som, que dará origem ao movimento, e o sinal, que determinará os modos de
composição do espaço. Por exemplo, apertando a letra “f” escuta-se uma catraca que será
compreendida pelos bailarinos como entrada de roteiros em cena, pressionando o número “1”
inicia-se a trilha de Atalho e a bailarina desse lugar deve entrar em cena. Sendo 10 lugares
diferentes e até agora 05 sinais em uso, temos uma combinação exponencial bastante vasta
para um espetáculo.

Há ainda outro desafio que envolverá público e artistas em uma interação improvisatória por
vias do aplicativo what´s app. Na entrada do auditório no qual se dará a primeira apresentação
do trabalho, o público será instigado a participar de um grupo de what´s app, previamente
criado, chamado Corpografias. As pessoas perceberão, ao entrarem no auditório, que a
conversa desse grupo estará sendo projetada em um telão e uma pergunta constante será
enviada por alguém da produção/bailarinos: Que verbos tem essa cidade?

Neste momento, em silêncio, os bailarinos estarão deitados no chão, de olhos no telão e


poderão ter celulares na mão, participando da interação. Uma vez que nessa conversa
apareçam verbos que, individualmente, interessem aos bailarinos, eles se levantarão, dirão em
voz alta a palavra que lhes atraiu e, em seguida, irão elaborar um movimento curto que se
relacione com aquele verbo – voltando para o lugar inicial após improvisarem. Esta dinâmica
será sucessiva até ser dado o terceiro sinal.

Por fim, teremos ainda a edição das imagens de todos os vídeos registrados e que, neste
primeiro momento, funcionarão como um cenário projetado em um telão no fundo do palco.
Essa edição será elaborada pelo estudante Marcelo Macieira, também integrante do
Laboratório de Artes Digitais e aluno do CAAD. No entanto, pretende-se melhor elaborar esse
recurso, de modo que ele também se torne interativo na relação compositória entre música,
imagem e movimento.

14
Considerações Finais

Entendida como uma metodologia de criação e composição as Corpografias em Dança


reuniram em um mesmo trabalho: reflexões sobre espacialidade e corpo, problematização
sobre as relações com a cidade que habitamos, aplicação dos Fatores do Movimento em
Laban, aplicação das dinâmicas da coreologia11, improvisação, desafio de uma composição
instantânea, produção de imagem em vídeo e relação com as tecnologias, entre elas o telefone
celular.

Diante dessa rede de ações intrincadas, o trabalho provocou o envolvimento dos alunos e tem
despertado interesse e expectativas quanto a apresentação de seus primeiros resultados.
Enquanto prática de disciplina mostrou-se um método eficiente que deu margem à pesquisa
do movimento embasada em teorias da dança e foi plenamente capaz de realizar um rico
diálogo interdisiplinar que, longe de ser ferramental, fez com que a construção do trabalho se
desse diante das medidas e questões que as áreas da dança, das artes digitais e da música
trouxeram para todos os envolvidos.

Por ter sido essa uma experiência bastante positiva de ensino-aprendizagem da dança
envolvendo as tecnologias e desdobrando ações do corpo na cidade, pretende-se desenvolver
um formato workshop que possa atender a mais alunos e contruir novas cidades
improvisatórias.

11
Também derivada dos estudos de Laban a aplicação da Coreologia foi também uma etapa da composição dos
movimentos, na qual os alunos, depois de aplicaram os Fatores de Laban, puderam experimentar em suas
variações as seguintes dinâmicas: Impulso, Impacto, Rebate, Balanço e Contínuo.

15
Referência Bibliográfica

ANDRADE, Graziela Corrêa de. Corpografias em Dança: da experiência do corpo sensível entre a
informação e o gesto. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Ciência da
Informação, 2013

AUGÉ, Marc. Non-lieux: introduction à une Anthropologie de la Surmodernité. La librairie du XX°


siècle (Collection). Paris: Éditions du Seuil, 1992.

AUGÉ, Marc. Não-Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Tradução Maria


Lúcia Pereira. 6. ed. Campinas: Papirus, 2007, cap.3, p. 71-105.

BRITTO, Fabiana Dultra. Corpo e Ambiente. Co-determinações em processo. Cadernos PPG-AU,


ano 6, nº 1, 2008. Disponível em:< http://www.ppgau.ufba.br/node/39>. Acesso em: 10 jun. 2013.

BRITTO, Fabiana Dultra; JACQUES, Paola Berenstein. Corpo e Cidade. Coimplicações em processo.
Revista UFMG, Belo Horizonte, v.19, n.1 e 2, p.142-155, jan./dez. 2012.

CERTEAU, Michel de. L´invention du quotidien I. Arts de faire. Éditions Gallimard, 1990.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. 3.ed., v.1. Tradução Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.

DUARTE, C.R; COHEN, R.; SANTANA, E.; BRASILEIRO, A.; PAULA, K.; UGLIONE, P.
Explorando as ambiências: dimensões de possibilidade metodológicas na pesquisa em arquitetura. In:
Colloque International Faire une Ambiance, Grenoble, 2008. Anais.... Disponível em :
<www.asc.fau.ufrj.br> . Acesso em: 10 fev. 2010.

FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis. In: Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel
Ramalhete. 38. ed. Petrópolis: Vozes, 2010. cap. 1, p.131–163.

LABAN, Rudolf. Domínio do Movimento. (Org.). Lisa Ullmann. Tradução Anna Maria Barros de
Vecchi e Maria Sílvia Mourão Netto. 5. ed. São Paulo: Summus, 1978.

LABAN, Rudolf. Choreutics. Alton, Hampshire, UK: Dance Books Ltd. 2011a.

LABAN, Rudolf. Vision de l´espace dynammique. In: MACEL, Christine; LAVIGNE, Emma. (Org.).
Danser sa vie: écrits sur la danse. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2011b, p.109-122.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tradução Reginaldo di Piero. Rio de


Janeiro: Freitas Bastos, 1971.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o Invisível. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.

SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Tradução: Marcos
Aarão Reis. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

16

Você também pode gostar